Natureza jurídica do abuso de direito à luz do Código Civil de 2.002

Resumo: A teoria do abuso de direito, foi positivada em nosso ordenamento com o Código Civil de 2.002, e até a presente data tem despertado intenso debate na doutrina, pois é salutar identificar qual regramento jurídico é aplicável ao instituto. O presente artigo tem como principal objetivo analisar o conceito do abuso de direito, seus requisitos, suas modalidades, bem como verificar se o abuso de direito no que se refere à natureza jurídica, trata-se de uma espécie de ato ilícito ou uma categoria autônoma e se em razão de se escolher uma ou outra destas alternativas, há variação nas consequências jurídicas.

Palavras-Chave: Abuso de Direito. Código Civil de 2.002. Boa-fé.

Absctract: The abuse of rights theory, has been positively valued in our ordainment with 2.002 Civil Code, and till now has been arising  intense doctrine debates; due to it is salutary identifying which legal regulation is applicable to the statute. This present article has as its main focus to analyze law abuse concept, its requirements, its procedures, as well as if law abuse, as legal nature regards, is a kind of tort or an autonomous category and if by reason of choosing one or another of these alternatives, there are legal consequences variation.

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Key-words: Right abuse. 2002 Civil Code. Good intention.

Sumário. Introdução. 2. Abuso de Direito. 3. Conceito. 4. Requisitos. 5. Teorias. 6. Modalidades específicas de atos abusivos. 6.1 Venire contra Factum Proprium. 6.2 Supressio e Surrectio. 6.3 Tu quoque. 6.4 Duty to mitigate the loss. 6.5 Substancial performance. 6.6 Violação positiva do contrato.  7. Natureza jurídica do Abuso de Direito. Conclusão. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Com o advento do Estado Democrático de Direito, no ordenamento jurídico pátrio verificou-se uma necessidade constante de exigir dos indivíduos padrões de comportamentos não apenas legais, mas também éticos.

Nesta esteira, percebe-se que dentre os princípios basilares do Código Civil de 2.002, notadamente eticidade e sociabilidade, refletem a nova perspectiva de exigências de condutas legítimas por parte da coletividade, em abandono ao ideal individualista que regia o Código Civil de 1916.

Assim, a teoria do abuso de Direito, positivada em nosso ordenamento com o Código Civil de 2.002, despertou intenso debate na doutrina. Desta feita, a mais abalizada doutrina brasileira se queda em debates sob qual regramento jurídico está o abuso de direito, colocando-o ora em categoria de ato ilícito, ora em categoria autônoma e ainda, outras correntes o qualificam diferentemente como abordaremos. Adotada qualquer delas há que se analisar as consequências jurídicas.

2. ABUSO DE DIREITO

Inicialmente, é necessário esclarecer o entendimento de Planiol apud Villas Bôas (2013) para quem há uma evidente impropriedade técnica na expressão abuso de direito, já que se há abuso, é porque não há direito. Assim ele entende que

“É uma logomaquia, porque se eu uso de meu direito, o meu ato é lícito e quando ele é ilícito, é que eu ultrapasso o meu direito e ajo sem direito. (…) É preciso não ser logrado pelas palavras: o direito cessa onde o abuso começa, e não pode haver “uso abusivo” de um direito, qualquer que seja, pela razão irrefutável de que um só e único ato não pode ser ao mesmo tempo conforme o direito e contrário ao direito”.

Planiol é adepto da teoria negativista, pois como visto acima, para ele não existe a figura do abuso de direito, pois quando se excede no exercício do direito, este passa a não mais existir, pois o ato que se iniciou lícito, transmuda-se para o campo da ilicitude.

Todavia, a tese negativista está superada, eis que é largamente aceita em sede doutrinária e jurisprudencial a existência da teoria do abuso de direito, apesar da imprecisão técnica da expressão, prevalece o entendimento afirmativista.

