Sumário: I. Introdução; II. Normativismo como base para uma teoria do tipo; III. Tipo penal de injusto; IV. O problema do tipo objetivo no sistema de welzel; V. A imputação ao tipo objetivo segundo o sistema teleológico-racional de Claus Roxin; VI. Algumas objeções dos “jovens” finalistas ao tipo e ao funcionalismo de Roxin; VII. Breves considerações.referências bibliograficas.
I – INTRODUÇÃO
Desenvolvido no final do século XIX, principalmente por Liszt e Beling, o sistema jurídico penal causalista apresentava, desde um ponto de vista sistemático, soluções insatisfatórias aos casos a ele submetidos, pois podia o tipo penal nele desdobrar-se infinitamente, de forma a abarcar todas as causas que contribuíssem para o resultado como uma conditio sine qua non. E, por isso mesmo, as necessárias restrições à responsabilização jurídico-penal daí resultantes teriam de se realizar em outros níveis do sistema, como antijuridicidade ou, principalmente, na esfera da culpabilidade, onde, em tal sistemática, localizavam-se todos os elementos subjetivos do injusto. Por isso, por volta de 1930, objetou contra este problema do sistema causalista a teoria finalista da ação, exprimida principalmente em Hans Welzel. E como etapa posterior na evolução da função sistemática do tipo penal, o finalismo passa a enxergar a essência da ação humana não na mera causalidade, mas num direcionamento determinado pela vontade, que, para a os adeptos desta teoria, é o que definitivamente guia o curso causal dos acontecimentos na direção do fim pré-estabelecido. A conduta então é um ato finalístico, orientado a um tipo objetivo, e, por isso mesmo, no finalismo se deve compreender o dolo já no âmbito do tipo, como sua face subjetiva, e não apenas na culpabilidade, como na doutrina causal. Pensava-se que esta realocação do dolo dentro das categorias do injusto poderia evitar o regressus ad infinitum da teoria causal; e isto, consideravelmente influenciou tanto a imposição do sistema finalista como a aceitação quase que unânime do posicionamento do dolo no tipo na ciência jurídico-penal alemã (ROXIN, 2006, p. 106).
No entanto, a evolução que trouxe o finalismo para a teoria do tipo penal, como com muitíssima razão aponta Roxin, limitou-se ao reconhecimento do tipo subjetivo (ROXIN, 2006, p. 102-103). Com efeito, o tipo objetivo na teoria finalista, ao contrário, continuava a aperfeiçoar-se de modo meramente causal, no sentido mesmo da teoria da equivalência dos antecedentes, ou da teoria causal da ação: bastava a simples constatação da relação de causalidade para o aperfeiçoamento do tipo objetivo. Isto equivale a dizer que o tipo objetivo na teoria finalista, sem sombra de dúvidas, não sofreu qualquer aprimoramento. Por óbvio, continuava o tipo objetivo demasiadamente extenso e, além do mais, problemas do tipo objetivo que pelo causalismo não eram adequadamente solucionados, na doutrina finalista continuavam a não ser. E isto, evidentemente, só estava a evidenciar que a teoria do tipo penal deveria seguir adiante em sua marcha evolucionista. Mas, qual o próximo passo? Este encontra-se já delineado. Destarte, sua demonstração pede um minuto mais de paciência, posto que, antes, faz-se necessária uma exposição de pontos da sistemática da teoria do tipo penal, preparatórios para o seu apogeu. E esta exposição deve se resumir na busca por encontrar na evolução empregada na teoria do tipo desde Beling até Welzel, para que se torne, assim, possível demonstrar o ponto problemático abordado pelo presente escrito, a insatisfatoriedade da técnica de exclusão do tipo penal objetivo aplicada pela teoria da ação final de Hans Welzel e, depois, evoluir até a superação de tal problema, a teoria da imputação objetiva segundo os pressupostos de Claus Roxin, sem, é claro, esquecer-se de responder a algumas objeções apresentadas pelos aqui chamados “jovens finalistas”.
II – NORMATIVISMO COMO BASE PARA UMA TEORIA DO TIPO PENAL
Pois bem, quando Beling concebeu que o tipo penal como “o compêndio ou conjunto dos elementos que dão como resultado saber de qual delito exatamente se trata” (Lehe vom Verbrechen, 1906), cunhou a função sistemática do tipo. Isto, além de alterar significativamente o então vigente conceito de tipo (Tatbestand) em prol da teoria do delito, fez com que se pudesse obter uma nova categoria, que se introduziu entre os conceitos de “ação” e de “antijuridicidade”. O delito então passou a ser constituído em uma ação típica, antijurídica e culpável (WELZEL, 2001, p. 54). E esta nova categoria do tipo ofereceu a possibilidade de se designar uma firme posição sistemática para os numerosos “elementos errantes daqui para lá”, que até então não se posicionavam um lugar fixo na teoria geral do delito (ROXIN, 1997, p. 277).
