Biodireito é um ramo do direito público que se associa à bioética, estudando as relações jurídicas entre o direito e os avanços tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia; peculiaridades relacionadas ao corpo, à dignidade da pessoa humana.
Insta salientar que o biodireito possui relações com muitos ramos do direito, quais sejam: o direito civil, direito penal, direito ambiental, direito constitucional e direito administrativo.
Sob seu estatuto epistemológico particular, o Direito também se ocupa da vida. Todavia, o cabedal jurídico ocidental não mais responde às novas e emergentes situações nos campos da Biologia, Medicina, Genética e até mesmo dos nos ramos das biociências criados em função do avanço tecnocientífico das disciplinas.
Como acentua Alexandre de Moraes, “o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que constitui-se em pré-requisito a existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive a uterina.”( MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional, 2000, p. 61)[1].
Prossegue o autor ponderando que “[…] a Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência.”
O direito à vida e à integridade física ocupam posição basilar no sistema de proteção ao ser humano e sua dignidade, consagrados no texto constitucional. São o ponto de partida, principalmente no que diz respeito aos limites a estabelecer para o poder das ciências biomédicas.
Várias teorias, no entanto, contrariam declaração do Conselho da Europa (de 1986), pontificando que “desde a fecundação do óvulo, a vida humana se desenvolve de modo contínuo, de forma que não se pode fazer distinção no curso das primeiras fases (embrionárias) de seu desenvolvimento”.
O constitucionalista José Afonso da Silva discorre, com profundidade, sobre o alcance do direito à vida.
Leciona que “a vida humana de que trata a Constituição Federal, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais), sendo abrangente do direito à dignidade da pessoa humana, do direito à privacidade, do direito à integridade físico-corporal, do direito à integridade moral, e, especialmente, do direito à existência”.
O mestre José Afonso da Silva[2] ensina que “o respeito à vida humana é a um tempo uma das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do abordo, do erro ou da imprudência terapêutica, a não aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori da de outrem e, até o presente, o feto é considerado um ser humano” (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9a. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 182).
Tutela penal da vida
A proeminência que a vida recebe da Constituição da República reclama a proteção desse direito no plano do Direito Penal. Nesse campo, como não poderia deixar de ser, a vida humana aparece como o bem jurídico de mais elevado valor. Basta ver que a descrição do homicídio inaugura a parte especial do Código Penal e que os crimes cujas penas são as mais severas têm em comum o resultado morte de um ser humano causado pela conduta dolosa de outrem.
Júlio Fabbrini Mirabete adota a definição de homicídio proposta por Euclides Custódio da Silveira porque ela já o distingue do aborto. Para o penalista, o homicídio é a eliminação da vida humana extra-uterina praticada por outrem, enquanto que o aborto é a eliminação da vida humana endouterina.
Essa distinção se afigura desde logo importante para o nosso estudo porque, como se sabe, a punição do homicídio é sensivelmente mais intensa do que a do aborto, do que se conclui inequivocamente que, para o Direito Penal, a vida humana em desenvolvimento não vale tanto quanto a do indivíduo nascido. (MIRABETE, Júlio Fabbrini, Manual de Direito Penal, v. 2, Parte especial, 3ª ed, 1996, p. 42)[3].
Leciona Mirabete: “Tutela-se nos artigos em estudo a vida humana em formação, a chamada vida intra-uterina, uma vez que desde a concepção (fecundação do óvulo) existe um ser em germe, que cresce, se aperfeiçoa, assimila substâncias, tem metabolismo orgânico exclusivo e, ao menos nos últimos meses de gravidez, se movimenta e revela uma atividade cardíaca, executando funções típicas de vida. Protege-se também a vida e a integridade corporal da mulher gestante no caso do aborto provocado por terceiro sem o seu consentimento. Na Itália, o aborto é crime contra a continuidade da estirpe” (idem, pág. 74).
Estabelecida essa premissa, impende dizer que, para se definir o aborto é indiferente o grau de amadurecimento do embrião humano. No entanto, está implícita na conceituação desse delito a idéia de que a conduta penalmente relevante é aquela que interrompe a gravidez. É pacífico entre os doutrinadores, aliás, que o tipo penal tem por escopo garantir não somente o direito à vida do concepto como também a integridade física da gestante.
É verdade que o concepto pode perder esses direitos se não nasce com vida, mas esse fato futuro não dissolve sua personalidade, como “se a morte operasse de forma retroativa” , como salienta, com muita acuidade, Roberto Andorno:
“a análise histórica permite advertir que, contra a interpretação corrente que se tem feito das normas citadas, a ficção prevista pela lei não é a personalidade do concebido, senão o contrário, sua falta de personalidade quando nasce morto, e isto só para efeitos patrimoniais. É um abuso estender esta ficção de não personalidade a outros âmbitos não previstos em lei. Em outras palavras, o direito, nos países de tradição jurídica continental, tende a presumir a personalidade desde o momento da concepção.
O sistema jurídico não faz mais do que retomar um princípio clássico, que é ético e jurídico de uma só vez, segundo o qual, cada vez que existam dúvidas acerca da decisão a tomar, deve adotar-se aquela que seja mais favorável ao sujeito em questão, especialmente, quando se trata do mais frágil. É o que ocorre, por exemplo, no direito penal: quando não se prova a culpabilidade do acusado de um delito, presume-se a sua inocência (in dubio pro reo). No caso do embrião, o mesmo critério deve sustentar que, porque não se prova que estamos diante de uma simples coisa, deve-se presumir que é uma pessoa (in dubio pro vita, ou melhor, in dubio pro persona).” (ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidad de la persona. Madrid: Editorial Tecnos S.A., 1998)[4].
Nas 15 a 20 horas seguintes à fusão dos gâmetas o zigoto humano vai comportar-se como uma célula orientada pela informação genética de que está dotada no sentido de uma evolução bem definida e precisa. Nos genes dos seus cromossomas está inscrito um plano-programa que distingue cada zigoto de todos as outras células (incluindo as células dos seus progenitores).
