Resumo: Em uma primeira plana, pode-se anotar que, conquanto os valores provenientes do garantismo fortemente apregoado pela legislação em vigor, a realidade do Estado Brasileiro se revela caótica, em especial devido ao aumento maciço dos índices de criminalidade. Verifica-se, ainda, em especial com as matérias jornalísticas diariamente veiculadas, que o maciço aumento dos índices se deve, em grande parte, pela atuação de adolescentes que figuram como autores de condutas delituosas. Tais atos são denominados de atos infracionais e reclamam, como mecanismo de ressocialização, a aplicação de medidas socioeducativas. Em uma acepção introdutória, há que se salientar que as medidas ora aludidas se apresentam como instrumentos de cunho jurídico aplicados, em procedimento adequado, ao adolescente autor de ato infracional. Mister é destacar que a medida socioeducativa objetiva, em um primeiro momento, a obter a pacificação social e a sua busca se materializa por meio do desenvolvimento de intervenções de natureza preventiva e repressiva. Nesta toada, o ato infracional, enquanto conduta desabonada socialmente, reclama a movimentação da máquina estatal, com o escopo de apurar a necessidade de efetiva intervenção com o fito de educar o adolescente infrator e, ainda que maneira inconsciente, puni-lo, como instrumento pedagógico. Todavia, corriqueiramente, verifica-se a violação de tais ideários, sendo a medida socioeducativa convertida em um mecanismo de flagelação institucional, nos quais as maiores vítimas são os adolescentes infratores. Pretende o presente, a partir do exposto, edificar uma análise acerca do tema, dispensando uma crítica, tendo como arrimo o princípio da dignidade da pessoa humana, acerca da fragilidade do sistema adotado.
Palavras-chaves: Medidas Socioeducativas. Flagelação Institucional. Dignidade da Pessoa Humana.
Sumário: 1 Anotações ao Corolário da Dignidade da Pessoa Humana no Ordenamento Brasileiro; 2 A Doutrina da Proteção Integral e o Estatuto da Criança e do Adolescente; 3 Medidas Socioeducativas: A Flagelação Institucional de Adolescentes Infratores
1 Anotações ao Corolário da Dignidade da Pessoa Humana no Ordenamento Brasileiro
A República Federativa do Brasil, ao estruturar a Constituição Cidadã, concedeu, expressamente, relevo ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo colocada sob a epígrafe “dos princípios fundamentais”, sendo positivado no inciso III do artigo 1º. Com avulte, o aludido preceito passou a gozar de status de pilar estruturante do Estado Democrático de Direito, toando como fundamento para todos os demais direitos. Nesta trilha, também, há que se enfatizar que o Estado é responsável pelo desenvolvimento da convivência humana em uma sociedade norteada por caracteres pautados na liberdade e solidariedade, cuja regulamentação fica a encargo de diplomas legais justos, no qual a população reste devidamente representada, de maneira adequada, participando e influenciando de modo ativo na estruturação social e política. Ademais, é permitida a convivência de pensamentos opostos e conflitantes, sendo possível sua expressão de modo público, sem que subsista qualquer censura ou mesmo resistência por parte do Ente Estatal.
Nesse alamiré, verifica-se que a principal incumbência do Estado Democrático de Direito, em harmonia com o ventilado pelo dogma da dignidade da pessoa humana, está jungido na promoção de políticas que visem a eliminação das disparidades sociais e os desequilíbrios econômicos regionais, o que clama a perseguição de um ideário de justiça social, ínsito em um sistema pautado na democratização daqueles que detém o poder. Ademais, não se pode olvidar que “não é permitido admitir, em nenhuma situação, que qualquer direito viole ou restrinja a dignidade da pessoa humana”[1], tal ideário decorre da proeminência que torna o preceito em comento em patamar intocável e, se porventura houver conflito com outro valor constitucional, aquele há sempre que prevalecer.