No que se refere aos antecedentes históricos do instituto, Roberto Goldschmidt apud Nader (2004, p. 552) afirma que a origem do abuso de direito está no Direito Romano, nas Partidas, na doutrina dos atos ad emulationem do Direito Medieval e no Código Civil da Prússia de 1974. O autor prossegue afirmando que há interessante passagem em texto do jurisconsulto Gaio: “Male enimnostro jure non debemus” (não devemos usar mal de nosso direito).  

Um dos mais famosos casos julgados na França e que estabeleceu as bases para a teoria do abuso de direito, trata-se do caso Clement Bayard, no qual o vizinho de um construtor de dirigíveis que, para força-lo a adquirir seu terreno, nele ergueu grandes pilastras de madeira armadas com agudas pontas de ferro com o intuito de dificultar a aterrissagem de aeronaves. (RODRIGUES, 2003, p. 45)

3. CONCEITO

O Código Civil de 1916, conhecido por Código Beviláqua, de forma tímida, trouxe as nuances, no artigo 160, I para a futura positivação da teoria do abuso de direito no Código Civil de 2.002, in verbis: “Não constituem atos ilícitos: I – Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido”.

Como já afirmado assim, coube ao Código Civil de 2.002 positivar a teoria do abuso de Direito e o fez no artigo 187: “ Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Conforme apontado por Farias e Rosenvald (2012, p. 681), o legislador brasileiro, inspirou-se no artigo 334 do Código Civil de Portugal, qual assevera que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito”.

Já o Código Civil Português reproduz, em linhas gerais, o contido no Código Civil grego, in verbis: “O exercício de um direito é proibido se excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé ou pelo fim social ou econômico do mesmo direito”.

A doutrina pátria traz alguns conceitos para o abuso de direito. Para Paulo Nader (2004, p. 553), “abuso de direito é espécie de ato ilícito, que pressupõe a violação de direito alheio mediante conduta intencional que exorbita o regular exercício de direito subjetivo”.

Francisco Amaral (2003, p. 550) preleciona que

“O abuso de direito consiste no uso imoderado do direito subjetivo, de modo a causar dano a outrem. Em princípio, aquele que age dentre do seu direito a ninguém prejudica (neminemlaeditquiiure suo utitur). No entanto, o titular do direito subjetivo, no uso desse direito, pode prejudicar terceiros, configurando ato ilícito e sendo obrigado a reparar o dano”.

Caio Mário da Silva Pereira (2007, p. 673) esclarece que

“Não se pode, na atualidade, admitir que o indivíduo conduza a utilização de seu direito até o ponto de transformá-lo em causa de prejuízo alheio. Não é que o exercício do direito, feito com toda regularidade, não seja razão de um mal a outrem. Às vezes é, e mesmo com freqüência. Não será inócua a ação de cobrança de uma dívida, o protesto de um título cambial, o interdito possessório que desaloja da gleba um ocupante. Em todos esses casos, o exercício do direito, regular, normal, é gerador de um dano, mas nem por isso deixa de ser lícito o comportamento do titular, além de moralmente defensável. Não pode, portanto caracterizar o abuso de direito no fato de seu exercício causar eventualmente um dano ou motivá-lo normalmente, porque o dano pode ser o resultado inevitável do exercício, a tal ponto que este se esvaziaria de conteúdo se a sua utilização tivesse de fazer-se dentro do critério da inocuidade”.

É por isso que todas as teorias que tentam explicar e fundamentar a teoria do abuso de direito têm necessidade de desenhar um outro fator, que com qualquer nome que se apresente estará no propósito de causar o dano, sem qualquer outra vantagem. Abusa, pois, de seu direito o titular que dele se utiliza levando um malefício a outrem, inspirado na intenção de fazer mal, e sem proveito próprio. O fundamento ético da teoria pode, pois, assentar em que a lei não deve permitir que alguém se sirva de seu direito exclusivamente para causar dano a outrem.