Neles está incluída a informação constitutiva de um ser com uma identidade única, existente a partir da fusão dos dois gâmetas, que irá desenvolver-se se as condições ambientais forem adequadas – isto é, se se satisfizerem os pressupostos do metabolismo respiratório, das condições de nutrição e de temperatura de que o ser vivo em absoluto necessita para que se exerçam as suas funções vitais. Se assim acontecer o novo ser prosseguirá o seu destino e irá constituir-se num corpo com as características somáticas de uma determinada figura humana no qual todas as células terão um padrão cromossómico igual ao da célula original.
Eis aí o busílis da questão. A vida se inicia com a fecundação e daí em diante ela é tutelada pela lei reguladora. Não há que existir grandes dissertações sobre o tema, pois simplista ao homem a interpretação. Tutela-se a vida desde a concepção e tergiversações humanas só poderão traduzir em desumanização do humano e descaracterizar o que já possui em sua gênese as características do óbvio, do ser absoluto. Aquela centelha de luz ali depositada é um ser humano em formação. Seria, ao pensar contrariamente, ver na criança sem total formação biológica, um ser passível de experimentos e extermínios, porque ainda não se construiu um ser adulto. Tudo ao seu tempo.
A vida começa no exato momento da fecundação e que uma decisão em contrário contraria o dado biológico, que caracteriza o “humano” por seus atributos genéticos e por sua expressão orgânica e ainda traz o perigo do casuísmo e da própria negação da vida como direito universal.
Esse tema – de quando se dá início de uma nova vida humana – é de bastante relevância, e estratégico até, porque a partir do momento em que consolidamos o conceito (que nos parece fazer um uso adequado da razão) de que a vida humana começa no exato instante da fecundação, todos os atos que seguem a esse momento, e que possam interromper o processo dessa nova vida humana, é a destruição de um ser humano, portanto um assassinato. Se aceitarmos a falsa lógica de que a vida não começa com a fecundação, estaremos justificando o descarte e destruição dos embriões, mais tarde dos deficientes, dos excluídos da sociedade, enfim, a vida passará a não ter mais valor.
A reflexão sobre todos os dados até hoje demonstrados pelas ciências experimentais não pode deixar de conduzir à conclusão de que a fusão dos dois gâmetas inicia o ciclo vital de um novo ser humano.
O embrião humano, logo desde a fusão dos gâmetas, não é um ser humano potencial. É um ser humano real que iniciou a sua própria existência.
Difícil é assistir a relativização dos valores da pessoa humana e a divinização dos Poderes do Estado.
Assim, uma nova história contra a pessoa humana, encurtando sua vida, relativizando-a, começa a ser desenhada. Como dizia Heidegger, ao denunciar nossa civilização, “que nunca se acumulou tantos e tão diversos conhecimentos a respeito do homem como em nossa época e, paradoxalmente, em nenhuma fase histórica se soube tão pouco como agora o que é ele. Essa a razão da crise que abocanha o humano do ser humano e institui o aborto. O aborto é fruto da decadência, não da evolução e do engrandecimento da pessoa humana”.
O que era respeito à vida, tornou-se um direito à morte, pela ação dos agentes abortistas. É imperioso que nasça um grito de alerta para cortar o silêncio da morte. Morte é morte. Morte de vida humana.
A vida humana – um autêntico valor absoluto – acaba por ser objeto de uma vil relativização.
O primeiro fato biologicamente identificável na formação de um ser humano é a fusão de duas células altamente especializadas provenientes de cada um dos progenitores contendo metade dos cromossomas de um indivíduo adulto. Estas células são designadas por gâmetas: o óvulo e o espermatozóide.
Neste momento inicia-se uma nova cadeia de actividades sucessivas e encadeadas a partir dos materiais provenientes dos dois gâmetas que vão actuar como se fossem dois sistemas complementares, com actividades coordenadas e interdependentes. O que teve lugar foi a constituição de uma nova entidade que tem designação biológica de zigoto ou embrião unicelular. Nas 15 a 20 horas seguintes à fusão dos gâmetas o zigoto humano vai comportar-se como uma célula orientada pela informação genética de que está dotada no sentido de uma evolução bem definida e precisa. Nos genes dos seus cromos-somas está inscrito um plano-programa que distingue cada zigoto de todos as outras células (incluindo as células dos seus progenitores). Neles está incluída a informação constitutiva de um ser com uma identidade única, existente a partir da fusão dos dois gâmetas, que irá desenvolver-se se as condições ambientais forem adequadas – isto é, se se satisfizerem os pressupostos do metabolismo respiratório, das condições de nutrição e de temperatura de que o ser vivo em absoluto necessita para que se exerçam as suas funções vitais. Se assim acontecer o novo ser prosseguirá o seu destino e irá constituir-se num corpo com as características somáticas de uma determinada figura humana no qual todas as células terão um padrão cromossómico igual ao da célula original.
Na mesma diapasão, encontra-se também o entendimento eivado de manifesta autoridade da ilustre Maria Helena Diniz , em seu livro específico sobre o tema O Estado atual do biodireito, ao conceituar:
“(…), o biodireito, estudo jurídico que, tomando as fontes imediatas a bioética e a biogenética, teria a vida por objeto principal, salientando que a verdade científica não poderá sobrepor-se à ética e ao direito, (…)”. (DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002).[5]
Em suma, entendemos o BIODIREITO como um ramo que busca, sobretudo, o equilíbrio para inúmeras controvérsias que pairam na seara jurídica, e que possui o seguinte postulado: não podemos obstar o progresso da ciência, entretanto, o citado progresso não pode simplesmente atropelar cruelmente todos os direitos e garantias conquistadas pelo cidadão. Propor equilíbrio significa justamente propor limites e respeito aos novos direitos fundamentais.