Frise-se, por carecido, que a dignidade da pessoa humana, em razão da promulgação da Carta de 1988, passou a se apresentar como fundamento da República, sendo que todos os sustentáculos descansam sobre o compromisso de potencializar a dignidade da pessoa humana, fortalecido, de maneira determinante, como ponto de confluência do ser humano. Com o intuito de garantir a existência do indivíduo, insta realçar que a inviolabilidade de sua vida, tal como de sua dignidade, se faz proeminente, sob pena de não haver razão para a existência dos demais direitos. Neste diapasão, cuida colocar em saliência que a Constituição de 1988 consagrou a vida humana como valor supremo, dispensando-lhe aspecto de inviolabilidade.
Evidenciar se faz necessário que o princípio da dignidade da pessoa humana não é visto como um direito, já que antecede o próprio Ordenamento Jurídico, mas sim um atributo inerente a todo ser humano, destacado de qualquer requisito ou condição, não encontrando qualquer obstáculo ou ponto limítrofe em razão da nacionalidade, gênero, etnia, credo ou posição social. Nesse viés, o aludido bastião se apresenta como o maciço núcleo em torno do gravitam todos os direitos alocados sob a epígrafe “fundamentais”, que se encontram agasalhados no artigo 5º da Constituição Cidadã. Ao se perfilhar à umbilical relação manutenida entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, pode-se tanger dois aspectos basais. O primeiro se apresente como uma ação negativa, ou passiva, por parte do Ente Estatal, a fim de evitar agressões ou lesões; já a positiva, ou ativa, está atrelada ao “sentido de promover ações concretas que, além de evitar agressões, criem condições efetivas de vida digna a todos”[2].
Comparato alça a dignidade da pessoa humana a um valor supremo, eis que “se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que o criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerando em sua dignidade substância da pessoa”[3], sendo que as especificações individuais e grupais são sempre secundárias. A própria estruturação do Ordenamento Jurídico e a existência do Estado, conforme as ponderações aventadas, só se justificam se erguerem como axioma maciço a dignidade da pessoa humana, dispensando esforços para concretizarem tal dogma. Mister se faz pontuar que o ser humano sempre foi dotado de dignidade, todavia, nem sempre foi (re)conhecida por ele. O mesmo ocorre com o sucedâneo dos direitos fundamentais do homem que, preexistem à sua valoração, os descobre e passa a dispensar proteção, variando em decorrência do contexto e da evolução histórico-social e moral que condiciona o gênero humano. Não se pode perder de vista o corolário em comento é a síntese substantiva que oferta sentido axiológico à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[4], determinando, conseguintemente, os parâmetros hermenêuticos de compreensão.
A densidade jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana no sistema constitucional há de ser, deste modo, máxima, afigurando-se, inclusive, como um corolário supremo no trono da hierarquia das normas. A interpretação conferida pelo corolário em comento não é para ser procedida à margem da realidade. Ao reverso, alcançar a integralidade da ambição contida no bojo da dignidade da pessoa humana é elemento da norma, de modo que interpretações corretas são incompatíveis com teorização alimentada em idealismo que não as conforme como fundamento. Atentando-se para o princípio supramencionado como estandarte, o intérprete deverá observar para o objeto de compreensão como realidade em cujo contexto a interpretação se encontra inserta. Quadra trazer à baila o magistério do Ministro Marco Aurélio, ao julgar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 46/DF, quando pontuou:
“Interpretar significa apreender o conteúdo das palavras, não de modo a ignorar o passado, mas de maneira a que este sirva para uma projeção melhor do futuro. Como objeto cultural, a compreensão do Direito se faz a partir das pré-compreensões dos intérpretes. Esse foi um dos mais importantes avanços da hermenêutica moderna: a percepção de que qualquer tentativa de distinguir o sujeito do objeto da interpretação é falsa e não corresponde à verdade. A partir da ideia do “Círculo Hermenêutico” de Hans Gadamer, evidenciou-se a função coautora do hermeneuta na medida em que este compreende, interpreta as normas de acordo com a própria realidade e as recria, em um processo que depende sobremaneira dos valores envolvidos”[5].