O tipo penal de Beling caracterizava-se, pois, por dois pontos essenciais: ser “objetivo” e ser “livre de valoração”. Esta objetividade significava que se excluíam do tipo todos os processos subjetivos, anímicos internos, processos estes que, para Beling, deveriam se inserir em sua totalidade no campo da culpabilidade. Já o “caráter não valorativo” devia conduzir o tipo penal à total inexistência de qualquer valoração possível, que pudesse conduzir a uma qualquer alusão à antijuridicidade da atuação típica. O tipo penal de Beling, portanto, era um tipo limpo de todos os momentos de antijuridicidade. Nele não se podia reconhecer qualquer significado jurídico. E Beling inclusive afirmava que a comprovação de que havia se cumprido um tipo, só por só, não podia ser algo gravoso para ninguém, pois as investigações de tipicidade deviam manter-se em um terreno estritamente “neutral” (ROXIN, 1997, p. 279). Assim, o tipo penal apresentava-se, neste momento, como um puro objeto de valoração, ao passo que esta valoração somente podia se produzir na antijuridicidade. Contudo, não obstante a significativa evolução despontada na teoria do tipo com sua concepção, a estrutura de tipo concebida por Beling apresentava falhas em suas duas principais características.
A teoria da objetividade do tipo penal concebida por Beling viu-se afrontada quando Fischer, Hegler, Mayer e Mezger descobriram que em muitos casos, desde já, o injusto do fato dependia da direção indicada pela vontade do autor, ou seja, de elementos subjetivos, anímicos internos. A discussão dessa questão residiu inicial e predominantemente na conexão existente entre o tipo e as causas de justificação (como vontade defensiva em casos de legítima defesa). Mas, não obstante, logo em seguida ficou claro que no tipo deveriam ser abarcados os elementos pelos quais se pudesse depreender qual o delito que se trataria. Além disso, se comprendeu que não se pode sempre renunciar a critérios subjetivos para tal aferição. Esses delineamentos – cumpre já observar – demonstram a direção que se impôs à teoria do tipo com o desenvolvimento da teoria dos elementos subjetivos do tipo. Direção esta que em seu avanço recebeu mais um passo quando, pouco depois, pela teoria finalista da ação foi incluído o dolo dirigido à realização das circunstâncias objetivas do fato na face subjetiva do tipo (ROXIN, 1997, p. 280).
Welzel chegou a afirmar que o descobrimento dos elementos subjetivos do injusto e o desenvolvimento da doutrina da ação finalista, na qual o tipo passou a compreender tanto os elementos objetivos como os subjetivos anímicos da ação, foi o que definitivamente corrigiu um dos “defeitos” da concepção de Beling (WELZEL, 2001, p. 54). Mas, cumpre anotar, a doutrina finalista alocou o dolo típico na face subjetiva do tipo, simplesmente porque se viu obrigada a tanto por sua concepção de ação. Seja como for, a verdade é que a proximidade dos elementos subjetivos do tipo ao dolo típico em seu conjunto, deu considerável impulso para a teoria finalista da ação. E isto, esclarece Roxin, explica em parte porque tal teoria tenha se imposto com caráter dominante nos sistemas modernos e porque, também, do contrário se deve considerar superada a ação final como tal. Ora, se a classe de tipo delitivo se vê substancialmente co-determinada pelo dolo, somente este argumento é já a hipótese de que o dolo típico não integra apenas, mas pertence ao tipo como sua faceta subjetiva (ROXIN, 1997, p. 281).
Por outro ângulo, o descobrimento dos elementos normativos do tipo por Max Ernest Mayer motivou uma idéia de passar em revista o caráter não-valorativo da teoria do tipo penal de Beling. Mayer certamente partiu em princípio do caráter não valorativo do tipo de Beling, pois compreendeu a realização do tipo como apenas um indício da antijuridicidade, uma ratio cognoscendi de antijuridicidade, um indício de antijuridicidade mas não sua parte integrante. Compreendia que caráter não valorativo do tipo estava assegurado pelo fato de que os elementos do tipo deviam ser “descritivos”, isto é, continham descrições sensorialmente cognoscíveis e desde já desprovidas de quaisquer valorações. As valorações, a seu turno, somente se poderiam produzir na antijuridicidade. Mas, contudo, com os elementos normativos do tipo isto se dava de maneira distinta. Mayer compreendeu que determinados elementos desde já continham uma valoração que, em parte, eram prejudiciais à aferição posterior da antijuridicidade. Para Mayer, os elementos normativos eram autênticos elementos de antijuridicidade, porque uma circunstância que não apenas denotasse, mas que já fundamentasse a antijuridicidade, que não fosse ratio cognoscendi, mas já ratio essendi, devia pertencer, por isso mesmo, a antijuridicidade como sua parte componente ou integrante. No entanto, Mayer tratou de alocar os elementos normativos integrantes do tipo penal como elementos impróprios deste, pois, para ele, somente se podia valorar a peculiaridade dos elementos normativos dentro do conceito de tipo, porque tais elementos teriam uma dupla posição, uma no tipo legal e outra na antijuridicidade (ROXIN, 1997, p. 281). Com isso, houve por superado o caráter não valorativo do tipo.
Se for correto que Mayer empreendeu uma enorme evolução no tipo, certo também será que essa evolução foi por ele abandonada em um nível muito importante. E não demorou em que o finalismo tentasse definitivamente encerrar o caminho aberto por Mayer. Mas esta tentativa, cumpre afirmar, foi frustrada pelo desenvolvimento empreendido por Wolf. Com efeito, quando se reconheceu que o número de elementos normativos do tipo era de fato muito maior do que Mayer inicialmente supunha, a questão da normatividade em contraposição à neutralidade do tipo desenhada por Beling foi sensivelmente impulsionada. Então, a evolução empregada por Mayer não pôde mais cessar seu caminho, como quis parecer o finalismo. E esta evolução chegou ao seu cume quando Wolf apontou que inclusive elementos presumidamente descritivos puros, como “homem (ser humano)” ou “coisa”, são também normativos em seu âmbito fronteiriço. Em Wolf, também tais elementos, a princípio puramente descritivos, requerem uma valoração judicial orientada pela antijuridicidade. Sem sombra de dúvidas, pode, e deve, ser considerado correto o pensamento de Wolf, porque um juízo sobre o que se considera “ser humano” é, com efeito, um resultado de uma valoração legal.