Além do mais, as mais modernas técnicas de medicina já comprovam que a vida realmente se inicia no momento da concepção, sobretudo porque é nesse momento que o código genético do pequeno ser em formação se estabelece, não mais sofrendo qualquer tipo de alteração, como bem preleciona a civilista Maria Helena Diniz :
“A fetologia e as modernas técnicas de medicina comprovam que a vida inicia-se no ato da concepção, ou seja, da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, dentro ou fora do útero. A partir daí tudo é formação morfológico-temporal”. (ob.cit.).
“A evidência biológica de início da vida humana no ato da fecundação é hoje pacífica entre a comunidade científica. Citem-se, a este propósito, alguns textos de referência internacional:
1.“The development of a human begins with fertilization, a process by which the spermatozoon from the male and the oocyte from the female unite to give raise to a new organism, the zigote.” (Sadler, T.W. Langman’s Medical Embriology. 7ª Edição. Baltimore: Williams and Wilkins 1995)
2.“Zigote. This cell, formed by the union of an ovum and a sperm (Gr. zyg tos, yoked together), represents the beginning of a human being. The common expression “fertilized ovum” refers to the zigote” (Moore, Keith L. and Persaud, T.V.N. Before We Are Born: Essentials of Embriology and Birth Defects. 4ª Edição. Filadélfia: W.B. Saunders Company, 1993).
3.“Although life is a continuous process, fertilization is a critical landmark because, under ordinary circumstances, a new, genetically distinct human organism is thereby formed.(…) The combination of 23 chromossomes present in each pronucleus results in 46 chromossomes in the zigote. Thus the diploid number is restored and the embryonic genome is formed. The embryo now exists as a genetic unity.” (O’Rahilly, Ronan and Muller, Fabiola. Human Embriology and Teratology. 2ª Edição. Nova Iorque: Wiley-Liss, 1996) ”Esta citação provém de um Relatório de um Comissâo da Assembleia da República, que se pronunciou acerca dos projectos apresentados sobre a distribuição gratuita e sem receita médica da chamada “contracepção de emergência”).
b) “cuando la información transportada por el espermatozoide y la del óvulo se encuentran, entonces queda definido un nuevo ser humano porque su constitución personal y su constitución humana se encuentran completamente formuladas. (…) el proceso … de la fecundación produce una constitución personal que es completamente típica de este nuevo ser humano, que nunca se ha dado antes y que no se dará de nuevo nunca más; es una novedad absoluta. Esto se conocía con seguridad … hace más de cincuenta años. (…) la ciencia tiene una concepción del hombre muy sencilla: en cuanto ha sido concebido, un hombre es un hombre”(LEJEUNE, Qué és el embrión humano?, Ediciones Rialp, 1993, pp. 36 e 55.)
c) “Durante esta evolución adaptativa, ningún momento ni nungún órgano puede ser distinguido o priviliegiado: todo es humano desde el principio. El cigoto es humano porque la información genética contenida en su ADN y expresada bastante antes de la primera división celular es la única información necesaria y suficiente para modular un cuerpo humano sin tener que recurrir a ninguna otra (…) el cigoto humano es una estrategia de los seres de la especie humana para conservar la forma particular de vida que está representada por los seres humanos; es entonces, con toda evidencia, un cuerpo humano en su forma más simple. Negar esta evidencia es negar el conjunto de este enorme proceso de evolución adaptativa de las especies, lo que sería un craso error científico” Daniel Serrão, in El inicio de la vida y el embrión humano: un vínculo arqueobiológico, in El inicio de la vida. Identidad y estatuto del embrión humano, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1999, pp. 145 e 147.
d) “existe um novo ser humano desde a concepção (fertilização)”RUI NUNES, O Diagnóstico pré-implantatório, in Bioética (coord. de Luís Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald), Editorial Verbo, Lisboa-São Paulo, 1996, p. 183).
Diz o Código Civil de 2002 em seu art. 2º que “[…] a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Ainda que as correntes doutrinárias que tratam do início da personalidade natural (natalista; da personalidade condicional ou concepcionista) divirjam acerca da natureza jurídica do nascituro, não há polêmicas sobre a acepção desta palavra.
Os operadores do Direito têm a obrigação de salvaguardar bens cujos valores são de fundamental valia dentro e fora da ordem jurídica. Cumprindo esta função, tem-se que a vida deve ser protegida em sua totalidade não importando sua forma manifesta. Isso em conta, o Direito deve cuidar de tutelar, prioritariamente, a vida humana mesmo que em sua forma rudimentar e frágil, mas, digna da mesma proteção dispensada ao ser humano nascido: o embrião. O ser humano nas primeiras fases de desenvolvimento, i. e., do fim da segunda até o final da oitava semana, quando termina a morfogênese geral.
A Constituição Federal da República Brasileira e a Constituição Portuguesa consagram a inviolabilidade do direito à vida, como corolário do respectivo Direito Natural. A principal garantia aí empregada está na proteção contra a violência dos mais fortes, já que a igualdade de todos os seres humanos coloca-se à luz de suas desigualdades. Lembra-nos Ives Gandra Martins[6] que “O direito à vida, talvez, mais do que qualquer outro, impõe o reconhecimento do Estado para que seja protegido e, principalmente, o direito à vida do insuficiente. Como os pais protegem a vida de seus filhos após o nascimento, os quais não teriam condições de viver sem tal proteção a sua fraqueza, e assim agem por imperativo natural, o Estado deve proteger a vida do mais fraco a partir da teoria do suprimento. Por esta razão, o aborto e a eutanásia são violações ao direito natural à vida, principalmente porque exercidos contra insuficientes. No primeiro caso, sem que o insuficiente possa se defender…” E arremata o professor paulista que o direito à vida é o principal direito do ser humano, cabendo ao Estado preservá-lo desde a concepção e preservá-lo tanto mais quanto mais insuficiente for o tutelado.
