Resumo: Inserido no debate sobre os elementos geradores da violência contemporânea, este artigo demonstra que o perfil social da violência e da criminalidade no Brasil vem sofrendo significativas modificações nas últimas três décadas. A intensa exposição de crianças e jovens a programas televisivos e jogos eletrônicos que são cada vez mais violentos e capazes de imitar a realidade, vem ampliando para os mais diversos segmentos da sociedade o foco da criminalidade que até então estava essencialmente restrito às camadas sociais vinculadas ao mundo da pobreza. Defende que a nova face da violência e da criminalidade no Brasil é um problema que desafia e demanda ações conjuntas – na forma de políticas públicas e segurança pública – do Estado e da Sociedade.
Palavras-chave: Violência; Mídia; Segurança Pública.
Sumário: 1. Introdução. 2. A nova face da Criminalidade. 3. A dimensão da criminalidade no Brasil. 4. Violência e Segurança Pública no Brasil. 5. Conclusão. 6. Referências
1. INTRODUÇÃO
Hoje em dia, a violência faz parte do nosso cotidiano. Certamente vivenciamos expectativas e frustrações no tocante à fragilidade da vida pública e social com relação à violência. Não são poucas as notícias e imagens que nos chegam, expondo o sério problema da violência no mundo e em nosso país. Contudo, não é somente através dos noticiários de TV que a violência chega ao universo de nossos lares.
Na verdade, estamos expostos com muita freqüência aos fatores geradores da violência. Podemos falar em violência urbana, em violência no trânsito, em violência doméstica, em violência nos esportes, em violência televisiva e, até mesmo, em violência virtual.
Desde muito cedo, nossos filhos estão entrando em contato com cenas violentas na programação infantil de TV ou nos jogos de videogames. Sabemos que o ser humano é fruto de relações sociais: a personalidade violenta decorre, em regra, do ambiente social – marcado pela violência – no qual o ser humano foi socializado.
No passado, era possível afirmar com certeza que a violência estava associada, quase que exclusivamente, ao mundo da pobreza. Se você habitasse o espaço social da violência, teria que conviver com ela ou com seus efeitos. Eram os reflexos da vida marcada pela miséria e pela exclusão que impulsionavam o comportamento violento. A violência ocorria nas famílias socialmente desestruturadas e localizava-se nas áreas urbanas que espelhavam a pobreza: as periferias e as favelas.
Sobre este tema, Abreu e Ferrari (2009) destacam que os indicadores do DEPEN[1] demonstram que o crime no Brasil é praticado por homens na faixa etária de 14 a 26 anos de idade; da cor parda ou preta; residentes nas periferias e favelas dos grandes centros urbanos; com escolaridade que não ultrapassa o ensino fundamental; com renda por pessoa inferior a um salário mínimo e com um ambiente familiar marcado por um histórico de ausências e violência.
Este perfil social da violência no Brasil vem provocando uma série de confusões que acabam se convertendo em abusos da parte das autoridades estatais incumbidas de reprimir a criminalidade. De acordo com Zaffaroni (1991), o que ocorre geralmente nestes casos de violência às camadas mais baixas da população é a aplicação da teoria da vulnerabilidade. Vulnerável aos abusos dos agentes do aparelho repressivo do Estado, as pessoas pobres que vivem ou atuam em lugares marginalizados, são o estereótipo para a prática do crime e, por isso, tornam-se as vítimas mais vulneráveis à violência de um modelo de segurança pública que ainda direciona sua atenção quase que exclusivamente para os pobres.
Entre todos os integrantes do mundo da pobreza, destacam-se o (a) profissional do sexo que atua nas ruas; o migrante que foge da desigualdade regional, a mulher que vive nas periferias e favelas; e, sobretudo, dado ao seu histórico de marginalização social e criminal, o negro.
2. A nova face da Criminalidade
Atualmente vem ocorrendo significativas mudanças no perfil social da violência. Pessoas, sobretudo jovens, que não fazem parte do mundo da pobreza e da discriminação racial, têm tido participação constante nas ações de violência. No Brasil, são cada vez mais freqüentes as informações que nos chegam sobre atos de violência envolvendo jovens da alta classe média que agridem, por diversão ou intolerância, homossexuais, profissionais do sexo, negros, nordestinos e indígenas, entre outros seguimentos que integram um extenso leque de minorias sociais.