Mas, Welzel, assim como grande parte da doutrina científica, negou o avanço empregado por Wolf e, lamentavelmente, por isso mesmo, foi mantida a teoria do tipo nas premissas apontadas por Mayer. Welzel afirmava que quando Beling dizia que o tipo teria um caráter totalmente livre de valorações (“o tipo não encerra nenhum juízo de valor”), nada mais queria dizer que a constatação da tipicidade de uma ação não afirmava ainda sua antijuridicidade, e, por isso, a constatação da tipicidade de uma ação não podia ser valorativamente neutra, mas apenas um “indício”, como em Mayer, de sua realização antijurídica, sem, com isso, implicar já, de maneira alguma, sua antijuridicidade. Para Welzel, a constatação inequívoca da antijuridicidade da conduta, por intermédio do jogo entre proibição e o preceito permissivo, somente se fazia possível graças à significação material do tipo no conceito tripartido de delito, e a função do tipo de descrever materialmente a relevância jurídico-penal de uma conduta, o que Welzel chamava de “diferenciação valorativa”, assegurava a ele, tipo, uma posição de elemento independente do delito, prévio ao juízo de antijuridicidade e à reprovabilidade da conduta (WELZEL, 2001, p. 54-55). E este foi, por conta de conhecidos acontecimentos históricos, o pensamento que se consolidou no início do pós-guerra e, com impulso decisivo que experimentou no “pensamento referido ao valor” do neokantismo, segue sendo ainda dominante na ciência atual. Mas, o reconhecimento de que o tipo penal a partir de Wolf tornou-se uma figura totalmente normativa (valorativa), um inseparável entranhado estrutural onde se entrelaçam elementos de valor e elementos do ser, ecoou na estrutura do tipo penal de forma tal que se torna inevitável sua reformulação (ROXIN, 1997, p. 282).
Com efeito, quando se reconhece que o tipo penal supõe uma valoração desde o ponto de vista do injusto, há que se questionar por que tal tipo somente contém uma parte das circunstâncias determinantes do injusto ao passo que a outra parte fica reservada à categoria de antijuridicidade. Dado que os elementos do tipo fundamentadores dos elementos das causas de justificação (excludentes do injusto) possuem a mesma função, enquanto que somente a conjunção complementadora de uns à continuação de outros permite um juízo definitivo sobre o injusto do fato, segundo Roxin, parece lógico reuni-los em uma categoria de delito incluindo no tipo os pressupostos das causas de justificação. Ensina o reconhecido Catedrático de Munique que, em 1926, já declarava Mezger que o ato de elaboração legislativa do tipo contém diretamente a declaração de antijuridicidade e a fundamentação do injusto como injusto especialmente tipificado, de modo tal que a antijuridicidade específica é criada quando o legislador forma o tipo penal. E, por isso mesmo – conforme concluía Mezger –, a tipicidade da ação não pode ser de modo algum ratio cognoscendi, senão que uma autêntica ratio essendi da antijuridicidade (especial), que, juntamente com a união da ausência das causas concretas de exclusão do injusto, converte a ação em antijurídica (ROXIN, 1997, p. 282).
III – TIPO DE INJUSTO PENAL
Formulada por Merkel, desde sua etapa inicial, a teoria dos elementos negativos do tipo já proporcionava uma possibilidade de se construir o tipo penal da maneira descrita por Mezger. Segundo suas premissas, as causas de justificação são sacadas dos tipos da Parte especial e antepostas na parte geral apenas por razões de técnica legislativa, pois, se assim não faz, tem o legislador que as repetir em cada preceito penal. Mas, do plano material, isto não modifica o fato de que se haveria que incluí-las nos tipos concretos segundo o seu respectivo sentido. Essa formulação, converte os elementos de justificação em elementos negativos do tipo, pois, a não ocorrência de tais elementos é um pressuposto para o aperfeiçoamento do tipo legal. Em palavras outras, enquanto que os elementos contidos nas descrições dos delitos na Parte especial, em regra, devem ser comprovados positivamente, para que se cumpra o tipo, com as circunstâncias justificantes ocorre o inverso, de modo tal que a presença de uma delas exclui o tipo, isto ao mesmo tempo em que sua negação conduz à confirmação dele. Para a teoria dos elementos negativos do tipo, tipo e antijuridicidade se fundem em um tipo global de injusto, que se integra à totalidade dos elementos substanciais para o juízo de injusto (elementos positivos, negativos, escritos e não escritos, relevantes para a comissão e para a omissão), e isto, de modo tal que as causas de justificação tornam-se excludentes não só da antijuridicidade, mas já do próprio tipo (ROXIN, 1997, p. 283-84).
