Resumo: O acesso das microempresas aos Juizados Especiais, prevista pela Lei Complementar nº 123/06, ainda é objeto de cizânia doutrinária e jurisprudencial. Dois principais argumentos são levantados para questionar a ampliação da competência dos Juizados Especiais: a) sua precípua finalidade de defender os direitos do cidadão; e b) a sobrecarga de trabalho. Por outro lado, a inovação legislativa converge à previsão de tratamento jurídico favorecido e diferenciado às empresas de pequeno porte consignada nos artigos 170, X, e 179 da Constituição da República. As limitações estruturais à vazão à litigiosidade contida envolvendo as microempresas não constituem argumento hábil à restrição de seu acesso à Justiça. Dentre as alternativas para transpor a sobrecarga dos Juizados Especiais estão a ampliação de investimentos e a realização de convênios entre os Tribunais de Justiça dos Estados e os órgãos que cuidam de interesses de microempresas. Apenas assim poderão prevalecer os pressupostos de desburocratização, informalidade, simplificação e gratuidade dos Juizados Especiais, sem prejuízo da facilitação do acesso à Justiça às MPE’s.
Palavras-chave: microempresa; Juizados Especiais; acesso à Justiça; Lei Complementar nº 123/2006
Sumário: 1. Introdução. 2. Juizados Especiais. 3. Conceito das MPE’s. 4. Contexto Brasileiro. 5. A Pessoa Jurídica nos Juizados Especiais. 6. Considerações Finais. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Este estudo pretende abordar a polêmica conquista de participação das microempresas e das empresas de pequeno porte como autoras nos Juizados Especiais. O art. 8º, § 1º, da lei 9.099/95 dispôs que “somente as pessoas físicas capazes serão admitidas a propor ação perante o Juizado Especial”. No entanto, a Lei nº 9.841/99 estendeu esse acesso também às microempresas:
“Art. 38. Aplica-se às microempresas o disposto no § 1º do art. 8º da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, passando essas empresas, assim como as pessoas físicas capazes, a serem admitidas a proporem ação perante o Juizado Especial, excluídos os cessionários de direito de pessoas jurídicas.”
No que tange aos Juizados Especiais Cíveis Federais, a Lei 9.137/96 já previa expressamente em seu art. 6º que poderiam ser autoras tanto pessoas físicas quanto microempresas e empresas de pequeno porte.
Em 14 de dezembro de 2006, não obstante haver vastas reivindicações quanto à ampliação de competência dos Juizados Especiais, foi sancionada a Lei Complementar 123 que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Assim, revogaram-se as leis 9.317/96 e 9.841/99. A novel legislação, além de inovar o conceito legal das micro e pequenas empresas – MPE’s, passou a admitir também as empresas de pequeno porte como proponentes de ação perante os Juizados Especiais.[1]
A análise das questões que derivam desse histórico buscará, tanto quanto possível, se embasar em dados atuais e pontos de vista distintos em que se abordará aspectos objetivos e jurídicos do assunto.
2. JUIZADOS ESPECIAIS
A origem dos Juizados Especiais no Brasil se deu a partir da valorosa experiência dos Juizados de Pequenas Causas, previstos na Lei nº 7.244/84. Com o resultado animador advindo desses órgãos, sobreveio o dispositivo constitucional:
“Art. 98: A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.”
A Lei nº 9.099/95estipulou regras gerais sobre a criação desses novos órgãos pela União, Distrito Federal e Municípios, além de normatizar a implantação dos Juizados nos Estados. Os Juizados Especiais foram idealizados para facilitação do acesso à Justiça visando à diminuição da demanda reprimida, principalmente da grande massa de hipossuficientes que, carentes de recursos para arcar com os custos do processo, acabavam por não recorrer ao Judiciário. A resolução dessa “litigiosidade contida”, prima pela presteza e eficiência e, para tanto, se vale de pressupostos de desburocratização, informalidade, simplificação e gratuidade (WATANABE, KAZUO; 1985, p. 2).
3. CONCEITO DAS MPE’S
Segundo o art. 3º da LC 123/06 e para efeitos dessa mesma lei, são consideradas microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que:
“I – no caso da microempresa, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais); e
II – no caso da empresa de pequeno porte, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil reais).
§ 1º Considera-se receita bruta, para fins do disposto no caput deste artigo, o produto da venda de bens e serviços nas operações de conta própria, o preço dos serviços prestados e o resultado nas operações em conta alheia, não incluídas as vendas canceladas e os descontos incondicionais concedidos.”