Dessa forma o que se visualiza é o exercício então de um direito que seria normal se não fosse causar um dano ao outrem. Discordamos da explicação de Caio Mário da Silva Pereira no sentido de que quando ele nos fala que quem está exercendo o abuso de direito não tem, necessariamente, proveito. Entendemos que ele acaba se beneficiando, mesmo que seja de forma indireta, mesmo que seja em razão da procrastinação, onde ele está “ganhando” tempo.

Analisando o tema, Sílvio Rodrigues (2003, p. 46) pronuncia-se da seguinte forma:

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“O abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa de considerar a finalidade social do direito subjetivo e, ao utilizá-lo desconsideradamente, causa dano a outrem.”

Antunes Varela (1982) apud Diniz (2003, p. 510), afirma que abuso de direito é “o mau exercício dos direitos subjetivos decorrentes de lei ou contrato”. 

4. REQUISITOS

A doutrina aponta, com alguma divergência, alguns requisitos que qualificam o ato como abusivo. Na esteira de Paulo Nader (2004, p. 554-556), o autor cita os seguintes requisitos:

a) Titularidade do Direito. O agente responsável civilmente há de estar investido da titularidade de um direito subjetivo, ao exercitá-lo, por si ou por intermédio dos seus subordinados.

b) Exercício Irregular do Direito. O titular do direito vai além do necessário na utilização do que o seu direito.

c) Rompimento dos limites impostos. O titular do direito subjetivo ultrapasse os limites ditados pelos fins econômicos ou sociais.

d) Violação do direito alheio. É necessária a violação ao direito alheio para que o prejudicado possa se valer das medidas judiciais.

e) Elemento subjetivo da conduta. Dentre os elementos do ato ilícito tem-se a culpa como requisito da conduta. Todavia, no caso ato abuso de direito, o legislador não colocou de forma expressa a idéia de culpa, a qual poderia estar subentendida. Todavia, é dispensável tal elemento como requisito necessário para caracterizar o abuso de direito.

f)  Nexo de Causalidade: É o liame entre a lesão causada e a conduta do agente.

5. TEORIAS

Destaca-se na doutrina duas teorias acerca do abuso de direito: uma subjetiva e outra objetiva. O critério diferenciador entre tais teorias reside na inserção do elemento culpa.

Para a teoria subjetiva, também denominada de teoria dos atos emulativos, somente haverá a responsabilização se aquele que praticou o ato lesivo, o fez com o intuito de lesar outrem. Na doutrina, cita-se como defensor da corrente subjetiva MONTEIRO (2007, p. 335-336) para quem o abuso de direito está vinculado à prática de emulação, portanto, é necessária a intenção de prejudicar.

Há resquícios desta teoria em nosso ordenamento jurídico, mais precisamente no artigo 1.228 do Código Civil de 2.002, o qual assevera que “são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem”.

Todavia, como já destacado quando do conceito de abuso de direito, a doutrina majoritária, entende que no que se refere a este instituto, o Código Civil de 2.002 adotou a teoria objetiva, dispensando para a sua caracterização o elemento subjetivo.

É bem verdade que tal elemento subjetivo poderá estar presente no caso concreto e ensejará maiores consequências jurídicas a serem valoradas pelo magistrado.

Há que se destacar ainda que antes mesmo da vigência do Código Civil de 2.002, já era possível reconhecer o abuso de direito, na sua vertente objetiva, levando-se em considerações as disposições do Código de Defesa do Consumidor, mais precisamente nos artigos 6º, inciso IV, 37, § 2º, 39 e 42, os quais dispensam a análise do elemento subjetivo para fins de responsabilização do fornecedor.

Registra-se que na I Jornada de Direito Civil da Justiça Federal foi formulado o Enunciado 37 acerca do art. 187 do Código Civil, nos seguintes termos: “a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”. Portanto, percebe-se que a jurisprudência segue a linha objetivista.