Biologicamente, não há dúvidas de que a vida começa no exato momento em que o espermatozóide masculino penetra no óvulo feminino, formando o que denominamos de zigoto ou célula-ovo. O início da vida marca a individualização do ser concebido de seus pais, tendo em vista que a partir desse instante ele adquire ainda que biologicamente dependente carga genética própria e individual que não se confunde nem com a do pai nem com a da mãe, sendo o corpo da mãe apenas o meio hábil para desenvolver-se normalmente até o nascimento.
Como portador de interesses e direitos, assegurados em leis, o embrião assume uma materialidade efetiva, motivo que qualquer ataque ou afronta à sua hegemonia, traduz-se como típica em nossa lei penal.
O embrião pode ser constituído in vivo no processo biológico de fecundação ou por inseminação artificial, ou ainda por transferência intratubar de gametas; pode, igualmente, ser constituído in vitro, após colheita e mistura de óvulos e de espermatozóides, e depois ser transferido para um útero, evoluindo para o feto caso consiga terminar, com sucesso, a fase de implantação.
É geralmente reconhecido e aceito que o desenvolvimento do embrião, após a sua constituição in vivo, é um processo contínuo, dependente da informação para a diferenciação contínua, presente no genoma, e da interação com os fatores epigenéticos ou teoria segundo a qual a constituição dos seres se inicia a partir de célula sem estrutura e se faz mediante sucessiva formação e adição de novas partes que, previamente, não existem no ovo fecundado; epigênese.
De Plácido e SILVA (Vocabulário Jurídico, 1984, p. 228)[7] esclarece o termo nascituro como: “Derivado do latim nasciturus, particípio passado de nasci, quer precisamente indicar aquele que há de nascer. […] Nascituro tem morituro como antítese.”
Destarte tem-se um nascituro desde o momento da junção dos gametas feminino e masculino até a extração completa deste “produto da concepção” no momento do parto, onde se evidenciará um neonato ou recém-nascido, ou então um natimorto. Independente da evidência do nascimento, enquanto no útero estiver, o conceptus é um nascituro.
Assim, existe, para qualquer corrente doutrinária e para uma ou outra codificação, uma série de denominações – ovo ou zigoto, embrião e feto– que designam o desenvolvimento do mesmo ser, a que se convencionou chamar nascituro. Ele é visualizado como tal pelo ordenamento jurídico desde quando foi gerado até o momento do nascimento; desde o surgimento da vida (com a concepção) já se tem o nascituro. É o que está implícito em muitas assertivas doutrinárias: “Independentemente de se reconhecer o atributo da personalidade jurídica, o fato é que seria um absurdo resguardar direitos desde o surgimento da vida intra-uterina se não se autorizasse a proteção do nascituro – direito à vida – para que justamente pudesse usufruir tais direitos”. (GAGLIANO-PAMPLONA, 2002, p. 93).
Dessa forma, a proteção do nascituro em nosso ordenamento jurídico inicia-se desde a concepção ou fecundação do embrião, sem condicioná-lo ao nascimento com vida e não somente após o nascimento com vida, tendo em vista que, o mesmo já é uma vida, possuindo uma estrutura genética própria, como assegura a Constituição Federal de 1988, no “caput” do artigo 5º: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida …”, deduzindo-se, por consulta ao espirito da Lei Maior, que a proteção se dá desde o momento da fecundação, quando se inicia a vida.
O Comitê Nacional de Bioética da Itália publicou recentemente um documento intitulado “Identià e Statuto dell’Embrione Umano” (Identidade e Estatuto do Embrião Humano). Apresentou-o à imprensa o Dr. Francesco D’Agostinho, Presidente do mencionado Comitê. A tese conclusiva desse texto, resultante de estudos recolhidos por mais de um ano e meio, soa: “O Embrião é um de nós”, é uma pessoa, é gente. Mais explicitamente aí se lê: “O Comitê chegou unanimemente a reconhecer o dever moral de tratar o embrião humano, desde a fecundação, segundo os critérios de respeito e tutela que se devem adotar em relação aos indivíduos humanos aos quais se atribui comumente a característica de pessoa”.
Todavia, ainda que o embrião dependa dos nutrientes colhidos no organismo materno e que só neste possa se desenvolver até o nascimento, parece ser inconcebível propagar que ele seja mera parte do corpo da mãe. Todas as células somáticas fazem parte do organismo humano e o compõem, bem como os próprios gametas feminino ou masculino; a essas células, é inequívoca a referência “parte do corpo”, porquanto, a grosso modo, elas são o corpo.
Em contrapartida, o embrião não é uma unidade celular existente em qualquer organismo feminino. Uma mulher não pode ter “embriões” em si pelo mesmo motivo que tem tecidos, órgãos, hormônios e vísceras. É condição sine qua non que o óvulo tenha sido fecundado por um espermatozóide para que dê origem ao embrião, por isso dizer que o embrião é parte das vísceras da mãe é se mostrar desconhecedor deste processo biológico tão simples e inteligível em sua visualização, mas tão complexo e inexplicável no seu potencial.
UMA COMPARAÇÃO AO ABORTO: A PROEMINÊNCIA DA TIPIFICAÇÃO
É indispensável voltar à discussão acerca da humanidade e da vida que há no nascituro, quando o assunto é aborto. Isso porque a doutrina penalista admite que este tipo específico do Código Penal só está consumado com a morte do conceptus. E só pode morrer aquele que um dia esteve vivo.
Este ser que a legislação penal deseja manter vivo com essa tutela é exatamente o nascituro: o fruto da união de duas células germinativas que constituíram o ovo, o qual se desenvolverá até o parto – sendo feto – e, após este, continuará se desenvolvendo até que aquele indivíduo chegue à morte. Em qualquer fase da gestação em que seja provocada dolosamente a morte do nascituro, ter-se-á o crime de aborto.
