Resumo: O objetivo desta pesquisa é apresentar alternativas à questão da dupla tipificação da morte culposa no trânsito em situação de “racha”, introduzida pela Lei nº 12.971/2014. Optou-se por investigar a questão sob o prisma estritamente judicial, do operador do direito, que lida com problemas deduzidos em juízo, sem discutir possíveis soluções legislativas. No primeiro capítulo foi traçado o perfil dogmático dos tipos de morte culposa em situação de “racha”. No segundo, procurou-se analisar a tramitação legislativa dos Projetos que resultaram na Lei nº 12.971/2014 para definir qual foi a intenção do legislador (mens legislatoris), por meio de interpretação dos documentos legislativos. Buscou-se ainda equacionar o problema da dupla tipificação da morte culposa no trânsito com base nos critérios e métodos tradicionais de interpretação da norma penal, para definir a intenção objetivada na lei (mens legis). Por último, analisou-se se as modernas discussões em torno dos limites do controle de constitucionalidade de normas penais com fundamento no princípio da proporcionalidade impõem que se afaste a resposta proporcionada pelos métodos tradicionais de hermenêutica com base no princípio da vedação da proteção insuficiente/deficiente de bens jurídico-penais. Em termos metodológicos, a presente pesquisa é um estudo de caso representativo do embate entre os critérios liberais clássicos de interpretação e os imperativos de garantia positiva dos bens jurídico-penais de modo proporcional a sua estatura na ordem de valores constitucional. O núcleo da pesquisa se desenrola por meio, essencialmente, de um trabalho de revisão sistemática da bibliografia sobre o assunto. Concluiu-se que uma interpretação que leve a sério os imperativos constitucionais de tutela e segurança suficientes aos bens jurídicos exige que se opte pelo tipo mais grave, a despeito de a hermenêutica penal tradicional resultar na aplicação da norma mais benéfica ao réu. [1]
Palavras-chave: Dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha”. Interpretação das normas penais. Princípio do in dubio pro reo. Princípio da proporcionalidade. Vedação da proteção insuficiente.
Abstract: The objective of this research is to present alternatives to the problem of the double criminalization of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized speed contest, introduced by Federal Statute nº 12.971/2014. We chose to investigate the issue from the perspective of the judicial operator, who handles problems deducted in court, without discussing possible legislative solutions. In the first chapter, was drawn the dogmatic profile of the two crimes of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized speed contest. In the second, we tried to analyze the legislative process of the law proposals that resulted in Federal Statute nº 12.971/2014, to define what was the intention of the legislator (mens legislatoris), by means of the interpretation of the legislative documents. It was also attempted to elucidate the problem of the double criminalization of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized speed contest, through the employment of the traditional criteria and methods of interpreting the criminal statutes, to define the objectified intention in the law (mens legis). Finally, we analyzed whether the modern discussions about the limits of judicial review of laws on the basis of the principle of proportionality and of the prohibition of insufficient protection of legal interests require that the answer provided by the traditional methods of the hermeneutics of criminal laws be abandoned. In terms of methodology, this research is a case study of the overspread dispute between the classic liberal interpretation criteria and the positive assurance imperatives of legal interests in proportion to their status in the order of constitutional values. The core of the research unfolds through a systematic review of the literature on the subject. We concluded that an interpretation that takes the constitutional imperatives of protection and sufficient security to legal interests seriously requires that we opt for the application of the more severe offense, despite the traditional criminal hermeneutics criteria resulting in the application of the most favorable norm to the defendant.
Keywords: The double criminalization of involuntary vehicular manslaughter in a situation of unauthorized races. Interpretation of criminal statutes. In dubio pro reo principle. Principle of proportionality. Prohibition of insufficient protection of legal interests.
Sumário: Introdução. 1. A lei nº 12.971/2014 e o perfil dogmático da morte culposa no trânsito em situação de “racha”. 1.1 As alterações no tipo de homicídio culposo no trânsito. 1.2 As alterações no tipo de participação em competição automobilística não autoriza (“racha”). 1.3 A dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha”. 2. A resposta da hermenêutica tradicional para a dupla tipificação da morte culposa no trânsito em situação de “racha”. 2.1 O sentido e a importância da mens legislatoris. 2.2 O sentido e a importância da mens legis. 2.3. O sentido e a importância do in dubio pro reo. 3. A resposta da hermenêutica constitucional contemporânea para a dupla tipificação da morte culposa no trânsito em situação de “racha”. 3.1 O direito penal e a dupla dimensão das normas constitucionais de direitos fundamentais: perspectivas subjetiva e objetiva. 3.2 O direito penal e a dupla face do princípio da proporcionalidade: a vedação do excesso e a proibição de proteção insuficiente. 3.3 O controle de constitucionalidade pela via da proporcionalidade da lei nº 12.971/2014. Conclusão. Referências.
Introdução
É antiga a intervenção do Direito no âmbito do trânsito e dos transportes. A existência das civilizações, na forma como as conhecemos, sempre pressupôs algum nível de circulação espacial de recursos humanos e materiais. As migrações populacionais, os intercâmbios comerciais, as invasões, as viagens e descobertas marcam a história do homem. E onde há vida social, lá estará o Direito ainda que em um nível ainda rudimentar.
O “regime jurídico dos transportes” ou o “Direito de Trânsito” serve não apenas para fixar as regras adequadas a orientar a ordinária e regular movimentação de pessoas, animais, mercadorias e veículos (normas de segurança, de proteção, de gestão), como para resolver os conflitos que emergem quando ocorrem inevitáveis intercorrências danosas a pessoas e/ou ao patrimônio. Os frequentes acidentes explicam porque o Direito de Trânsito é uma área de especial interface entre normas administrativas e de responsabilidade civil e penal.
O quadro desolador, de autêntica tragédia humanitária, vivenciado no trânsito, na maioria das nações desenvolvidas, tem produzido a percepção de que o conjunto normativo existente não é suficiente para fazer frente ao incremento da complexidade das relações de transporte, advindas do rápido crescimento populacional, do aumento descontrolado da frota veicular e da urbanização acelerada vivenciada nas últimas décadas. Essa situação gerou uma crescente produção legislativa em matéria de trânsito, tornada essa matéria em pauta prioritária dos políticos dos mais variados espectros ideológicos, em função da visibilidade que proporciona. Essa produção legislativa alcançou também a esfera penal, do que são exemplos: a nova Lei Seca (Lei nº 11.705 de 2008) e suas sucessoras (dentre as quais a Lei nº 12.760 de 2012), que tornaram mais rígido o tratamento jurídico da embriaguez ao volante.
O Código de Trânsito Brasileiro possui um capítulo apenas para tratar dos “Crimes de Trânsito”. Lá estão tipificadas diversas condutas delituosas, como o homicídio culposo, a lesão corporal culposa, a omissão de socorro e outras que mereceram tratamento diferenciado quando praticadas em situação de trânsito. O crime de participação em corrida não autorizada, o popular “racha”, delito exclusivo da legislação de trânsito, também se encontra tipificado no referido Capítulo.
Foi com vistas a punir mais severamente a prática do “racha”, bem como a ocorrência de lesões graves e mortes no trânsito que o legislador brasileiro editou a Lei nº 12.971/2014 (oriunda do Projeto de Lei nº 2.592/2007 da Câmara dos Deputados), de 09 de maio de 2014, aumentando as sanções administrativas (amplitude de multas) e alterando a redação típica e as penas de alguns crimes.
No que interessa especificamente ao problema a ser destacado no presente projeto de pesquisa, vale apontar que a Lei parece haver inserido, como se irá detalhadamente demonstrar, em dois dispositivos diferentes, mas com quase idênticas elementares do tipo, dois crimes de morte culposa em situação de “racha”, atribuindo a cada um deles penas diferentes.
Assim, como se há de verificar, desde maio de 2014, existiriam dois tipos de morte culposa em situação de “racha” no Brasil. O primeiro estaria inserido como forma qualificada do homicídio culposo (art. 302, § 2º do CTB), com a pena de dois a quatro anos de reclusão e o segundo estaria inserido como forma qualificada do crime de “racha” (art. 308, § 2º do CTB), com a pena de cinco a dez anos de reclusão.
O problema que concretamente se coloca, portanto, na presente pesquisa é o seguinte: como equacionar juridicamente a questão da dupla tipificação da morte culposa no trânsito em situação de “racha”, introduzida pela Lei nº 12.971/2014?
É fácil perceber que, admitindo-se que realmente ocorreu a dupla tipificação da mesma infração penal, a referida Lei produziu uma situação de terrível insegurança jurídica que precisa ser adequadamente enfrentada pela doutrina. A existência de dois tipos criminais, com, praticamente, as mesmas elementares e com penas diferentes, produz um enorme risco de incrementar a já injusta seletividade do Direito Penal, com indiciamentos, denúncias e condenações variando drasticamente, conforme o perfil socioeconômico/racial do acusado, abrindo-se a possibilidade de que delegados, promotores e juízes acabem optando por um dos tipos criminais, e por sua respectiva pena, de maneira mais ou menos arbitrária e irracional, em autêntico retorno a um Direito Penal do agente e não do fato. A garantia constitucional de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal), pressupõe que a lei penal seja certa, inteligível, com âmbito de incidência bem definido.
Essa questão poderia se desdobrar em dois planos, o da aplicação normativa, ou seja, o do momento da decisão judicial, da busca de uma solução para o caso concreto e o da fundamentação normativa, ou seja, o do momento da produção de uma lei nova. Mas os estreitos limites desta monografia impõem a opção pela análise de apenas um dos planos. Optou-se por investigar a questão sob o prisma estritamente judicial, do operador do direito, que lida com problemas deduzidos em juízo.
Assim, o que se buscará definir neste trabalho é: qual dos dois tipos criminais de morte culposa no trânsito em situação de racha deverá prevalecer, empregando-se os critérios e métodos clássicos de interpretação da norma penal, em cotejo com as novas discussões sobre a vedação da proteção insuficiente de bens jurídico-penais?
Observe-se que, com o intuito de apresentar uma fundada resposta ao dilema que se coloca e sem nunca perdê-lo de vista, levantar-se-ão discussões sobre temas prementes, na Teoria do Crime e na Política Criminal de hoje, dentre os quais: o “princípio da proibição da proteção deficiente”, “bem jurídico-penal e controle de constitucionalidade de leis penais” e “princípio da proporcionalidade e normas penais”. Também se passarão em revista crítica os critérios e métodos tradicionais da interpretação jurídica das normas penais, cunhados no auge do liberalismo político iluminista, buscando avaliar a sua validade e utilidade presentes, em confronto com os modernos imperativos constitucionais de proteção suficiente aos bens jurídicos fundamentais e de proporcionalidade legislativa.
Para levar a cabo essa tarefa, a presente pesquisa se divide em três capítulos. No primeiro, será possível, traçando o perfil dogmático dos crimes sob análise, entender-se: como e se, efetivamente, as principais alterações, introduzidas pela Lei nº 12.917/2014, resultaram na dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha”?
No segundo, procurar-se-á analisar a tramitação legislativa dos Projetos que resultaram na Lei nº 12.971/2014 para definir, se possível, qual foi a intenção do legislador (mens legislatoris). O referido trabalho é factível e não apresenta maiores dificuldades, uma vez que o mapeamento de todo o processo legislativo já é levado a cabo pela assessoria técnica de ambas as casas do Congresso Nacional e pode ser acompanhado nos respectivos endereços eletrônicos. Como não se trata aqui de fazer “análise de discurso” dos autores das proposições, mas de simples colheita das justificativas apresentas nos Projetos e nos relatórios das Comissões de Mérito, com a finalidade de identificar eventual intenção bem definida do legislador penal, para apoiar a atividade de fixação do sentido da mudança normativa, que é o foco desse trabalho, não se faz necessário nenhum tratamento metodológico prévio especial dos dados a serem coletados. Trata-se de simples interpretação de textos.
Verificar-se-á ainda se é possível equacionar o problema da dupla tipificação da morte culposa no trânsito com base nos critérios e métodos tradicionais de interpretação da norma penal, para definir, se possível, a intenção objetivada na lei (mens legis).
E, por último, tendo-se em vista o resultado interpretativo obtido no capítulo anterior, será preciso contextualizar as modernas discussões em torno dos limites do controle de constitucionalidade de normas penais com fundamento no princípio da proporcionalidade, analisando se será possível afastar a resposta proporcionada pelos métodos tradicionais de hermenêutica com base no princípio da vedação da proteção insuficiente/deficiente de bens jurídico-penais.
Em termos metodológicos, a presente pesquisa é um estudo de caso. Fala-se de estudo de caso, porque acreditamos que o impasse interpretativo introduzido pela Lei nº 12.971/2014 é apenas um exemplo significativo, e particularmente aberrante, no ordenamento jurídico brasileiro, do embate que se torna cada vez mais frequente entre os critérios liberais clássicos de interpretação e os imperativos de garantia positiva dos bens jurídico-penais de modo proporcional a sua estatura na ordem de valores constitucional.
Como se propôs a pôr em debate dois paradigmas de interpretação, com foco no problema anteriormente apresentado, o núcleo da pesquisa se desenrola por meio, essencialmente, de um trabalho de revisão sistemática da bibliografia sobre o assunto. Por meio da revisão bibliográfica, será possível traçar um panorama de ambos os esquemas interpretativos cotejados e submetê-los à análise crítica, sempre com vistas ao equacionamento da questão jurídica específica posta em discussão, da dupla tipificação da morte culposa no trânsito em situação de “racha”. A seleção do material de pesquisa também levou em conta os estreitos limites desta obra, de cunho monográfico, que não poderá ter a pretensão de esgotar o assunto e nem de fornecer um apanhado completo de todos os temas abordados, mas apenas de refletir de forma concreta, crítica e propositiva acerca do problema discutido.
A hipótese que se pretende verificar com a presente investigação, como já referido é: se o resultado interpretativo produzido pelos parâmetros tradicionais da hermenêutica penal liberal deverá ser afastado, por não ser a solução mais adequada da perspectiva de uma orientação comunitarista do conceito de bem jurídico, que pressupõe um dever do Estado de assegurar-lhe proteção suficiente na ordem de valores da Constituição?
1 A lei nº 12.971/2014 e o perfil dogmático da morte culposa no trânsito em situação de “racha”
A Lei nº 12.971, de 09 de maio de 2014, alterou o Código de Trânsito Brasileiro, Lei nº 9.503/1997, introduzindo alterações nos tipos de quatro delitos já previstos na legislação de trânsito (lesão e morte culposa no trânsito, embriaguez ao volante e a participação em disputas automobilísticas não autorizadas, vulgarmente, conhecida como “racha”) bem como incrementando as sanções administrativas correspondentes às infrações associadas a esses mesmos delitos.
A Lei nº 12.971/2014 previu um período de vacatio legis, programando a sua entrada em vigor apenas a partir do dia 01 de novembro de 2014. Não custa lembrar que a lei não teve eficácia nesse período de suspensão de sua vigência nem mesmo para beneficiar o réu, segundo entendimento do STF[2], uma vez que o referido interstício de prova pressupõe a possibilidade de que a norma seja revogada. O que não impede, no entanto, a eficácia retroativa da lex melior, afetando inclusive os fatos praticados no período de vacância, quando efetivamente entrar em vigor o diploma legislativo, conforme regra corriqueira de aplicação e interpretação das normas penais que reflete um dos corolários do princípio da legalidade[3].
As alterações estritamente administrativas, como já se referiu, correspondem a um substancioso incremento das sanções pecuniárias (multas) correspondentes aos seguintes ilícitos: disputar corrida, promover ou participar de competição de perícia em manobra de veículo sem autorização, ultrapassagem na contramão, ultrapassagem em local impróprio e passagem forçada entre veículos que transitam em sentidos opostos (CAVALCANTE, 2014).