6. MODALIDADES ESPECÍFICAS DOS ATOS ABUSIVOS

O abuso de direito pode ocorrer por seis modalidades específicas, a saber:

6.1 Venire contra Factum Proprium

Inicialmente cumpre destacar que esta expressão significa proibição de comportamento contraditório. Trata-se de modalidade abusiva decorrente de violação ao princípio da confiança. Aldemiro Rezende Dantas Junior (2007) apud Farias e Rosenvald (2012, p. 686-687), conceitua o venire contra factum proprium como sendo

“Uma sequência de dois comportamentos que se mostram contraditórios entre si e que são independentes um do outro, cada um deles podendo ser omissivo ou comissivo e sendo capaz de repercutir na esfera jurídica, de modo tal que o primeiro se mostra suficiente para fazer surgir em uma pessoa mediana a confiança de que uma determinada situação jurídica será concluída ou mantida”.

Tendo por base o conceito acima elencado, Farias e Rosenvald (2012, p. 687), expõem os elementos caracterizadores do venire contra factum proprium, quais sejam: “a) uma conduta inicial; b) legítima confiança despertada por conta dessa conduta inicial; c) Um comportamento contraditório em relação à conduta inicial; d) um prejuízo, concreto ou potencial, decorrente da contradição”.

O venire contra factum proprium não se encontra positivado expressamente em nosso direito, mas é largamente aceito na doutrina e jurisprudência, inclusive no enunciado 362, da Jornada de Direto Civil: “A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil”.

No Superior Tribunal de Justiça há inúmeros julgados acolhendo expressamente a teoria do venire contra factum proprium, como se observa do trecho da ementa abaixo colacionada:

“[…] 13. Assim é que o titular do direito subjetivo que se desvia do sentido teleológico (finalidade ou função social) da norma que lhe ampara (excedendo aos limites do razoável) e, após ter produzido em outrem uma determinada expectativa, contradiz seu próprio comportamento, incorre em abuso de direito encartado na máxima nemo potest venire contra factum proprium. (STJ, 1ª seção, EDcl no Resp Nº 1.143.216 – RS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 09 de agosto de 2010.”

Farias e Rosenvald (2012, p. 690), de forma lapidar, ainda apontam uma importante diferenciação entre venire contra factum proprium e a proibição de alegação da própria torpeza (nemo auditur proprium turpitudinem allegans), qual reside, o elemento subjetivo. Naquele, em razão da adoção da teoria objetiva, é dispensável a prova de má-fé do indivíduo, já em relação a este, é imprescindível a comprovação do elemento subjetivo.

6.2 Supressio e Surrectio

Essas expressões são derivadas do direito alemão, sendo a supressio, denominada Verwirkung e a surrectio, Erwirkung.

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a) Supressio (supressão): nas palavras de Alexandre Guerra (2011, p. 45), a supressio pode ser entendida como “a situação de inércia no exercício de um direito, de modo que não mais se permite o seu exercício, por contrariar a boa-fé”.

As origens do instituto, segundo Renan Lotufo (2003) apud (GUERRA, 2011, p. 46), deu-se

“Em razão da violenta inflação por que passou a Alemanha, foi recebida como conquista proporcionada pela boa-fé para o direito a revalorização monetária, que para nós é a correção monetária, que ensejou a supressão do princípio nominalista, pelo qual as dívidas expressas em dinheiro deviam manter o valor nominal. Essa colocação inicial da jurisprudência corrige uma distorção quanto à posição do credor. O objetivo é o reequilíbrio das prestações. Ocorre que, se não for exercido tal direito em prazo razoável, a correção do débito pode atingir montante insuportável para o devedor. Tais situações ensejaram outra forma de supressão, também fundada na boa-fé, na busca da ponderação, do equilíbrio”.

Um ponto merece ser destacado na análise da supressio: não há relação entre ela e os institutos da preclusão, decadência ou prescrição, eis que nestes institutos, a análise quanto à intenção do agente, se boa ou má-fé, é totalmente dispensável, ao passo que na supressio, a sua fundamentação está na boa-fé.

Apesar de nossa legislação não tratar de forma expressa este instituto, há uma referência no Código Civil de 2.002, art. 330 da supressio. Segundo o texto legal, “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”.