Ao lado disso, nenhum outro dogma é mais valioso para assegurar a unidade material da Constituição senão o corolário em testilha. Como bem salientou Sarlet, “um Estado que não reconheça e garanta essa Dignidade não possui Constituição”[6]. Ora, considerando os valores e ideários por ele abarcados, não se pode perder de vista que as normas, na visão garantística consagrada no Ordenamento Brasileiro, reclamam uma interpretação em conformidade com o preceito em destaque. Nesta toada, entalhadas tais lições, ao se direcionar uma interpretação para o Direito de Famílias, cuida ter uma visão pautada em valores sensíveis, em razão dos próprios sentimentos que impregnam as relações afetivas.
Trata-se de ramificação da Ciência Jurídica em que se pode contemplar a materialização dos ideários de afeto e de busca pela felicidade. Nesta esteira, ainda, infere-se que o afeto se apresenta como a verdadeira moldura que enquadra os laços familiares e as relações interpessoais, impulsionadas por sentimentos e por amor, com o intento de substancializar a felicidade, postulado albergado pelo superprincípio da pessoa humana. Ao lado disso, tal preceito encontra-se hasteada como flâmula a orientar a interpretação das normas, inspirando sua aplicação diante do caso concreto, dando corpo a um dos fundamentos em que descansa a ordem republicana e democrática, venerada pelo sistema de direito constitucional positivo.
Por oportuno, torna-se forçoso o reconhecimento que o novel ideário, no âmbito das relações familiares, com a promulgação da Constituição Federal de 1988[7], com o fito de estabelecer direito e deveres decorrentes de vínculo familiar, consolidando na existência e no reconhecimento do afeto, tal como pela busca da felicidade. Consoante se extrai do entendimento jurisprudencial coligido, os preceitos mencionados algures, decorrem do feixe principiológico advindo da dignidade da pessoa humana, sendo dotados de proeminência e maciço destaque na caminhada pela afirmação, gozo e ampliação dos direitos fundamentais. Ao lado disso, não se pode olvidar que sobreditos paradigmas se revelam como instrumentos aptos a neutralizar práticas ou mesmo omissões lesivas que comprometem os direitos e franquias individuais. Nesta senda de exposição, “o direito de família é o único ramo do direito privado cujo objeto é o afeto”[8].
Forçoso, ainda, colocar em destaque que o direito à busca da felicidade representa derivação do superprincípio da dignidade da pessoa humana, apresentando-se como um dos mais proeminentes preceitos constitucionais implícitos, cujas raízes imergem, historicamente, na própria Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 04 de julho de 1776. Ao lado disso, em ordem social norteada pelo racionalismo, em de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana consonância com a teoria iluminista, o Estado “existe para proteger o direito do homem de ir em busca de sua mais alta aspiração, que é, essencialmente, a felicidade ou o bem-estar”[9]. O homem tem sua atuação motivada pelo interesse próprio, o qual, corriqueiramente, se materializada na busca pela felicidade, competindo à sociedade, enquanto construção social destinada a proteger cada indivíduo, viabilizando a todos viver juntos, de forma benéfica.
2 A Doutrina da Proteção Integral e o Estatuto da Criança e do Adolescente
No final do século XX, infere-se que, no que pertine ao direito das crianças e adolescentes, duas doutrinas se contrapunham, sendo que uma se baseava na situação irregular daqueles, sendo denominado comumente como Direito do Menor, ao passo que a outra adotava os ideários da proteção integral. A doutrina da situação irregular teve origem no início do século XIX, em 1927 com o Código de Menores, que foi atualizado pela Lei n. 6.697, de 10 de outubro de 1979 que instituiu outro Diploma Menorista. Segundo Carla Carvalho Leite (2005, p. 14), o Código de Menores de 1979 apregoava que toda e qualquer criança ou adolescente pobre era considerado “menor em situação irregular”, devendo ser adotado pela Política Nacional do Bem-Estar do Menor, onde o Estado de forma autoritária violava os direitos humanos, com exclusão social, econômica e política, com discriminação por raça e gênero.