O objeto deste estudo, no entanto, é analisar apenas as alterações introduzidas pela Lei nº 12.971/2014, nos crimes de homicídio culposo e de “racha”, em especial, para propor uma solução jurídica para a dupla tipificação, introduzida pelo diploma, da morte culposa no trânsito, em situação de “racha”.
1.1 As alterações no tipo de homicídio culposo no trânsito
O crime de homicídio culposo no trânsito, previsto no artigo 302 do Código de Trânsito, apresenta a seguinte redação, após as recentes alterações:
“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1o No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente: (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014)
I – não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação; (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014)
II – praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada; (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014)
III – deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente; (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014)
IV – no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros. (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014)
§ 2o Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente: (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014)
Penas – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014) “
Observe-se que a redação do tipo básico, bem como a suas penas (detenção de dois a quatro anos e proibição ou suspensão de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor) foram mantidas. Trata-se de um crime culposo, que, portanto, sempre ensejará a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, cumpridos os outros requisitos da legislação penal (ser o réu primário e fazendo-se presentes as outras circunstâncias pessoais que recomendam a substituição). [4]
As causas de aumento de pena, que antes compunham o parágrafo único do artigo 302 foram mantidas, passando a constituir os incisos do § 1º. A verdadeira modificação introduzida pela Lei nº 12.971 consta do novo § 2º do artigo 302. Pretendeu-se tipificar duas formas qualificadas do delito de homicídio culposo previsto no caput: quando o condutor do veículo se encontrar com a sua capacidade psicomotora alterada em razão de embriaguez alcoólica ou causada por outra substância entorpecente ou ainda quando o homicídio ocorrer no contexto de uma corrida, disputa, competição automobilística ou demonstração de perícia em manobra de veículos não autorizada pela autoridade de trânsito, o que caracteriza a situação configuradora do crime de “racha”.
As formas qualificadas de homicídio culposo no trânsito, no entanto, receberam a mesma pena de sua forma simples: de dois a quatro anos de prisão. O fato de o termo “detenção”, empregado no caput, haver sido substituído por “reclusão” não faz nenhuma diferença, a não ser de caráter simbólico. Com uma pena igual ou inferior a quatro anos de prisão e um réu primário, o regime de cumprimento de pena será o aberto/domiciliar, independentemente, de se tratar de reclusão ou detenção. Na lógica do Código Penal vigente, a única diferença significativa entre a reclusão e a detenção é que apenas para crimes aos quais se comine a reclusão é possível se impor o regime fechado de cumprimento da pena privativa de liberdade. Mas também caberá, desde o início, para condenados não reincidentes a uma pena igual ou menor que quatro anos o regime aberto, até porque a fixação do regime aberto não guarda relação com a espécie de pena (reclusão ou detenção), mas com a quantidade de pena (até 04 anos). [5] E essa pena de prisão em regime aberto será quase sempre substituída por uma restritiva de direitos (art. 44 do CP) ou suspensa, nos termos do artigo 77 do Código Penal[6], o que significa que a referida alteração não representa nada em termos de incremento do rigor punitivo.
Além de não ter havido agravamento de pena, por ter sido mantida a mesma escala punitiva do preceito secundário da forma simples, a previsão da forma qualificada de homicídio culposo no trânsito em situação de embriaguez impede que a morte culposa e a embriaguez ao volante sejam tratadas como crimes autônomos, do modo que vinha fazendo parcela da jurisprudência, ora entendendo que se tratava de concurso formal, ora material, entre os dois delitos, embora o entendimento majoritário na jurisprudência já fosse o de que haveria consunção, o crime de dano absorvendo o crime de perigo concreto[7].
Afastada a possibilidade de concurso, ao crime de homicídio que, ademais de ser culposo, tem pena máxima igual a quatro anos, falta base legal para a decretação da prisão preventiva, nos termos dos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal[8], devendo ser o indiciado ou acusado liberado provisoriamente com ou sem fiança. A prisão em flagrante delito é cabível, mas dificilmente pode ser mantida, uma vez que o suspeito, após ser detido e conduzido à Delegacia, poderá ter a sua fiança arbitrada pela autoridade policial, segundo o disposto no artigo 322 do diploma processual penal[9].
O crime de lesão corporal culposa do artigo 303 do Código de Trânsito[10] não foi modificado, apenas alterando-se a menção topográfica às causas de aumento de pena (de um terço à metade), que são as mesmas do homicídio culposo.
O crime de embriaguez ao volante do artigo 306[11] também sofreu pequenas alterações com a Lei nº 12.917/2014. Inseriu-se, em seu parágrafo segundo, a possibilidade de constatação da presença de substância psicoativa distinta de álcool por meio de exame toxicológico, o que já não era vedado pelo ordenamento, lembrando-se que são admitidos todos os meios de prova não considerados ilícitos ou imorais[12]. A outra novidade, contida no parágrafo terceiro é a determinação de que o CONTRAN disponha por meio de resoluções sobre a unificação e a equivalência dos exames toxicológicos para determinação da configuração do delito do art. 306.
1.2 As alterações no tipo de participação em competição automobilística não autoriza (“racha”)
O crime de participação em competição não autorizada, o “racha”, previsto no artigo 308 do Código de Trânsito Brasileiro, passou a viger com a seguinte redação:
“Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada: (Redação dada pela Lei nº 12.971, de 2014)
Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (Redação dada pela Lei nº 12.971, de 2014)
§ 1o Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014)
§ 2o Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.” (Incluído pela Lei nº 12.971, de 2014)
A prática de disputas automobilísticas não autorizadas, tipificada no artigo 308, conhecida como “racha”, antes era enquadrada como mera contravenção penal de direção perigosa (LCP, art. 34)[13], mas o crescimento do número de acidentes causados por essas competições levou o legislador do Código de Trânsito a tipificá-las especificamente como crime, já na sua redação original.
Trata-se, de crime que visa à tutela da segurança viária, bem como da incolumidade das pessoas e de seu patrimônio, em especial, nas suas formas qualificadas, quando, culposamente, resultar em morte ou lesão corporal grave. O referido delito pressupõe o concurso de vários motoristas, visto que não poderia haver corrida, disputa ou competição praticada por um único agente, nem exibição de perícia sem competidores, ainda que cada performance seja individual ou feita separadamente. Um sujeito isolado responderia pela contravenção da direção perigosa ou, a depender do contexto, pelo crime do artigo 311 do Código de Trânsito[14].
O delito pressupõe que se produza risco à incolumidade pública ou privada. A anterior dicção legal mencionava “dano potencial à incolumidade pública ou privada”, expressão atécnica, mas que queria significar a produção de uma situação de perigo concreto a bens jurídicos, que é mais claramente expressada com a linguagem atualmente empregada. Dispensa-se a prova de que uma pessoa determinada foi exposta a perigo, impondo-se apenas a comprovação da potencialidade lesiva concreta da competição (ANDREUCCI, 2013, p. 79). Ou seja, não se presume o perigo, ele deve ser demonstrado, porém não é preciso que se identifique e se indique um sujeito passivo específico. Se há de convir que, desde o início, não se poderia interpretar “dano potencial” como sendo algo diferente de um perigo de dano.
Sobre a troca dessa fraseologia SILVA (2014) defende um entendimento bastante diferente. Segundo ele:
“Levando-se em conta que a intenção do legislador foi caminhar pelo enrijecimento do rigor punitivo desta norma penal, entendemos que a ”substituição de tais expressões teve por objetivo deixar claro que o crime do artigo 308 do CTB é de perigo abstrato, pois fala em risco, e não dano potencial. Aliás, “dano potencial” é uma expressão mais forte, vale dizer, demonstra que a situação de portabilidade de dano é concreta (crime de perigo concreto), e dentro do “iter criminis”, está mais próximo do resultado danoso, ao passo que gerar “situação de risco” é algo que está um pouco mais longe de se concretizar (perigo abstrato).”
Em que pese tais assertivas, convém destacar o entendimento jurisprudencial consolidado em sentido contrário, refletido no seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. RACHA. CRIME DE PERIGO CONCRETO. DEMONSTRAÇÃO DA POTENCIALIDADE LESIVA. OCORRÊNCIA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. LEI Nº 9.714/98. AUSÊNCIA DE REQUISITO SUBJETIVO. I – O delito de racha previsto no art. 308 da Lei nº 9.503/97, por ser de perigo concreto, necessita, para a sua configuração, da demonstração da potencialidade lesiva, o que restou indicada na condenação guerreada. II – Para que o réu seja beneficiado com a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, é indispensável o preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos constantes do art. 44 do Código Penal. Recurso desprovido” (STJ – REsp: 585345 PB 2003/0130699-1, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 16/12/2003, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 16.02.2004 p. 342)
Com efeito, infere-se que as expressões “dano potencial” e “risco” são sinônimos. Dano potencial não é dano efetivo, real e, portanto, não pode ser algo diferente do risco. O que diferencia o crime de perigo concreto do de perigo abstrato é que o primeiro exige a comprovação do risco para o bem protegido e no segundo há uma presunção legal do perigo. Assim, mesmo com a alteração legal deverá prevalecer o entendimento, consolidado jurisprudencialmente[15], de que o “racha” continua a ser crime de perigo concreto até mesmo, porque emenda legislativa (de autoria do Senador Pedro Taques) que objetivava deixar expresso que o delito passaria a ser considerado de perigo abstrato foi rejeitada (CAVALCANTI, 2014).
Em sua redação originária, o Código de Trânsito Brasileiro previa que se aplicavam ao crime de participar em competição não autorizada os institutos da Lei nº 9.099 de 26 de setembro de 1995, como a composição civil e a transação penal, bem como a necessidade de representação para a propositura da ação penal pública, no caso de resultarem lesões corporais culposas. Também, em virtude da aplicação da Lei dos Juizados Especiais, não eram instaurados inquéritos policiais para a apuração desse crime, lavrando-se simples termo circunstanciado, assumindo o autor o compromisso de comparecer em juízo, na data designada.
A Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008, passou a dispor que os sobreditos benefícios da Lei dos Juizados Especiais já não mais teriam lugar no caso de crimes de lesão corporal culposa que ocorressem em situação de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, praticada em via pública. A ação passou a ser pública e incondicionada. Hoje, com a elevação da pena máxima cominada em abstrato da figura típica básica do “racha” para três anos, não se está a tratar de delito de menor potencial ofensivo, não devendo mais ser lavrado termo circunstanciado de ocorrência e sendo cabível a prisão em flagrante delito. A pena mínima cominada de seis meses, no entanto, continua a autorizar a suspensão condicional do processo, após a denúncia, cumpridos os requisitos da Lei nº 9.099 de 1995.
Para o crime de racha, a lei impõe a aplicação da pena principal de suspensão ou proibição da permissão ou habilitação para dirigir veículo, entre o mínimo de 02 (dois) meses e o máximo de 05 (cinco) anos combinada com a pena privativa de liberdade e, a depender da hipótese concreta, também com a pena pecuniária.
O fato delituoso de participar em competição não autorizada, tipificado no art. 308 do CTB só fica configurado se ocorrer em “via pública”, e não em qualquer via terrestre do território nacional aberta à circulação. Assim, caso a conduta seja praticada em vias particulares, como por exemplo: “estacionamentos privados, vias internas de propriedades rurais ou pátios de garagens e postos de gasolina” (ANDREUCCI, 2013), deve ser considerada atípica.
A Lei nº 12.971/2014 introduziu ainda formas qualificadas do crime de “racha”, quando resultar lesão corporal grave ou morte culposa, com penas de 03 a 06 anos e de 05 a 10 anos de reclusão, respectivamente. A introdução de duas figuras qualificadas preterdolosas ao art. 308 parece, à primeira vista, representar um agravamento da punição dos condutores que participam de competições não autorizadas. No entanto, como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estava se encaminhando para reconhecer quase sempre o tipo subjetivo de dolo eventual nos crimes de homicídio e lesão grave praticados no contexto de um “racha” [16], a inclusão de formas qualificadas pelo resultado culposo dá novo fôlego para a tese dos que defendiam estar configurada nessas hipóteses a culpa consciente, o que acaba por beneficiar os mesmos sujeitos que se queria punir mais gravemente.
Aqui surge o maior problema da Lei nº 12.971/2014: o crime de racha em que houver resultado morte decorrente de culpa tem hipótese fática quase idêntica à forma qualificada de homicídio culposo do art. 302, § 2º. Trata-se de dupla tipificação da mesma hipótese fática com penas diversas.
1.3 A dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha”
De fato, com uma simples leitura dos artigos 302, § 2º, segunda parte e 308, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro, verifica-se que as elementares que compõem ambos os delitos são virtualmente indistinguíveis. Ambos os crimes acontecem em situação de “racha”, vale dizer, quando o condutor “participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente”. As diferenças entre os descritores dos dois tipos não são relevantes.
De fato, embora o parágrafo segundo do artigo 302 contenha a expressão “ou ainda [participar] de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor”, percebe-se que muito raramente a referida “exibição” de perícia ocorrerá fora do contexto de uma “disputa ou competição” automobilística. Não existe “demonstração” de perícia sem platéia, “exibição” sem público e, muito raramente, essas práticas seriam realizadas por um condutor isolado, agindo sozinho, procurando admiração de transeuntes aleatórios. Trata-se sim de uma modalidade de “competição não autorizada”, em que não está em disputa a velocidade dos participantes ou o tempo em que completam um percurso, mas sim a perícia em manobras arriscadas, conduta já incluída, portanto, na previsão do caput do artigo 308. A hipótese do exibicionista isolado, praticando o delito de “racha”, tanto não faz sentido que o tipo fala de “participar em exibição ou demonstração” e não em “exibir” ou “demonstrar”.
Outra diferença de pouca monta é que, enquanto o crime de “racha”, como já referido, pune a conduta praticada em “via pública”, a forma qualificada do homicídio culposo em situação de “racha”, também se aplica às “vias”, sem maiores qualificações. Registre-se que as disposições do Código de Trânsito Brasileiro, como já referido, aplica-se ao trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional abertas à circulação. São vias terrestres urbanas e rurais as ruas, as avenidas, os logradouros, os caminhos, as passagens, as estradas e as rodovias, a elas se equiparando ainda as praias abertas à circulação e as vias internas de condomínios constituídos por unidades autônomas. [17]
Percebe-se que, pela lógica do Código de Trânsito, nem toda via aberta à circulação é via pública. Existem vias particulares ou de uso privado, abertas à circulação. Assim, quando competições automobilísticas não autorizadas ocorrerem em vias privadas, não estará configurado o crime de “racha” do artigo 308 do Código de Trânsito, mas caso ocorra uma morte culposa, poderá incidir a forma qualificada do homicídio culposo em situação de “racha”. Uma técnica legislativa verdadeiramente desastrosa. De qualquer forma, a hipótese referida, de incidência isolada do tipo de homicídio culposo qualificado é, por óbvio, bastante rara e não diminui o fato de que, na imensa maioria dos casos, haverá conflito entre ambos os tipos.
Está claro também que, em termos de objetividade jurídica, os crimes de: “racha” com resultado morte culposa e de morte culposa em situação de “racha” tutelam o mesmo bem: a vida dos sujeitos participantes do trânsito. E, nos dois tipos criminais, a culpa, que provoca a produção do resultado morte, é aquela cujas modalidades estão especificadas no artigo 18, inciso II, do Código Penal (imprudência, negligência e imperícia)[18]. A sua definição é a mesma da teoria geral do delito: é a ação humana voluntária que produz, de forma não intencional, o resultado típico, por meio de uma quebra de dever de cuidado, cujas consequências, embora fossem previsíveis, não foram previstas pelo agente ou não foi por ele assumido o risco de produzi-las (DOTTI, 2003). De fato, afirmar-se que “as circunstâncias demonstram que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo” é o mesmo que se afirmar que o condutor agiu culposamente.