Ora, se o credor, aceita, reiteradamente, receber o pagamento em local diverso do convencionado, presume-se a renúncia quanto ao local convencionado e não poderá posteriormente alegar vício no pagamento, sob pena de ofensa à boa-fé, em detrimento do devedor.

A jurisprudência pátria tem admitido o fenômeno da supressio, conforme ementa colacionada abaixo:

“Ementa: administrativo. Serviço publico de fornecimento de energia elétrica. Contrato de mutuo firmado pelo usuário e a concessionária. Correção monetária. Clausula contratual. Principio da boa-fé. Limitação do exercício do direito subjetivo. “supressio". 1. A “supressio” constitui-se em limitação ao exercício de direito subjetivo que paralisa a pretensão em razão do principio da boa-fé objetiva. Para sua configuração, exige-se (i) decurso de prazo sem exercício do direito com indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido e (ii) desequilíbrio, pela ação do tempo, entre o beneficio do credor e o prejuízo do devedor. Lição de Menezes cordeiro. (…)” (Apelação Cível n 70001911684, segunda câmara cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatora Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza:, julgado em 04/12/2000).

b) Surrectio (surgimento): nas palavras de Carlyle Popp apud Farias e Rosenvald (2012, p. 693), na surrectio “o exercício continuado de uma situação jurídica ao arrepio do convencionado ou do ordenamento implica nova fonte de direito subjetivo, estabilizando-se tal situação para o futuro”.

Na verdade, há uma equivalência entre a supressio e a surrectio, mas analisada sob a ótica da parte adversa. O já citado artigo 330 do Código Civil, ao mesmo tempo em que há o instituto da supressio para uma das partes, nasce para a parte contrária o fenômeno da surrectio.

Na mesma linha, a jurisprudência brasileira, admite o instituto da surrectio:

“DIREITO CIVIL – LOCAÇÃO RESIDENCIAL – Situação jurídica continuada ao arrepio do contrato. Aluguel. Cláusula de preço. Fenômeno da surrectio a garantir seja mantido a ajuste tacitamente convencionado. A situação criada ao arrepio de cláusula contratual livremente convencionada pela qual a locadora aceita, por certo lapso de tempo, aluguel a preço inferior àquele expressamente ajustado, cria, à luz do Direito Civil moderno, novo direito subjetivo, a estabilizar a situação de fato já consolidada, em prestígio ao Princípio da Boa-Fé contratual” (TJMG – 16ª Câm. Cível; ACi nº 1.0024.03.163299-5/001-Belo Horizonte-MG; Rel. Des. Mauro Soares de Freitas; j. 7/3/2007; v.u.).

6.3 Tu quoque

Tu quoque significa “até tu”. Esta expressão é atribuída a Júlio César, pois ao tomar conhecimento que, entre aqueles que tinham conspirado para o seu assassinato, estava Marco Júnio Bruto, o qual era considerado como filho. Assim, Julio Cesar teria pronunciado Tu quoque, Brutus, tu quoque, filimili? Portanto, tem a sentido de surpresa, espanto. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 695)

No plano jurídico, segundo Alexandre Guerra (2011, p. 50) a tu quoque

“Corresponde à vedação do exercício de um direito subjetivo que se obteve à custa da violação da norma jurídica, expressando a ideia de que o violador da norma comete abuso de direito se quiser exercer a situação jurídica que tal norma confere.”

Como bem apontado pela doutrina, a tu quoque nada mais é que expressão do conhecido brocardo jurídico que assevera que a ninguém é dado valer-se da própria torpeza (turpitudinem suam allegans non auditur).

Na mesma linha das subespécies citadas acima, a tu quoque também não está positivada, de forma clara, em nossa legislação, mas é possível percebe-la na exceção de contrato não cumprido, nos contratos sinalagmáticos,  conforme artigo 476 do Código Civil de 2.002: “nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.