Independentemente de resistências e entendimentos diversos, os Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil se firmaram na teoria, principalmente em relação aos princípios, regras e conceitos das doutrinas. Houve uma verdadeira ruptura do Direito do Menor, ou doutrina da situação irregular, devido à impossibilidade de convergência com a Teoria da Proteção Integral, que se consolidou como referencial para a infância e adolescência no Brasil. Nesta trilha, entender a Teoria da Proteção Integral é pressuposto necessário para compreender o direito da criança e do adolescente no Brasil. Na década de 1980, surge uma mobilização para construir uma sociedade na qual todos poderiam gozar de direitos humanos reconhecidos como fundamentais na nova Constituição que se elaborava. Esse processo de transição contou com a colaboração indispensável dos movimentos sociais, da reflexão produzida em diversos campos do conhecimento, da Organização das Nações Unidas.
A teoria da proteção integral incorporou-se antecipadamente no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição Federal de 1988, ou seja, antes da Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 1989. Como bem registra Mário Luiz Ramidoff, “a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 05 de outubro de 1988, configurou uma opção política e jurídica que resultou na concretização do novo direito embasado na concepção de democracia”[10]. É possível, observar, nesta senda de exposição, que o Texto Constitucional, ao consagrar um sucedâneo de valores, regras e mecanismos sensíveis, buscou promover a doutrina da proteção integral. Ainda nesse sentido, cuida transcrever o escólio de Baratta:
“A constituição de uma base epistemológica consistente possibilitou a doutrina da proteção integral reunir valores, conceitos, regras, articulação de sistemas e legitimidade junto à comunidade científica, que a elevou a um outro nível de base e fundamentos teóricos, recebendo, de modo mais imediato, a representação pela ideia de Teoria da Proteção Integral”[11].
Segundo os ensinamentos apresentados por Mário Luiz Ramidoff, “a pretensão de integração sistemática da teoria e da pragmática pertinentes ao direito da criança e do adolescente certamente se constitui num dos objetivos primordiais a serem perseguidos pela teoria jurídica infanto-juvenil”[12]. Ademais, uma das principais funções instrumentais oferecidas pela proposta da formatação daquela teoria jurídico-protetiva é precisamente oferecer procedimentos e medidas distintas, em razão das necessidades e especificidades no tratamento de novas emergências humanas e sociais. Desta maneira, busca-se o estabelecimento de outras estratégias e metodologias para proteção dos valores sociais democraticamente estabelecidos como, por exemplo, direitos e garantias individuais fundamentais pertinentes à infância e à juventude. Veronese & Rodrigues, destacam, com bastante ênfase, que “o cuidado dos que trabalham com o Direito da Criança e do Adolescente deve se dar também no plano da linguagem. Utiliza-se indiscriminadamente a expressão ‘adolescente infrator’ ou o que é ainda pior: ‘menor infrator’, esta última preza a concepção do menorismo […], segundo a qual reduzia-se a objeto a nossa infância”[13].
Nesse contexto, surge como problema o reconhecimento do Direito da Criança e do Adolescente como ramo jurídico que requer uma compreensão de sua base teórica essencial denominada de Teoria da Proteção Integral e, que o delineamento de seus princípios e regras pode ser especialmente útil para afastar confusões, conforme obtempera Paula[14]. Quanto à elaboração de uma teoria do Direito da Criança e do Adolescente, Miguel M. A. Lima opina:
“Podemos então falar do Direito da Criança e do Adolescente como um novo modelo jurídico, isto é, um novo ordenamento de direito positivo, uma nova teoria jurídica, uma nova prática social (da sociedade civil) e institucional (do poder público) do Direito. O que importa, neste caso, é perceber que desde a criação legislativa, passando pela produção do saber jurídico, até a interpretação e aplicação a situações concretas, este Direito impõe-nos o inarredável compromisso ético, jurídico e político com a concretização da cidadania infanto-juvenil”[15].
