Resumo: Defendemos a análise teleológica das leis que regulam a cooperação jurídica internacional, priorizando a celeridade e efetividade da justiça, utilizando a ordem pública como preventivo para situações teratológicas, e não, como óbice ao funcionamento da justiça.
Sumário: I. Medidas de caráter executório e a denegação de exequatur. II. Conclusões. III. Referências.
A eficácia das cartas rogatórias no Brasil prescinde do juízo de delibação exercido atualmente pelo Superior Tribunal de Justiça.
Enquanto tribunal competente, o STF tinha farta jurisprudência denegando o exequatur a várias cartas rogatórias, que continham medidas de caráter executório por considerá-las contrárias à ordem pública — por exemplo, em pedidos de arrestos, penhoras, busca e apreensão de menores, e quebra de sigilo bancário.
Entendia o STF que tais medidas, por se revestirem de caráter executório, só poderiam ser deferidas se já houvesse sentença sobre o fato. Por isso, era inviável a concessão do pedido na carta rogatória, antes da homologação da decisão estrangeira.
A origem do impedimento remontava ao Aviso n. 1, de 1847, permanecendo na Lei n. 221, de 1894. Posteriormente, apesar da revogação da lei, o STF continuou a decidir na mesma direção, agora com base no princípio da ordem pública.[1]
Um dos principais motivos para a denegação a esse tipo de diligência foi desenvolvido pelo ex-ministro do STF, Antonio Neder, no julgamento, em 26 de março de 1979, da Carta Rogatória n. 2.963, dispondo que “a carta rogatória não pode afastar, por via oblíqua, a necessidade imperiosa de a Justiça brasileira homologar sentença estrangeira”.
A partir de então, consagrou-se o posicionamento do STF pela denegação de todas as rogatórias de caráter executório, de forma a preservar a ordem pública, pois sua concessão, segundo o entendimento, na época, dominante, implicaria na execução de ato que no Brasil dependia de autorização judicial fundamentada.
No mesmo sentido, inúmeros são os precedentes que compartilham desse entendimento anacrônico do STF[2], sendo invocadas como óbice ao deferimento dos pedidos, no mais das vezes, a ordem pública e a soberania nacional.
O entendimento começou a ser abrandado pela concessão das medidas provenientes de países com os quais havia convenção bilateral ou multilateral expressa sobre a matéria. Era o caso do Mercosul, com o Protocolo de Medidas Cautelares, e de Portugal, com uma convenção bilateral de cooperação. Deferiu-se uma carta rogatória proveniente da Argentina, em que se pedia busca e apreensão de menor, com base na existência da permissão convencional.[3]
Criticando a postura adotada pelo STF, quanto à concessão de exequatur a cartas rogatórias executórias, Madruga afirma[4]:
“Se a concessão de exequatur a cartas rogatórias que pedem homologação de decisões judiciais estrangeiras fere a ordem pública ou a soberania nacional, como entendeu o STF na linha de decisão das Cartas Rogatórias 7.154 e 10.484, não se poderia admiti-la nem mesmo quando prevista em tratados internacionais, na esteira da exceção reconhecida pelo Supremo nas CR 7.613 e 7.618. Um tratado internacional não poderia autorizar medidas contrárias à ordem pública ou à soberania”.
Nádia de Araújo igualmente critica o entendimento firmado pelo Supremo, nos seguintes termos[5]:
“Se a proibição da concessão de medidas de caráter executório não é fundada na lei, mas decorre da análise da ordem pública pelo STF, deveria haver maior incursão no mérito da questão, e, caso a caso, o pedido poderia ser deferido ou não. (…) O óbice da ordem pública não pode ter caráter absoluto e precisa ser reapreciado.”
O STJ modificou essa situação ao incluir permissão expressa nesse sentido na Resolução n. 9, artigo 7º, que estatuiu: “As cartas rogatórias podem ter por objeto atos decisórios ou não decisórios“. São de vários tipos os casos que se apresentam no STJ, sendo os mais relevantes os atinentes a busca e apreensão de menores, informações referentes ao sigilo bancário e penhora de bens.
A penhora de bens é uma hipótese em que o pedido teria dificuldade de ser transformado em homologação de sentença estrangeira, porque na maior parte das vezes é uma medida de caráter liminar. Um pedido interessante foi o proveniente da Argentina para penhorar os proventos de um devedor de ação de alimentos. O STJ considerou que a hipótese estava amparada não só no Protocolo de Medidas Cautelares, como na Convenção de Nova York sobre cobrança de alimentos, e o pedido foi deferido.[6]
Os casos de pedidos de informações bancárias, considerados de caráter executório, eram denegados pelo STF, com base na argumentação de que sua concessão implicaria quebra do sigilo bancário, que no Brasil dependia de autorização judicial fundamentada.[7]
Agora, com a mudança para o STJ e a disposição expressa da Resolução n. 9, esses pedidos passaram a ser deferidos, continuando a ser feita a análise da ordem pública, caso a caso.