Quando se parte do ponto de vista dos atributos essenciais da ação, e isto de forma tal que se possa falar em teoria tripartida (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade – Beling e Liszt), a teoria dos elementos negativos do tipo pode facilmente conduzir a um sistema bipartido do delito, pois no caso de ocorrência de uma ação, somente há que se distinguir o injusto típico da culpabilidade. Se analisada a teoria dos elementos negativos do tipo por este ângulo, não há como fugir da crítica formulada por Welzel. Para ele, se se aceita a teoria dos elementos negativos, o tipo já não mais pode cumprir sua tarefa de sustentar a base do juízo de antijuridicidade, porque deixa de ser pressuposto da antijuridicidade, uma vez que tem a antijuridicidade como seu pressuposto, de modo que, a partir de então, somente se pode aferir a tipicidade da conduta se desde já se conhece sua antijuridicidade; e, assim, uma causa de justificação pode desde já excluir esta tipicidade, o que, segundo pensa, pode desembocar em um círculo vicioso: apenas se pode afirmar a tipicidade quando constatada a antijuridicidade, e a antijuridicidade somente pode ser averiguada após a constatação da tipicidade (WELZEL, 2001, p. 55). Pode ter razão. Mas, este, por evidente, não é o único ângulo que se pode observar a teoria.
Com efeito, a estrutura bipartida do delito encontrou inúmeros partidários tanto na época do pós-guerra como na posteridade[i]. E isto, porque sua estrutura, como ensina Roxin, de maneira efetiva, é não só logicamente praticável, senão que também possui, desde um aspecto teleológico, muitas vantagens em seu favor. Ora, ensina o mestre, desde a perspectiva do tipo como ratio essendi do injusto, não há razão alguma para subtrair-lhe uma parte dos elementos essenciais para o injusto; até porque o fato de estar uma circunstância inserida já no tipo como fundamentadora do injusto ou somente na antijuridicidade, como excludente do injusto, freqüentemente ocorre somente por uma questão de redação estilística causal da lei. A intercambialidade dos elementos assinala que a fundamentação e a exclusão do injusto são somente fragmentos parciais de uma unidade superior. E se isto pode se expressar também sistematicamente, mediante uma reunião de ambas as categorias, o tipo passa a conter uma forma desligada de todas as causalidades da versão legal, enquanto juízo de valor não só provisório, mas, um realizado sem qualquer reserva; o que, por isso mesmo, converte o tipo penal em ratio essendi da antijuridicidade no pleno sentido da palavra. Todavia, por haver razões de maior peso em favor de se manter o tipo (no sentido de typus delitivo) como categoria autônoma frente à antijuridicidade, tipo e antijuridicidade devem manter-se sistematicamente separados, muito embora possam se reunir para formar um tipo global no aspecto do injusto, um tipo de injusto, para se contrapor à responsabilidade. Da mesma forma, este tipo global pode ser separado enquanto compêndio das circunstâncias decisivas para a proibição penal da responsabilidade, o sumo dos elementos relevantes para a responsabilização do autor (ROXIN, 1997, p. 284-88).
IV – O PROBLEMA DO TIPO OBJETIVO NO SISTEMA DE WELZEL
Welzel, como dito, propagava que, juntamente com a teoria dos elementos subjetivos do injusto, o desenvolvimento da doutrina finalista da ação corrigiu um dos defeitos da concepção de tipo de Beling, o dito caráter neutral. Com uma concepção de tipo penal de duplo aspecto (objetivo-subjetivo), no qual compreendia tanto os elementos objetivos como os subjetivos anímicos da ação, Welzel certamente empreendeu uma significativa evolução na teoria do tipo, principalmente porque, a partir dele, houve o reconhecimento de seu aspecto subjetivo, o qual, a partir de então, passou a ser compreendido como composto tanto do dolo típico como dos demais elementos subjetivos do injusto, ou como preferia, do ilícito. Mas, não obstante, em sua face objetiva, o do tipo penal de Welzel não se diferenciou em absolutamente nada do tipo concebido pela doutrina da ação causal. Para ele, de certo modo, assim como em Beling, ao tipo objetivo atribui-se apenas a missão de descrever objetiva e materialmente as condutas proibidas, isto é, para ele, encerra-se o tipo objetivo na descrição da “matéria de proibição das disposições penais” (WELZEL, 2001, p. 48). Em suma, nada acrescentou à face objetiva do tipo o grande precursor do finalismo, muito embora, segundo seu discípulo Hirsch, tenha alcançado Welzel o êxito de encontrar o equilíbrio entre os elementos objetivos e subjetivos[ii].
Welzel compreendeu o tipo penal como uma figura puramente conceitual e, ao contrário do que o fez Beling, de valoração indiciária, no sentido da tese de Mayer. Pregava o professor de Bonn que se alguém realizasse objetiva e subjetivamente a conduta típica de uma ação proibitiva, sempre estava a atuar de modo contrário à norma, porque a “tipicidade”, contraposição da conduta real com a norma (abstrata), era um “indício” da antijuridicidade, e isto, de forma tal que apenas na categoria da antijuridicidade é que a contradição entre a realização da conduta típica e os “mandados” e “permissões” do ordenamento jurídico, visto como um todo, podia ou não se dar, isto é, confirmar ou não a “ilicitude” do tipo penal realizado. Em sua concepção, a “tipicidade” da conduta não poderia ser afastada, excluída, mas tão somente sua antijuridicidade, quando justificada (WELZEL, 2001, p. 61). A realização do tipo penal, figura puramente conceitual para Welzel, ao contrário do demonstrado posteriormente por Roxin, não poderia, segundo o professor de Bonn, desde o início fazer frente às normas do ordenamento jurídico, pois não poderia haver tipos antijurídicos, mas somente realizações antijurídicas do tipo, de modo que, por isso mesmo, a valoração definitiva do “ilícito”, do “caráter contrário à norma” da conduta, somente poderia se dar na antijuridicidade. Mas, no entanto, o Catedrático de Bonn não conseguiu sustentar-se plenamente e teve de deduzir em sua regra duas exceções: os “tipos abertos” e a “adequação social”.