A teoria da proteção integral construiu um sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente e uma rede institucional, que lhe dá sustentação e legitimidade política fundada em um modo de organização em redes descentralizadas. No entanto, para sua adequada compreensão, é fundamental percorrer seus princípios fundamentais. Entendendo deste modo a ideia de ‘princípios’, a teoria supõe que eles se impõem às autoridades, isto é, são obrigatórios especialmente para as autoridades públicas e vão dirigidos precisamente para (ou contra) eles. Ao analisar o conjunto de princípios que constituem os Direitos da Criança e do Adolescente, há que se conceder especial destaque para os corolários estruturantes e concretizantes, dentre os quais contabiliza os princípios estruturantes à vinculação à teoria da proteção integral, a universalização, o caráter jurídico garantista e o interesse superior da criança. Como princípios concretizantes, estabelece-se a prioridade absoluta, a humanização no atendimento, a ênfase nas políticas sociais públicas, a descentralização político-administrativa, a desjurisdicionalização, a participação popular, a interpretação teleológica e axiológica, a despoliciação, a proporcionalidade, a autonomia financeira e a integração operacional dos órgãos do poder público responsáveis pela aplicação do Direito da Criança e do Adolescente.
O mais evidente princípio do Direito da Criança e do Adolescente, realce-se, é aquele de vinculação à Teoria da Proteção Integral, previsto no art. 227, da Constituição Federal e também no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos artigos 1º e 3º. Conforme explanam Nelson Aguiar e Ronan Tito[16], a universalização dos direitos da criança e do adolescente exige uma postura pró-ativa dos beneficiários nos processos de reivindicação e construção de políticas públicas, encontrando, neste ponto especificamente, o seu caráter jurídico de garantia, segundo o qual a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar a efetivação dos direitos fundamentais, ou seja, transformá-los em realidade.
A origem do princípio do interesse superior da criança está localizada no modelo de sociedade desigual produzido pelo sistema capitalista, potencialmente gerador de conflitos de interesses. Segundo Paulo Afonso Garrido de Paula, “em consequência das necessidades humanas brota a noção de interesse, concebido como razão entre sujeito e o objeto”[17]. O artigo 227, da Constituição Federal[18], e o artigo 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente[19], atribuem como dever da família, da sociedade e do Estado a responsabilidade em assegurar os direitos fundamentais, estabelecendo que sua realização deva ser realizada com absoluta prioridade. O artigo 4º, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente determina o alcance da garantia de absoluta prioridade: A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude, sendo no mesmo sentido a determinação do artigo 87, I do Estatuto da Criança e do Adolescente[20].
Baratta, ao apreciar a matéria, salienta que “o princípio central da estratégia dirigida a implementar uma proteção integral dos direitos da infância é o restabelecer a primazia das políticas sociais básicas, respeitando a proporção entre estas áreas e as outras políticas públicas previstas na Convenção”[21].O Estatuto da Criança e do Adolescente[22] determina, em seu artigo 86, que a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Especificamente, em relação às políticas de assistência social, a própria Constituição Federal[23], com clareza solar, determina, no inciso I do artigo 204, a descentralização político-administrativa cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social. Dessa forma, a efetividade da teoria da proteção integral da criança e do adolescente é fruto do compromisso firme da tríplice responsabilidade compartilhada, onde a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar os direitos fundamentais da criança e do adolescente.
3 Medidas Socioeducativas: A Flagelação Institucional de Adolescentes Infratores
Em uma primeira plana, pode-se anotar que, conquanto os valores provenientes do garantismo fortemente apregoado pela legislação em vigor, a realidade do Estado Brasileiro se revela caótica, em especial devido ao aumento maciço dos índices de criminalidade. Verifica-se, ainda, em especial com as matérias jornalísticas diariamente veiculadas, que o maciço aumento dos índices se deve, em grande parte, pela atuação de adolescentes que figuram como autores de condutas delituosas. Tais atos são denominados de atos infracionais[24] e reclamam, como mecanismo de ressocialização, a aplicação de medidas socioeducativas. Em uma acepção introdutória, há que se salientar que as medidas ora aludidas se apresentam como instrumentos de cunho jurídico aplicados, em procedimento adequado, ao adolescente autor de ato infracional. Neste sentido, “medida socioeducativa pode ser definida como uma medida jurídica aplicada em procedimento adequado ao adolescente autor de ato infracional”[25].