Assim, a possibilidade de acesso aos Juizados Especiais pelas MPE’S, prevista pela LC 123/06, acompanhou a redefinição estabelecida pela mesma lei, aumentando-se a quantidade de prováveis beneficiários dessas condições diferenciadas.
4. CONTEXTO BRASILEIRO
Um estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[2] demonstra que 48,4% das empresas brasileiras não atingem o oitavo ano de vida. O estudo "Demografia das empresas", embasado no Cadastro Geral de Empresas, acompanhou a sobrevivência das quase 738 mil empresas abertas em 1997 no país.
As pequenas empresas são as que mais padecem com a passagem do tempo: entre as empresas com até quatro pessoas criadas em 1997, pouco mais de 50% prosseguiam ativas em 2005. Já entre as que possuem cem ou mais funcionários, esse percentual era superior a 65%.
Só em 2005, 529 mil empresas com até quatro funcionários extinguiram-se – 97,2% do total de empresas que deixaram de existir naquele ano. No entanto, as pequenas representaram 94,4% das empresas criadas em 2005. De acordo com o IBGE, as taxas de entrada e saída das empresas no mercado têm relação inversa com o porte das mesmas – o que significa que há mais empresas pequenas entrando e saindo do mercado do que companhias de grande porte.
Com as altas taxas de criação e extinção, as empresas com até quatro pessoas representavam 83% do número total de companhias existentes no país em 2005. Somadas às empresas com cinco a 19 trabalhadores, as pequenas representavam 96,9% do total, segundo o IBGE.
A alta "mortalidade" de empresas faz com que apenas 2,9% delas tenham 30 anos de vida ou mais. Entre as empresas existentes em 2005, 65% não tinham mais que nove anos de vida – entre elas 42,1% tinham no máximo cinco anos.
De acordo com outro levantamento, realizado pelo Sebrae[3] no segundo trimestre de 2004 em todos os estados com base nos registros das Juntas Comerciais, de 1,3 milhão de empresa criadas entre 2000 e 2002, 552.774 fecharam antes de completar três anos de vida e 49,4% com menos de dois anos. Essas 772.679 empresas geravam 2,4 milhões de empregos e investiram cerca de R$ 19,8 bilhões. Nesse mesmo sentido, o BNDES concluiu que as microempresas são as principais responsáveis pela geração de emprego e representam um papel importante na renovação da economia brasileira[4].
Por trás dessas empresas há pessoas cuja renda advém, no mais das vezes, unicamente do desempenho da empresa. No caso do micro e pequeno empresário essa relação se torna ainda mais delicada: a saúde da empresa é a saúde financeira da família do empresário. Ademais, há os empregos que dependem da sobrevivência da empresa.
Segundo o gerente da Unidade de Estratégia e Diretrizes do Sebrae, Gustavo Morelli, 74% do valor investido pelas empresas que fecham foram originados em recursos próprios e apenas 11% com empréstimos bancários. Segundo ele, isso é ainda mais preocupante porque 82% das empresas que fecham conseguem recuperar menos da metade do que foi investido, o que significa perda da poupança das famílias. É nesse pano de fundo que se entendeu por bem sancionar a Lei Complementar 123, admitindo o acesso das MPE’s como parte autora nos Juizados Especiais, no intuito de que lides cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo possam ser resolvidas rapidamente com maior agilidade e baixo custo.
5. A PESSOA JURÍDICA NOS JUIZADOS ESPECIAIS
Entre os argumentos que imperam entre os que se opõem à possibilidade de qualquer pessoa jurídica atuar no pólo ativo em Juizados Especiais está a Exposição de Motivos da revogada Lei 7.244/84 que assinalava:
“O Juizado Especial de Pequenas Causas objetiva, especialmente, a defesa dos direitos do cidadão, pessoa física, motivo pelo qual somente este pode ser parte ativa no respectivo processo. As pessoas jurídicas têm legitimidade exclusiva no pólo passivo da relação processual.”
Ainda segundo a Exposição de Motivos, duas foram as razões para essa opção do legislador: a) busca da conciliação das partes, mais viável com as pessoas físicas; b) o Juizado objetiva a defesa de direitos individuais do cidadão.
O Desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, Rêmulo Letteriello, chegou a afirmar:
“A admissão das microempresas como autoras está transformando os juizados especiais em “balcões de cobrança”, ou verdadeiros instrumentos de pressão de empresários e firmas para o recebimento de seus créditos ou acerto dos seus negócios, muitas vezes acionando aqueles que deveriam ser os destinatários dessa justiça especializada (…)” (LETTERIELLO, Rêmolo).
O autor faz referência a Cândido R. Dinamarco, segundo o qual “O Juizado é instituído como tribunal do cidadão e em princípio não visa oferecer soluções a problemas de empresas ou mesmo associações, mas ao indivíduo enquanto tal.” (DINAMARCO, Cândido Rangel, 2001).
No entanto, muito se evoluiu no que diz respeito a essa concepção. Ademais, as críticas que atualmente se apresentam se remetem menos à ilegitimidade do acesso das MPE’s do que ao temor da sobrecarga dos Juizados Especiais. Ainda assim, subsiste para alguns a figura das micro e pequenas empresas como opressoras do cidadão comum, o que não compactua com sua delicada situação no país.
É fato que nos Juizados Especiais o juiz deve “adotar em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum”.[5] No entanto, como diz a letra da lei, esse juízo será concebido “em cada caso”, não devendo advir de conceitos prévios dissociados da realidade.
O acesso das MPE’s aos Juizados Especiais encontra respaldo duplamente consagrado na Constituição da República, que preceitua a necessidade de tratamento jurídico diferenciado às MPE’s:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e ma livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
X – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.”
Mais adiante, a Constituição Federal, em seu art. 179, estabelece parâmetros a serem observados pelos legisladores em seus respectivos entes federativos:
“Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio da lei.”
Dessarte, se à época da Lei nº 7.244/84, dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, tal visão não havia sido sedimentada, o advento da Constituição de 1988 cristalizou não só a imperatividade da criação desses órgãos especiais, como também a importância e a necessidade de “tratamento favorecido”, “tratamento jurídico diferenciado” às micro e pequenas empresas.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dois principais argumentos são costumeiramente levantados para questionar o art. 74 da Lei Complementar nº 123, que admitiu as MPE’s como proponentes de ações: a) a precípua finalidade dos Juizados Especiais em defender os direitos do cidadão e b) sua decorrente sobrecarga de trabalho, sob pena de se cair na vala da justiça tradicional.
Sobre a primeira assertiva pontua-se que, além do objetivo implícito de responder às necessidades de uma demanda reprimida, é o próprio constituinte que consignou a necessidade de tratamento jurídico diferenciado às MPE’s, diretriz que converge ao o escopo de conciliação, julgamento e execução de causas cíveis de menor complexidade, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo[6], atinente aos Juizados Especiais. Assim, entende-se legítima essa ampliação de competência dos Juizados Especiais.
No que concerne à estrutura insuficiente dos Juizados Especiais para dar vazão a essa “litigiosidade contida”, certo é que a problemática assume contornos político-econômicos, cuja análise excede os objetivos deste trabalho.
No entanto, na conjuntura atual e em observância à Carta Magna, é razoável que a melhor solução não seja obstar a legitimidade das MPE’s como demandantes nos Juizados Especiais. Entre muitas alternativas para transpor esse problema de sobrecarga estão a ampliação de investimentos nesses órgãos que tanto têm a oferecer à prestação da tutela jurisdicional; o engajamento de mais operadores do sistema comprometidos com a filosofia proposta; o apoio dos Tribunais de Justiça, que em muitos Estados tem-se revelado insignificante e, ainda, o apelo a recursos criativos, como a formulação de parcerias.
Essa foi uma das conclusões do VII Encontro Nacional de Coordenadores de Juizados Especiais. Na época, além de ser sugerida a criação de pauta diferenciada para atender às microempresas, – a critério do magistrado e dentro da realidade de seu Juizado – manifestou-se a necessidade de realização de Convênio entre os Tribunais de Justiça dos Estados e os órgãos que cuidam de interesses de micro-empresas, como associação comercial, clube de diretores lojistas, Sebrae, dentre outros, no sentido de formulação de parcerias para que os Juizados Especiais possam efetivamente absorver as ações propostas por microempresas.
Nesse espírito, por iniciativa do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, da Universidade Mackenzie e da Associação Comercial de São Paulo, criou-se na cidade o primeiro Juizado Especial das Empresas de Pequeno Porte e Microempresas[7].
Nesses passos, far-se-ão valer os pressupostos de desburocratização, informalidade, simplificação e gratuidade, sem prejuízo da facilitação do acesso à Justiça às MPE’s.
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