Como dissemos, não há grande polêmica no âmbito penal sobre a existência de vida no ser que se desenvolve no ventre materno. Saliente-se que não é unânime esta opinião, porquanto murmúrios há de que alguns doutrinadores entendem que ali há apenas uma expectativa de vida tutelável, e não vida. Contudo, a divergência realmente vem à tona quando se questiona se este ser humano em formação é ou não pessoa. Nesse tópico, até dentre aqueles que visualizam vida desde o ovo ou zigoto, há quem assevere não se tratar de uma pessoa no ventre materno, apenas de um ser vivo. É o caso de Cezar Roberto BITENCOURT (Cezar Roberto. Manual de direito penal : parte especial, v. 2. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 157):[8]
O bem jurídico tutelado é a vida do ser humano em formação, embora, rigorosamente, não se trate de crime contra a pessoa. O produto da concepção – feto ou embrião – não é pessoa, embora tampouco seja mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno, como alguns doutrinadores sustentam, pois tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica.
Indaga-se: quais são os outros tipos de seres vivos que poderiam se desenvolver dentro do aparelho reprodutor feminino com potencialidade de se tornar uma pessoa só a partir do nascimento com vida? Seria um vegetal? Seria um verme?
Com a evolução da tecnologia, instaurar-se-ia o ridículo se fosse promovida a perpetuação do entendimento romano de que, dentro do útero, poderiam existir monstrum, ou prodigium, ou portentum, termos que designavam as crianças nascidas de forma animalesca ou deformadas gravemente por se entender ter havido coitus cum bestia. O ser vivo que há dentro do útero materno é, indubitavelmente, um ser humano, na maior amplitude que puder ser dada ao termo.
Talvez, para alguns, estaríamos tomando o sentido vulgar do vocábulo pessoa, como sendo aquele que, nascido da espécie humana, não se confunde com os outros animais e nem com qualquer outro ser vivo. Neste caso, cremos que também não haveria atropelo do sentido jurídico, porque o nascer com vida reveste o ser em análise de personalidade, já sendo ele, para qualquer facção doutrinária, uma pessoa – apesar de pessoa, nesta limitação de entendimento, não englobar as pessoas jurídicas. Mas se este ser em formação, ainda antes do nascimento, for um titular de direitos (sujeito de direitos)? Ainda que de um direito só. Não seria ele uma pessoa natural, no sentido jurídico do termo?
Voltemos ao estudo do crime de aborto, especificamente à figura do auto-aborto (quando a gestante provoca aborto em si mesma). Ela seria o sujeito ativo do crime, que constituiria crime de mão própria, porque só a própria gestante pode praticá-lo.
Quanto ao sujeito passivo, antes de identificá-lo, vale frisar que ele é o titular do direito lesado, ou, nas palavras de ANTOLISEI (apud JESUS, 2002, p. 171): “é o titular do interesse cuja ofensa constitui a essência do crime”. No crime de auto-aborto, não poderia a gestante ser, ao mesmo tempo, sujeito ativo e passivo do crime, porquanto não há crime de autolesão. O sujeito passivo do crime de auto-aborto é o nascituro. Assim ensina BITENCOURT (2001, p. 157): “O sujeito passivo, no auto-aborto e no aborto consentido (art. 124), é o feto, ou, genericamente falando, o produto da concepção, que engloba óvulo, embrião e feto (há divergência doutrinária).” Damásio de JESUS (2002, p. 171) ratifica: “No auto-aborto também é tutelado o direito à vida, mas o titular desse interesse jurídico é o feto, que, assim, é o sujeito passivo.”
Evidencia-se, então, que o ser concebido, o nascituro, tem ao menos um direito: o direito à vida, de forma que a afronta a este direito constitui crime (não o de homicídio, porque se encontra ainda no ventre materno; mas o de aborto). Discorre José Afonso da SILVA (2002, p. 197) acerca do direito à vida e à existência:
“É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. É também por essa razão que se considera legítima a defesa contra qualquer agressão à vida, bem como se reputa legítimo até mesmo tirar a vida a outrem em estado de necessidade da salvação da sua própria”.
Toda esta conjuntura abarca perfeitamente a discussão em torno daquele ser que resultou de uma concepção intra-uterina. De fato, o Código Penal em vigor, por ser de 1940, não poderia estar pensando em outro tipo de embrião que não fosse aquele resultado do ato sexual que deu vazão à união dos gametas. A prática desmedida da fertilização in vitro não é sua contemporânea e, por isso, a tutela da vida existente também nos embriões laboratoriais não poderia ter sido considerada pelo legislador como algo penalmente relevante porque não era um fato social da época. Não é por essa razão que se deverá escancarar a porta para a dizimação de tais embriões que é protagonizada pela Ciência.
Os arts. 124 a 126 do Código Penal brasileiro dizem: “Provocar aborto”. A especificação de que deve ter havido a nidação do ovo ou zigoto em útero materno não é uma especificação legal, mas doutrinária. Isso ocorre porque a doutrina se vale do fato de que o Código também usa a expressão “gestante”, e só haverá gestante se existir gravidez.
Após a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, já se terá um ovo ou zigoto em transição na trompa, que percorrerá toda ela até o momento da nidação no útero, mas não é este o único local em que pode ocorrer tal implantação. As implantações que ocorrem fora do útero são a causa da chamada gravidez ectópica (Anomalia de posição de órgão, congênita por via de regra). Vê-se que o requisito nidação não é inobservado somente na situação dos embriões criopreservados. Há gravidez sem implantação no útero e, mesmo assim, feto com vida.
É a vida do ser humano em formação o bem jurídico tutelado no crime de aborto, e não o local onde ele se formou. Por este ângulo, muitos buscam defender que o descarte de embriões ou a sua destruição decorrente de sua utilização em pesquisas seria uma espécie de aborto, pois, de fato, ubi eadem est legis ratio, ibi eadem legis dispositio (quando se verifica a mesma razão da lei, deve haver a mesma disposição legal).