Os dois crimes, por óbvio, pressupõem que o sujeito ativo esteja no “comando dos mecanismos de controle e velocidade de um veículo automotor” (CAPEZ, 2014, p. 306). Quando o autor da imprudência não estiver na direção de veículo automotor, ainda que o fato se passe no trânsito e no contexto de uma competição não autorizada, não estarão configuradas as elementares dos crimes do Código de Trânsito, mas sim as do homicídio culposo do Código Penal (art. 121, § 3º). Observe-se que espectadores e passageiros que venham a estimular a corrida e promover o espírito de emulação poderão vir a ser responsabilizados na condição de partícipes (art. 29 do CP).
Essa situação de dupla tipificação é claramente percebida por Sannini Neto e Moraes (2014), em artigo sobre o tema:
“Ocorre que a conduta típica de causar a morte culposamente quando da participação em corrida, disputa ou competição automobilística sem autorização pela autoridade competente se subsume de igual modo ao tipo penal da nova figura qualificada do § 2º do art. 302, o qual, porém, comina pena muito inferior, de 2 a 4 anos de reclusão, como já apontado. Trata-se de inaceitável falha na técnica legislativa. O delito de perigo (“racha”), por óbvio, deve ser absorvido pelos mais graves, de dano (homicídio ou lesão corporal).”
Luiz Flávio Gomes (2014) também identifica de modo distinto a dificuldade trazida pela lei:
“O problema: aqui no art. 308 o resultado morte provocado culposamente aparece como qualificadora do delito de participação em “racha”. Já no art. 302 (homicídio culposo), é a participação em “racha” que o torna qualificado (mais grave). No delito de participação em “racha”, é a morte que o qualifica. No delito de homicídio, é a participação no racha que o qualifica. Mas tudo isso é a mesma coisa! O mesmo fato foi descrito duas vezes. Na primeira situação (art. 302), a descrição legal foi de trás para frente (morte em virtude do “racha”); na segunda (art. 308), da frente para trás (“racha” e depois a morte). Para não haver nenhuma dúvida (talvez essa tenha sido a preocupação do emérito legislador), descrevesse o mesmo fato duas vezes. Seria uma mera excrescência legis (o que já é bastante reprovável), se não fosse o seguinte detalhe: No art. 302 (homicídio culposo em razão de “racha”) a pena é de reclusão de dois a quatro anos; no art. 308 (“racha com resultado morte decorrente de culpa”) a pena é de cinco a dez anos de reclusão! Mesmo fato, com penas diferentes […]”
Nucci (2014), por sua vez, entende que o referido conflito aparente de normas tem fácil solução: inequivocamente seria aplicado o tipo do homicídio culposo qualificado (art. 302, § 2º), em vez do tipo de “racha” com resultado morte culposa (art. 308, § 2º), já que o crime, cuja figura típica básica é de dano (ainda que culposo), sempre absorveria o crime, cuja figura típica básica é de perigo concreto, ainda que deste resultasse um dano que o agente não quis nem assumiu o risco de produzir (crime preterdoloso – dolo com relação ao perigo concreto e culpa com relação ao dano).
A resposta para esse imbróglio, no entanto, não é tão simples quanto parece. Levando-se em conta as assertivas de Nucci acima transcritas, todas as circunstâncias qualificadoras são idênticas. Em última análise, são criminalizadas duas mortes culposas em situação de “racha”. Trata-se de dois crimes de dano. O bem jurídico tutelado em ambas as formas qualificadas é a vida, a despeito de as figuras típicas básicas, em que as qualificadoras estão inseridas, visarem à defesa de bens jurídicos diversos. O crime de dano consumado só absorve o crime de perigo concreto que lhe é anterior, para que não haja punição duas vezes pelo menos fato, evitando-se, por razões de política criminal que se configurasse um concurso material ou formal de crimes. No entanto, tratando-se de um único delito preterdoloso (seja ele forma qualificada de uma figura típica básica de dano ou de perigo) não cabe falar de dupla punição pelo mesmo fato nem de absorção de crimes. Aqui não cabe a fórmula do “ne bis in idem”.
O desastre produzido pelo legislador penal não se esgota no conflito entre os dois tipos. De fato há uma incongruência ainda entre a pena cominada ao homicídio culposo e a pena abstratamente prevista para a lesão corporal culposa que resultar de “racha”. É desproporcional cominar-se uma pena maior à lesão grave do que aquela a ser aplicada à própria perda da vida, bem indiscutivelmente mais importante que a integridade física. Esse tipo de incoerência, que chega às raias da irracionalidade, não se legitima pela discricionariedade do legislador penal, para traçar as diretrizes de política criminal. No extremo, ela demanda a construção de uma solução, tanto quanto a dupla tipificação acima mencionada.
Sannini Neto e Moraes (2014) sintetizaram as possíveis alternativas de solução desse imbróglio, conforme trecho a seguir:
“Com isso, sob um prisma técnico-jurídico, a solução apropriada será aquela mais favorável ao investigado ou réu, ou seja, o enquadramento na figura qualificada do homicídio culposo do § 2º, do art. 302, tornando na prática letra morta o § 2º do art. 308 contendo idêntica hipótese fática. Por outro lado, pode-se argumentar, por meio de uma interpretação teleológica, que a vontade do legislador, manifestada na Lei nº 12.971/2014, foi no sentido de agravar a reprimenda para os casos em que houver morte em virtude da prática do “racha”. Assim, para que a inovação legislativa não se torne “letra morta”, a única solução seria a adoção do entendimento em que o crime mais grave, qual seja, o agora previsto no artigo 308, § 2°, do CTB, absorvesse o crime menos grave, tipificado no artigo 302, §2°, do mesmo codex. Tal entendimento pode, inclusive, ser subsidiado pelo princípio da proporcionalidade, mais especificamente na sua esfera de proteção insuficiente, afinal, a conduta daquele que causa a morte de outrem em virtude da prática do “racha” é de enorme gravidade, constituindo verdadeira afronta à sociedade e ao próprio Estado.
No mesmo sentido, podemos nos valer do princípio da especialidade para reforçar esse entendimento. Ora, se o caput do artigo 308 pune o crime de “racha” e o seu § 2° nos apresenta uma modalidade qualificada desse crime, é obvio que essa conduta é específica para aquele caso, devendo, consequentemente, prevalecer sobre a conduta descrita no artigo 302, § 2°,
que é genérica. Apenas para ilustrar, caso o tipo penal do artigo 306 trouxesse uma figura qualificada envolvendo morte, esta seria especial em relação ao delito de homicídio previsto no artigo 302, até porque há uma clara distinção entre os bens jurídicos em questão. De qualquer modo, tais divergências tão contundentes não ocorreriam se o legislador atuasse com o mínimo de cautela e técnica jurídica.”
Outra alternativa de interpretação é ainda apresentada por Cavalcanti (2014), na opinião do qual a única maneira de valorizar as palavras da lei é interpretando sistematicamente os seus dispositivos e evitando que caia em desuso o tipo mais grave do artigo 308, § 2º do Código de Trânsito Brasileiro. Nesse sentido, impor-se-ia o entendimento, nos termos da hermenêutica jurídica tradicional, de que não havendo dispositivos inúteis e nem lacunas no ordenamento, também não poderia haver dupla tipificação, tendo ocorrido, na verdade, a previsão de penas diversas para condutas diferenciadas pelos “graus de culpa”. Assim haveria uma morte culposa em situação de racha configurada pela culpa consciente (art. 308, § 2º) e, portanto, merecedora de punição mais grave e uma configurada pela culpa inconsciente (art. 302, § 2º), sendo-lhe atribuída punição menos severa.
A referida proposta de interpretação é bastante interessante, mas também apresenta dificuldades de monta. Ambas as formas qualificadas são culposas e, no ordenamento jurídico brasileiro, não existem tipos culposos exclusivos de culpa consciente ou inconsciente. Na legislação penal, só existe a previsão da culpa tout court, sem gradações, nos termos do artigo 18, inciso II, do Código Penal, quando o agente der causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia, vale dizer, quando pelas circunstâncias se verificar que ele não quis nem assumiu o risco de produzir o resultado.
Os graus de culpa (inconsciente, consciente e gravíssima), no sistema da Nova Parte Geral do Código Penal de 1984, só têm relevância como uma das circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal[19], para fundamentar, limitar e regular a aplicação da pena (GOMES, 2005, p. 75). Em verdade, todos os tipos culposos admitem, no caso concreto, a configuração do tipo subjetivo tanto na forma da culpa consciente quanto na forma da culpa inconsciente. Não é a pena abstratamente cominada que deve distinguir a graduação das culpas, destinando-se a culpa consciente para os crimes culposos mais severamente apenados.
Atualmente, não existem tipos penais exclusivos para cada grau de culpa. Aliás, já passou da hora de o legislador criminal prever um tipo exclusivo de culpa temerária ou gravíssima, precisamente, para essas hipóteses de crimes de trânsito (“racha” ou embriaguez) em que a punição na modalidade culposa parece insuficiente, produzindo uma sensação de impunidade, enquanto, por outro lado, a punição a título de dolo eventual, para a maioria dos casos, seria desproporcionada e excessiva. Mas não existe ainda norma posta nesse sentido, embora já existam propostas de alteração legislativa à semelhança do que consta do Anteprojeto do Novo Código Penal (Projeto de Lei do Senado nº 236 de 2012) e do Projeto de Lei nº 7.623/2014 da Câmara dos Deputados.
Entender contrariamente ao aqui defendido seria negar a possibilidade de se verificarem homicídios culposos no trânsito em situação de “racha” com culpa consciente e admiti-lo para todas as outras hipóteses de homicídio culposo no trânsito (embriaguez; na modalidade do tipo básico; nas hipóteses das causas de aumento de pena etc.). Essa interpretação não resolve o conflito de normas de uma forma justa e coerente e negligencia a análise das circunstâncias do caso concreto, única maneira adequada de se determinar qual a configuração que foi assumida pela mens rea, vale dizer, pelos elementos subjetivos do delito. É impossível negar a sobreposição de tipos virtualmente idênticos de morte culposa em situação de “racha”.
As propostas dos autores anteriormente referidas, embora consistam em simples esboços, de fato resumem bem os caminhos que podem ser trilhados para equacionar a controvérsia da dupla tipificação.
Em um primeiro momento, seria preciso verificar se, como inicialmente afirmado, o emprego dos métodos tradicionais de hermenêutica jurídica resultariam em uma resposta satisfatória para a questão. Poderia ser encontrada nos trabalhos legislativos a clara demarcação da vontade do legislador (mens legislatoris), a ponto de inspirar o intérprete/aplicador da norma? O princípio da especialidade associado a uma interpretação sistemática e topográfica das normas apresentaria uma resposta convincente para a questão? Ou a dificuldade apresentada deveria ser enfrentada com o recurso ao princípio do favor rei?
Em um segundo momento, seria preciso verificar se caberia ao intérprete aplicador da norma, com o emprego do princípio da proporcionalidade, como parâmetro para o controle de constitucionalidade concreto e difuso das normas, afastar a incidência do tipo criminal que conferisse tutela insuficiente ao bem jurídico tutelado (a face do princípio da vedação da proteção deficiente), autorizando a incidência da norma mais grave.
2 A resposta da hermenêutica tradicional para a dupla tipificação da morte culposa no trânsito em situação de “racha”
O objeto desta pesquisa, como já referido, é, essencialmente, um problema de interpretação e aplicação da norma penal. Em verdade, a investigação que se coloca pode ser desenvolvida a partir do cotejo de dois paradigmas de interpretação: um liberal clássico e um constitucionalista de bases axiológicas e comunitaristas.
O debate se centra no possível confronto a ser feito entre o resultado interpretativo produzido pelos parâmetros tradicionais da hermenêutica penal liberal e a solução mais adequada da perspectiva da proteção suficiente dos bens jurídico-penais na ordem de valores da Constituição.
Neste capítulo, buscar-se-á definir qual a importância do processo legislativo e da intenção original do legislador (mens legislatoris), caso seja possível identificá-la, na definição do alcance atual da norma já posta no mundo jurídico (MAXIMILIANO, 2011); bem como se, adotando-se os métodos consagrados e os princípios tradicionais de solução de um conflito aparente de normas, é alcançável uma resposta satisfatória acerca do significado da alteração introduzida pela Lei nº 12.971/2014 (a sua mens). Nesse sentido, será preciso definir o papel e os limites do princípio da interpretação mais benéfica (o favor rei) na aplicação de normas penais. Seria ele um critério norteador de toda a hermenêutica penal ou apenas elemento adicional de interpretação?
2.1 O sentido e a importância da mens legislatoris
A Lei nº 12.971/2014 tem origem no Projeto nº 2.592/2007, proposto pelo Deputado Beto Albuquerque (PSB/RS), em 11 de dezembro de 2007. Na sua redação originária, a forma qualificada do homicídio culposo em situação de “racha” tinha pena de reclusão de cinco a doze anos. O crime de “racha” deixava de ser de menor potencial ofensivo e passava a ser considerado inafiançável por lei. Colhe-se da justificativa do Projeto que:
“Mostra-se, portanto, imperioso modificar o Código de Trânsito Brasileiro para aperfeiçoá-lo com vistas a dar uma resposta adequada aos anseios e reclames da sociedade pela adoção de medidas pelo Poder Público, inclusive na esfera legislativa, que efetivamente contribuam para a segurança no trânsito das cidades e estradas e assegurem punições severas àqueles que praticam crimes na direção de veículo automotor.” [20]
Fácil perceber que a intenção inicial do legislador era promover um incremento de pena para os casos de morte culposa no trânsito em situação de “racha”. As penas da proposta original são inclusive maiores do que as atuais.
O referido Projeto de Lei foi apensado ao de número 308, também da Câmara dos Deputados, de autoria do Deputado Pompeo de Mattos PDT/RS, o qual procurava inserir uma forma qualificada preterdolosa no crime de “racha”, quando resultasse em morte culposa. A pena do referido delito seria de cinco a quinze anos de reclusão. Na justificativa da referida proposta encontra-se a seguinte defesa das mudanças sugeridas:
“Hoje, é punido de forma extremamente branda pelo art. 308 do Código Nacional de Trânsito, que também não prevê as formas qualificadas e preterdolosas desse delito. A nova redação proposta corrige tais erros e também permite punição rigorosa quando não há dolo eventual quanto ao resultado lesão grave ou morte, sendo sabido que, hoje em dia, muitos dos praticantes de “racha”, se safam de punições mais severas, incidindo somente nas apenações brandas dos crimes de homicídio culposo e lesões corporais culposas, quando não se consegue provar o dolo eventual.” [21]
Essa deve ter sido a origem da dupla tipificação da morte culposa no trânsito em situação de “racha”: os Projetos apensados previam, na essência, a mesma qualificadora, mas a inseriram em dispositivos distintos do Código de Trânsito Brasileiro (artigos 302 e 308). Aqui também é possível perceber que a intenção originária do legislador era punir com maior rigor o delito.
Os Projetos apensados foram submetidos a regime de urgência e encaminhados ao Plenário daquela casa de Leis. Não há dúvidas de que foi neste ponto, em que a discussão e a votação das propostas legislativas foram conduzidas em regime de urgência, que se cometeu o equívoco da dupla tipificação.