Reconhecia, pois, no tipo penal um caráter valorativo indiciário da antijuridicidade (ratio cognoscendi), no sentido propagado por Mayer. Mas, não obstante, também se via obrigado a reconhecer a existência dos denominados tipos “abertos”, que, ao contrário, não se mostraram apenas indiciários. E por conta disso, passou a pregar que nem todos os tipos penais corresponderiam ao ideal da “determinação”. Isto é, que em muitos tipos, os elementos do “ilícito” não podem estar “descritos de modo exaustivo”, como nos “tipos fechados”, pois em tais casos o legislador se encarrega apenas da “descrição” parcial dos caracteres do tipo, ao passo que sua complementação cumpre ao magistrado. Os tipos penais “abertos”, portanto, são tipos que “necessitam de complementação” (WELZEL, 2001, p. 49-50). E o reconhecimento da existência de tais, desde o início já fez vacilar o caráter puramente indiciário do tipo penal de Welzel. Mesmo assim, Welzel tentava circular o fato afirmando que a mesma fórmula de constatação da antijuridicidade, aplicada nos tipos penais “fechados”, o procedimento puramente negativo de aferição que busca verificar a inexistência de causas que justifiquem a realização típica, podia ser aplicado da mesma forma nos tipos penais “abertos” ou “que necessitam de complementação”, sendo, todavia, que nestes, se faria necessário ao juiz apenas a complementação prévia do tipo, mediante o critério que se deduz da lei, “proibição de garante”, “cuidado necessário no tráfego”, para somente após aplicar o método (WELZEL, 2001, p. 65). Uma verdadeira ginástica intelectual totalmente passível de falhas.
E essa oscilação do caráter indiciário do tipo penal em Welzel, ficou ainda mais evidente com sua explicação sobre a relação tipicidade-antijuridicidade nos tipos penais “abertos”, nos quais, segundo reconheceu, inexiste o critério “objetivo” de complementação do tipo. Welzel arrimava sua explanação no delito de coação. Para ele, a ação típica descrita no dispositivo, entre outras, é a de “coagir” outra pessoa a realizar determinada conduta, mediante ameaça de um mal manifesto. Ao tipo de coação, tal com descrito na lei, seriam abarcáveis as ações mais correntes da vida cotidiana, que, por isso, não poderiam ser parte da “matéria de proibição” do preceito adicional do § 240 II do StGB, segundo o qual a coação seria antijurídica, quando reprovável o emprego de meio coator para alcançar o fim perseguido. Para ele, o tipo continha apenas um juízo de valor (“reprovável”), mas não um ponto de apoio que permitiria checar a quais ações fazia referência. Por isso, concluía que, em tal tipo, a antijuridicidade deveria ser constatada pelo juiz por meio de um juízo de valor independente (WELZEL, 2001, p. 65). Assim, em alguns casos, portanto, o tipo penal não seria apenas indício de antijuridicidade, pelo contrário, o injusto somente poderia ser comprovado a partir da perspectiva da mesma, e isto, por intermédio de uma verificação positiva de “elementos de antijuridicidade”. Portanto, o caráter indiciário do tipo penal de Welzel, desde o início, em verdade, já não se mantinha intacto neste terreno. A reprovabilidade da coação contida no § 240 II StGB, como demonstra Roxin, deve ser somente considerada como uma questão de antijuridicidade, de modo tal que, como o tipo não descreve por completo os elementos fundamentadores do injusto, somente a aferição positiva da “reprovabilidade” da conduta é que pode fundamentar o injusto. Por isso, ainda que o legislador não tenha elaborado suficientemente o delito, mediante a descrição dos elementos relativos à “matéria de proibição”, a ameaça de um mal sensível ainda não pode supor um tipo delitivo suficientemente perfilado, pois, em tais casos, o injusto somente se fundamenta positivamente quando se deve considerar “ameaçado o fim perseguido”. E isto, de modo tal que as circunstâncias do fato, complementadoras do tipo, por serem elaboradas pela doutrina científica ou pela jurisprudência, baseadas em critérios normativos de “reprovabilidade”, não se convertem em elementos de antijuridicidade, mas continuam a ser elementos do tipo (ROXIN, 1997, p. 289-99).
Mas, não obstante, o caráter meramente indiciário, portanto livre de valoração, do tipo penal de Welzel, cai por completo não com os tipos abertos, senão que com a idéia de “adequação social”. Para Welzel, aquelas ações que se “movem dentro do que se tem chegado a ser historicamente o ordenamento ético-social da vida em comunidade”, e que, portanto, são “socialmente adequadas”, nunca podem ser subsumidas a um tipo penal, ainda que isto ocorresse em seu teor literal. Tais condutas, socialmente adequadas, são, para ele, condutas que se mantém dentro dos limites da liberdade de atuação social, embora estes limites, reconhece, sejam de determinação muito difícil, senão que de fato quase indetermináveis (WELZEL, 2001, p. 60). Em Welzel, a “adequação social” representa o âmbito “normal” da liberdade de atuação social, que serve de base para os tipos penais, ao mesmo tempo em que é por eles observada, embora de maneira tácita, para que, com isso, possa funcionar como uma espécie de pauta que desde o início pode excluir âmbito do tipo penal, ações que sejam socialmente adequadas. E isto, ainda que possam ser elas, as condutas socialmente adequadas, subsumidas ao tipo descrito segundo seu conteúdo literal. Está evidente, pois, que Welzel reconhecera que a valoração o injusto poderia se dar de maneira definitiva já no âmbito do tipo. Não é por menos que o grande precursor do finalismo, chegou a afirmar que a insuficiência da adequação social, em se distinguir das causas de justificação, era um grave problema para sua teoria (WELZEL, 2001, p. 61). Mesmo assim, não deixou de tentar traçar uma diferenciação entre a adequação e as causas de justificação.
