Miserabilidade: novos elementos além da pauta objetiva do §3°, artigo 20, Lei 8.742/93

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Resumo: O presente artigo visa abordar a miserabilidade, enumerada como critério de elegibilidade do benefício de amparo social deferido ao portador de deficiência ou ao idoso, este último com 65 anos completos. A discussão sobre a temática é corriqueira, principalmente no âmbito judicial, inexistindo, a princípio, entendimento pacificado sobre o tema, especialmente tirante os critérios adequados a reconhecer os titulares desta política social.

Palavras-chave: Miserabilidade. Assistência Social. Critérios objetivos.

Sumário: Introdução. 1. Da Assistência social. 1.1 – Direitos à prestação. 1.2 – Benefício de amparo social. 2. Miserabilidade: conceito e extensão. 2.1 – Suplantar da pauta objetiva – novos elementos. Conclusão. Referências.

Introdução

A Assistência Social, uma das três facetas da Seguridade Social, encontra respaldo constitucional no artigo 194 da Carta Política, compreendida num conjunto de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da Sociedade, como medida de assegurar a radiação dos direitos postos constitucionalmente. Díspar do direito social da previdência, a Assistência é garantida a todos que dela necessitar, independentemente de contribuição, porquanto prescindível neste ponto. Em razão da restrição do tema analisar-se-á os requisitos legais para fins de fixação das balizas para deferimento/proteção do benefício de prestação continuada, consoante o julgado registrado em epígrafe.

1. Da Assistência Social.

O direito social à Assistência, integrante da segunda onda geracional dos direitos fundamentais, tem por objetivo à proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; além da garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

Apontada como ínsita a segunda onda geracional de direitos fundamentais, a Assistência Social, consiste em direitos à prestação, pois suplantado o raciocínio no qual o Estado, no campo dos direitos fundamentais, atuaria, ou melhor, deixaria de atuar, em prol da efetivação de certos direitos. Os direitos à abstenção, enquanto direitos fundamentais derivados da onda evolutiva com escopo no reconhecimento aos Direitos Civis e Políticos, fulcrados no princípio da Liberdade, são complementados pelas garantias de atuação positiva do Poder Público. Ora, é indispensável à franquia de liberdade ao jurisdicionado para o exercício pleno daquele direito fundamental, pois de que adianta consagrar a liberdade sem a proteção de outros direitos, aliás, do que adianta ser livre se não dispõe de respaldo Estatal para momentos de risco/vulnerabilidade.

1.1 – Direitos à prestação.

O reconhecimento dos direitos à prestação, estes com escopo no princípio da igualdade, preconizam a indispensabilidade de atuação estatal como medida a garantir a eficácia da proteção conferida na Carta Política, porquanto os direitos de defesa contra atuações Estatais indevidas não são suficientes a assegurar o pleno direito à liberdade. Nesse sentido é o raciocínio de Gilmar Mendes, “os direitos a prestação partem do suposto de que o Estado deve agir para libertar os indivíduos das necessidades. Figuram direitos de promoção.”[i]

Ingo Sarlet pontifica,

“Os direitos sociais de cunho prestacional (direitos a prestações fáticas e jurídicas) encontram-se, por sua vez, a serviço da igualdade e da liberdade material, objetivando, em última análise, a proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à garantia de uma existência com dignidade.[ii]

1.2 – Benefício de amparo social.

A Assistência Social, direito fundamental que é, preconiza a proteção àquele em estado de risco, tanto para garantia de um salário mínimo ao idoso com mais de 65 anos e/ou ao portador de deficiência que não dispunham de meios a prover a subsistência, quanto para garantir, mediante conjunto de ações de iniciativa do Poder Público e da Sociedade, o atendimento às necessidades básicas do cidadão, no intento de minimizar as consequências da desigualdade social, por conseguinte, suplica a atuação positiva do Estado, despindo-o da abstenção como garantia da primeira geração de direitos fundamentais.

Nesse tomo, é salutar o pensamento de Krebs, Friheitsschtutz durch Grundrechte,

“A moderna dogmática dos direitos fundamentais discute a possibilidade de o Estado vir a ser obrigado a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados e sobre a possibilidade de eventual titular do direito dispor de pretensão a prestações por parte do Estado.[iii]

A fundamentalidade dos direitos sociais impõe ao Estado a atuação positiva, como ato de prevalência dos direitos econômicos, sociais e culturais e no resguardo da efetivação, em sua plenitude, do direito à liberdade, sem olvidar, é claro, do pensamento de Sarlet, para quem os direitos sociais não se restringem aqueles que impliquem prestações, mas a “direitos que asseguram e protegem um espaço de liberdade e a proteção de determinados bens jurídicos para determinados segmentos da sociedade”[iv].

José Afonso da Silva arremata que os direitos sociais são,

“Prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.[v]

Dentre as garantias e objetivos listados na seção atinente a Assistência Social, a garantia de um salário mínimo aos sujeitos tidos como vulneráveis pelo Constituinte, é, sem sombras de dúvidas, aquela que mais ecoa quando da análise do tópico, justamente por tratar de medida de cunho positivo, sem olvidar do aspecto de conferir efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil e pilar do Estado Democrático de Direito (art. 1° da CF/88).