Em parecer apresentado em Plenário pela Comissão de Viação e Transportes, elaborado pelo Deputado Hugo Leal (PSC/RJ), desaparecem as formas qualificadas de crime de “racha” (art. 308) e à figura qualificada do homicídio culposo em situação de “racha” foi atribuída a estranha pena de reclusão de dois a quatro anos hoje vigente. Essa mudança inusitada foi feita apesar de no relatório do parecer se insistir na ideia motriz da “garantia da punição dos infratores” do Código de Trânsito e na intenção de “dar um basta à impunidade”. Pareceram os congressistas não ter percebido que estavam propondo um modelo mais benéfico que o da proposta original. [22]
No parecer apresentado em Plenário pela Comissão de Constituição e Justiça, elaborado pelo Deputado Alexandre Leite (DEM/SP), não foram feitas alterações[23]. Em reformulação do parecer do relator da Comissão de Viação e Transportes foram restabelecidas as figuras qualificadas do crime de “racha” (art. 308), momento preciso em que ocorreu o equívoco da dupla tipificação, o qual passou despercebido. [24]
Apenas em nova reformulação do parecer pelo Deputado Hugo Leal pareceu-se dar conta do equívoco cometido com o conflito de normas, tendo se chegado ao entendimento de que deveria cair a figura qualificada do homicídio culposo e ficariam as qualificadoras preterdolosas do “racha”, por resultado lesão corporal e morte culposas, evitando-se a dupla tipificação. [25] É o que consta da última manifestação da Câmara dos Deputados.
Após os referidos debates e a discussões, foi aprovada a Subemenda Substitutiva Global de Plenário apresentada pelo Relator da Comissão de Viação e Transportes ao PL nº 2.592/2007. Essa aprovação fez com que restassem prejudicados: a proposição inicial; a Emenda da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania; o Substitutivo da Comissão de Viação e Transportes; as Emendas de Plenário; e os Projetos de Lei nº 308/07 (principal) e 2.595/07, 5.006/13 e 5.075/13, apensados [26].
No entanto, a despeito da tempestiva constatação do equívoco, provavelmente por uma falha técnica e de assessoria, a redação final da matéria na Câmara dos Deputados [27], concluída em 24 de abril de 2013 e que seguiu para o Senado Federal sob a denominação de Projeto de Lei da Câmara nº 26 de 2013, manteve a dupla tipificação da morte culposa no trânsito com a redação hoje vigente. Trata-se de um erro material absurdo e de consequências desastrosas, sendo quase inacreditável que não foi feita a sua adequação na redação final. Esse tipo de equívoco é causa de grave deslegitimação das instituições democráticas, enfraquecendo a confiança depositada sobre o Poder Legislativo de que ele seja capaz de traçar as diretrizes de política criminal de modo minimamente racional.
No Senado Federal, o Projeto foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça, onde recebeu várias propostas de emenda, sendo aprovado na forma do parecer final de autoria do Senador Vital do Rêgo (PMDB/PB), o qual, na forma do Substitutivo apresentado, incrementou as sanções cominadas para as infrações administrativas previstas no Projeto, optando ainda pela retirada da parte criminal da proposta, com vistas a sua mais célere apreciação. Nas palavras do relator:
“É preciso, no entanto, destacar que a presente proposição tramitou na Câmara dos Deputados por cerca de cinco anos e, ainda assim, seu texto contém algumas impropriedades, geradas na pressa de se concluir a apreciação.
Com essa experiência em mente, propomos recortar do presente PLC os dispositivos mais controversos, os penais, com vistas à pronta aprovação da parte que possui maior consenso, qual seja, o aumento das multas previstas para as infrações de trânsito mais graves, dada a ansiedade com que a população aguarda a efetividade de tais medidas.” [28]
Com o parecer conclusivo da Comissão de Constituição e Justiça, o Substitutivo apresentado retornou à Câmara dos Deputados para nova análise.
Na Câmara dos Deputados, o projeto de lei foi novamente encaminhado às comissões de Constituição e Justiça e de Viação e Transportes. Na primeira, em parecer da Deputada Sandra Rosado (PSB/RN), propôs-se que o Substitutivo do Senado Federal deveria ser rejeitado, uma vez que retirara do Projeto a sua parte criminal, considerada de suma importância. Segundo as regras do processo legislativo de leis ordinárias, a rejeição do Substitutivo da Casa Revisora implica na aprovação do Projeto na forma em que deixou a Câmara dos Deputados, salvo emendas redacionais de pouca monta.
Destaque-se que, mais uma vez, neste ponto, foi indicada a aberração da dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha”, sendo ainda apresentada uma proposta de emenda supressiva para a retirada da segunda parte do parágrafo segundo do artigo 302 do CTB, o que corrigiria esse equívoco. Como chamou à atenção a relatora:
“Todavia vislumbramos que no Projeto original encontra-se uma incongruência de natureza redacional. Ora a parte final do § 2º do art. 302 e o disposto no art. 308, ambos alterados pelo Projeto de Lei nº 2.592-A/07, aprovado na Câmara dos Deputados em 24/4/2013, existe duplicidade de condutas típicas, pois, em acatando emenda de Plenário, esqueceu o Relator de verificar que o fato já estava tipificado em outro dispositivo. Há, assim, conflito de penalidades nos dispositivos aprovados pela Casa, uma emenda de técnica legislativa deve ser aprovada nesta ocasião para que não subsista qualquer dúvida futura na jurisprudência: O crime de “racha” no trânsito, já está contemplado de forma detalhada nos parágrafos 1º e 2º do art. 308 modificado pelo referido projeto, razão pela qual emenda deve ser apresentada.” [29]
Entretanto, mesmo tendo sido o problema identificado a tempo, por uma segunda vez, também nesse momento não foi feita a correção necessária. Embora, inicialmente, o referido Substitutivo tenha sido encaminhando às Comissões de Viação e Transportes e de Constituição e Justiça, para só depois ser submetido à apreciação do Plenário, com a aprovação de requerimento de urgência, a análise e discussão pelas Comissões foi feita em turno único na ordem do dia de 16 de abril de 2014. Nos pareceres apresentados em plenário, pelos relatores de ambas as Comissões, não mais se mencionou o erro, concluindo-se apenas pela rejeição do Substitutivo do Senado.
Assim o Projeto de Lei nº 2.592/2007 seguiu para a sanção presidencial na forma em que foi aprovado na Câmara, relegando à doutrina e à jurisprudência a tarefa de corrigir o problema da dupla tipificação.
O que se pode extrair sobre a intenção do legislador, a partir da análise detida da justificativa do projeto e dos pareceres das comissões pelas quais tramitou é que, aparentemente, o que se buscava era um incremento da punição dos crimes de morte culposa em situação de corrida não autorizada e que a sobreposição de tipos, por mais que seja difícil de acreditar, não foi intencional, decorrendo de erro e de incompetência. Esse objetivo de aumentar a punição dos condutores envolvidos em mortes culposas, ocorridas em competições não autorizadas é refletido em quase todas as manifestações dos congressistas, durante a tramitação do Projeto, mas como já se assinalou, revelou-se frustrado pela redação final aprovada.
Qual a importância desta pretensa mens legislatoris para a aplicação presente da norma, já posta no mundo jurídico, à disposição dos operadores do direito, para a solução dos casos concretos?
A remissão à intenção originária do legislador, por mais que se parta do pressuposto de que ela pode ser aferida de modo mais ou menos certo, por exemplo, quando se investigam alterações legislativas bastante recentes, como a ora em análise, em verdade, não pode ter mais do que um sentido retórico, como um elemento adicional indicativo do correto significado da norma. Já se incorporou ao senso comum teórico dos juristas (COSTA, 2008), desde o início do século passado, o entendimento de que não é o sentido pretendido pelo legislador que vincula, na interpretação/aplicação de um texto normativo controvertido, mas o sentido refletido pela própria norma, o qual adquire vida própria e valor diferenciado da “vontade” ou “consciência” de seus formuladores (NUNES, 2005).
Não fosse essa abertura hermenêutica dos textos normativos, os quais estão inseridos, em um contexto dinâmico e evolutivo, de ideias e de sentidos, e a forma do Direito, sua rigidez característica na fixação da letra da lei, que serve para dar segurança, estorvariam as transformações normais das sociedades e não dariam conta de responder, de maneira justa e adequada, às novas demandas surgidas nos casos concretos, refletindo relações jurídicas cada vez mais complexas. É nesse sentido que, na teoria da interpretação, de há muito, com o declínio das doutrinas subjetivistas, insiste-se na importância de se desvelar a mens legis, o sentido objetivo da lei, servindo a intenção do legislador apenas como um recurso adicional e de importância relativa na construção do significado vinculante da norma (COSTA, 2008).
Sobre a perda pela voluntas legislatoris do seu lugar reitor na interpretação do Direito, ensinava Carlos Maximiliano:
“A pesquisa da intenção ou do pensamento contido no texto arrasta o intérprete a um terreno movediço, pondo-o em risco de tresmalhar-se em inundações subjetivas. Demais restringe o campo de sua atividade: ao invés de a estender a toda a substância do Direito, limita o elemento espiritual da norma jurídica, isto é, a uma parte do objeto de exegese e eventualmente um dos instrumentos desta. Reduzir a interpretação à procura do intento do legislador é, na verdade, confundir o todo com a parte; seria útil, embora nem sempre realizável, aquela descoberta; constitui um dos elementos da Hermenêutica; mas não o único, nem sequer o principal e o mais profícuo; existem outros e de maior valia. Serve de base, como adiante se há de mostrar ao processo histórico, de menor eficiência que o sistemático ou teleológico. […] Com a promulgação, a lei adquire vida própria e autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe se a ele como um produto novo; dilata e ate substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na pratica, mais previdente que o seu autor. […] Logo, ao intérprete incumbe apenas determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac potestas legis; deve ele olhar menos para o passado do que para o presente, adaptar a norma a finalidade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaboração primitiva. (2011, p. 24-25)”
Mas o que seria essa vontade da lei (voluntas legis) objetivada, separada da vontade do legislador? Onde seria possível encontrá-la?
2.2 O sentido e a importância da mens legis
Já Ferrara afirmava que a mens legis poderia ser identificada pela finalidade social, pelo escopo prático, o resultado visado pela norma. O significado normativo correto seria sempre aquele que conferisse maior eficácia e tutela à teleologia da norma. E as finalidades da norma não estão contidas no próprio texto normativo, nem podem ser derivadas de um sistema abstrato de valores, mas são aquelas finalidades da própria coletividade, expressas pelos interesses e exigências individuais e coletivos. O que não quer dizer que o juiz possa fazer algo além de executar as leis, não se admitindo que busque o “direito livre” fora do ordenamento. Nada disso, reconhecer a importância das relações sociais na definição do sentido da lei, significa apenas que o aplicador do Direito não pode tapar os olhos para à realidade da qual a norma deriva e na qual voltará a influir (COSTA, 2008, p. 328).
Mais especificamente, tratando-se de uma norma penal incriminadora, que comina uma sanção penal em abstrato a um comportamento previsto em lei, na forma de uma hipótese fática (um tipo criminal), as finalidades sociais, que a norma expressa, não podem ser algo distinto dos objetivos próprios do Direito Penal. E, no contexto de um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal se legitima, basicamente, por um objetivo de prevenção geral de delitos associado a um objetivo humanitário e de garantias (SILVA SÁNCHEZ, 2011, p. 58).
É importante destacar esse ponto, pois, em virtude da força que, na contemporaneidade, ganhou o populismo penal, e o discurso de maximização/exacerbação de penas, bem como a insistência na função simbólica da legislação penal, por vezes, esquece-se que é também do interesse público o controle da reação punitiva do Estado às condutas consideradas delituosas, segundo os parâmetros da dignidade humana, proporcionalidade e segurança jurídica. Tem sido a missão histórica do Direito Penal a redução da violência social em geral, tanto a violência do delito, por meio da prevenção, quanto a da punição das infrações, com a instituição de garantias ao delinquente.
O fato de não se poder perder de vista a finalidade social da norma, que dá os contornos do seu significado, não quer dizer que se dispense a análise do próprio texto normativo. O texto da norma é o ponto de partida, bem como o limite de toda a interpretação. Não é possível, simplesmente, desconsiderar o texto de uma norma vigente, ainda que com o objetivo de alcançar os objetivos sociais realmente buscados pelo Direito. Não é possível abrir mão dos mecanismos de segurança jurídica, dentre os quais, o processo legislativo constitucional de aprovação e revisão de normas. A atividade de aplicação do Direito, que é estruturalmente distinta da normogênese ou da legislação, nunca dispensa a forma em que a norma foi fixada, devendo sempre levá-la em consideração em alguma medida.
Por isso, o primeiro nível ou método de interpretação, o gramatical, é o que pretende esmiuçar as palavras da lei, encontrar o correto significado da norma, na análise léxica, bem como da ordem das palavras e de sua conexão (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 289).
Um segundo momento da atividade jurídico-interpretativa, o lógico, é o que “lida com as palavras da lei na forma de conceitos” (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 290). Assim, busca-se apreender a construção de definições dos termos que são estipuladas pela própria norma. O que não significa que os conceitos contidos no texto normativo sejam imutáveis, pois se remetem a um “universo material verificável” (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 292), constituído pelo uso comum e constante das expressões, razão pela qual não escapam de um processo histórico de mutação, como as próprias instituições sociais às quais fazem menção.
A fase subsequente, de interpretação sistemática, enfrenta “as questões de compatibilidade num todo estrutural” (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 293) da norma jurídica. Ou seja, põe-na em cotejo com os princípios gerais do direito, e com o conjunto do ordenamento, levando em consideração a hierarquias entre as fontes do Direito e as regras para solucionar a sua aparente sobreposição. É pressuposto da hermenêutica jurídica tradicional a negação da existência de lacunas no ordenamento jurídico. Isso se explica, em parte, pelo fato de que não é dado ao magistrado se eximir do dever de decidir, nem mesmo alegando dificuldades interpretativas (vedação do non liquet – art. 126 do Código de Processo Civil). Assim, já que é preciso que o ordenamento jurídico apresente uma resposta para os problemas concretos que se colocam em juízo, também é necessário harmonizar as suas disposições, evitando contradições, incompatibilidades e fixando regras de sucessão de leis no tempo, de aplicação da lei no espaço e de concurso aparente de normas.
O concurso aparente de normas penais tem regras específicas de resolução, tradicionalmente indicadas pela doutrina, que merecem análise em separado. Ele aponta para uma sobreposição de infrações penais, para uma pluralidade de tipos, aos quais, pretensamente, subsumir-se-ia o fato concreto, se fossem visualizados de modo isolado. O tratamento sistemático dessas situações, no entanto, evitaria a eficácia cumulativa de um conjunto de normas incriminadoras incidentes sobre o mesmo fato, apontando as suas relações de hierarquia, subordinação e mútua exclusão (DOTTI, 2003, p. 286).
O primeiro critério usual para a resolução de conflito aparente de normas penais é o da especialidade, nos termos do qual o tipo fundamental é afastado por outro tipo que contenha todos os elementos já contidos no primeiro acrescidos de circunstâncias especificadoras (lex specialis derogat legi generali). Já a regra da consunção afasta a incidência do crime que é meio necessário, ou normal etapa de preparação ou de execução de outro crime (lex consumens derogat legi consumtae). Como o bem jurídico tutelado por uma norma abrange o bem jurídico tutelado pela outra, dispensa-se a dupla incidência, evitando-se a tutela excessiva e simultânea. Como já referido o crime de perigo é em geral absorvido pelo crime de dano referente ao mesmo bem jurídico. A subsidiariedade, por outro lado, ocorre quando, na hipótese concreta sub judice, um crime menos grave for abrangido por norma definidora de crime mais grave, ou seja, quando uma figura típica estiver incluída como elementar ou circunstância legal específica de outro tipo mais grave (ubi major minor cessat). O crime menor deve ser elemento constitutivo ou qualificativo do maior. (DOTTI, 2003, p. 287-289).