Com efeito, Welzel afirmava que o âmbito normal da liberdade de atuação social era o que distinguia a adequação social das causas de justificação, porque nas condutas socialmente inadequadas, porém justificada, havia também a concessão de uma “liberdade” de ação, como ocorria com a ação típica socialmente adequada. Mas, na ação típica socialmente inadequada, essa liberdade seria de natureza especial, pois aqui se tratava de uma permissão especial, de uma autorização para realizar ações típicas socialmente inadequadas (WELZEL, 2001, p. 60-61). É certo que em sua fase intermediária, Welzel também reconheceu o conceito da adequação social como uma causa de justificação de Direito consuetudinário (WELZEL, 2001, p. 61), para, assim, reaproximar a face objetiva do seu tipo finalista do caráter neutral da concepção de Beling. É claro que por trás disso, deveras, como bem evidencia Roxin, estava afixado um desejo de tornar o dolo de sua teoria final da ação final um objeto de referência, o mais depurado possível de elementos de antijuridicidade. Mas tal atitude, logo se mostrou a ele como um erro, pois, com o retorno ao causalimo, não mais se reconheceria a distinção entre tipo e antijuridicidade como proibição geral e permissão especial, antes defendida por ele. E, assim, posteriormente teve de retomar sua concepção inicial de adequação social: como elemento restritivo do tipo (WELZEL, 2001, p. 61).
É certo que o mesmo Welzel, em diversas ocasiões durante o largo dos anos, modificou sua concepção. Atualmente, os jovens e velhos finalistas delimitam de modo muito diverso o campo de aplicação da adequação social. Um setor a considera como causa de exclusão do tipo, ao passo que outro a tem como causa de justificação, e ainda um outro, concebe-a como causa de exculpação. Muitos finalistas, em razão da imprecisão de seus critérios, que entendem como perigosa para a segurança jurídica, a rechaçam e a depreciam[iii], ou, então, somente a recebem como um mero princípio interpretativo geral “inseguro” e “relativo”[iv]. No fundo, assim como o gigante de Bonn, reconhecem, só não o querem dizer, jovens e velhos finalistas que a adequação social representa o fim da idéia do tipo livre de valorações normativas e, ademais, a condução ao fim do sistema ontologicamente fundado, pelo triunfo dos sistemas normativamente fundamentado.
Seja como for, a idéia fundamental de que uma conduta socialmente adequada, não excepcionalmente na apreciação do caso concreto, senão que já de antemão e de modo geral, não pode ser subsumida a nenhuma classe de delito e de injusto, de modo que, por isso mesmo, não pode ser materialmente “típica”, supõe desde Welzel uma importante perspectiva para a teoria do tipo penal; principalmente se observada do ponto de vista da concepção teórica de Claus Roxin, seguida ponto a ponto neste escrito, pois quando se reconhece que a conduta socialmente adequada não é materialmente típica, não há como não supor uma remissão ao desvalor social do fato, o que, além de ser imanente ao injusto e constituir seu fundamento material, confirma que o tipo deve ser entendido como tipo de injusto e, portanto, afirma a perspectiva que assim o compreende.
A “inadequação” social caracteriza o tipo, como tipo delitivo, em sua totalidade e não um elemento concreto do tipo. Logo, se uma valoração errônea de uma conduta típica a reconhece como socialmente adequada, não há erro de tipo excludente do dolo, e sim só um erro de proibição. Inclusive o desvalor do juízo de adequação social [como pauta para os tipos penais], se vê relativizado pelo fato de que a concepção normativista, seja teleológia seja sistêmica, dispõe de meios interpretativos auxiliares mais precisos que os propostos pela doutrina dominante. Assim, se revisados nos termos do funcionalismo teleológico-racional os exemplos aduzidos como condutas socialmente adequadas por Welzel, dividindo-os em dois grupos, as soluções dos problemas apresentados, sem sombra de dúvidas, se dará naturalmente com muito maior precisão[v]: o primeiro grupo é o relativo ao risco juridicamente irrelevante ou permitido, v.g., participação no tráfego viário, ferroviário e aéreo; funcionamento de estações industriais; intervenção em competições desportivas; e, etc.; e o segundo, o concernente à exclusão [do tipo] das ações insignificantes e toleradas de modo geral: pequenos presentes de fim de ano recebidos por funcionários públicos, etc.
Ao segundo grupo de exemplos exposto por Welzel pertence o do pequeno presente de fim de ano recebido pelo funcionário público, que, pese o teor literal do preceito legal, não deve o fato ser subsumido ao tipo. Não se devem também considerar desonrosas as expressões ofensivas pronunciadas confidencialmente em um círculo familiar mais íntimo. A fundamentação de tais assertivas não se deve basear na adequação social, pois esta se mostra por demasiado inespecífica. Em verdade, em tais casos e em muitos outros exemplos similares, sequer existe perigo de lesão ao bem jurídico tutelado e, por isso mesmo, não se deve considerar o fato como infração à proibição da norma. Com efeito, o pequeno presente não coloca em xeque a confiança pública na integridade dos funcionários públicos, assim como as expressões confidenciais em círculos familiares não menoscabam a pretensão de consideração social do afetado, que é o que está em jogo na proteção dispensada ao bem jurídico pelo dispositivo legal. De conseguinte, e por óbvio, a correta solução somente se produzirá em cada caso mediante uma interpretação restritiva, orientada na direção do bem jurídico protegido (ROXIN, 1997, p. 296-97), e nunca de forma geral e imprecisa.