Portanto, um dos contratantes não pode, sem antes cumprir a parte que lhe compete, exigir o cumprimento da parte contrária, sob pena de alterar o equilíbrio contratual e incorrer em conduta abusiva.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite expressamente a tu quoque, conforme ementa abaixo transcrita:

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – ADMINISTRATIVO – TITULAR DE SERVENTIA JUDICIAL SUSPENSO PREVENTIVAMENTE – LEGALIDADE – AUTO-TUTELA DA MORALIDADE E LEGALIDADE – APLICAÇÃO DA TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS (TU QUOQUE) – AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.

[…] 3. Alegar o recorrente que o afastamento de suas funções, bem como a devida apuração dos fatos em face a fortes indícios de cometimento de crimes contra a administração, inclusive já com a quebra do sigilo bancária decretada, fere direito líquido e certo, é contrariar a lógica jurídica e a razoabilidade. A bem da verdade, essa postura do recorrente equivale ao comportamento contraditório – expressão particular da teoria dos atos próprios -, sintetizado no anexim tu quoque, reconhecido nesta Corte nas relações privadas, mas incidente, também, nos vínculos processuais, seja no âmbito do processo administrativo ou judicial […]” (STJ – 2ª. Turma. Min. Rel. Humberto Martins. RMS 14908/BA. J. 06/03/2007).

6.4 Duty to mitigate the loss

Trata-se de mais uma modalidade de abuso de direito. O duty to mitigate the loss, consiste no dever do credor de mitigar as próprias perdas. O cerne desta teoria reside, com supedâneo no princípio da boa-fé objetiva, no dever de lealdade do credor de não piorar a situação do devedor.

A teoria do duty to mitigate the loss, na mesma esteira das teorias anteriores, também não está positivada expressamente em nosso direito. Todavia, é reconhecida largamente pela doutrina e jurisprudência, inclusive ainda sob a vigência do Código Civil de 1916, conforme ementa colacionada do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

“FRAUDE À EXECUÇÃO. BOA-FÉ. PROVA DA INSOLVÊNCIA.
1. Nas circunstâncias do negócio, o credor tinha o dever, decorrente da boa-fé objetiva, de adotar medidas oportunas para, protegendo seu crédito, impedir a alienação dos apartamentos a terceiros adquirentes de boa-fé. Limitando-se a incorporadora do empreendimento a propor a ação de execução, sem averba-lá no registro de imóveis ou avisar a financiadora, permitiu que dezena de apartamentos fossem alienados pela construtora a adquirentes que não tinham nenhuma razão para suspeitar da legalidade da compra e venda, inclusive porque dela participou a CEF. Não prevalece, contra estes, a alegação de fraude a execução.
2. Proposta a ação contra devedor solvente (art. 593, II, CPC), a prova da insolvência da devedora e indispensável para caracterizar a fraude a execução. Precedentes da doutrina e da jurisprudência. Recurso conhecido e provido para julgar procedente os embargos de terceiro opostos pelo adquirente” (REsp 32890/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 14/11/1994, DJ 12/12/1994, p. 34350).

O duty do mitigate the loss foi reconhecido igualmente no enunciado 169 da Jornada de Direito Civil que preceitua: “o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.

Farias e Rosenvald (2012, p. 699) apontam como reconhecimento do dever do credor de evitar as próprias perdas o enunciado 309 da súmula do Superior Tribunal de Justiça na qual se “reconhece que o credor de alimentos somente pode obter a prisão civil do devedor de alimentos pela dívida dos últimos três meses vencidos, apesar de ter direito à execução dos últimos dois anos”.

6.5 Substancial performance

Também conhecida como inadimplemento mínimo ou adimplemento substancial é definida pela doutrina como a possibilidade de se

“Questionar a faculdade do exercício do direto potestativo à resolução contratual pelo credor, em situações caracterizadas pelo cumprimento de substancial parcela do contrato pelo devedor, mas em que, todavia, não tenha suportado adimplir uma pequena parte da obrigação”. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 700)

O enunciado 361 da Jornada de Direito Civil adota expressamente a tese inadimplemento mínimo: “o adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do artigo 475”.