Sobre o nível histórico da interpretação, que propõe que se conheça melhor a norma a partir das condições e circunstâncias que lhe originaram e influenciaram a sua elaboração (DOTTI, 2003, p. 252), cabem as mesmas considerações já expendidas sobre a busca da voluntas legis.
O momento mais importante do processo hermenêutico, no entanto, é o sociológico/teleológico, como já referido, vale dizer aquele que procura a finalidade da lei, que não é distinta da função imposta pelos desafios que lhe são colocados pelas relações sociais que se destina a regular.
Os métodos e níveis de interpretação passados em revista, no entanto, não dão conta de solucionar o problema da dupla tipificação da morte culposa no trânsito em situação de “racha”.
No nível lógico-gramatical encontramos dois tipos que descrevem situações virtualmente idênticas, com quase a mesma linguagem, salvo diferenças de pouca monta já referidas no primeiro Capítulo, quando da comparação dos artigos 302, § 2º e 308, § 2º do Código de Trânsito, ao qual se remete o leitor. As diferenças na redação do artigo levam a que não ocorra sobreposição de infrações penais apenas na raríssima hipótese de as competições automobilísticas não autorizadas ocorrerem em vias privadas, quando o condutor só poderá responder por homicício culposo qualificado de trânsito.
A interpretação sistemática, também não resolve a questão. Ao contrário do que defendem Sannini Neto e Moraes (2014), em trecho supracitado, não é possível se reconhecer relação de especialidade entre os artigos em conflito. De fato, há relação de especialidade entre a norma que tipifica o homicídio culposo no trânsito em sua figura básica (art. 302, caput, do Código de Trânsito) e o tipo qualificado de “racha” pela morte culposa. Aqui as circunstâncias especificadoras que destacam o fato de a morte culposa ter ocorrido no contexto de uma competição não autorizada (e não em qualquer outro contexto de trânsito que envolva, por exemplo, um atropelamento ou a colisão de veículos automotores) atrai a incidência do tipo mais detalhado (lex specialis) do art. 308, § 2ª do Código de Trânsito.
Mas entre as figuras qualificadas do homicídio culposo em “racha” e do “racha” com morte culposa, não há relação de especialidade. Trata-se da mesma conduta. A diferença é topográfica, de localização das figuras típicas, não tendo nenhuma relevância para a definição do seu sentido.
Também pela consunção ou pela subsidiariedade não se resolve o imbróglio. Como já se consignou, não faz sentido algum aqui afirmar que o crime de dano absorveria o crime de perigo. Até mesmo porque as figuras básicas do delito tutelam bens jurídicos distintos. O tipo de homicídio tutela o bem jurídico vida e o crime de “racha” põe em risco a coletividade e a segurança viária. Homicídios culposos no trânsito podem ocorrer, e usualmente acontecem, em contextos distintos do de uma competição não autorizada. Por último, é fácil visualizar que um crime de morte culposa em situação de “racha” não absorve outro crime de morte culposa em situação de “racha”. São tipos preterdolosos iguais, em que existiu dolo de praticar “racha” e houve a intercorrência da morte não querida pelo condutor do veículo, que também não assumiu o risco de que ocorresse.
A sugestão de Cavalcante (2014), já mencionada, tem a vantagem de manter válidos e aplicáveis ambos os tipos de morte culposa no trânsito em situação de “racha”, destinando-se um para as hipóteses de culpa consciente e outro para as de culpa inconsciente. Como nos explica Ferraz Junior (2007, p. 283), a dogmática jurídica, ao menos desde o século XIX, assumiu como um postulado da interpretação o fato de o legislador ser rigorosamente preciso e não construir normas inócuas ou redundantes. Mas nem o pressuposto do legislador racional pode servir para negar a abertura da norma para as suas repercussões futuras e desconsiderar relevância de suas consequências práticas, bem como dos valores da justiça e da dignidade da pessoa na orientação de sua correta interpretação. Somente levando em conta o conjunto desses elementos é possível dar à norma um sentido adequado à resolução dos problemas a cuja disciplina concretamente se destina.
Como já se explicou, entende-se que essa solução não tem sentido no ordenamento jurídico brasileiro, no qual não existem tipos específicos para cada “grau de culpa”. Todos os tipos culposos podem abranger todos os “graus de culpa”, os quais devem influir na fixação da pena em concreto, como justificativa para eventual exacerbação da pena base na primeira fase de fixação da pena, em conjunto com outras apontadas no art. 59 do Código Penal. Entender de modo contrário produziria a injustiça de se estabelecer uma “presunção legal” (sem lei) de culpa consciente para todos os casos de morte culposa em situação de “racha”, definição essa que deveria ser feita no caso concreto, ao menos, até que por lei se crie um tipo específico de culpa consciente ou gravíssima para os crimes dessa natureza. Não é correto, portanto, para que se evite a perda de eficácia de um dos dispositivos introduzidos pela Lei nº 12.971/2014, que se sacrifique a segurança jurídica e a legalidade penais.
Observe-se ainda que uma hipótese de morte culposa em “racha” com culpa inconsciente é de configuração extremamente improvável. Como é sabido, o tipo subjetivo de culpa inconsciente ocorre quando o “resultado, embora previsível, não é previsto pelo agente em face da violação do dever de cuidado e de atenção a que estava obrigado” (DOTTI, 2003, p. 315); já a mens rea marcada pela culpa consciente é “caracterizada pela previsão do agente quanto à probabilidade do resultado que ele espera não venha ocorrer, confiando em sua habilidade ou destreza para enfrentar a situação de risco” (DOTTI, 2003, p. 315) por ele mesmo produzido. É fácil perceber-se que a morte que resultar de uma competição automobilística não autorizada, normalmente, estará associada a um tipo subjetivo de dolo eventual ou de culpa consciente, a depender da particular irresponsabilidade do condutor. É difícil imaginar que o condutor que participa de uma demonstração de perícia em local indevido, por exemplo, e que, portanto, já tem o dolo direto de praticar “racha” não tenha ao menos previsto que pudesse a sua ação causar a morte de terceiro desavisado ou de outro competidor. A configuração da culpa inconsciente nessas hipóteses é praticamente impossível. De maneira que a proposta de Cavalcante (2014) resultaria em que sempre se aplicasse a forma qualificada com a pena mais grave aos casos de morte culposa em situação de “racha”. O jurista resolveu um caso em que há, conforme ele mesmo admite, uma substanciosa dúvida sobre a interpretação das normas penais, conferindo-lhes um sentido concretamente prejudicial ao réu e favorecedor do desejo retributivo da comunidade, o que não se pode admitir.
Ademais, não se poderia defender, como Sannini Neto e Moraes (2014) também fizeram, que uma interpretação teleológica da Lei nº 12.971/2014, levaria à aplicação do tipo penal mais grave do artigo 308, § 2º do Código de Trânsito, máxime se visualizado em conjunto com as outras alterações introduzidas pela mesma lei no sentido de promover um incremento das penas dos crimes de trânsito, como e.g. a elevação da pena máxima em abstrato da figura típica básica do “racha” (art. 308, caput do CTB), que não mais constitui um delito de menor potencial ofensivo nos termos do artigo 61 da Lei nº 9.099 de 1995 ou a introdução de uma qualificadora para as hipóteses de lesão corporal grave culposa em situação de “racha”.
Não se está autorizado a entender que o objetivo da lei foi promover o aumento da punição onde ela não o fez ou além da medida em que efetivamente o tenha feito. Normas que restringem direitos, como as normas penais, que sempre impõem um terrível ônus sobre a liberdade individual, devem ser interpretadas estritamente. O fato é que na mesma lei estão expressas duas penas para a mesma infração penal qualificada de morte culposa no “racha” e não é possível se afirmar, em termos de objetivos da norma, que uma delas não atende à finalidade da lei, não devendo ser aplicada, porque a finalidade da lei se confunde com o resultado hermenêutico que seja mais eficaz no enfrentamento dos problemas sociais a cuja disciplina se destina. E, como norma penal, a sua função é dupla: prevenir delitos e assegurar garantias contra a reação punitiva do Estado. A punição em si, o caráter retributivo da sanção, que poderia justificar uma interpretação favorecedora da norma mais grave, não passa de função secundária da norma penal, que tem pouca utilidade para a sua legitimação em um Estado Democrático.
Sobre as faces, preventiva e garantista, da missão do Direito Penal e a sua inevitável convivência, nos ensina Silva Sánchez (2011, p. 299-300) que:
“A função do Direito Penal não consiste, em absoluto, unicamente numa completa proteção de bens jurídicos, senão, antes, numa complexa trama do interesse da vítima em sua proteção, o interesse do autor em sua liberdade e o interesse da comunidade na prevenção e na segurança jurídica. […] De fato, qualquer novo problema que se enfrenta se converte no objeto de um debate que leva a indagar se a solução proposta é insuficiente e corre o risco de não cumprir os efeitos preventivos (de controle da violência informal por via dissuasória ou integradora) ou, ao contrário, é excessiva e perde legitimação por existir a possibilidade de soluções igualmente eficazes no plano preventivo e menos violentas, ou, enfim, pese a ser recomendável em termos de eficácia, constitui um obstáculo para o cumprimento pelo Direito Penal de seus fins de garantia.”
A medida adequada da pena é fixada por meio de um processo legislativo de base constitucional, devendo refletir a correlação de forças, bem como o sentimento vigente na sociedade acerca do tratamento proporcional dos delitos. É impossível se afirmar, havendo o legislador penal produzido os dois tipos penais incriminadores, ao mesmo tempo (a despeito dos percalços na tramitação da norma, os quais, como já referido, têm pouca relevância), que apenas um deles está em harmonia com a mens legis. O legislador penal pode, a princípio, legitimamente optar por uma punição mais branda de determinado delito, por entendê-la bastante para cumprir a sua missão dissuasória. Para negar vigência a um dos tipos penais, sob o argumento de que feriria a proporcionalidade, seria preciso reconhecer a sua inconstitucionalidade pela proteção deficiente de bens jurídicos. Investigar-se-á se isso é possível no próximo capítulo desta pesquisa.
Por enquanto, a interpretação que aqui se faz pressupõe a constitucionalidade dos dois tipos incriminadores. Assumindo esse ponto de partida, observa-se que se chega a um impasse. A finalidade da lei não aponta de forma clara para nenhuma das duas figuras qualificadas. No entanto, sobra ainda um recurso integrante das regras tradicionais de hermenêutica jurídica para tentar solucionar a questão: trata-se do princípio da interpretação mais benéfica.
2.3 O sentido e a importância do in dubio pro reo
Há um debate na doutrina tradicional em torno de se haveria uma especificidade na interpretação das normas penais ou se elas se submeteriam aos mesmos critérios e métodos de hermenêutica jurídica, aplicáveis a todo o conjunto do ordenamento. Para os que defendem uma diferenciação, uma das peculiaridades da interpretação da norma penal estaria na incidência, do princípio in dubio pro reo, nos termos do qual, havendo dúvida acerca da disposição corretamente aplicável, o caso deveria ser decidido da forma mais favorável ao réu/investigado, vale dizer, deveria prevalecer a liberdade individual face ao poder de punir do Estado e ao direito da sociedade de retribuir o mal sofrido. A função de garantia do Direito Penal, na ausência de um claro direcionamento da norma, suplantaria os imperativos de prevenção. Daí porque se denomina liberal essa perspectiva de fundo iluminista.
Alguns autores, como Frederico Marques, entendem que o âmbito de incidência do in dubio pro reo se restringe à avaliação das provas no processo penal, não servindo como “norma geral interpretativa”, que estreitasse o alcance das leis penais incriminadoras, sempre restritivas de direitos (MARQUES, 1954, p. 160). Mais recentemente, também Bitencourt (2012, p. 397), defende esse ponto de vista, de que não haveria espaço para o mencionado adágio no campo da interpretação da norma jurídica. Para eles, a sede do in dubio pro reo seria o inciso VI do artigo 386 do Código de Processo Penal.
A maioria dos autores, entretanto, a exemplo de escritores de manuais como Damásio Evangelista de Jesus (2010) e Luiz Flávio Gomes (MOLINA; GOMES, 2009), segue a lição de Nélson Hungria (FRAGOSO; HUNGRIA, 1976) e entende ser possível invocar o referido princípio em matéria de interpretação da lei penal, ou seja, para resolver também questões de direito.
Mas para esses juristas, como para Frederico Marques, seria inadequado afirmar que a interpretação de normas incriminadoras poderia vir a ser a priori restritiva. O exato sentido do texto da norma é, precisamente, o que se busca com a interpretação, é o seu resultado. Uma interpretação, que fosse de início, restritiva e não que resultasse restritiva seria uma petição de princípio. Se a “interpretação literal e sistemática da lei chegar a um resultado harmônico e definitivo”, ainda que de cunho restritivo, deve ser esse o sentido adotado como verdadeiro “pensamento e vontade da lei” (ASÚA, 1948, p. 471). Assim, só após se esgotarem os métodos e parâmetros gerais de interpretação, subsistindo ainda dúvida sobre qual norma aplicar, deveria atuar o referido princípio para salvaguarda da liberdade.
Na síntese de JESUS (2010, p. 87): “no caso de irredutível dúvida entre o espírito e a letra da lei, é força acolher, em matéria penal, irrestritamente, o princípio in dubio pro reo”. E também para CAPEZ (2011, p. 53): “esgotada a atividade interpretativa sem que se tenha conseguido extrair o significado da norma, a solução será dar interpretação mais favorável ao acusado”.
Na lição de Luiz Flávio Gomes: “ainda vigora o aforismo poenalia sunt restringenda, isto é, as disposições que cominam penas (ou que criminalizam condutas) devem ser interpretadas restritivamente” (MOLINA; GOMES, 2009, p. 53). Mas o mesmo autor entende só ser possível optar pela interpretação favorável ao réu e à liberdade em “caso de dúvida insuperável” (MOLINA; GOMES, 2009, p. 53).
Também Reale Júnior defende que a superação de antinomias e contradições entre normas, quando insuperáveis poderá ser feita favor rei (2012, p. 86).
Carlos Maximiliano (2011, p. 266-267) resumia com perfeição esse entendimento:
“Não basta ser duvidoso o sentido do texto, para se resolver a favor do indiciado. Incumbe ao juiz lançar mão dos recursos da Hermenêutica, a fim de esclarecer o dispositivo, atingir a verdade, revelar o escopo alvejado pela prescrição legal. Só mesmo quando todo esse trabalho resulte inútil e a dúvida persista, será aconselhável pronunciar-se no sentido mais benigno, em prol do acusado. Aí, sim, teria cabimento o ln dubio mitius interpretandum est; ou — Interpretatione Legum poenae molliendae sunt potius, quam asperandae; ou, ainda – In poenalibus causis benignius interpretandum est. “Opte-se, na dúvida, pelo sentido mais brando, suave, humano”; “Prefira-se, ao interpretar as leis, a inteligência favorável no abrandamento das penas ao invés da que lhes aumente a dureza ou exagere a severidade;” “Adote-se nas causas penais a exegese mais benigna. […] Releva ponderar que no Direito Criminal se não tolera a retificação feita pelo intérprete, quando prejudicial ao acusado; por outro lado, é de rigor fazê-la, quando aproveite ao réu.”
Essa compreensão acerca do âmbito de aplicação do princípio in dubio pro reo, no entanto, é demasiado estreita para os tempos hodiernos de inflação legislativa penal. De fato, entendemos ser possível derivar da sistemática constitucional um papel mais proeminente do in dubio pro reo na hermenêutica penal, como critério geral orientador da interpretação de normas dessa natureza. É dever do legislador penal, como corolário do princípio da legalidade em matéria penal e da segurança jurídica, que a obra de criminalização primária seja feita com a maior precisão técnica possível, empregando-se todos os recursos possíveis para dar a maior exatidão à lei. Essa imposição da máxima taxatividade legal também se manifesta no plano interpretativo, por exemplo, proibindo a analogia in malam partem no Direito Penal. Mas a sua função não se esgota nessa vedação.