A amplitude e as limitações do alcance da proteção preconizada pelo artigo 203, V, da Constituição Federal, advêm, primeiro da natureza jurídica da norma em destaque, de eficácia limitada ou reduzida, consoante classificação de José Afonso da Silva, segundo porque, como da própria natureza, a produção de plenos efeitos suplica a inovação legislativa posterior, pelos poderes constituídos, e, por fim, em virtude da desvirtuação do legislador quanto aos fins da norma de proteção, devido ao fato de criar elementos de restrição além do objetivo final do texto constitucional.

2. Miserabilidade: conceito e extensão.

A análise do vernáculo miserabilidade é imprescindível para apreensão da extensão da norma de proteção social e o porquê do novo entendimento explanado pela Suprema Corte no julgamento do RE 567.985, até então, contrário ao versado nos autos da ADI 1.232/DF, de Relatoria do Min. Nelson Jobim. Dentre os vários significados da locução substantiva, miserabilidade é atribuída como qualidade, estado de miserável, pobreza extrema, penúria. A interpretação do significado do termo, por si só, não indica a persistência da discussão em torno do assunto, mas sim, quais são os critérios/metodologias utilizados para constatar a contingência social constitucionalmente tutelada.

2.1 – Suplantar da pauta objetiva – novos elementos.

O critério objetivamente consagrado no §3° do artigo 20 da Lei 8.742/93, quando analisado estritamente no modelo de interpretação literal/gramatical[1], elucida o resguardo assistencial somente àqueles com renda inferior a ¼ do salário mínimo, transformando em mera técnica aritmética a feição humanista da proteção.

Não se defende, simploriamente, o fim da pauta objetiva, mas sim, deve-se contrabalancear o aspecto objetivo frente aos aspectos subjetivos da pretensão resistida objeto de pacificação, isto para obtenção de resultado jurisdicional mais consentâneo com os ditames constitucionais, posto que considerar o critério taxativo da lei, um fim em si, consiste em inconstitucionalidade manifesta, considerando a abertura do inciso V, artigo 203 da CF.

Nesse viés, o papel do Supremo Tribunal Federal não se restringe ao controle de atos diretamente contrários ao texto Magno, como também aferir a não violação, quer seja direta ou indireta, das concretizações normativas constitucionais delegadas pelo Poder Constituinte ao legislador infraconstitucional, como requerem as normas de eficácia limitada (vide decisão prolatada pelo Ministro Marco Aurélio no RE 567.985/MT, Tribunal Pleno).

A prevalência da proteção insculpida pelo constituinte deve ser resguardada, sob pena de por fim a proteção social ditada pelo texto magno, inviabilizando, por decorrência, a operacionalização dos objetivos da República Federativa do Brasil.

Com relevo, proteger a dignidade daqueles incapazes de manter uma vida com dignidade, ante a impossibilidade de manutença pelas suas próprias forças, cumpre o programa constitucional estabelecido no inciso V, do artigo 203 da Constituição Federal, eliminando-se qualquer interpretação fortificada no aspecto meramente objetivo, impensável, aliás, desconsiderar fatos do cotidiano para fins de análise da ocorrência do risco social.

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Em que pese a polissemia[vi] do postulado da dignidade da pessoa humana[vii], o espectro do não reconhecimento é tão assustador quando a ausência de classificação doutrinária uníssona, o que acreditamos indesejável limitar/restringir/balizar direitos quando o papel deferido pela Constituição ao legislador ordinária era justamente o oposto.

Conclusão

Portanto, a análise da miserabilidade deve pautar-se nos aspectos sócio-econômicos do pretendente, subtraindo a máxime do critério objetivo taxado na Lei 8.742/93, eis que insuficiente a constatar quem é(são) o(s) titular(es) do direito à prestação por parte do Estado. Com relevo, com espeque nas normas de direito adjetivo civil, o Magistrado não está vinculado aos apontamentos da pericial judicial, devendo, todavia, com fundamento no princípio do livre convencimento motivado, aplicar o direito que mais atenda aos fins sociais ao qual dirigido, segundo dispõe o artigo 5° da Lei Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

 

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988
______. Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providencias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF.
______. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de introdução às normas de Direito Brasileiro. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF.
______. Supremo Tribunal Federal. RE n. 567.985/MT. Relator: Min. Marco Aurélio, julgado em 06.06.12.
______. Supremo Tribunal Federal. RE n. 580.963/PR. Relator: Min. Gilmar Mendes, julgado em 06.06.12.

Nota:

 
[1] Não podemos olvidar da crítica cunhada por Carlos Maximiliano a este modelo de interpretação, eis que a importância da interpretação literal falece no mundo moderno, marcado pelo incessante processo de aperfeiçoamento da linguagem, modificando o sentido dos verbetes com o decurso do tempo, ao contrário dos tempos antigos, período marcado pela utilização de línguas mortes, bastante em si, dotadas de conceitos estanques e imutáveis.

 
[i] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 667.

[ii] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 105.

[iii] KREBS, Friheitsschtutz durch Grundrechte, apud MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 675.

[iv] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 113.

[v] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 286-286.

[vi] Nesse norte é o pensamento de SARLET, Ingo Wolfgang in Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 47.

[vii] Para SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 70, a dignidade: a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.


Informações Sobre o Autor

Junior Leite Amaral

Defensor Público Federal de 2ª Categoria. Especialista em Processo Civil na Universidade de Caxias do Sul/RS.


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