Há muitos questionamentos sobre os elementos que motivam os jovens que receberam carinho dos pais, educação escolar de qualidade e acesso ativo ao mercado de consumo, a praticar ações de violência.
Para tentar responder este questionamento, uma coisa é certa, não podemos deixar de levar em consideração os novos elementos que passaram a atuar no nosso processo de socialização dos anos 80 do século passado para cá. Há pelo menos três décadas, crianças e jovens do Brasil estão em contato diário com uma série de informações que incentivam e banalizam a violência.
De modo geral, a violência, traduz-se na época atual por um evento cujas implicações e desdobramentos atingem, sem distinção, todos os segmentos sociais.
Conforme relata Moser (1991), a violência é, conceitualmente, um comportamento social, já que pressupõe uma relação que envolve pelo menos duas pessoas, como a maioria das condutas humanas. É uma interação, na medida em que se origina e se efetiva na relação com o outro, o que condiciona e modela nosso comportamento. Existem, pelo menos, duas pessoas que participam dessa interação: o agressor e a vítima.
De fato, é inconcebível uma conduta violenta sem a presença do outro. Não há violência sem vítima. Ela encontra sua origem imediata e se explica com referência à palavra e aos atos de outrem. Mas, também não existe violência sem um contexto. Um comportamento social não é um ato de indivíduos isolados, porém de pessoas que têm os mesmo valores, expectativas, papéis e regras que definem as relações entre si.
Sobre a violência contemporânea, vale destacar o acentuado processo de banalização da vida humana provocado pela nossa intensa exposição a cenas televisivas violentas. O intenso contato com este tipo de programação de TV, associado ao irreversível processo de urbanização e desenvolvimento tecnológico que nos afasta cada vez mais dos relacionamentos sociais direitos, tem provocado nas pessoas, em geral, reações de total indiferença em relação às ações violentas alheias.
Hoje em dia, somos capazes de viver dez, quinze ou vinte anos no mesmo edifício de apartamentos e, ainda assim, não sabermos o nome do nosso vizinho de porta. Tudo o que sabemos sobre o mundo e as pessoas nos chega através da TV, da Rede mundial de computadores ou do telefone. Este processo social que nos torna próximos do ponto de vista físico e distantes do ponto de vista dos relacionamentos sociais, faz com que não esbocemos mais nenhuma reação emocional quando nos deparamos com a violência praticada contra pessoas que não conhecemos. Somente nos chocamos com a violência sofrida por seres humanos que compartilham do nosso, cada vez mais restrito, rol de relacionamentos pessoais.
Destacando o mesmo problema na sociedade dos Estados Unidos da América, recentemente um famoso cineasta, produziu dois filmes de curta duração que foram exibidos em diversas vias públicas dos centros urbanos do seu país. O primeiro vídeo mostrava a técnica de retirar pele de coelhos desenvolvida por uma artesã do interior de um dos estados tradicionais dos EUA. A retirada da pele ocorria sem os coelhos serem abatidos preliminarmente e, a população que assistia a cena, em total perplexidade, dava as costas à tela que exibia o imaginável ritual de dor ao qual estavam sendo submetidos os animais, recusava-se a continuar vendo as imagens. O segundo mostrava um homem negro sendo baleado – à queima roupa – por um policial após roubar uma carteira. As pessoas que assistiam um ser humano perdendo a vida de forma brutal não esboçavam nenhuma reação emotiva. Alguns justificavam sua frieza afirmando que o coelho não havia roubado ninguém.
Sobre este enfoque, torna-se interessante investigar os atos de violência associados a pessoas ou grupos sociais que não habitam o espaço social violento, mas que estão freqüentemente expostos aos seus efeitos através dos instrumentos de mídia.
Inúmeras pesquisas no campo da psicologia têm mostrado, de maneira repetida, que há correlação positiva em a assistência a filmes violentos e o comportamento agressivo dos pacientes. Na realidade, a carga de violência a que as crianças estão expostas na televisão está positivamente correlacionada com certos comportamentos agressivos como discutir, entrar em conflitos com os pais, ou, mesmo, cometer atos delituosos. (MOSER, 1991).