A máxima taxatividade legal dá origem ao princípio da interpretação restritiva como padrão da hermenêutica penal. Em verdade, ao contrário do que defendido por parcela da doutrina penal e processual penal, a interpretação que tende a extrair o sentido normativo que menos amplie o âmbito legal do proibido, o espaço de criminalização, a escala das penas cominadas, não é apenas um recurso subsidiário do qual poderia se valer o aplicador do Direito quando estivesse em face de uma dúvida de outra forma insanável.
De fato, a interpretação estrita de normas restritivas de direitos é um postulado tradicional de hermenêutica, com incidência em todos os âmbitos (civil, administrativo e penal) nos quais possa ocorrer a limitação legal de direitos fundamentais e ela decorre de uma das ideias matrizes do Estado do Direito, nos termos da qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, inciso II da Constituição Federal). Se a liberdade de atuação é a regra e os limites impostos pela lei à autonomia individual, para assegurar a vida em sociedade, a exceção, então, toda norma que circunscreve esse âmbito de autonomia individual originário, deve ser aplicada apenas na exata medida necessária para que cumpra com o seu intuito de interesse público, vedando-se os resultados interpretativos que expandam, alarguem ou dilatem as suas consequências limitativas de direitos. A interpretação deverá “reduzir o âmbito do proibido ao nível mínimo dos limites semânticos” (ALAGIA; BATISTA; SLOKAR; ZAFFARONI, 2006, p. 211). Não é possível ampliar o sentido de um tipo criminal, muito menos contra o réu.
A interpretação extensiva em Direito Penal, portanto, só tem lugar em casos absolutamente excepcionais, quando ficar fora de dúvida que a situação concreta se ajusta ao sentido do texto legal, o que normalmente só ocorrerá nos casos em que o “sentido restringido trouxer uma consequência deformadora ou absurda” (ALAGIA; BATISTA; SLOKAR; ZAFFARONI, 2006, p. 211).
Na síntese de Zaffaroni (ALAGIA; BATISTA; SLOKAR; ZAFFARONI, 2006, p. 210-211):
“[…] dentro do alcance semântico das palavras da lei pode haver um sentido mais amplo para a criminalização ou um mais limitado ou restrito. As dúvidas interpretativas dessa natureza devem ser dirimidas na forma mais limitada da criminalização. Trata-se da mesma razão que dá origem ao princípio processual in dubio pro reo, que não é pacificamente aceita, pois costuma-se afirmar que não consiste em uma regra interpretativa do direito penal, mas apenas num critério de valorização processual da prova. Aqueles que a refutam argumentam que dentro dos limites semânticos do texto legal, pode-se escolher livremente a interpretação mais ampla, a literal ou a mais restritiva, ou seja, não admitem um princípio interpretativo geral de cunho restritivo. Tal posição se baseia em uma distinção que não se justifica – pelo menos com a extensão da negativa – porque as duas consequências (in dubio pro reo e interpretação restritiva) derivam igualmente da excepcionalidade da criminalização primária. […] O critério de interpretação semanticamente mais restritiva deve ser defendido na atualidade, pois constitui um dos principais instrumentos capazes de conter o formidável avanço da tipificação irresponsável.”
De qualquer maneira, adotando-se o entendimento clássico sobre o in dubio pro reo ou aquele defendido por autores com tendências abolicionistas, como Zaffaroni, indiferentemente, o fato é que, estando-se em uma hipótese em que os métodos tradicionais de interpretação das normas não são suficientes para resolver o problema de qual seria a disposição aplicável, como é o caso da dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha”, impõe-se a opção pela solução mais favorável à liberdade. Isso significa que o nó da dupla tipificação se resolve pela aplicação do novo § 2º, artigo 302 do Código de Trânsito.
Essa opção, no entanto, impõe ainda que também o § 1º do artigo 308, a forma qualificada do “racha” com resultado lesão grave culposa, fique sem aplicação, do contrário, estar-se-ia punindo a morte de maneira mais branda (dois a quatro anos de prisão) que o dano à integridade física (três a seis anos de prisão), o que ofenderia o bom senso e a proporcionalidade mínima das sanções no universo dos bens jurídicos penalmente tutelados.
A única maneira de evitar essa injustiça seria aplicando-se a figura típica da lesão corporal culposa no trânsito, do artigo 303 do Código de Trânsito, também para as lesões ocorridas em situação de “racha”, pelo menos até que o legislador diligencie para corrigir esse erro, afinal não poderia, no horizonte da hermenêutica clássica, o suspeito/réu, vale dizer, o indivíduo, ser prejudicado pela imprevidência do legislador penal.
Essa solução pressupõe o exercício da jurisdição constitucional pelo aplicador do Direito, que afastaria a lei especial, recorrendo à figura geral da lesão culposa do Código de Trânsito, para buscar corrigir a anomalia e a desproporção produzidas pelo legislador na cominação das penas, em desconformidade com o status dos bens jurídicos em questão. A impossibilidade de fixação de pena superior a quatro anos (que é a pena máxima cominada à morte culposa no trânsito, em sua forma simples ou na qualificada) passa a ser a condição de possibilidade para a incidência do tipo penal referente à lesão corporal do art. 303 (com a pena variando de seis meses a dois anos).
Isso seria viável, porque segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, de antes da alteração legislativa ora em análise, mas ao qual seria possível recorrer sem maiores dificuldades, o crime de perigo concreto do “racha” (art. 308, caput do Código de Trânsito) seria absorvido pelo crime de dano da lesão corporal grave que houvesse produzido, afastando-se, portanto, o concurso formal ou material entre esses crimes, o que resultaria em uma amplitude de pena menos absurda, se posta em cotejo com a cominada ao homicídio culposo qualificado. É o que consta do precedente a seguir:
“HABEAS CORPUS – PROCESSO PENAL – CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO – LESÃO CORPORAL CULPOSA – DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO – PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO – CRIME MAIS GRAVE ABSORVE O DE MENOR LESIVIDADE – RENÚNCIA EXPRESSA AO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO – EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE – ORDEM CONCEDIDA. – Em razão do princípio da consunção, a lesão corporal culposa no trânsito (art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro) absorve o delito de dirigir sem habilitação (art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro), em face da menor lesividade do último. Assim, havendo a renúncia expressa ao direito de representação pelo crime de lesão corporal culposa, não pode a majorante, decorrente da ausência de habilitação, persistir como delito autônomo, devendo ser declarada extinta a punibilidade também do crime de dirigir sem habilitação. – Precedentes desta Corte. – Ordem concedida para declarar extinta a punibilidade do delito de dirigir sem habilitação”.[30]
Essa resposta à questão, no entanto, não se pode negar, é flagrantemente insatisfatória. Como se não fossem o bastante as falhas no processo legislativo, que resultaram na anormalidade da dupla tipificação da morte culposa e na consequente frustração da provável intenção dos legisladores, a necessária opção pela interpretação mais benéfica ainda produz outro desequilíbrio: o de se cominar uma pena em abstrato mais dura à lesão corporal grave culposa do que à própria morte culposa ocorridas em competições não autorizadas, anomalia que o aplicador do Direito não pode resolver, a não ser, provisoriamente, e de maneira imperfeita, com a aplicação do tipo comum de lesão culposa no trânsito em vez do previsto na norma especial.
Uma possível alternativa a essa dificuldade, por meio do controle de constitucionalidade fundado na vedação da proteção insuficiente, é o objeto do último capítulo desta pesquisa.
3 A resposta da hermenêutica constitucional contemporânea para a dupla tipificação da morte culposa no trânsito em situação de “racha”
Avaliados o produto e os limites do modelo liberal de interpretação, o passo seguinte, consiste em analisar se o resultado obtido estaria em conformidade com a ordem de valores espelhada pela Constituição, ou seja, se confere proteção suficiente ao bem jurídico protegido pela norma penal (a vida de potenciais envolvidos em acidentes automobilísticos) e se, caso não esteja em conformidade com essa axiologia constitucional, seria possível ao aplicador da referida norma, por meio de controle de constitucionalidade, adotar solução constitucionalmente mais adequada, ainda que, à primeira vista, em desconformidade com os parâmetros tradicionais de hermenêutica. Vale dizer, se seria necessário, nessa hipótese, optar, pela norma mais grave, porém mais adequada para oferecer ao bem jurídico-penal a tutela de que necessitaria.
Classicamente, o Direito Penal, segundo a marcante formulação da Ilustração, deveria estabelecer as balizas e os limites para o exercício da reação punitiva ao delito pela comunidade política, assegurando aos indivíduos a segurança de que o seu âmbito de autonomia privada não seria esmagado pelo arbítrio da pena imprevista e desmedida. Essa função era exercida, precipuamente, por meio da garantia da reserva de lei (nullum crimen nulla pena sine lege).
A importância que, historicamente, adquiriu essa missão de “garantia negativa” ou de proibição de intervenções indevidas, em tempos de superação do absolutismo estatal, fez com que, por vezes, fosse negligenciada, no universo das reflexões teóricas e da atividade prática dos juristas, a outra e necessária vertente do papel do Direito Penal em toda comunidade política: a de “garantia positiva” ou de “imperativo de tutela”, ou seja, o dever de, efetivamente, combater a proliferação da criminalidade (prevenção geral dos delitos), assegurando a incolumidade dos bens e interesses individuais e coletivos insculpidos nas normas penais.
3.1 O Direito Penal e a dupla dimensão das normas constitucionais de direitos fundamentais: perspectivas subjetiva e objetiva
O reconhecimento do duplo perfil das normas constitucionais, do seu lado subjetivo, de defesa dos indivíduos contra o corpo político e do seu lado objetivo, de expressão de uma ordem de valores na qual a sociedade se reconhece, bem como de um conteúdo normativo autônomo, consistente em um imperativo de efetivação, de verdadeira promoção e concretização dos direitos e bens constitucionais, foi imprescindível para que emergisse o atual paradigma do Estado Social e Democrático de Direito. De fato, apenas nesse modelo de Estado se vulgarizou, na doutrina, a identificação, no ordenamento jurídico, além dos direitos subjetivos individuais, das garantias institucionais e das normas expressivas de autênticas diretrizes e programas de atuação para os poderes públicos.
A importância e a significação da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais consistem no fato de ela possibilitar o “reconhecimento de efeitos jurídicos autônomos, para além da perspectiva subjetiva” ou de uma “mais-valia jurídica”, que não é possível de ser identificada “quando se consideram os direitos fundamentais individualmente” (SARLET, 2005, p. 16). O mais relevante dos desdobramentos do perfil objetivo dos direitos fundamentais é a afirmação de um dever ativo, positivo, do Estado de tutela, de proteção, desses mesmos direitos, de construção das condições mínimas de possibilidade para a sua real eficácia no ordenamento jurídico e para a sua sobrevivência em face de eventuais agressões dos particulares e dos “poderes de fato” da sociedade.
Acerca das duas dimensões (negativa e positiva) das normas constitucionais, Sarlet sintetiza que (2005, p. 22):
“[…] na sua função como direitos de defesa os direitos fundamentais constituem limites (negativos) à atuação do Poder Público, impedindo ingerências indevidas na esfera dos bens jurídicos fundamentais, ao passo que, atuando na sua função de deveres de proteção (imperativos de tutela), as normas de direitos fundamentais implicam uma atuação positiva do Estado, notadamente, obrigando-o a intervir (preventiva ou repressivamente) inclusive quando se tratar de agressão oriunda de outros particulares, dever este que – para além de expressamente previsto em alguns preceitos constitucionais, contendo normas jusfundamentais, pode ser reconduzido ao princípio do Estado de Direito, na medida em que o Estado é o detentor do monopólio, tanto da aplicação da força, quanto no âmbito da solução de litígios entre os particulares, que (salvo em hipóteses excepcionais, como o da legítima defesa), não podem valer-se da força para impedir e, especialmente, corrigir agressões oriundas de outros particulares.”
Ora, esse dever de proteção coloca o Estado como “amigo dos direitos fundamentais”, e como seu garantidor, e não mais como seu principal adversário, como soia na antiga ótica liberal individualista. E um dos mecanismos mais destacados por meio do qual o Estado exerce ativamente o seu dever de proteção é, precisamente, o Direito Penal. A ativação dos mecanismos jurídico-penais de proteção (criminalização primária e secundária), no entanto, só se legitima em face de condutas que venham a violar bens jurídicos constitucionais (ao menos no nível de os por em uma situação de risco efetivo), exigindo-se do Estado (legislador ou juiz) a implementação de um dever de prestação de segurança.
O Estado Social e Democrático de Direito deverá dar “resposta para as necessidades de segurança de todos os direitos”, por meio de uma “política integral de proteção dos direitos” em todas as suas dimensões (garantismo integral que é a soma do garantismo negativo com o positivo) (STRECK, 2009, p. 19).
Pois bem, é fácil se perceber que, com a emergência, na contemporaneidade, do Estado Social e Democrático de Direito e, levando-se em consideração todos os influxos desse novo paradigma/modelo de Estado nos mais diversos ramos do Direito, em especial, no sentido da valorização da Constituição e de sua força normativa e diretiva, como base de todo o sistema jurídico, também se modificam os parâmetros da hermenêutica jurídica penal, e a compreensão do papel do Direito Penal, “para uma adequação de sua magnitude numa relação direta com a gama de bens constitucionalizados merecedores de tutela jurídica” (STRECK, 2009).
Essa grave missão do Estado contemporâneo, pressupõe uma atuação da norma penal incriminadora não somente como “limite ao poder punitivo”, mas também como instrumento/mecanismo de “garantia da integridade” dos bens jurídicos de relevância no sistema constitucional. O Direito Penal, assim, protegeria o criminoso da vingança injusta e sem limites da comunidade e a própria comunidade da anomia e insegurança produzidas pela ação criminosa lesiva a bens fundamentais. Na síntese de STRECK (2006, p. 180):
“Tem-se assim que o Estado muda de feição, passando a protetor dos direitos fundamentais, isto é, a fórmula liberal do Estado mau é ultrapassada por esse plus normativo: o Estado passa a condição de amigo dos direitos fundamentais (no sentido de não ser mais o opositor). Trata-se de compreender que a proteção dos direitos fundamentais implica um duplo viés: não mais somente a proteção negativa dos direitos (proteção contra o arbítrio estatal), mas, também, a proteção positiva (proteção contra as insuficiências na proteção dos direitos por parte do Estado).”
Sobre esse marco teórico da Constituição Penal (FELDENS, 2005), ou seja, da Constituição como limite e fundamento material do Direito Penal e da configuração dos ilícitos penais, nos fala PRADO (1997, p. 84-85):
“[…] A Constituição, sobretudo em uma sociedade democrática, há de ser o ponto jurídico-político de referência primeiro em tema de injusto penal – reduzido às margens da estrita necessidade – como afirmação do indispensável liame material entre o bem jurídico e os valores constitucionais, amplamente considerados.”
Essa necessária remissão das normas penais ao bem jurídico tutelado, com sede na Constituição, têm uma dupla face, embora, usualmente, apenas a uma delas se dê especial destaque no estudo da matéria. Ela significa não somente que o Direito Penal só deverá intervir no caso de ataques especialmente graves a bens jurídicos de grande relevância comunitária (a fragmentariedade), dando-se prioridade aos demais sistemas de controle social, formais e informais, (a subsidiariedade), mas representa também um óbice a que se confira uma proteção deficiente a valores e direitos de extrema relevância para a sobrevivência da sociedade, por meio da edição de normas penais frouxas, sem a medida de pena necessária e adequada para a prevenção da danosidade social causada pelo injusto penal. (STRECK, 2008).