A invocação indiferenciada da adequação social, ademais, não consegue afastar o perigo de se tomar decisões orientadas pelo mero sentimento jurídico. Deixar, por outro lado, de aplicá-la onde de fato se faz aplicável, ou então, inclusive, declarar atípicos abusos geralmente entendidos como típicos, por entendê-la mero elemento interpretativo, também não a eximem de vulnerabilidade à arbitrariedade. Por isso, um procedimento restritivo, racional, certamente será sempre preferível. Ainda mais preferível, se se pautar em uma interpretação referida ao bem jurídico, voltada a compreender o que o respectivo tipo de injusto pode aclarar. A compreender e explicar o porquê de se considerar uma parte das ações insignificantes como atípicas e, amiúde, estarem desde já excluídas do tipo pelo próprio teor legal e, a um mesmo passo, em contrapartida, outra parte delas inquestionavelmente se encaixam no tipo, como ocorre, v.g., com os furtos de bagatela, onde a propriedade e a posse também se vêem já vulneradas pelo furto de objetos insignificantes. E a demonstrar que há ainda uma outra parte em que o bem jurídico somente é menoscabado se ocorrer certo grau de intensidade na afetação (ROXIN, 1997, p. 297).
Portanto, ainda que se reconheça que a adequação social busca um objetivo em si correto – eliminar do tipo condutas não correspondente ao específico tipo de injusto –, não consegue tal teoria constituir um elemento preciso, apoiado em critérios precisos, de exclusão do tipo. E isso, em apertada síntese, somente confirma o enunciado: a teoria finalista, tanto de Welzel como de seus sucessores, não conseguiu superar a problemática sofrida desde antes na face objetiva do tipo penal. Então, demonstrado o ponto problemático, cumpre agora, conforme a proposição do escrito, cuidar da superação de tal problemática: apresentar a teoria da imputação objetiva segundo os pressupostos de Claus Roxin.
V – A IMPUTAÇÃO AO TIPO OBJETIVO SEGUNDO O SISTEMA TELEOLÓGICO-RACIONAL DE CLAUS ROXIN
Pois bem, de início, a imputação ao tipo objetivo pode solucionar, e de modo satisfatório, as questões que assim não o foram – e nem poderiam ser – pela “adequação social” finalista. Além disso, limita consideravelmente o regressus ad infinitum da teoria causal ainda no campo do tipo objetivo, o que de maneira alguma alcançou a doutrina da ação final. Vale dizer, desde seu início, a teoria da imputação objetiva, lastreada no sistema teleológico-racional de Claus Roxin, releva maior precisão técnica em delimitar o tipo penal objetivo do que os métodos doutrinários pré-funcionalistas. Ora, no contexto da imputação objetiva segundo os pressupostos do sistema teleológico, nos delitos de resultado, há que se decidir conforme as regras gerais se a lesão do objeto da ação pode ser imputada ao culpado como obra sua, pois se assim não o for, não há como afirmar com precisão se tal terá de fato matado, lesionado, subtraído, danificado, etc., no sentido da lei. Por isso, nos delitos comissivos, de antemão, será impossível a imputação objetiva se o autor não tiver causado o resultado. Inclusive, pode a imputação faltar ainda que o autor tenha causado o resultado, se a causação dever-se à pura causalidade. Portanto, vale dizer, diferente do que o fez a dogmática finalista, que, como se sabe, compreendia o tipo objetivo cumprido apenas com o estabelecimento da relação causal no sentido da teoria da equivalência, e se parecesse inadequada a punição, intentava excluir a pena nos delitos comissivos dolosos apenas com a negação do dolo, a imputação ao tipo objetivo passou a indicar desde já as circunstâncias que fazem de uma causação, entendida como limite extremo da possibilidade de imputação, uma ação típica. Para cumprir sua missão, a imputação lastreia-se em dois princípios sucessivamente estruturados: a) um resultado causado pelo agente só pode ser imputado ao tipo objetivo se a conduta do autor cria um perigo para o bem jurídico não acobertado por um risco permitido e este perigo também tenha se realizado no resultado concreto; e, b) se o resultado apresentar-se como a realização de um perigo criado pelo autor, de modo a se cumprir o tipo objetivo[vi]
Mas, excepcionalmente, mesmo que cumpridos os pressupostos anteriormente delineados, pode desaparecer a imputação se o alcance do tipo não abarcar a evitação de tais perigos e, ademais, suas repercussões. É neste contexto que se apresenta a teoria do nexo causal como fundamento de toda imputação ao tipo objetivo: o primeiro pressuposto da realização do tipo radica na causação pelo autor do resultado. Mas, cumpre se atentar para o fato de que, mesmo com a causalidade de uma conduta para o resultado típico, é possível, e muito provável, que ainda não se tenha a realização do tipo, mesmo que concorram os típicos elementos escritos restantes. Neste sentido, aliás, pode-se tranquilamente falar que, com os critérios ora apresentados, pode não haver imputação ao tipo mesmo quando o autor tenha de fato causado o resultado, se, é claro, esta causação dever-se à pura causalidade. Assim, a imputação ao tipo objetivo deve ser produzida em dois processos sucessivos: a aferição do nexo causal e, em seguida, os restantes pressupostos da imputação. Válida, portanto, uma breve e muito sintética exposição de tais processos, seguindo o Tratado do professor Claus Roxin[vii].