Não resta dúvida que o resultado de tanta exposição aos cenários de violência influencia diretamente o nosso comportamento social. A escalada da violência no Brasil se banaliza cada vez mais porque ela está ganhando contornos culturais. Geertz (1989), por exemplo, afirma que a tentativa de compreender tanto a organização da atividade social como a natureza de suas relações, nos impõe a difícil tarefa científica de interpretar a cultura. Para interpretar a cultura é preciso voltar-se para o “universo das idéias”: conjunto de experiências, crenças e sentimentos que dão ordem e significado ao comportamento social dos seres humanos.
Não é nenhuma novidade que os heróis de nossos filhos são personagens de desenhos animados que se relacionam de forma violenta e intolerante com seus adversários. Qualquer pai que passa uma manhã acompanhando a programação infantil de TV que seu filho assiste semanalmente veria porque que mesmo nunca tendo comprado uma arma de brinquedo para o garoto, ainda sim, ele vive transformando seus brinquedos de encaixe em poderosas metralhadoras e emitindo sons de rajadas de balas pelos corredores da casa.
Os modernos jogos de videogame, com suas cenas que tentam imitar uma suposta realidade, são tão violentos que o governo brasileiro estuda a possibilidade de proibir alguns deles: acredita-se que eles incitam a violência e o crime.
Se no passado a violência estava presente no ambiente sócio-cultural das populações marginalizadas pela pobreza e, por isso, não era passível de escolha; hoje, os jogos virtuais tornaram a violência, inclusive, opcional: compra-se um DVD com jogos violentos, e a violência – virtual – vai até você. Você pode levar a violência para casa e oferecê-la para seus filhos, parentes e amigos.
Na verdade, a violência ganhou sentido mercadológico. Os produtores de jogos e programas de TV violentos argumentam que, nos dias de hoje, as pessoas já aprenderam a distinguir a fantasia do real. Contudo, o que não se pode esquecer é que as pessoas são produtos do seu meio: seja ele real ou virtual.
De todo modo, percebe-se que muito mais que um efeito do velho comércio de drogas alimentado pelo consumo das classes médias urbanas, a violência hoje também gera lucros como instrumento de diversão. Ela pode ser percebida nas rinhas clandestinas de cães ou de seres humanos que lutam para gerar diversão a um público sedento para poder acompanhar a banalização da vida: banalização da vida que produz lucro.
Isso é um problema para o Brasil, principalmente quando os efeitos deste novo tipo de violência se somam aos da violência tradicional, ligada ao ambiente social da pobreza. De acordo com dados fornecidos por Cerqueira (2005), nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, o custo da violência e da criminalidade, entre os anos de 1995 e 1999, somou mais de 70 bilhões de reais. As estimativas para os anos posteriores acresciam a este total cerca de 5% ao ano.
3. A dimensão da criminalidade no Brasil
Do lado da criminalidade, as estatísticas demonstram que a taxa de homicídios, por exemplo, praticamente triplicou em pouco mais de vinte anos. E, esse quadro é ainda mais assustador se forem observados outros detalhes estatísticos. Nos últimos 25 anos ocorreram 794 mil assassinatos no Brasil. Nesse período, houve um crescimento médio anual de 5,6% do número de homicídios, o que posicionou o país entre os mais violentos do planeta, com uma taxa de 28 homicídios para cada 100 mil habitantes.
Segundo afirma Soares (1996), na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, apenas 8% dos homicídios cometidos chegam a se transformar em processos devidamente instruídos e encaminhados ao Judiciário, de maneira que uma média de 82% desses crimes fica absolutamente impune.
Conforme informações da Revista Super interessante de março de 2008, o Brasil tem hoje mais de 400 mil presos. Oliveira (2002) afirma que entre 1995 e 2001, o percentual de presos para cada cem mil habitantes passou de 95,5 para 141,5. Para abrigar esta verdadeira nação paralela, o país soma algo em torno de 300 mil vagas nas prisões. Entre 1995 e 2007, esta quantidade praticamente quadruplicou. Atualmente, o déficit de vagas nos presídios brasileiros é de quase 40%.