É nisso que consiste o debate atual entre os “garantistas positivos ou integrais” e os “garantistas negativos ou liberais”. Os primeiros assumem que o Direito Penal não é apenas a Magna Carta das liberdades do criminoso, conforme célebre formulação da escola clássica (Von Liszt), não serve apenas como barreira contra o arbítrio do Estado ou contra a vingança privada, reduzindo a violência social geral, mas é também instrumento de promoção da segurança comunitária e da proteção efetiva dos direitos individuais e sociais. Vale dizer, é efetivo mecanismo promotor de transformações sociais, na medida em que faz frente aos “poderes de fato” (o crime organizado, as grandes empresas etc.) existentes na sociedade que ameaçam bens e direitos fundamentais.
Na síntese de Silva Sánchez sobre o conceito de garantismo:
“O garantismo – que, partindo da função de proteção da sociedade através da prevenção geral de delitos, destaca as exigências formais de segurança jurídica, proporcionalidade etc., e acolhe, ao mesmo tempo, as tendências humanizadoras – expressa o estado até agora mais desenvolvido das atitudes político-criminais básicas, representa a síntese dos esforços em prol de um melhor Direito Penal e constitui a plataforma necessária para abordar, de modo realista e progressista, os problemas teóricos e práticos do Direito Penal.”
E o padrão de proteção constitucionalmente exigido pelo garantismo integral é precisamente aquele necessário a desestimular as condutas ofensivas aos direitos fundamentais, nem mais e nem menos que isso. Intervenção em um nível superior ao idôneo para o alcance dos fins visados pela norma incriminadora (proibição excessiva) e proteção em uma medida aquém do que a imprescindível para coibir a prática de crimes (defeito de proibição) são duas formas em que o Estado pode falhar no seu múnus de proteção.
3.2 O Direito Penal e a dupla face do princípio da proporcionalidade: a vedação do excesso e a proibição de proteção insuficiente
Na busca desse equilíbrio, do ponto médio entre a segurança e a liberdade, é fácil perceber que ganha relevo o princípio ou postulado da proporcionalidade, como magistralmente resume SARLET (2005, p. 25):
“Na seara do direito penal (e isto vale tanto para o direito penal material, quanto para o processo penal) resulta – como já referido – inequívoca a vinculação entre os deveres de proteção (isto é, a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela) e a teoria da proteção dos bens jurídicos fundamentais, como elemento legitimador da intervenção do Estado nesta seara, assim como não mais se questiona seriamente, apenas para referir outro aspecto, a necessária e correlata aplicação do princípio da proporcionalidade e da interpretação conforme à Constituição. Com efeito, para a efetivação de seu dever de proteção, o Estado – por meio de seus órgãos ou agentes – pode acabar por afetar de modo desproporcional um direito fundamental (inclusive o direito de quem esteja sendo acusado da violação de direitos fundamentais de terceiros). Esta hipótese corresponde às aplicações correntes do princípio da proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais que, nesta perspectiva, atuam como direitos de defesa, no sentido de proibições de intervenção (portanto, de direitos subjetivos em sentido negativo, se assim preferirmos). O princípio da proporcionalidade atua, neste plano (o da proibição de excesso), como um dos principais limites às limitações dos direitos fundamentais, o que também já é de todos conhecido e dispensa, por ora, maior elucidação. Por outro lado, o Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É neste sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot)”.
Assim como “a liberdade individual não pode ser sacrificada desproporcionalmente” (BIANCHINI; DE MOLINA; GOMES, 2009, p. 297), também deve ser dada ao bem jurídico a proteção de que necessita e merece.
A resposta à pergunta acerca de qual dos dois tipos criminais de morte culposa no trânsito em situação de racha deverá prevalecer precisa ser enfrentada também da perspectiva do Direito Penal Constitucional ou da Constituição Penal, agregando-se maior complexidade à discussão antes restrita ao ideário liberal-individualista, do qual se extraem os métodos tradicionais de hermenêutica jurídica, por meio do exercício da jurisdição constitucional com fundamento na proporcionalidade das normas penais.
A análise da proporcionalidade das normas penais, nesse novo paradigma de Estado Democrático de Direito, portanto, é o que viabiliza o controle de constitucionalidade dos tipos penais. O emprego da proporcionalidade como critério mínimo de legitimidade para se aferir judicialmente a constitucionalidade material de normas penais já é amplamente reconhecido na doutrina de há muito tempo (GOMES, 2003). Na lição de STRECK (2004, p. 5), é pacífico que não há “qualquer blindagem que proteja a norma penal do controle de constitucionalidade” em suas várias formas.
A novidade aqui é que, quando a hermenêutica jurídica penal clássica, no extremo, levava em conta uma análise da constitucionalidade das normas penais em função da sua proporcional tutela de bens jurídicos, por força de sua extração liberal individualista e positivista, só conseguia visualizar a questão pelo lado da vedação da intervenção excessiva no âmbito de autonomia individual.
Ou seja, a proporcionalidade apenas era invocada (quando o era) para contrapor-se aos excessos da prevenção geral, portanto, como limite máximo das penas abstratamente cominadas aos delitos, nunca como seu limite mínimo (exigência de proteção) E essa ainda é a posição da maioria dos penalistas na atualidade, garantistas de perspectiva exclusivamente negativa, ou, na expressão de Fisher (2010, p. 31), adeptos de uma corruptela do verdadeiro garantismo, chamada “garantismo penal hiperbólico monocular”. Por todos, cite-se Silva Sánchez (2011, p. 396-397):
“[…] seu conflito com a lógica da prevenção só ocorrerá quando considerações preventivas puderem conduzir a sanções superiores ao que exigiria o valor da proporcionalidade, por exemplo; mas não, ao contrário, se a lógica preventiva levasse a propor a imposição de sanções inferiores ao “proporcional”. Noutras palavras, a proporcionalidade, como princípio garantista, não pode ser excedida para cima, mas admite ser excedida para baixo. Esta ideia estabelece uma diferença entre nossa concepção e a da prevenção geral fundamentadora. De fato, esta última – da qual, recorde-se, se dizia que incorporava ideias como as de justiça e proporcionalidade da sanção – se opõe à imposição de penas inferiores ao “justo” ou ao proporcional, em atenção aos possíveis efeitos desestabilizadores, desintegradores, de tal prática. Isso, contudo, implica que ideias como justiça ou proporcionalidade não se concebem como garantias individuais, mas como funções sociais, com a evidente mistificação que isso possa pressupor. O segundo dos aspectos antes enunciados insiste nesta mesma ideia, ao expressar que a concreção destes princípios garantistas deve ocorrer mediante uma reflexão filosófico jurídica a ser realizada dentro do ambiente constitucional. Com esta consideração se pretende guardar distância em relação a uma concreção psicológico-social dos mesmos princípios (como, outra vez, parece acontecer no âmbito das doutrinas da prevenção geral positiva). Esta, de fato, mescla os aspectos racionais do juízo de valor e os aspectos de sentimento ou psicológico-profundos. Estes últimos, porém, enquanto irracionais, encontram dificuldades para atribuir aos princípios mencionados seu real conteúdo garantista; em verdade, serão o reflexo das realidades sociais num determinado momento.”
De um aspecto importante do que afirma Silva Sánchez não é possível se discordar: o emprego da proporcionalidade como mecanismo aferidor da constitucionalidade de normas só é possível, porque encontra fundamento em “critérios filosófico jurídicos, enquadrados no programa político-jurídico da Constituição e derivados da noção de Estado que nesta se acolhe” (SILVA SÁNCHEZ, 2011, p. 371). Ou seja, a proporcionalidade encontra seu fundamento na própria Constituição, como programa e como diretiva, e não em aspectos emocionais, irracionais ou nas convicções sociais de amplos setores da população (o senso social do que seria proporcional), razão pela qual o Poder Judiciário pode manejá-la para decidir acerca da conformidade da obra do legislador penal à norma fundamental, sem ferir a separação dos poderes, substituindo o juízo de conveniência e oportunidade do legislador (o seu juízo político) pelo do magistrado. O controle de constitucionalidade pela via da proporcionalidade, portanto, é verdadeira hipótese de aplicação do Direito e da Constituição (jurisdição constitucional) ao caso concreto deduzido em juízo.
A outra parte do raciocínio de Silva Sánchez, de que a proporcionalidade poderia ser “excedida para baixo” sem que a norma que assim o fizesse pudesse ser submetida à sindicância frente à Constituição, só faz sentido no contexto de um modelo liberal individualista de Estado, que despreza o dever de prestação de segurança e admite que a prevenção geral dos delitos seja sacrificada em nome da defesa do indivíduo acusado contra a violência do Estado Policial, o que, como já foi afirmado, é compreender de maneira enviesada a missão do Direito Penal na atualidade.
Insiste-se, a teoria dos bens jurídicos, com base material na Constituição, é o que sustenta a atividade do legislador penal, que a ela deve se conformar evitando incorrer em inconstitucionalidade, seja pela edição de norma desarrazoada, desproporcional ao fato punível, seja pela proteção insuficiente de um direito fundamental (STRECK, 2004). Na contemporaneidade, prevalece o princípio da “reserva de lei proporcional”.
A proporcionalidade, tradicionalmente, é dividida em três exigências ou em subprincípios constitutivos, quais sejam: o da adequação (ou conformidade), da necessidade (exigibilidade) e da proporcionalidade em sentido estrito (ou razoabilidade). A adequação observa se a medida é “viável” ou se é “meio tecnicamente idôneo” para alcançar o fim a que se propôs. A necessidade impõe que se opte sempre pela medida jurídica menos gravosa ao “direito objeto de restrição”. A proporcionalidade em sentido estrito, em verdade, consiste em uma “análise comparativa” no ordenamento jurídico, a qual pretende aferir se foi mantido um “equilíbrio” ou uma “equitativa relação” entre os “meio empregados e os fins colimados” pela medida jurídica (SARLET, 2005, p. 26-27).
3.3 O controle de constitucionalidade pela via da proporcionalidade da Lei nº 12.971/2014
O tipo de homicídio culposo no trânsito qualificado por estar o condutor participando de competição automobilística não autorizada, da segunda parte do novo artigo 302, § 2º do Código de Trânsito, viola a proporcionalidade, vista da perspectiva da vedação da proteção insuficiente, especialmente, no seu terceiro aspecto, o da razoabilidade.
De fato, se a proporcionalidade em sentido estrito é aferida por meio de uma “análise comparativa”, não é preciso estendê-la muito longe para se chegar à conclusão de que há um flagrante desequilíbrio entre o meio eleito pelo legislador – a amplitude da pena de prisão abstratamente cominada – e o fim por ele visado, de garantir efetiva tutela ao bem jurídico fundamental “vida”.
Quanto aos aspectos da adequação e da necessidade não há maiores discussões, uma vez que são adequadamente cumpridos pelo novo tipo incriminador, o qual é, e isso está fora de dúvida, meio idôneo para cumprir o fim de prevenção geral das condutas danosas ao direito fundamental “vida”, não havendo ainda outra medida menos restritiva da liberdade individual para alcançar o mesmo fim. Em verdade, foi precisamente nos debates em torno da impossibilidade de descriminalização de práticas violadoras do bem jurídico fundamental da “vida”, que se desenvolveu, na doutrina e na jurisprudência, alemãs, do Pós-guerra, o conceito de vedação da proteção insuficiente/deficiente (veja-se, por exemplo, o Caso da Lei de Descriminalização do Aborto decidido em maio de 1993) (STRECK, 2008).
Parece certo que a criminalização de atentados à vida, intra e extrauterina, integra o padrão mínimo de proteção constitucionalmente exigido por esse bem fundamental, não estando o legislador, sob a invocação de sua “liberdade de conformação”, autorizado a se demitir do dever de prestação de segurança bastante, que lhe foi imposto pela Constituição (STRECK, 2008).
A exigência de um tipo específico de homicídio culposo praticado no trânsito, com pena mais grave do que a figura comum do homicídio culposo do Código Penal, justifica-se também por ser essa a hipótese mais frequente, e pode-se dizer até epidêmica, como se referiu na introdução desta pesquisa, de atentados culposos à vida, pelo menos desde que os veículos automotores se vulgarizaram como meio de transporte individual, coletivo e de cargas nas sociedades urbanizadas.
Mas, no subcritério da razoabilidade, como já referido, o novo dispositivo peca gravemente e a “análise comparativa” faz saltar aos olhos a desproporção (pela insuficiência) da nova figura qualificada. Veja-se, de início, que a ela foi cominada a mesma pena da figura básica, de dois a quatro anos de prisão (já se observou que não tem grande relevância o fato de o regime de cumprimento da pena ser de reclusão ou de detenção), uma qualificadora sem punição diferenciada, o que, em si, já beira a teratologia, e não encontra semelhança no ordenamento jurídico.
Observe-se, adicionalmente, que o homicídio simples com as causas de aumento de pena do parágrafo primeiro (aumento de um terço até a metade), de regra, ultrapassará a pena do homicídio culposo qualificado, o que também não faz sentido algum. Essa pena também, a depender do caso concreto, poderá ser ultrapassada pela pena da maioria dos crimes de perigo comum (Capítulo I do Título VIII do Código Penal), aos quais se aplica a pena da figura básica do homicídio culposo aumentada de um terço[31]. Acontece que o “racha”, é preciso lembrar, é também um crime de perigo comum e concreto, praticado no trânsito, como o é a embriaguez ao volante, devendo receber tratamento similar. Repare-se ainda que a pena da morte culposa em situação de “racha” do referido dispositivo é inferior à pena de lesão grave culposa em situação de “racha”, do artigo 308, § 1º, inserida pela mesma Lei.
Assim, percebe-se que a amplitude da pena fixada para o homicídio culposo qualificado pela participação em “racha” não parece equilibrada, nem mesmo no interior do próprio diploma normativo que a previu (Lei nº 12.971/2014), embora não seja particularmente aberrante em comparação com o resto dos tipos culposos do ordenamento nacional.
Já a pena cominada à forma qualificada do crime de “racha” pela intercorrência de morte culposa, artigo 308, § 2º, do Código de Trânsito, parece mais adequada à magnitude do bem jurídico que pretende tutelar. Embora seja, de longe, uma das penas mais graves, no universo dos crimes culposos (se não for, na atualidade, a pena mais alta), prevendo o mínimo de cinco e o máximo de dez anos de prisão, não resulta desproporcional, em virtude de se tratar de hipóteses de morte culposa que, no caso concreto, se configuram, de regra, na modalidade de “culpa consciente”, quando não de “culpa gravíssima”, o que explica a sua aproximação da pena prevista para o homicídio doloso simples (art. 121, caput do Código Penal[32]).
Além disso, também não caberia aqui se falar de inconstitucionalidade do referido dispositivo pelo “excesso de intervenção”, uma vez que, apesar da gravidade das penas cominadas, tratando-se de delitos culposos, está-se em face de uma hipótese fática que se concretiza, de regra, na forma da criminalidade eventual de réus primários, de bons antecedentes e com conduta social adequada, o que autorizaria a substituição da prisão pela sanção restritiva de direitos, qualquer que fosse a pena aplicada, nos termos do art. 44 do Código Penal. De fato, é pacífico, na doutrina, que “tratando-se de crimes culposos, não deve incidir a restrição de terem sido cometidos, sem violência à pessoa, pois, nos delitos culposos, a violência nunca é querida pelo agente, o que impede afirmar que o delito foi praticado com violência” (DELMANTO, 1991, p. 25-26).
A distorção que se poderia observar, optando-se, com base no postulado da proporcionalidade, pelo tipo mais grave de morte culposa em situação de “racha”, do artigo 308, § 2º, do Código de Trânsito, é que a morte culposa no trânsito qualificada pela embriaguez do condutor (art. 302, § 2º, primeira parte), comparativamente, receberia uma pena bastante inferior, o que de fato é uma injustiça, visto que, em ambos os casos está-se diante de crimes preterdolosos, em que o dolo de praticar um crime de perigo concreto (conduzir veículo automotor embriagado ou participar de competição não autorizada) antecedeu o resultado morte culposo.
Apesar da similaridade das situações, o fato de lhes ter sido cominada penas em abstrato de amplitudes bastante diferentes não chega a desbordar do âmbito de “livre conformação” do legislador penal. De qualquer forma, aqui o aplicador do Direito não teria muita opção além de aplicar a norma, a despeito de poder-se entender que protegeu insuficientemente o bem jurídico. Nem o exercício da jurisdição constitucional autorizaria a aplicação analógica do art. 308, § 2º, do Código de Trânsito aos casos de morte culposa no trânsito, antecedida pela embriaguez do condutor, pois isso seria violar o princípio da legalidade dos tipos e das penas em seu núcleo essencial.
Ademais, simplesmente, expungir a norma do art. 302, § 2º, do Código de Trânsito, invalidando-a pela declaração de inconstitucionalidade, também não solucionaria o problema, uma vez que apenas deixaria ainda mais a descoberto o bem jurídico tutelado de maneira deficiente pela norma penal. Esse problema de inconstitucionalidade só poderia ser solucionado de maneira apropriada pelo apelo ao legislador, para que interviesse e corrigisse o defeito de proteção por ele mesmo causado.
Observe-se que a segunda parte do art. 302, § 2º, do Código de Trânsito não se tornaria “letra morta”, uma vez que seria perfeitamente aplicável ainda para as raríssimas hipóteses de mortes culposas em situação de “racha” praticadas fora de vias públicas. A diferença de pena poderia ser justificada em razão, de nesses casos, quando a competição automobilística não ocorrer em vias públicas, o perigo produzido à incolumidade de terceiros ser muito reduzido.
A possibilidade de que se confira um sentido, ainda que bastante reduzido à segunda parte do artigo 302, § 2º, do Código de Trânsito, que seja compatível com a Constituição, e o fato de a primeira parte do mesmo dispositivo não padecer de vício incontornável de inconstitucionalidade (embora, alguns poderiam argumentar que confere proteção insuficiente ao bem jurídico) impõe que se empregue a técnica da interpretação conforme a Constituição ou da declaração de inconstitucionalidade da norma sem redução de texto.
O magistrado, no caso de várias interpretações possíveis de uma norma, deve optar por aquela compatível com a Constituição, preservando o quanto possível, o trabalho do legislador, partindo do princípio de que ele busca produzir norma constitucional. Assim, no âmbito do controle de constitucionalidade de normas (jurisdição constitucional) o juiz ou Tribunal deverá “declarar a legitimidade do ato questionado desde que interpretado em conformidade com a Constituição” (COELHO; GONET BRANCO; MENDES, 2009, p. 1303). Ou ainda declarar a inconstitucionalidade daquele dispositivo sem retirar o texto que lhe corresponde do ordenamento jurídico, em virtude de ser possível, por meio de uma construção hermenêutica, dar-lhe um sentido aceitável frente à norma fundamental.
Sobre essas técnicas de controle de constitucionalidade e suas particularidades, segue a síntese de Gilmar Mendes (COELHO; GONET BRANCO; MENDES, 2009, p. 1305):
“[…] a afirmação de que a interpretação conforme à Constituição e a declaração de inconstitucionalidade são uma e a mesma categoria, se parcialmente correta no Plano das Cortes Constitucionais e do Supremo Tribunal Federal, é de todo inadequada na esfera da jurisdição ordinária, cujas decisões não são dotadas de força vinculante geral.
Ainda que se não possa negar a semelhança dessas categorias e a proximidade do resultado prático de sua utilização, é certo que, enquanto na interpretação conforme à Constituição se tem, dogmaticamente, a declaração de que uma lei é constitucional, com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial, constata-se, na declaração de nulidade sem redução de texto, a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinadas hipóteses de aplicação do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal.
Assim, se se pretende realçar que determinada aplicação do texto normativo é inconstitucional, dispõe o Tribunal da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, que, além de mostrar-se tecnicamente adequada para essas situações, tem a virtude de ser dotada de maior clareza e segurança jurídica, expressas na parte dispositiva da decisão (a lei X é inconstitucional se aplicável a tal hipótese; a lei Y é inconstitucional se autorizativa da cobrança do tributo em determinado exercício financeiro).”
É claro, que, até mesmo por imperativo de segurança jurídica, o ideal seria que a questão da dupla tipificação da morte culposa no trânsito em situação de “racha” fosse resolvida no bojo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, o que resolveria a controvérsia acerca de qual o tipo aplicável para a generalidade dos casos, uniformizando o entendimento dos órgãos jurisdicionais inferiores e mesmo a formulação de denúncias pelo Ministério Público e de indiciamentos pela Polícia Judiciária dos Estados.
No entanto, enquanto isso não for feito, é poder-dever do magistrado de primeiro grau e dos Tribunais de Justiça resolver a controvérsia por meio do exercício da jurisdição constitucional.
Sobre essa possibilidade fala Streck (2008):
“Estou convencido de que não há qualquer óbice constitucional que impeça juízes e tribunais de aplicarem a interpretação conforme e a nulidade parcial sem redução de texto. Entender o contrário seria admitir que juízes e tribunais (que não o STF) estivessem obrigados a declarar inconstitucionais dispositivos que pudessem, no mínimo em parte, ser salvaguardados, no sistema, mediante a aplicação das citadas técnicas de controle. Por que um juiz de Direito – que, desde a Constituição de 1891, sempre esteve autorizado a deixar de aplicar uma lei na íntegra por entendê-la inconstitucional – não pode, também hoje, em pleno Estado Democrático de Direito, aplicá-la tão somente em parte? O mesmo se aplica aos Tribunais, que, na especificidade da Interpretação Conforme à Constituição e da Nulidade Parcial sem Redução de Texto, estão dispensados de suscitar o incidente de inconstitucionalidade. Refira-se que em nada fica maculado esse entendimento em face da recente edição da Súmula Vinculante nº 10 (“Viola a cláusula de reserva de plenário[33] a decisão de órgão fracionário do Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta a sua incidência no todo ou em parte”) do Supremo Tribunal Federal. Ela não se aplica à Interpretação Conforme e nem à nulidade parcial sem redução de texto. E explico o porquê: assim como uma decisão de nulidade parcial sem redução de texto […] feita pelo STF não necessita ser enviada ao Senado, não cabe exigir incidente de inconstitucionalidade, não havendo, assim, violação ao full bench (art. 97 da CF). Isso porque, tanto na Interpretação Conforme à Constituição quanto na Nulidade Parcial sem Redução de Texto, não há expunção de texto ou parte de texto normativo, apenas havendo o afastamento de uma das incidências do texto.”
Dessa forma, não havendo dúvida de que o integrante do Poder Judiciário, de qualquer nível, o aplicador do direito por excelência, está autorizado a fazer incidir os imperativos constitucionais para dar resposta à questão da dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha” introduzida pela Lei nº 12.971/2014, concretamente deduzida em juízo, conclui-se que deverá optar por uma interpretação conforme à Constituição do artigo 302, § 2º, do Código de Trânsito, restringindo a sua aplicação exclusivamente às hipóteses em que o homicídio culposo resultar de participação do condutor em competição não autorizada ou em demonstração de perícia em manobra praticadas em via particular/privada. Outro sentido dado à segunda parte desse dispositivo seria inconstitucional, por violar o postulado da proporcionalidade no seu aspecto de vedação da proteção deficiente de bens jurídicos fundamentais. Assim, para a imensa maioria das mortes culposas em situação de “racha”, ocorridas em via pública, deverá ser aplicado o tipo qualificado de “racha” do artigo 308, § 2º do Código de Trânsito.
Conclusão
A revisão bibliográfica procedida no presente estudo permitiu que se passasse em revista crítica os parâmetros de interpretação das normas penais legados pelo pensamento liberal, individualista e normativista clássico, ainda majoritário, no âmbito da produção doutrinária e da prática jurisprudencial no Brasil. Observou-se qual o sentido que esse paradigma hermenêutico, que foi herdado do modelo liberal de Estado, confere à investigação sobre a mens legislatoris e a mens legis, bem como quais seriam os critérios para identificá-las. Verificou-se ainda que, sendo insuficientes os critérios de resolução do conflito aparente de normas, e não se identificando de outro modo a teleologia da lei, ou seja, havendo dúvida insanável com o instrumental da hermenêutica clássica, impõe-se a solução subsidiária de se optar pela norma mais favorável ao réu.
Autores mais atuais, de tendências político-criminais mais libertárias e abolicionistas, chegam a alçar o princípio da opção pela norma mais benéfica ao investigado/acusado como critério norteador geral da interpretação penal, a qual deixaria de ser, simplesmente, uma interpretação estrita, como o é a de todas as normas que restringem direitos fundamentais, passando a ser verdadeiramente restritiva.
Seja qual for o entendimento que se adote acerca do papel da máxima in dubio pro reo, o fato é que a dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha”, introduzido pela Lei nº 12.971 de 2014, não encontra solução com recurso às fórmulas e critérios clássicos de interpretação de normas penais, de maneira que, pressupondo a constitucionalidade dos dispositivos da mencionada lei, não sobra alternativa ao jurista de formação tradicional que aplicar a norma mais favorável à liberdade, qual seja, o tipo de homicídio culposo qualificado do artigo 302, parágrafo segundo do Código de Trânsito, o que, na prática, transforma em “letra morta” o tipo de “racha” qualificado quando resultar em morte culposa do artigo 308, parágrafo segundo do mesmo Código.
Essa solução, como já apontado, ademais impõe que se afaste ainda a incidência do tipo de “racha” qualificado quando resultar em lesão grave culposa, para que se evite a desarmonia e a desproporção com a pena conferida ao homicídio culposo. É fácil visualizar que seria irracional conferir uma amplitude de pena a uma figura qualificada pela violação da integridade física em montante superior ao cominado à forma qualificada pela morte culposa. A única maneira de contornar essa anomalia, reconhecendo a inconstitucionalidade do tipo qualificado de “racha” com resultado de lesão grave culposo (por flagrantemente desconsiderar a harmonia constitucional de bens jurídicos, tratando a lesão corporal de forma mais grave que a própria morte) seria atraindo a incidência da figura da lesão corporal culposa no trânsito do art. 303 do Código de Trânsito. Afinal, nos limites desse paradigma de interpretação, o indivíduo, a parte mais fraca na relação jurídico-penal, não poderia ser prejudicado pela imprevidência do Estado Leviatã, o qual não se desincumbiu adequadamente de seu papel de fixar, por lei, os limites do proibido sob a cominação de uma sanção penal.
Esse modelo de interpretação, que parte da presunção inicial de que o produto da atividade legislativa é constitucional (a clássica presunção de constitucionalidade das leis) acaba por transformar em “letra morta” dois dispositivos da Lei nº 12.917/2014 (arts. 308, §§ 1º e 2º).
Na sequência, colocou-se esse resultado, em cotejo com o novo debate sobre o dever do Estado de assegurar a proteção efetiva dos direitos fundamentais de todas as dimensões, o qual pressupõe um imperativo de garantia positiva/integral dos bens jurídicos de sede constitucional. Foi possível perceber que a liberdade de conformação do legislador penal, o seu âmbito de discricionariedade na condução da política criminal (por meio de descriminalizações, tipificações e fixação de penas) fica bastante reduzida, nesse novo modelo de Estado Social e Democrático de Direito, sendo passível de controle judicial por meio de aplicação da Constituição (Jurisdição Constitucional), tendo como parâmetro o princípio da proporcionalidade em sua dupla face: da vedação do excesso e da proibição da insuficiência na tutela normativa.
Se não há blindagem para normas penais que protejam de forma insuficiente bens jurídicos com status constitucional (como o são os direitos fundamentais de todas as dimensões, dentre os quais a “vida” dos sujeitos envolvidos no trânsito), então tem o magistrado o dever de, com o mecanismo do controle difuso de constitucionalidade, e com o emprego da técnica da declaração de nulidade parcial sem redução de texto/interpretação conforme à Constituição, negar validade ao sentido do artigo 302, parágrafo segundo, segunda parte do Código de Trânsito, o qual comina a pena de reclusão de dois a quatro anos para a morte culposa no em situação de “racha”, impondo que para esses delitos se aplique o tipo qualificado do artigo 308, parágrafo segundo do mesmo Código, o qual confere tutela adequada e suficiente ao bem jurídico vida, que legitima a referida criminalização primária.
Essa solução deixa íntegra a norma do artigo 302, § 2º do Código de Trânsito, para os casos de homicídio culposo qualificado pela embriaguez do condutor e também para a raríssima, mas não impossível, situação em que a competição automobilística não autorizada estiver sendo praticada em via privada, hipótese em que, como já referimos, não ocorreria o crime de “racha” do art. 308, caput, mas poderia ocorrer o homicídio culposo qualificado pela participação em “racha” (“racha” fora de via pública e, portanto, produtor de risco concreto à coletividade em escala bastante reduzida, o que legitimaria a diferença na punição). A alternativa da interpretação conforme à Constituição do referido tipo, deixa o seu texto incólume na nova redação do Código de Trânsito, apenas negando validade ao seu sentido que produzia a dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha”.
Esse modelo de interpretação, que parte das bases constitucionais de toda a hermenêutica jurídica, e não confunde a “vigência” de um texto normativo com a sua “validade” no ordenamento a qual depende da obediência pelo seu “sentido normativo” dos preceitos fundamentais (garantia positiva e negativa dos direitos e dos valores positivados na Constituição), deixa íntegros todos os dispositivos da Lei nº 12.917/2014, apenas vedando a interpretação do § 2º do art. 302 do Código de Trânsito que conferia tutela limitada à vida, respeitando, dessa forma, a intenção do legislador e a finalidade da lei de maneira mais eficaz que o modelo clássico positivista de interpretação.
Não há dúvida de que essa é a interpretação correta da referida Lei nº 12.917/2014, mas como ela depende do exercício da Jurisdição Constitucional, na sua forma difusa ou concentrada, com relação a qual os magistrados em geral tendem a ter uma postura bastante cautelosa, compreensivelmente, o ideal seria que a Procuradoria Geral da República impetrasse Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, com fundamento nos argumentos anteriormente expostos e com o objetivo de fixar, com efeito vinculante, a interpretação conforme à Constituição do artigo 302, § 2º do Código de Trânsito. Isso evitaria a insegurança jurídica que necessariamente decorrerá do tratamento díspar da questão pelos magistrados e Tribunais de todo o Brasil, cada qual procedendo a uma solução da questão da dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha” em conformidade com o paradigma de interpretação das normas penais (e de modelo de Estado) que cada um adote no exercício ordinário do seu mister.
Esse seria o cenário ideal, ao menos, até que o legislador penal, exercendo a sua função de maneira competente, a merecer a confiança nele depositada pelo titular da soberania, resolva o problema pela via da adequação da redação do art. 302, § 2º do Código de Trânsito, evitando a dupla tipificação da morte culposa em situação de “racha”, ou, adotando solução técnica e político criminalmente ainda mais atual, reconheça um tipo específico de culpa gravíssima para as hipóteses de morte e lesão corporal grave, culposas, ocorridas no trânsito, em situação de “racha” ou de embriaguez do condutor.
Informações Sobre o Autor
Marcel Fortes de Oliveira Portela
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília FD/UnB. Especialista em Direito Penal e Controle Social pelo Centro Universitário de Brasília UniCEUB