Mister é destacar que a medida socioeducativa objetiva, em um primeiro momento, a obter a pacificação social e a sua busca se materializa por meio do desenvolvimento de intervenções de natureza preventiva e repressiva. Nesta toada, o ato infracional, enquanto conduta desabonada socialmente, reclama a movimentação da máquina estatal, com o escopo de apurar a necessidade de efetiva intervenção com o fito de educar o adolescente infrator e, ainda que maneira inconsciente, puni-lo, como instrumento pedagógico. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, inclusive, ao apreciar ato infracional perpetrado por adolescentes, destacou, com clareza solar que “a conduta dos adolescentes é reprovável e merece reprimenda, o que se dá pela medida socioeducativa”[26].
Desta feita, a fim de atender o objetivo colimado, o Ente Estatal adequou a tutela jurisdicional ao sucedâneo de especificações contidos na matéria, atribuindo-lhe, em razão disso, os adjetivos “diferenciada” e “socioeducativa”[27]. Para tanto, aloca-se a mencionada medida em um sistema imerso em direitos da infância e da juventude, logo, que reclama a observação da doutrina da proteção integral, consagrada expressamente consagrada na Constituição da República Federativa do Brasil, notadamente em seu artigo 227[28]. Ao lado disso, os instrumentos em destaque reúnem dois característicos, a saber: a instrumentalidade e a precariedade. O primeiro tem como base o ideário que a medida socioeducativa é o instrumento que promove a defesa social e educação do adolescente; já o segundo está atrelado ao ideário de provisoriedade das medidas a serem adotadas, de maneira que, cumprido o fito a que se propõe, a tutela se exauriu.
Não se pode esquecer que, em face da doutrina da proteção integral preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente[29], as medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes infratores têm como principal objetivo fazer despertar no menor transgressor a consciência do desvalor de sua conduta, bem como afastá-lo do meio social, quando necessário, como medida profilática e retributiva, a fim de refletir sobre o seu comportamento, de modo que possa ser reinserido na sociedade. As medidas socioeducativas, além do seu aspecto punitivo, possuem o escopo de reeducar os adolescentes que cometem atos infracionais, objetivando sua reabilitação social, despertando o sendo crítico com vistas a reabilitar socialmente, por meio do despertar do senso crítico da gravidade do ato praticado, tal como as consequências de seus atos.
Doutro modo, a par da essência a que se destina a medida socioeducativa, conquanto os atos comportamentais dos adolescentes infratores reclamem reprimenda por parte do Estado, é cediço que a segregação total do menor, extirpando-lhe do seio da sociedade, privando-lhe do convívio em seu núcleo familiar é, indubitavelmente, se revela como a medida dotada de maior gravidade. Além das implicações comuns a qualquer espécie de medida que restrinja a liberdade, não se pode olvidar que o atual estado de degradação das instituições estruturadas para a recuperação dos adolescentes infratores caminha por grande dificuldade para efetivamente cumprir os corolários agasalhados pelo Estatuto da Criança e Adolescente.