O uso excessivo da força por parte da polícia é outro indicativo marcante da insegurança que assola o país: a sociedade teme a polícia. Pelos relatos de Cerqueira (2005), somente no Estado do Rio de Janeiro, entre 2002 e 2004, as polícias mataram em média 1.023 civis por ano. É válido destacar que essas mortes representam apenas as incidências registradas oficialmente. Segundo o mesmo autor, apenas para indicar a magnitude do problema, todas as forças policiais dos Estados Unidos da América mataram, nesse mesmo período, 363 civis por ano. Comparativamente, as polícias – civil e militar – do Rio de Janeiro matam quase três vezes mais do que todas as polícias dos EUA juntas.
A partir destas informações é possível afirmar que as instituições classificadas como sendo de segurança estão atravessando um período de turbulência no Brasil. Numa análise imediata, pode-se até afirmar que a questão perpassa pelo desinteresse dos governantes em adotar medidas para amenizar a situação. Entretanto, esta seria a verdade parcial dos fatos e traria a falsa impressão de que o problema é de fácil solução.
Nos últimos anos, a ineficácia das ações públicas para conter a violência e a criminalidade tem provocado um sentimento de profunda instabilidade e de insegurança na sociedade. Contemporaneamente, parece ser oportuno tratar dos temas relacionados à violência, uma vez que ela se constitui na faceta mais perceptível da insegurança que preocupa autoridades políticas, policiais e sociedade.
Segundo Peralva (2000), nos anos 80, à medida que a transição democrática ocorreu sob a forma de uma ruptura progressiva com a experiência autoritária, importantes demandas relativas à reconstrução das instituições responsáveis pela segurança pública foram deixadas de lado. Sem realmente poder contar com instituições novas em terreno sensível, e já não mais dispondo dos mecanismos de regulação característicos do período autoritário, a democracia terminou abrindo amplas possibilidades para que a violência se desenvolvesse.
A não reformulação da polícia, particularmente a militar, no que tange o sentimento social de segurança, trouxe conseqüências irreparáveis à sociedade. Conforme descreve Goldstein (2003), o vigor da democracia e a qualidade de vida desejada por seus cidadãos estão determinados em larga escala pela habilidade da polícia cumprir suas obrigações.
Além disso, é preciso levar em conta que o desafio que se impõe ao Estado é o de garantir o respeito a uma lei que precisa ser reconhecida como comum, pois a ausência de democracia havia levado os brasileiros a acreditarem que a lei era uma máscara para a opressão, e que sua transgressão constituía um princípio de liberdade.
4. Violência e Segurança Pública no Brasil
Objetivando reverter este quadro desolador, desde maio de 2007, está em vigor o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Decorridos dois anos desde a aprovação deste programa de segurança pela presidência da república, diversas alianças foram firmadas entre órgãos do poder público, estabelecendo responsabilidades e metas integradas na esfera federal e estadual.
Para implantar o Pronasci o governo brasileiro está prevendo um gasto de quase sete bilhões de reais até 2012. Entre os principais eixos do programa destacam-se a valorização dos profissionais de segurança pública, a reestruturação do sistema penitenciário, o combate à corrupção policial e o envolvimento da comunidade na prevenção da violência.
Os projetos que compõem o Pronasci estão dispostos dentro de metas setoriais, das quais a modernização das instituições de segurança pública e do sistema prisional é a primeira delas.
Além de intensificar as ações da Força Nacional de Segurança Pública e tentar prorrogar a Campanha Nacional de Desarmamento, o PRONASCI, através da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), também instituirá cursos de tecnólogo, de especialização e de mestrado em segurança pública em todo país.
5. CONCLUSÃO
A criação do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) é uma importante iniciativa governamental que poderá render bons frutos no futuro se seu principal objetivo, unir o Estado e a Sociedade nas ações de prevenção e repressão à violência e à criminalidade, for alcançado. Neste sentido, tão importante quanto sérias iniciativas de governo direcionadas à qualificação de profissionais, à aprovação e destinação de recursos e ao desenvolvimento de projetos voltados para a segurança pública e para a proteção e inclusão de atores vulneráveis à violência e ao crime, é o engajamento participativo de amplos segmentos organizados da sociedade e instituições, inclusive universitárias, capazes de contribuir com este processo que interessa a todos nós.
Doutor em Ciências Sociais pela UFSCar (SP). Professor de Ciência Política, Sociologia e Antropologia nos cursos de direito da UNIVALI (SC).
Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ. Professor no curso de Ciências Sociais da UFBA e Coordenador do laboratório de estudos em Segurança Pública, Cidadania e Sociedade
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