Sem a violação ao princípio da tipicidade, levando-se em conta o fato de a lei penal não definir o que seja aborto, não se poderia negar proteção jurídica a um embrião fecundado in vitro, pelo simples fato de se formar fora do útero materno. O aspecto circunstancial não pode prevalecer sobre a razão da norma. A lei tutela a vida desde a sua formação, e o fato de o desenvolvimento embrionário ocorrer em laboratório não é justificativa para negar aplicação da lei penal. Afinal, onde há a mesma razão, deve haver o mesmo direito. (GAGLIANO-PAMPLONA, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de direito civil: Parte Geral, vol.1. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 160).[9]
Apesar da não definição da lei penal, aborto é o mesmo que privação do nascimento, Etimologicamente, no latim, “privação” é ab e “nascimento”, ortus, e foi dessa composição que surgiu a palavra “aborto”.
A própria principiologia penal, implicitamente, declara que o nascituro tem vida, justificando-se no porquê de o Código Penal Brasileiro tipificar o crime de abortamento. Ponderando-se que o Direito Penal tem como características peculiares o fato de ser residual, fragmentário e que cuida somente das mais graves lesões sofridas pelos bens jurídicos mais importantes, acrescentando-se que o crime de aborto está incluso no Título dos Crimes contra a Pessoa, é notório que o nascituro não é um indiferente penal.
É porque a vida é o bem jurídico mais importante, que pensar em vida no nascituro remete à preocupante falta de tipificação da destruição dos embriões criopreservados. Levando-se em consideração que a formação embrionária não pode ser interrompida, o que fazer com eles? Não seria sensato interromper a sua (chance de) formação só porque a nidação não se processou ainda.
O congelamento não retira ou suspende a vida do embrião, ao contrário, como foi dito anteriormente, é pela técnica de criopreservação que pode ser realizada a biopsia para verificar se o embrião está ou não vivo. Com efeito, essa vida tem de ser tutelada, porque não se trata de bem jurídico menos importante do que a vida do embrião implantado em útero materno. Todavia, enquanto o Direito não fizer existir um tipo penal, não haverá delito. “Não se pode negar que o delito é uma criação do Direito, que o define, traça os seus contornos e estabelece as conseqüências de sua realização.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte especial, v. 2. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 236).[10]
No crime de aborto, o desvalor do resultado jamais seria o fato de estar grávida, posto que o ato de engravidar não lesiona bem jurídico algum. Estar grávida é apenas o meio pelo qual se teria um nascituro para que se pudesse, diante da ofensa à sua vida, falar em provocação de aborto – na limitada análise do ultrapassado Código Penal de 1940, que não tinha como prevê o avanço das técnicas de reprodução medicamente assistida como outro meio de obtenção de um embrião vivo.
Em sendo o desvalor do resultado exatamente a lesão ou ameaça de lesão de um bem jurídico tutelado, seria ele a própria “privação do nascimento” através da retirada da vida do nascituro. A lesão ao bem jurídico tutelado é a morte do nascituro – mesmo que não seja imediata e que não haja a sua expulsão – porque, a contrario sensu, o que se tutela é a sua vida.
É incontestável que a retirada da vida humana (até mesmo pelo aborto) é crime contra a pessoa. A interrupção da vida de um embrião congelado, como qualquer outra forma de interrupção voluntária da vida, também seria um fato antijurídico. Há de se salientar contudo que: “Não basta que o fato seja antijurídico. Exige-se que se amolde a uma norma penal incriminadora. Daí a questão da adequação típica, que consiste em a conduta subsumir-se no tipo penal.” (JESUS, ob. cit., 2002, p. 269).
O problema, então, é reconhecer que o embrião já é um ser humano.Quem define quando é que a vida começa? Pela própria ciência se pode chegar a uma conclusão clara: quando o espermatozóide se une ao óvulo, nasce o embrião em sua primeira fase. O embrião, nesse momento, já está completo. Contém em si todas as informações necessárias ao novo ser humano. O que falta é apenas o tempo e a alimentação da vida para que chegue a seu pleno desenvolvimento.
Cada ser é único e absoluto e como tal tem que ser respeitado.
Cezar BITENCOURT (2003, p. 11-12) enumera, de modo elucidativo, as funções do tipo penal que são: a função indiciária, pela qual o “tipo circunscreve e delimita a conduta penalmente ilícita” e também a função de garantia, refletindo que o “tipo de injusto é a expressão mais elementar, ainda que parcial, da segurança decorrente do princípio da reserva legal. Todo cidadão, antes de realizar o fato, deve ter a possibilidade de saber se sua ação é ou não punível.” Mais adiante, quando ainda discorre sobre esta última função, o autor esclarece: “Em verdade, o tipo cumpre, além da função fundamentadora do injusto, também uma função limitadora do âmbito do penalmente relevante. Assim, o que não corresponder a um determinado tipo será penalmente irrelevante.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, v. 1. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2000)[11].
Dessa função limitadora do tipo abstrai-se que foi penalmente relevante proteger a vida do embrião fruto da concepção intra-uterina. Contudo àquele que resultou de uma ectogênese, ainda que tenha o mesmo status do primeiro embrião e, igualmente, tenha vida, é irrelevante proteger – o que se deduz pela inexistência do tipo penal.
Não cabendo, em Direito Penal, analogia para obter a condenação, jamais poderiam ser comparadas a criopreservação e a gestação como meio pelo qual se mantém vivo o conceptus. Ousamos insistir que o que se tutela no aborto é a vida. Se no ventre da mãe o embrião se desenvolve e se no congelamento o seu desenvolvimento é suspenso, isso não retira inegável existência de vida em um ou em outro caso.
Heloisa Helena BARBOZA (apud MEIRELLES, 2000, p. 65) manifesta-se a respeito da discussão entre a vida do conceptus in vitro e a questão do aborto dizendo que: “[…] ainda que não se reconheça na hipótese da ocisão voluntária do conceptus in vitro o crime de aborto, não se pode negar existir destruição de vida humana, o que colide frontalmente com a proteção do direito à vida, que não admite gradações: a vida existe ou não; é um fenômeno único.”