O sistema vigente se revela precário, em decorrência do sucateamento, tanto humano quanto estrutural, das entidades erigidas com o escopo de promover a ressocialização dos adolescentes. Outro ponto de grande de dificuldade de ser estruturado cinge aos obstáculos encontrados para o pleno desenvolvimento da medida socioeducativa enquanto instrumento de educação e conscientização dos adolescentes infratores, eis que os profissionais atuantes não tem o conhecimento técnico para desenvolver, de maneira satisfatória, os objetivos elencados no Estatuto da Criança e do Adolescente. Os estabelecimentos de internação de adolescentes infratores se tornaram verdadeiros educandários do crime, em que os adolescentes se aperfeiçoam na prática de atos infracionais, reproduzindo, de maneira fidedigna, o que há muito tempo se observa no sistema carcerário adulto. Em razão do cenário pintado, “deve-se evitar ao máximo a aplicação de tal medida, e não por outro motivo o legislador previu taxativamente as hipóteses específicas em que a internação poderá ser aplicada”[30]. Cuida trazer à colação a passagem do relatório desenvolvido pelo Estado do Ceará, por meio da Assembleia Legislativa, ao analisar a problemática da aplicação das medidas socioeducativas, em especial quando evidenciou:
“Há, contudo, grande dificuldade na sua aplicação, problemas que vão desde a compreensão do sentido social e educacional destas medidas, passando pela qualidade da formação dos profissionais envolvidos com este público, indo até as instalações (infraestrutura) das instituições que atuam na ressocialização de menores […] Nesse contexto, as medidas sócio-educativas tornam-se fundamentais e imprescindíveis, uma vez que se pretendem a recuperação de adolescentes infratores. Nesse quesito, objetivam resgatar o adolescente que vivencia a delinquência, concebendo-o como sujeito passível de reintegração por meio de intervenção eficaz para sua inclusão na vida social. Nessa perspectiva, a lei interpreta o adolescente infrator como vítima e não como agressor”[31].
Ao lado do expendido, colhe-se, corriqueiramente, sucedâneos de denúncias que dão conta dos atos de tortura e de abusos que são praticados nas instituições que cuidam de adolescentes infratores, as quais, ao invés de fomentar a ressocialização dos internados, potencializam o instinto violento e agressividade. Trata-se, com efeito, de verdadeira flagelação institucional, ainda que velada, desenvolvida pelo Estado e tolerada pela sociedade, que, diante do cenário caótico instalado, prefere cerrar os olhos para tais fatos. A problemática que orbita em torno dos adolescentes infratores, dada a sua complexidade e multiplicidade de fatores, reclama uma atuação mais contundente do Estado, a fim de assegurar a estruturação de políticas que materializem os ideários abstratos contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Como bem manifestou o Padre Xavier Paolilo, “eu costumo dizer que a Unis é um verdadeiro caixão social, onde se enterram adolescentes e funcionários junto com os meninos”[32]. Há que se salientar, inclusive, que o Estado do Espírito Santo foi denunciado na Corte Interamericana dos Direitos Humanos da OEA, em razão das recorrentes torturas praticadas pelos agentes públicos contra adolescentes infratores. Neste passo, o Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, visando coibir as práticas de tortura nos interiores de tais instituições, tal como de presídios, instituiu a Comissão Estadual de Prevenção e Enfrentamento à Tortura[33], com o escopo de apurar tal realidade, inclusive nas instituições em que adolescentes se encontram internados. Para tanto, há que se citar as ponderações apresentadas pelo sobredito Organismo Internacional:
“A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA manteve as medidas provisórias que determinam que o Estado brasileiro tem obrigação de garantir a vida e integridade pessoal dos adolescentes internados na Unidade de Internação Socioeducativa (UNIS), localizada no município de Cariacica, região metropolitana de Vitória, no Espírito Santo. Em nova resolução divulgada hoje (21), a Corte afirmou que persiste uma situação “extrema gravidade e urgência” e que a proteção dos adolescentes deve ser mantida “sem prejuízo de que alguns desses beneficiários [os adolescentes] tenham mudado o local de privação de liberdade”, ou seja, tenham sido transferidos para outra unidade de internação”[34].
Com efeito, em razão do progressivo e contínuo processo de desestruturação das entidades em que adolescentes infratores se encontram, imperioso se faz que o Estatuto das Crianças e do Adolescente logre êxito com a implementação positiva de medidas preventivas, a fim de propiciar aos menores, notadamente a parcela mais carente da população, ofertando-lhes instrumentos que, além de ocuparem períodos ociosos, lhes possibilite a instrução profissional. Ainda nesta esteira, “o Estado tem a precípua função de prevenir as infrações entre menores, garantindo-lhes adequadas políticas assistenciais e educativas. Aqui, evocam-se a garantia de acesso às políticas sociais básicas, como saúde, educação, lazer e segurança”[35]. É por meio da estruturação de medidas preventivas robustas e com resultados tangíveis que se combate a escada da delinquência juvenil, extirpando as privações e os preconceitos.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES