Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar o multiculturalismo presente nos grandes centros urbanos e a política social urbana no âmbito local como uma forma de valorizar e promover a diversidade cultural dos povos. Diversos trabalhos produzidos por Organismos Internacionais como a ONU e a UNESCO mostram que o desenvolvimento não se realiza sem um estímulo paralelo ao desenvolvimento da cultura local. Acredita-se estar o desenvolvimento, no mundo globalizado, na construção participativa de uma sociedade democrática, consciente de sua diversidade cultural e apta a evoluir através de mecanismos eficazes, no âmbito local, que alcançam todos os cidadãos, os fazem mais participativos à vida em sociedade, resultando assim, no efetivo desenvolvimento humano, focado este na proteção dos direitos humanos.
Palavras-chave: cidades; multiculturalismo; política social urbana; diversidade cultural.
Abstract: The aim of this paper is to present this multiculturalism in urban centers and urban social policy at the local level as a way to enhance and promote the cultural diversity of peoples. Several works produced by international organisms like the UN and UNESCO show that the development will not proceed without a stimulus parallel to the development of local culture. It is believed to be the development in the globalized world, the construction of a participatory democratic society, conscious of its cultural diversity and able to evolve through effective mechanisms at the local level that reach all citizens, make them more participatory in the life society, thus resulting in effective human development, focused on this human rights protection.
Keywords: cities; multiculturalism; urban social policy; cultural diversity.
Sumário: 1.Introdução. 2. A Nova Concepção de Desenvolvimento. 3. A Diversidade Cultural nos centros urbanos. 4. A Sustentabilidade Cultural: o desenvolvimento para os centros urbanos. 5. A Política de Urbanização nos centros urbanos. 6. Conclusão. 7 Referências.
1. INTRODUÇÃO
Na busca incessante pela industrialização, sendo ela, até então, considerada a principal propulsora do desenvolvimento econômico, por muito tempo foi negligenciada a importância do meio ambiente como responsável pela sobrevivência e pela qualidade de vida do ser humano. Da mesma forma, o crescimento desenfreado dos grandes centros urbanos, provocado pelo êxodo rural e pela migração de massas de trabalhadores para suprir a demanda por mão de obra nas indústrias, gerou o aumento da exclusão e da desigualdade social presente nestas grandes cidades.
Na última década do século XX, Organismos Internacionais e Organizações Não Governamentais; constataram que o real desenvolvimento não era alcançado principalmente em países nos quais a cultura (compreendido neste conceito as tradições, as expressões artísticas, religiosas, os pequenos grupos étnicos, os modos de ser e de agir do povo, dentre outras características) não recebia atenção, proteção e investimentos por parte de seus governos.
A partir daí, compreendeu-se a correlação entre cultura e desenvolvimento, surgindo, assim, uma nova concepção baseada numa visão integral de desenvolvimento, que seria não apenas o desenvolvimento baseado em fatores econômicos, mas também compreendendo a importância da cultura no desenvolvimento social, político, financeiro, urbano, ambiental e principalmente, humano.
Neste momento, surge um novo cenário nas relações internacionais. Um novo paradigma se forma colocando a diversidade cultural como elemento essencial para as políticas de desenvolvimento. A Convenção da UNESCO, realizada em Paris, em 2005, com o tema: Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais é um exemplo concreto desta mudança.
Diversos trabalhos produzidos por Organismos Internacionais como a ONU e a UNESCO mostram que o desenvolvimento não se realiza sem um estímulo paralelo ao desenvolvimento da cultura local.
E é neste viés que se consagra o objeto de estudo deste trabalho, pois, diante da constatação da presença da diversidade cultural a qual é intrínseca a cada povo, cada sociedade, ressalta-se a importância da participação popular, em âmbito local para o desenvolvimento efetivo das políticas públicas.
Visa-se uma reflexão sobre a efetiva participação do indivíduo nas políticas públicas, bem como, diagnosticar se há o real desenvolvimento humano no âmbito local, das cidades, diante a diversidade cultural, no cenário globalizado.
2. A NOVA CONCEPÇÃO DE DESENVOLVIMENTO
A economia sempre foi a locomotiva do desenvolvimento. Claro está, que não há desenvolvimento sem crescimento econômico. O que veio diferenciar a visão desenvolvimentista liberal clássica, desta nova proposta contemporânea é a constatação de que o crescimento da economia não pode mais se dar pelo uso irresponsável dos recursos naturais, mas deve respeitar a integridade ambiental e a identidade cultural de cada povo.
Gilson Oliveira em seu artigo “Discussões sobre o Conceito de Desenvolvimento” faz uma ampla análise sobre este conceito apresentando uma definição de Vasconcelos e Garcia:
“O desenvolvimento, em qualquer concepção, deve resultar do crescimento econômico, acompanhado de melhoria na qualidade de vida, ou seja, deve incluir as alterações da composição do produto e a alocação de recursos pelos diferentes setores da economia, de forma a melhorar os indicadores de bem estar econômico e social (pobreza, desemprego, desigualdade, condições de saúde, alimentação, educação e moradia.” (OLIVEIRA, 2002, p.38, destaque nosso)
Oliveira demonstra a importância da moradia adequada, como um dos indicadores do bem estar social, para que seja alcançada uma melhoria na qualidade de vida do ser humano. A dignidade da pessoa humana envolve vários valores que precisam ser preservados, dentre eles, o direito à moradia digna.
“Por muito tempo foi esquecido que as pessoas são tanto os meios quanto o fim do desenvolvimento econômico. O que importa, na verdade, mais do que o simples nível de crescimento ou de industrialização é o modo como os frutos do progresso, da industrialização, do crescimento econômico são distribuídos para a população, de modo a melhorar a vida de todos.” (OLIVEIRA, 2002, p.45)
Desde que foi criado, o sistema ONU (que inclui uma série de entidades e organismos internacionais, como a UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura) vem buscando estimular e promover o crescimento, melhorando a qualidade de vida do ser humano, visando o desenvolvimento em todos os sentidos variáveis de seu conceito, como o sentido econômico, o social, o financeiro, etc. Dentre seus objetivos estão a cooperação entre os Estados para a manutenção da paz e segurança internacionais, o progresso econômico e social, a promoção e o reconhecimento dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, além de solucionar as questões internacionais de ordem econômica, cultural ou social.
O direito ao desenvolvimento foi consagrado pela ONU, em 1986, na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (DDD).
“Artigo 1º O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.” (ONU, 1986, destaque nosso)
A DDD foi um marco para o processo de cooperação entre os povos, pois considerou a paz e a segurança internacional como elementos imprescindíveis à realização do direito ao desenvolvimento. A DDD demonstra que a pessoa humana[1] é o núcleo do desenvolvimento, seu agente principal, estando todos os seres humanos responsáveis pelo desenvolvimento individual e coletivo; e responsabiliza primariamente os Estados à criação de condições nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao desenvolvimento.
“Artigo 2º parágrafo 3º: Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem o constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição eqüitativa dos benefícios daí resultantes.”
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, vários organismos e programas foram criados com o fim de promover o desenvolvimento, dentre eles: o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, (BIRD), o Acordo Geral das Tarifas e Comércio (GATT), o Programa das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), cada um com sua área específica de atuação, mas todos com o mesmo objetivo, promover a qualidade de vida dos seres humanos.
Assim, diante das diversas vertentes do conceito deste termo, segue o que bem define a proposta deste artigo:
“O desenvolvimento deve ser encarado como um processo complexo de mudanças, e transformações na ordem econômica, política e principalmente humana e social. Desenvolvimento, nada mais é do que crescimento, incrementos positivos no produto e na renda, transformado para satisfazer as mais diversas necessidades do ser humano, tais como: saúde, educação, habitação, transporte, alimentação, lazer, dentre outras.” (OLIVEIRA, 2002, p.40, destaque nosso)
Oliveira considera a habitação, ou seja, o direito à moradia adequada, uma das diversas necessidades do ser humano, que visa garantir uma vida digna, sendo a dignidade da pessoa humana um valor supremo. Para ele: “pensar em desenvolvimento é antes de qualquer coisa, pensar em distribuição de renda, saúde, educação, meio ambiente, liberdade, lazer, dentre outras variáveis que podem afetar a qualidade de vida da sociedade.” (OLIVEIRA, 2002, p.43)
Por fim, a concepção atual de desenvolvimento não trata do processo de crescimento econômico isoladamente (produção em expansão, produtividade e renda per capita), mas sim de desenvolvimento social e educacional, fortalecimento da democracia, direito à uma moradia adequada, preservação do meio ambiente, o respeito às diversas culturas do mundo, do patrimônio cultural, a melhora da equidade e o respeito aos direitos humanos, sendo este último o mais importante.
3. A DIVERSIDADE CULTURAL NOS CENTROS URBANOS
Em face da globalização, ressaltam-se indagações de como, nos centros urbanos, administram-se tantas diferenças sociais e culturais.
Faz-se necessária uma breve reflexão sobre os pensamentos que acreditam estar o desenvolvimento, no mundo globalizado, na construção participativa de uma sociedade democrática, consciente de sua diversidade cultural e apta a evoluir através de mecanismos eficazes, no âmbito local, que alcançam todos os cidadãos, os fazem mais participativos à vida em sociedade, resultando assim, no efetivo desenvolvimento humano, focado este na proteção dos direitos humanos.
“As idéias aqui tratadas não surgiram do nada, não são meras divagações teóricas, mas decorrem de experiências concretas, que pretendem ser matéria de discussão que permita a procura de modelos que possibilitem a construção de espaços de comunicação para o desenvolvimento do processo democrático, e isto só poderá ocorrer no espaço menor de poder local, onde a democracia possa ser exercida de forma direta e participativa.” (MAGALHÃES, 1997, p.127, destaque nosso)
O desenvolvimento que se almeja está, conforme Magalhães, na democracia:
“Democracia que se constrói do diálogo livre, no livre pensar no seio de uma sociedade em que a construção de espaços de comunicação sejam possíveis, o que depende da construção da cidadania como idéia de dignidade, libertação da miséria e respeito humano. Não há efetiva liberdade sem meios para exercê-la e esses meios são os direitos que libertam o ser humano da miséria e da ignorância.” (MAGALHÃES, 2006, p.29, destaque nosso)
Em grande parte das cidades, é constatada uma enorme diversidade cultural, além da crescente desigualdade social que interfere na qualidade de vida dos indivíduos. Desta forma, as unidades de mensuração deveriam ser menores, como exemplifica Salvato:
“Quando vamos medir o desenvolvimento humano dentro de Belo Horizonte, a desigualdade é também muito importante. Nós pegamos unidades censitárias, pegamos um Belvedere, um Mangabeiras e uma favela Prado Lopes e começamos a fazer várias mensurações: índice de criminalidade, índice de educação. A diversidade é muito grande! Então, a mensuração do desenvolvimento humano dentro de uma cidade também é muito diversa, e precisamos de estabelecer unidades menores de mensuração do desenvolvimento humano.” (SALVATO, 2008, p.81, destaque nosso)
Os seres humanos, enquanto indivíduos, ou em uma perspectiva coletiva – como membros das diversas sociedades e comunidades espalhadas pelo planeta – possuem várias identidades culturais.
Exemplificando: uma mulher pode ser ao mesmo tempo brasileira, negra, intelectual, homossexual e católica. Ela possui e convive então com a identidade de ser mulher, brasileira, negra, intelectual, etc. Da mesma forma, um morador de Roma pode se definir como um romano, um italiano, um europeu, um cristão, um católico e ainda, um ocidental.
Cada indivíduo pode identificar-se com identidades diferentes, conforme o Relatório para o Desenvolvimento Humano:
“uma pessoa pode ter uma identidade de cidadania, (exemplo: ser francesa); de sexo (ser mulher); de raça (ser de origem chinesa) ; de religião (ser budista) ; de política ( ter idéias de esquerda) ; de origem regional (ser da Tailândia) ; de língua (ser fluente em Tailandês, inglês, francês e chinês) ; de localização (ser residente em Paris); de profissão (ser advogado); de gosto musical (gostar de rock) ; preferência literária (gostar de romances policiais) ; de hábitos alimentares (ser vegetariana)” . (ONU, 2004a, p.17)
E é essa diversidade de identidades, de culturas diversas, que fazem a convivência, nos centros urbanos, mais complexa.
Diante da constatação da presença da diversidade cultural a qual é intrínseca a cada povo, a cada sociedade, ressalta-se a importância da participação popular, em âmbito local para o desenvolvimento efetivo das políticas públicas. “O cidadão hoje é global e local. […] O núcleo local é o principal na transformação de valores e de realização de justiça social e econômica.” (MAGALHÃES, 2006, p.47)
Neste momento, ressalta-se mais uma vez a importância de ações no espaço local, pois “Município é o espaço da cidadania devido à proximidade daqueles que necessitam das soluções concretas de seus problemas.” (MAGALHÃES, 1997, p.132)
Magalhães (1997) apresenta como uma proposta[2], deixar aos cidadãos, cada um em sua determinada esfera municipal, a escolha de qual modelo socioeconômico seguir, estando os direitos humanos numa definição desta nova democracia participativa, na qual o indivíduo tenha voz ativa e participativa.
“Para ter fala, o indivíduo deverá ter discurso, ou conteúdo, o que implica livre formação de consciência política, filosófica e religiosa, que pressupõe, por sua vez, educação. O direito à educação passa a ser direito democrático, sem o qual a democracia se inviabiliza.” (MAGALHÃES, 1997, p.107, grifo nosso)
Cada Município possui suas particularidades, especificidades, seu povo com suas crenças, culturas e valores específicos próprios daquela região. Conforme, Magalhães[3] poderia haver uma nova federação, reestruturação ou recomposição dos Municípios, atendendo, cada um, suas especificidades, estabelecendo, desta forma, sua própria Constituição ou Lei Orgânica Municipal.
Em cada Município, o cidadão exerceria sua liberdade e, de modo democrático, buscaria seu próprio modelo de sociedade, alcançando uma melhor forma de convivência pacífica entre os indivíduos, com seu próprio modelo econômico a ser seguido, sem, contudo, ferir-se a integridade nacional, mas apoiando-se no princípio da subsidiariedade e na cooperação entre os entes federativos, com ênfase no poder local.
Isso pode ser possível, dentro do Estado Democrático de Direito, somente se os indivíduos puderem ter acesso a um modelo educacional que lhes permita adquirir conhecimento e desenvolver uma “cultura de cidadania”, dando-lhes condições de compreender os fatores que determinam as políticas públicas, e permitindo-lhes participar ativamente dos processos democráticos, previstos na Constituição Nacional, bem como exigir respeito aos princípios e regras que compõem os Direitos Humanos.
Magalhães ressalta ainda a necessidade de promover este avanço democrático e, por conseqüência, o desenvolvimento, em âmbito nacional, de forma equilibrada e justa:
“É Importante ressaltar que não basta descentralizar, é fundamental que o processo de descentralização leve em consideração a democracia participativa local e busque um desenvolvimento territorial equilibrado, reduzindo as desigualdades sociais e regionais. Para que isso ocorra é necessária a correta distribuição de competências entre as diversas esferas de poder no território, desde a União, passando pelos Estados-Membros, chegando aos municípios. As esferas de coordenação de políticas macro de desenvolvimento equilibrado têm de permanecer com os entes territoriais maiores, que poderão, dessa forma, produzir o equilíbrio por meio de políticas de compensações tributárias para as diferentes realidades regionais e municipais.” (MAGALHÃES, 2006, p.40-41, destaque nosso)
É relevante, pois, dizer sobre a necessidade de se criar “um novo ser humano que perceba a precariedade do consumismo e do desenvolvimento capitalista e estando atento às necessidades ambientais, ecológicas e espirituais”. (MAGALHÃES, 2006, p.46)
O indivíduo deve dispor de garantias socioeconômicas na sociedade em que vive (direito à vida com dignidade, à moradia, ao trabalho, à saúde etc.), esta efetiva aplicação dos direitos humanos pressupõe a indivisibilidade de direitos que permitem a sua completa integração à vida digna em comunidade. Cumpridos estes requisitos, haverá um cidadão consciente de seus direitos e deveres, apto a uma participação ativa em seu Município, garantindo assim, o concreto desenvolvimento humano a todos, sem exceção.
Assim, mantêm-se a identidade cultural das comunidades locais, estimulando e impulsionando a criação e participação dos indivíduos na sua comunidade, para que se sinta parte construtora de seu Município, e viabilize o exercício de sua própria cidadania.
“A descentralização de nada adianta sem a mudança das bases de poder no município, criando mecanismos de participação popular, como os conselhos municipais ou o orçamento participativo[4].” (MAGALHÃES, 2006, p.49)
Importante destacar a visão de Boaventura Santos (1997a) que para justificar uma política progressista de direitos humanos com âmbito global e legitimidade local defende o multiculturalismo como condição essencial desta política.
“o multiculturalismo é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo”. (SANTOS, 1997a, p.19, destaque nosso)
Santos descreve a importância do reconhecimento das diversidades, do multiculturalismo, que são mutáveis, pois reconhece que “falar de cultura e de religião é falar de diferença, de fronteiras, de particularismos”. (SANTOS, 1997a, p.13) Ademais, ressalta a importância de ações locais para a efetivação dos direitos humanos e da dignidade humana.
“Na área dos direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio social para as possibilidades e exigências emancipatórias que eles contêm só será concretizável na medida em que tais possibilidades e exigências tiverem sido apropriadas e absorvidas pelo contexto cultural local. Apropriação e absorção, neste sentido, não podem ser obtidas através da canibalização cultural. Requerem um diálogo intercultural e uma hermenêutica diatópica.”(SANTOS, 1997a, p.23, destaque nosso)
Para ser cidadão, o indivíduo contemporâneo, globalizado, elevado à condição de um ser global virtual, deve primeiramente se sentir inserido em seu lócus, identificando-se como membro de uma comunidade real, ciente e consciente de sua cultura local.
A cidadania só se concretiza, quando o indivíduo tem uma referência social, se sentindo identificado a um povo, um lugar, a um modo de viver. A cultura representa um compromisso cívico, intrínseco à sua vontade como ser humano, sujeito de direitos e deveres.
Entretanto, é importante enfatizar o papel dos Estados (e seus líderes) para a conscientização e futura aplicação de princípios “éticos universais”[5]. As instituições públicas não podem se omitir. Princípios éticos, de respeito, democracia, equilíbrio econômico, desenvolvimento social e humano que devem ser seguidos por todos os Estados e Organizações Internacionais para se alcançar, nas palavras de Magalhães, “uma grande democracia global.”
“A globalização das comunicações, a internet, a mídia alternativa, as TVs comunitárias, os jornais locais, as rádios comunitárias, enfim, toda uma gama de informação democrática alternativa que, uma vez organizadas em rede (e obviamente […] me refiro a uma rede democrática sem centro, multiparadigmática, uma rede de comunicações entre diversas culturas que se unem em torno de princípios, e não conceitos comuns), o mundo pode ser transformado em direção a um processo dialógico de construção permanente de uma grande democracia global.” (MAGALHÃES, 2006, p.23, destaque nosso)
4. A SUSTENTABILIDADE CULTURAL: O DESENVOLVIMENTO PARA OS CENTROS URBANOS
Com o objetivo de alcançar a sustentabilidade e levando em consideração a nova visão de desenvolvimento humano que deve ser observado, Sachs citado por Oliveira (2002) descreve suas cinco dimensões de sustentabilidade:
“Sachs discutindo a questão do desenvolvimento sustentável, aponta cinco dimensões de sustentabilidade dos sistemas econômicos, que devem ser observadas para se planejar o desenvolvimento: social, econômica, ecológica, espacial e cultural.” (SACHS apud OLIVEIRA, 2002, p.43, destaque nosso)
Para Oliveira (2002) a sustentabilidade social visa melhorar a distribuição de renda, diminuindo a exclusão social e a distância que separa as classes sociais. A sustentabilidade econômica visa à eficácia dos sistemas, seja no emprego dos recursos ou na sua forma de gerir. A sustentabilidade ecológica visa preservar os recursos naturais, sem conter a oferta necessária humana. A sustentabilidade espacial visa o equilíbrio da ocupação rural e urbana, atentos a uma melhor ocupação populacional e de atividade econômica. Por último, a sustentabilidade cultural visa à alteração dos modos de viver da sociedade, a transformação da maneira de pensar e agir, para despertar a consciência ambiental, alcançando desta forma uma diminuição no consumo de produtos causadores de impactos ambientais.
Um certo vínculo entre cultura e desenvolvimento começou a despontar em 1970 após a Conferência Intergovernamental sobre os questões institucionais e financeiras das políticas culturais, em Veneza, realizadas pela UNESCO. Desde então, “poucos governos hoje deixam de integrar cultura e história ao seu processo de desenvolvimento, trazendo as discussões sobre economia, tecnologia e ciência para um conceito mais amplo de suas realidades culturais.” (RIBEIRO apud KAUARK, 2007, p.02)
Nesse contexto de construção de uma nova ordem, deve-se destacar a indissociablidade entre cultura e educação, que advém de uma construção histórica e política. Esta união pressupõe a garantia para o alcance de cidadania mundial. É a educação que promove o conhecimento e o respeito pelas outras culturas do mundo. Costumam haver controvérsias entre os filósofos, economistas, sociólogos e historiadores, sobre quais os fatos que apontam para o desenvolvimento, entretanto, costuma também haver o consenso de que a valorização da educação pressupõe o principal avanço.
Uma boa política pública de educação visa à construção de uma cultura de paz e desenvolvimento entre as nações, alcançando a dignidade da pessoa humana. Tensões sociais são formadas quando há a negação da democracia, da igualdade de direitos e deveres, da própria liberdade da pessoa humana.
Assim, faz-se necessária a análise da diversidade cultural indissociada da educação quando se trata de desenvolvimento humano, pois ambas constituem fator relevante para o progresso. Exemplo: a fome, a pobreza, a corrupção, a violência, a oferta de serviços culturais, a escolaridade de crianças e jovens, etc., são variáveis de aspecto sociocultural que influenciam nos níveis de desenvolvimento econômico e na velocidade de crescimento dos países.
Acredita-se que o desenvolvimento sustentável se efetivará com a transformação consciente dos indivíduos e de todas as sociedades como um todo. A educação consciente de preservação do meio ambiente, do patrimônio cultural material e imaterial, do reconhecimento e respeito às diversas culturas do mundo, a redução da desigualdade entre os países, enfim, ações verossímeis de mudança de todo um hábito de consumo e exploração que deve ser modificado.
Para Baniwa, grande parte das pessoas defende a promoção da diversidade cultural, entretanto nada fazem para que o exercício dessa diversidade faça parte do cotidiano das pessoas. Não há mudança de atitude ou de comportamento.
Parece que às vezes transferimos a nossa responsabilidade ética e moral para os operadores de direito. […] Mas quase todo mundo se esquece de que esses direitos não podem ser apenas guardados no papel, sem uma mudança de atitude e de comportamento da sociedade.” (BANIWA, 2008, p.66)
Afirma, ainda que é necessária a saída da sociedade dessa situação de tolerância para com o outro “diverso”, para uma “convivência mais partilhada da diversidade. Porque uma coisa é tolerar alguém; outra é conseguir compartilhar modos de pensar, valores, conhecimentos e assim por diante.” (BANIWA, 2008, p.69)
E acrescenta que para valorizar é necessário conhecer. A base da discriminação ou do preconceito é o desconhecimento. Quando se ignora determinada cultura, torna-se mais difícil aceitá-la. Diminuir esse desconhecimento seria muito importante para se valorizar a diversidade. E para tanto, se torna imprescindível uma “mudança de consciência, atitude e cultura da sociedade.” (BANIWA, 2008, p.69)
“Penso que o diálogo da diversidade só será possível quando os saberes forem equivalentes, produzindo mais harmonia entre eles. O que para a academia seria uma heresia total, pode ser uma base epistemológica, religiosa e moral fundamental para garantir o bem viver das pessoas e dos grupos. Nesse sentido, penso que o diálogo deve começar fundamentalmente entre os saberes.” (BANIWA, 2008, p.73, destaque nosso)
5. A POLÍTICA DE URBANIZAÇÃO NA ATUALIDADE
A Lei Federal 6.766 de 1979 é um exemplo de um marco jurídico relativo à função social. Em seu artigo 3º, parágrafo único, declara que não será permitido o parcelamento do solo:
“I – em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas; II – em terreno com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes; IV – em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação; V – em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção.” (BRASIL, 1979)
Entretanto, observa-se nitidamente a não aplicabilidade desta Lei, haja vistas ao recente caso do desmoronamento de terra em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, as inundações em São Paulo e no Paraná, que geraram muitas vítimas e causaram a destruição de propriedades públicas e privadas, algumas de valor histórico e cultural.
O Estatuto da Cidade, Lei 10.257 de 2001, em seu artigo 2º, da mesma forma, estabelece diretrizes para uma política urbana de desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade, de forma a viabilizar um desenvolvimento sustentável e a garantia de bem estar à todos os munícipes, dentre elas, visa a:
“I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;
XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais.” (BRASIL, 2001, destaque nosso)
O Estatuto da Cidade é uma lei que preenche os requisitos de planejamento e regularização do espaço urbano, sendo reconhecida positivamente em âmbito internacional, entretanto, uma maior compreensão do que seja uma efetiva política de urbanização, pelo poder público, se faz necessária.
Deve haver uma diminuição dos assentamentos informais, os quais na maioria das vezes acontecem em áreas de risco, o que coloca a vida dos moradores sujeita a desmoronamentos de terra e enchentes, fato costumeiro nos grandes centros urbanos.
Nestes locais, normalmente, a periferia das grandes cidades, há falta de infra-estrutura, transportes e serviços, as construções são precárias, o que leva à exclusão social, discriminação no mercado de trabalho, rupturas culturais e a conseqüente marginalidade.
Cabe ressaltar ainda as diversas implicações legais decorrentes da informalidade, visto que gera insegurança da posse, falta de acesso a crédito oficial além da ausência de um simples endereço formal, o que muitas vezes gera a prática comum dos “aluguéis de endereço”, que é quando o cidadão paga a quem mora em um apartamento ou em blocos habitacionais a fim de facilitar sua entrada no mercado de trabalho. Prática corriqueira para o indivíduo não ter que dizer que mora na favela e muitas vezes perder oportunidades de emprego ou crédito. Da mesma forma, esta ausência de endereço é usada como um argumento jurídico, pela própria polícia, para permitir a violação dos lares e residências de forma informal.
Vive-se um planejamento urbano elitista e burocrático, como afirma Edésio Fernandes: “as leis são elitistas, cheias de requisitos técnicos e não refletem a realidade brasileira. Os lotes feitos legalmente são caríssimos.” (FERNANDES, 2009).
Exemplificando: grandes condomínios são construídos, verdadeiros feudos de proteção à classe milionária que manipula empreendimentos e infra-estrutura do governo para melhor atendimento da região, consolidando o crescimento da desigualdade social.
Faz-se necessária, primeiramente, uma reforma jurídica efetiva que viabilizem as leis já existentes visando uma reforma urbana. Além da real mudança de valores da sociedade.
Da mesma forma, necessita-se, por parte da sociedade civil em geral, uma responsabilização social, pelas áreas comuns; além de uma alteração dos valores sociais e melhoria nos níveis de educação e conscientização de cidadania.
As pessoas precisam de uma maior consciência ambiental, coletiva e urbana. Exemplificando, no Brasil é comum deparar-se com lixo nas praias, nas praças, pichações em belas edificações, etc. Não há o cuidado devido com as áreas comuns. Falta o reconhecimento social de que a cidade é uma construção coletiva e não apenas de um indivíduo, ou do Estado.
A função social deve ser entendida como um conceito aberto, no qual busca-se não apenas a função social da propriedade privada, mas a função social de uma vida digna e humana, para tanto, o espaço urbano, ou seja, o território, deve estar em equilíbrio, garantindo os direitos fundamentais dos indivíduos.
Cabe primeiramente, portanto, ao Poder Público que tem a supremacia e o dever de respeitar o interesse público, buscar ações efetivas de uma melhor moradia, planejamento urbano e social.
Finalmente, David Harvey (2009), em sua Palestra “Direito à Cidade”, propõe uma idéia de transformação do que já existe. Acredita que se pode construir uma cidade melhor para todos. A acrescenta ao dizer da necessidade de um movimento nacional pela reforma urbana para de fato ser possível exercer o real e efetivo direito à cidade.
“Eu tenho trabalhado já há algum tempo com a idéia de um direito à cidade. Eu entendo que o direito à cidade significa o direito de todos nós a criarmos cidades que satisfaçam as necessidades humanas, as nossas necessidades. O direito à cidade não é o direito de ter – e eu vou usar uma expressão do inglês – as migalhas que caem da mesa dos ricos. Todos devemos ter os mesmos direitos de construir os diferentes tipos de cidades que nós queremos que existam.” (HARVEY, 2009, destaque nosso)
6. CONCLUSÃO
O caminho está aberto. A sociedade civil, bem como o aparelho estatal devem, pois, trilhá-lo juntos, cooperando para a consolidação da democracia e para garantir um desenvolvimento real, sustentável e socialmente responsável, pela educação e consolidação da identidade cultural, garantindo-se o diálogo intercultural, a solidariedade e a tolerância. É dando oportunidade de participação a todos na construção de políticas públicas que atendam às demandas da moderna globalização, sem se esquecer do espaço local, habitat do ser humano, que se constrói a verdadeira democracia.
Informações Sobre os Autores
Bruno Wanderley Júnior
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Puc Minas e da UFMG. Professor da Pós-graduação da Puc Minas
Ingrid Freire Haas
Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogada. Professora de Direito da Puc Minas. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2007) e Graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (2003).