6.6 Violação positiva do contrato

De origem alemã, a violação positiva do contrato, também intitulada de tese do adimplemento fraco, ruim ou insatisfatório, trata-se de mais uma espécie de abuso de direto.

“A violação positiva do contrato, no direito brasileiro, corresponde ao inadimplemento decorrente do descumprimento de dever lateral, quando este dever não tenha uma vinculação direta com os interesses do credor na prestação.” (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 704)

Na esteira da doutrina majoritária, três são as principais categorias de deveres anexos ou laterais: deveres de proteção, informação e cooperação. Estes deveres alcançam todos os interesses que tangenciam a execução contratual.  

O Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, trata acerca da violação dos deveres anexos e reconhece a responsabilidade objetiva nos seguintes termos: “em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação de deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independente de culpa”.

Desta forma, muito embora não haja previsão legal específica acerca da tese da violação positiva do contrato, é amplamente reconhecida em sede doutrinária e jurisprudencial que o descumprimento dos deveres anexos poderá ensejar o reconhecimento de conduta abusiva por parte do violador da norma.

7. NATUREZA JURÍDICA DO ABUSO DE DIREITO

O ponto mais controvertido e sobre o qual recai a ideia central do presente trabalho, é a análise da natureza jurídica do abuso de direito. Analisar a natureza jurídica de um instituto, ou seja, o seu enquadramento na ciência jurídica, por si só, não é tarefa fácil, quanto mais na hipótese em que a doutrina não chega a um consenso sobre o instituto, como é o caso do abuso de direito.

Há duas posições jurídicas sedimentadas. Uma corrente doutrinária enquadra o abuso de direito como uma categoria autônoma, com características próprias, não pertencendo a nenhuma categoria jurídica existente. Já para uma outra corrente, o abuso de direito trata-se de modalidade de ato ilícito.

O ato ilícito, cujos contornos estão no artigo 186 do Código Civil, tem concepção subjetivista, tendo a culpa como um dos requisitos para a sua configuração. Já em relação ao abuso de direito, muito embora o legislador o tenha qualificado como ato ilícito, importante seguimento doutrinário e jurisprudencial, como visto ao longo do presente artigo, entendem que na verdade, trata-se de um instituto de caráter objetivo e, portanto, dispensável o elemento culpa.

A questão que se coloca é saber se em razão de se adotar uma ou outra corrente, no que se refere à natureza jurídica do abuso de direito, há alteração nas consequências jurídicas daí decorrentes.

Entre os defensores do entendimento que o abuso de direito se trata de categoria autônoma, cita-se (NERY JUNIOR e NERY, 2003, p. 256), para os quais o abuso de direito

“É categoria autônoma, de concepção objetiva e finalística, e não apenas dentro do âmbito estreito do ato emulativo (ato ilícito). Diferentemente do ato ilícito, que exige a prova do dano para ser caracterizado, o abuso de direito é aferível objetivamente e pode não existir dano e existir ato abusivo”.

Na mesma linha, Heloísa Carpena (2002) apud Farias e Rosenvald (2012, p. 682) afirma que “o ato abusivo está situado no plano da ilicitude, porém, não pode ser considerado como um ato ilícito, devendo ser classificada como uma forma autônoma de antijuridicidade.”

Registra-se ainda que segundo escólio de (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 683)

“O legislador qualificou o abuso de direito como ato ilícito e concordemos ou não, é assim que doravante devemos tratá-lo. Mas de maneira alguma a referida qualificação retida do abuso do direito a sua completa autonomia com relação ao ato ilícito subjetivo, ancorado na culpa.”

Em sentido contrário, Paulo Nader entende que o abuso de direito

“É espécie de ato ilícito, que pressupõe a violação de direito alheio mediante conduta intencional que exorbita o regular exercício de direito subjetivo. É equivocado pretender-se situar o abuso de direito entre o ato lícito e o ilícito. Ou o ato é permitido no iuspositum e nos pactos, quando é ato lícito ou a sua prática é vedada, quando então se reveste de ilicitude. Na dinâmica do abuso de direito, tem-se, no ponto inercial, aquele que imediatamente antecede a conduta e até quando esta não se complete, a esfera do direito, mas à medida em que a ação se desenrola, no iter, a conduta desdobra-se no âmbito da licitude para transformar-se em ato ilícito” (NADER, 2004, p. 553)

Pode-se afirmar que ainda há uma terceira via, capitaneada por Flávio Tartuce (2004) apud Villas-Bôas (2013) o qual visualiza no abuso de direito a natureza jurídica mista, híbrida. Portanto, “o abuso de direito seria um ato ilícito pelo conteúdo, ilícito pelas conseqüências, tendo natureza jurídica mista – entre o ato jurídico e o ato ilícito – situando-se no mundo dos fatos jurídicos em sentido amplo”

Conforme cabalmente demonstrado, de forma majoritária, doutrina e jurisprudência seguem o entendimento de que para a configuração do ato abuso de direito, é dispensável o elemento culpa.

Assim, ante a autonomia do abuso de direito, os seus efeitos não se restringem à obrigação de indenizar, como na hipótese de ato ilícito, mas transbordam-se para outros campos do Direito, além da possibilidade de se aplicar diversas espécies de sanção.

Como bem pontua Orlando Gomes (1995) apud Farias e Rosenvald (2012, p. 680), “não havendo determinação legal de sanções específicas, a escolha mais eficaz há de ficar ao prudente arbítrio do juiz”.

Bruno Miragem (2013) elenca algumas consequências jurídicas do reconhecimento judicial dos atos abusivos, a saber: o dever de indenizar, invalidade do ato praticado em abuso, ineficácia do ato abusivo e ineficácia em razão do abuso e tutela inibitória do abuso.

Silvio Rodrigues (2003, p. 54) cita o exemplo do pai que, no exercício do poder familiar, obriga o filho a comportamentos que o prejudiquem ou prejudique terceiro, é inegável que há conduta abusiva, passível de ensejar suspensão ou até mesmo destituição do poder familiar. 

Destaca-se que o abuso de direito é matéria de ordem pública. Poderá ser suscitado como uma forma de defesa de mérito pela parte interessada, pelo Ministério Público, bem como ser declarada ex officio pelo juiz, além de pode ser alegada em qualquer tempo ou grau de jurisdição (NERYJUNIOR e NERY, 2004, p. 256)

CONCLUSÃO

A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova era no direito pátrio. Percebeu-se claramente a preocupação do constituinte originário em estabelecer fundamentos éticos no texto constitucional, a exemplo da inserção com status de princípios fundamentais da República Federativa do Brasil valores como a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Em boa hora, o legislador do Código Civil de 2.002 positivou, de forma expressa, a teoria do abuso de direito em nosso ordenamento jurídico, em consonância com as legislações do Direito Comparado.

Todavia, parte da doutrina criticou a opção legislativa de inserir o abuso de direito como espécie de ato ilícito, já que este requer para a sua configuração o elemento culpa, ao passo que para a configuração do abuso de direito é dispensável tal elemento, conforme já sedimentado em sede jurisprudencial.

A verdade, é que a opção legislativa não retira a autonomia do abuso de direito como categoria autônoma que transcende os limites da obrigação reparar, pecuniariamente, o dano causado, para abarcar todos os campos do direito, cabendo ao juiz aplicar a melhor sanção cabível ao caso concreto.

 

Referências
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NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante: atualizado até 2 de Maio de 2003/ 2. ed.rev. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 256.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol.1. Introdução ao direito civil; teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 673.
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VILLAS-BÔAS, Renata Malta. A forma de efetivação do princípio da celeridade mediante a coibição do abuso processual. In <http://jusvi.com/artigos/41205>, acesso em 23 de maio de 2013.

Informações Sobre o Autor

Dinalva Souza de Oliveira

Bacharela em Direito pela UNIR – Fundação Universidade Federal de Rondônia. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela UNESC – Faculdades Integradas de Cacoal-RO


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