A questão, contudo ainda não é pacífica. Na Carta Rogatória n. 226, o Ministro Luis Fux voltou a levantar a argumentação impeditiva do STF, com todos os seus antigos precedentes, sem ao menos mencionar a Resolução n. 9. A questão restou assim ementada:
“CARTA ROGATÓRIA n. 226 – EX (2005/0008869-6)
Relator(a) Ministro LUIS FUX
DJe 21/02/2006
Ementa. CARTA ROGATÓRIA. DILIGÊNCIAS. BUSCA E APREENSÃO. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE SENTENÇA ESTRANGEIRA QUE OS DECRETE. CONCESSÃO PARCIAL DO EXEQUATUR. ATOS DE INSTRUÇÃO.
1. É cediço no E. S.T.F. que os atos executórios e de constrição dependem da homologação da sentença estrangeira que os encerra, por isso que “o deferimento de execução de carta rogatória, com exclusão de seqüestro – medida executória – e de quebra de sigilo bancário, para obter-se simples informações, não implica ofensa à ordem pública e à soberania nacional” (CR 8622-Agr). 2. Tratando-se de providência judicial que depende, no Brasil, de sentença que a decrete, imperiosa é a conclusão de que tal medida não pode ser executada em nosso País antes de ser homologada, na jurisdição brasileira, a sentença estrangeira que a tenha concedido. A busca e apreensão e a quebra do sigilo bancário dependem, no Brasil, de ordem judicial que as decrete, inexistente no caso, na linha do que ficou decidido na Carta rogatória nº 7.126-4 – República Italiana. Portanto, as diligências acima referidas não poderiam ser executadas sem que antes se procedesse à homologação, pela Justiça Brasileira, de eventual sentença estrangeira que as tivesse determinado. 3. Concessão parcial do exequatur para a realização dos atos de instrução.”
Nesse mesmo diapasão, temos o voto-vista do Exmo. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, na carta rogatória n°. 534, da qual transcrevemos o seguinte trecho:
“Reiterados precedentes do Supremo Tribunal Federal orientam-se pela impossibilidade de quebra do sigilo bancário requerida em carta rogatória, ao argumento de que, para se autorizar tal medida excepcional, é necessário autorização judicial fundamentada ou existência de indícios suficientes da prática de delito, o que não ocorre no caso dos autos.”
Espera-se que este seja um caso isolado e os demais casos deferidos sejam a tendência que prevaleça.
Outra área em que aparecem casos envolvendo medidas de caráter executório é no direito de família. Há muitos pedidos, mesmo sem caráter executório para questões de família, como intimação em investigação de paternidade, regulamentação de visitas e outras. O STJ já decidiu casos relativos à cobrança de pensões alimentícias, como o pedido de penhora na CR 251, STJ.
A questão da restituição de menores é uma área bastante delicada e que teve grande aumento de casos nos últimos anos, com o aumento da mobilidade das famílias. No passado, o STF era bastante rígido e negava os pedidos, especialmente quando já havia decisão a respeito da justiça brasileira, ainda que fosse uma cautelar ou decisão de
1º. grau, em uma ação de posse e guarda. Atualmente há uma mudança de atitude em vários países, que no passado se recusavam a devolver menores de sua nacionalidade, por conta da adoção da Convenção de Haia de seqüestro de menores. Essa Convenção estabelece um procedimento próprio para o retorno da criança, que no Brasil está sendo classificado como de auxílio direto. No âmbito das Américas há ainda a Convenção Interamericana sobre seqüestro de menores, que possui instrumentos similares. Todavia, o sistema de auxílio direto, através da Convenção, não exclui outros, e ainda há casos que tomam a forma de cartas rogatórias, instrumentos das convenções.
Na esteira das modificações da Resolução n° 9, há casos de deferimento e indeferimento, conforme os fatos dos autos e a análise da ordem pública, mas deixou de haver uma negativa total aos pedidos.
Por exemplo, o STJ denegou um pedido de restituição de menores com base na Convenção Interamericana, porque entendeu que a situação da menor era regular.[8] Em outro caso, presentes os requisitos da Convenção, o pedido foi deferido.[9]
Não obstante a questão não ser pacífica, inegável é o fato de que com a mudança da competência para processar e julgar, originariamente, a concessão de exequatur às cartas rogatórias, houve uma grande transformação no entendimento perfilhado.
Sob tal prisma, os ministros componentes do STJ têm demonstrado interesse em aplicar o Direito Internacional Privado de uma forma consciente e compatível com a moderna doutrina e jurisprudência internacional. A resolução n. 9 do STJ vem sido aproveitada na fundamentação das decisões.
Defendemos a análise teleológica das leis que regulam a cooperação jurídica internacional, priorizando a celeridade e efetividade da justiça, utilizando a ordem pública como preventivo para situações teratológicas, e não, como óbice ao funcionamento da justiça.
Informações Sobre o Autor
Márcio Mateus Barbosa Júnior
Mestre em Direito Internacional Econômico e Tributário pela Universidade Católica de Brasília com ênfase em Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Civil, Especialista em Direito Empresarial e Contratos pelo Centro Universitário de Brasília e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Membro de Grupo de Pesquisa da Universidade Católica de Brasília – UCB. Membro do IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Processual e ABDPC – Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Atualmente é advogado, sócio fundador do escritório Barbosa, Lobo & Meireles Advogados (BL&M, Advogados, Brasil) e professor universitário na cadeira de Direito Processual Civil. Tem experiência e atua nas áreas do Direito Civil, Empresarial, Societário e Internacional.