Como dissemos, no crime de auto-aborto ou no do aborto consentido, o sujeito passivo é o nascituro, que é o “produto da concepção” em qualquer fase da gestação. O tipo que engloba essas duas figuras é o art. 124 do Código Penal que diz: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”, pelo qual é evidente que, para realizar as manobras abortivas em si mesma ou para permitir que outra pessoa as realize, deve-se estar grávida, ser gestante. Dessas observações, pode-se inferir que o crime possui elementares e circunstâncias.
No art. 121, “matar” e “alguém” são elementares do crime de homicídio; no art. 124, que trata de aborto praticado ou consentido pela gestante, o estado de gestante (gravidez) é elementar do tipo. Damásio E. de JESUS (2002, p. 552) esclarece a questão das elementares e circunstâncias de forma bastante elucidativa, dizendo que: “Se tirarmos a cabeça de um homem, a vítima não subsiste como pessoa humana. Assim, a cabeça é elemento do homem. Se tirarmos, porém, a sua vestimenta, ela subsiste como homem. Logo, a sua vestimenta constitui uma circunstância da pessoa humana”.
Por isso, quando se supõe que os embriões laboratoriais não são pessoa (“alguém”) e não têm vida (somente “expectativa”), não há que se falar em crime de homicídio. Da mesma forma, quando se tipifica que só há aborto quando há gravidez, está a se dizer que tais embriões podem ser descartados impunemente. Assim, como as elementares do crime são essentialia delicti, diz Damásio que, quando ” a ausência da elementar exclui o crime de que se trata e qualquer outra infração penal (atipicidade absoluta) […] o sujeito não responde por crime algum.” (JESUS, Damásio E. de. Direito penal:1º volume – parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 552).[12]
Vale frisar que os embriões in vitro não sofrem ameaças apenas enquanto estiverem nesta condição. Após a sua implantação em útero materno, ainda pode ocorrer a chamada “redução seletiva” na gestação múltipla, que é a eliminação de um ou mais embriões para permitir que os demais se desenvolvam.
Nesta hipótese, o médico reduzirá, discricionariamente, qualquer um deles que considere anormais ou defeituosos. Destarte, nota-se que esta interrupção voluntária da vida embrionária em formação no útero materno (portanto, há gestante) não é denominada de aborto, e sim de “redução seletiva”, porquanto não a consideram como crime. Entendemos que, quando não se tratar de aborto necessário (que não é punido, “se não houver outro meio de salvar a vida da gestante” – art. 128, I, CP), a situação em epígrafe configurar-se-á mais do que como o crime de aborto puro e simples, mas como um aborto eugênico, e não há causa excludente de ilicitude. Apesar disso, justificam que esta técnica difere do aborto porque:
[…] na redução seletiva o embrião destruído pode ser absorvido pelo corpo da gestante e não expelido e, além disso, a gestação não é interrompida. Na Inglaterra, a redução embrionária é considerada legal em duas situações: quando o embrião apresenta qualquer anormalidade que se considere grave; ou, ainda que não haja anormalidade alguma, mas a gestação plúrima em si represente sérios riscos para a gestante; neste último caso, o médico pode escolher qualquer um dos embrião a ‘reduzir’. (MEIRELLES, 2000, p. 68)
Como demonstra a realidade científica, a atipicidade absoluta tem sido gozada aos extremos. Stela BARBAS (apud MEIRELLES, 2000, p. 65), dentre outros empenhados no biodireito, já faz referência ao termo “embrionicídio” para remeter ao fato da destruição dos embriões excedentários. Porém esta denominação específica tem sido substituída por outras expressões sinônimas de um cunho valorativo que retrata com fidelidade o caos instaurado com essa prática como, por exemplo, “cobaísmo humano”, que é usada em relação à utilização dos embriões humanos em pesquisas. No entanto, lamentavelmente, tudo não passa de discussões. Leis e sanções? Estas não existem.
Conforme assinala Eduardo de Oliveira LEITE (apud MEIRELLES, 2000, p. 65), é relevante a tipificação da destruição dos embriões excedentários “caso contrário, o atentado contra a vida do conceptus in vitro permanecerá a descoberto da lei penal, por força do princípio romano nullum crimen nulla poena sine praevia lege, adotado pelo sistema brasileiro.” (MEIRELLES, Jussara. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio de janeiro: Renovar, 2000, p. 65).[13]
No Código Civil brasileiro, o livro I da parte geral dispõe sobre as pessoas como sujeito de direitos. Logo no art. 1º, diz que: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. O exercício desses direitos, assegurados objetivamente, é o que chamamos de direito subjetivo, que é a facultas agendi. “De fato, inadmissível é a existência de faculdade ou poder sem sujeito. Arredada deve ser a concepção que aceita a possibilidade de direitos sem os respectivos titulares.” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v.1: parte geral. 39 ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 61).[14]
O art. 2º do Código Civil quando fala que “[…] mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, está a dizer, para a maioria dos doutrinadores (especialmente os que defendem a teoria natalista), que ali são resguardados “direitos sem titulares” ou “mera expectativa de direito”.
Não tem fundamento este entendimento, posto que o nascituro, como defendemos no Capítulo 2 deste trabalho, é titular de direitos, possui capacidade de direito, é, portanto, pessoa, que é o mesmo que “[…] gente, ser humano com vida, aqueles entes dotados de estrutura biopsicológica, pertencentes à natureza humana, daí a denominação abraçada pelo Texto Positivado: pessoa natural, isto é, aquele que pode assumir obrigações e titularizar direitos” (FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: parte geral. São Paulo: Juspodivm, 2003, pp. 148/149)[15].
Contudo, como dissemos, não é este o entendimento dos natalistas:
Nos regimes jurídicos natalistas, que asseguram os direitos do nascituro, como é o caso do Brasil, tem-se a possibilidade do reconhecimento de direitos sem titulares (porque o nascituro ainda não é pessoa; logo, não pode ser sujeito, titular) e em favor de beneficiários sem capacidade (se não têm personalidade, tampouco têm capacidade de direito). (BARRETO, Wanderlei de Paula. Inovações sobre a personalidade jurídica e os direitos da personalidade no novo Código civil brasileiro, 2004).[16]
Não há como se negligenciar a gritante necessidade de se conferir ao embrião uma tutela específica, o amparo suficiente para pô-lo à margem das especulações e pretensões de cunho meramente patrimoniais. A concepção é, biologicamente, o termo inicial da pessoa humana; não há porque o Direito obstaculizar isso, de forma a legitimar a reificação do ser humano desde a sua gênese.
A personalidade jurídica é o ponto de partida do direito privado, pois o homo privatus, desde a influência da Reforma Protestante, do Iluminismo e da Revolução Francesa, como cerne de todo o ordenamento jurídico, tem sido cada vez mais o centro de tudo. A patrimonialidade do Direito Civil tem sido substituída pela sua personalização, principalmente depois que a Constituição Federal trouxe como indispensáveis alicerces a proteção da vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. A pessoa passa a ser vista sobre a ótica do valor, sendo, portanto, mais do que “um fim em si mesmo”, mas, também “um valor em si mesmo”.
Todo direito e princípio que não estiverem edificados sobre aqueles dois alicerces (ou que os afrontar) devem ser descartados. Com a subjetividade jurídica trazida com a laicização do Direito, o racionalismo e o liberalismo, “ser sujeito de direitos” é “ter direitos da personalidade”; isso é muito mais do que é visto pelo ângulo de apreciação que o mostra apenas como detentor de bens e riquezas.
Os direitos subjetivos decorrem da existência de sujeitos de direito e estes decorrem da existência de uma relação jurídica. O nascituro, como sujeito de direitos, enquanto estiver alheio a esta evidência, estará recebendo sempre a parcial proteção com a qual tem sido “compensado” e que tem sido causa originária da dúvida sobre se ele é mesmo um titular de direitos ou se está dependurado no pêndulo que oscila entre os sujeitos e os objetos dessas relações jurídicas.
A composição jurídica das categorias convive mal com indefinições. E são imprecisões tudo o que escapa àquela definição de antemão estabelecida. A hipótese do nascituro põe às claras os limites desse sistema conceitual e abstrato. Ávido por personificar os sujeitos, o que está por nascer oferece uma clivagem entre o direito e o titular. (FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 39)[17].
No entanto, apesar do tratamento lacunoso, não tem sido questionado se a pessoa é mesmo o cerne do ordenamento civilístico. Talvez, por essa falta de inquirição, é que essa “pessoa” tem sido manipulada até mesmo pela Ciência Jurídica. Isso porque a colocação da pessoa como centro da relação jurídica e do direito em geral, é uma tática operacional, através da qual pretende-se, de maneira estanque, regulamentar as situações que a vinculam aos bens e à circulação de riqueza. Apenas houve uma adaptação do móbil clássico ou tradicional.
A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5º, caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). […]. Por isso é que ela constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência. (SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 197)[18].
Não há direito que se sobreponha a esses dois direitos, que são a vida e a dignidade humana (quanto mais o direito à descendência e à concepção). A concepção in vitro, como uma cortina de fumaça, tem escondido a gritante relativização de direitos que são essenciais. A magna Carta, no entanto, em seu art. 5º, parágrafo 2°, deixa claro que os direitos e garantias ali elencados não excluem nenhum outro que deles decorra, mesmo que não estejam expressos. A dignidade humana como fundamento da República e essa principiologia “configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento” (TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: ______ (coord.). A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. XXV)[19]
Assim, o nascituro, como ente personificado que é, sendo um ser humano, pode sim ser vitimado por danos causados pelos pais ou por terceiros. Ignorar a ocorrência destes danos e a necessidade de sua reparação é uma afronta à própria Constituição Federal de 1988, que introduziu no ordenamento pátrio o modelo igualitário de tratamento das pessoas, a valorização do ser humano física e moralmente – retratando-o como titular exclusivo da dignidade da pessoa humana – e que delineou novos contornos à instituição familiar. É pela própria Lex Fudamentalis que se torna injustificável a não-reparabilidade dos danos causados, porquanto o princípio da reparabilidade está positivado no art. 5°, V e X da Lei Maior.
O ser humano – como evocou a instrução «Donum vitae» e como reconfirmou a Encíclica «Evangelium vitae» – «deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser inocente à vida» (Carta Encíclica, Evangelium vitae, n. 60: AM 87 (1995), 469; cf. Instrução Donum vitae, 1: AAS 80 [1988], 79).
Esta afirmação encontra plena correspondência nos direitos essenciais, próprios do indivíduo, reconhecidos e salvaguardados na Declaração universal dos Direitos do Homem (art. 3).
O embrião humano tem direitos fundamentais, ou seja, é titular de elementos constitutivos indispensáveis para que a actividade conatural a um ser possa desenvolver-se em conformidade com um princípio vital que lhe é próprio.
Portanto, a existência do direito à vida, como elemento constitutivo intrinsecamente presente no estatuto biológico do indivíduo humano desde a fecundação, constitui o ponto de referência da natureza, também para a definição do estatuto ético e jurídico do nascituro.
A norma jurídica, em particular, é chamada a definir o estatuto jurídico do embrião como sujeito de direitos, reconhecendo um dado de fato biologicamente incontestável e, por si só, evocador de valores que não podem ser negados nem pela ordem moral, nem pela ordem jurídica.
Informações Sobre o Autor
Eliane Alfradique
Juíza de Direito Aposentada
Mestre em Direito Público pela UFF/RJ
Doutora em Direito Penal e Processual Penal pela UGF/RJ
Consultora Jurídica da Nante Internacional.