Pois bem, ensina Roxin que ainda que se admita a possibilidade de se continuar a ajuizar os fenômenos do mundo jurídico segundo a lei causal, ensina Roxin, existirão ainda muitos e suficientes pontos obscuros. Discute-se se a causalidade é uma categoria do ser ou uma forma de pensar do intelecto humano, como pretendia Kant. A moderna teoria do conhecimento, considera a causalidade um fenômeno empírico que obedece a determinadas leis, mas, de regra, evita os conceitos de “causa” e “efeito”, preferindo entendê-la como “predecidibilidade” ou “explicabilidade” de acontecimentos sucessivos. Mas isso gera um problema sério: “até agora não temos logrado aclarar o que é que ‘opera’ na causalidade como sucede; e, portanto, segue havendo muitos pressupostos não esclarecidos quando o jurista delineia a sensível pergunta de se a atuação de um homem concreto é a ‘causa’ de um resultado juridicamente relevante” (ROXIN, 1997, p. 347).
A doutrina finalista, é notório, utiliza-se da teoria da equivalência para comprovar a relação de causalidade. Segundo a teoria da equivalência, considera-se causa toda condição de um resultado que não pôde ser suprimida mentalmente sem que desaparecesse o resultado concreto. Então, considera-se válida como causa toda condicio sine qua non o resultado não se produziria. De conseguinte, não há uma seleção entre as inúmeras condições de qualquer resultado, mas, do contrário, são consideradas equivalentes todas as condições. A teoria da equivalência, portanto, trata como autônoma cada causa parcial; e o faz porque o que importa não é a totalidade das condições, senão que somente comprovar a conexão entre um determinado ato humano com o resultado. Sua fundamentação mais aprofundada remonta a Maximilian v. Buri e, na doutrina científica moderna, é reconhecida de modo totalmente dominante, como, nos delitos comissivos, condição necessária, ainda que não suficiente, para a imputação ao tipo objetivo. Mas, sua fórmula tradicional não pode resistir a uma supervisão crítica.
Com efeito, demonstra Roxin, ainda que Mezger a tenha qualificado como meio infalível para a comprovação do nexo condicional, ela “não aponta nada para a averiguação da causalidade. Em uma palavra: a fórmula da supressão mental pressupõe já o que deve averiguar-se mediante a mesma”. Esta fórmula “não só é inútil, senão que pode induzir em erro”. E é por isso que se tem imposto atualmente na ciência jurídica a fórmula de Engisch da “condição conforme as leis”, que em uma versão revisada por Jescheck, ajuíza a concorrência da causalidade conforme se a uma ação se vincularem modificações no plano exterior, subseqüentes no tempo, que estavam unidas à ação segundo as leis naturais e que se apresentem como resultado típico (ROXIN, 1997, p. 349-51). Mas essa fórmula – continua Roxin – também não ajuda a comprovação da causalidade real, porque não diz nada acerca da concorrência do nexo causal conforme as leis. Os cursos causais, se duvidosos, não podem ser demonstrados nunca mediante quaisquer fórmulas, senão que somente por intermédio de métodos científico-naturais exatos. No entanto, quando não se puder duvidar da causalidade, sua fórmula conforme a lei permite reconhecer claramente os cursos causais e, assim, não se induz o julgador a erro (ROXIN, 1997, p. 351).
A teoria da equivalência apresenta como principal dificuldade na comprovação da causalidade, a verificação do nexo conforme as leis. Por isso, retrocedem a um segundo plano as questões jurídicas que são delineadas conforme esta teoria. Assim, no sentido da teoria da equivalência, para a causalidade, mostra-se suficiente qualquer modificação do resultado, mas, como a causalidade é somente o primeiro, e não o único, pressuposto para a imputação, uma outra questão mostra-se ainda necessária: saber se se deve imputar ao sujeito uma causação de um resultado como típica. Uma modificação do sucesso, nesse sentido, somente não será causal se for irrelevante para o modo e forma, assim como para o tempo e lugar da realização de um elemento do tipo. Mas na doutrina da imputação segundo os preceitos de Roxin, isso é diferente. Ao lado da teoria da equivalência, cumpre papel a teoria da adequação, inaugurada por Johannes v. Kries (1853-1928). Para esta teoria, em sentido jurídico-penal, somente se pode considerar causa uma conduta que possua uma tendência geral de provocar o resultado típico. Por isso mesmo, as condições que somente por causalidade tenham desencadeado o resultado serão juridicamente irrelevantes. Ademais, esta teoria permite que sejam eliminados os nexos causais totalmente inusuais e também que seja evitado o regressus ad infinitum da teoria da equivalência “ao poder aceitar que os antepassados do delinqüente jurídico-penalmente nem sequer sejam causa dos fatos perpetrados por estes (ainda que os partidários da teoria da equivalência neste caso acreditem que só se poderia chegar à absolvição negando o dolo ou a culpa)” e permite também a exclusão dos cursos causais extravagantes (ROXIN, 1997, p. 359-60).
A teoria da adequação tem se precisado e se afirmado ao longo dos anos. Hoje, parte-se da idéia de que uma condição é adequada, adaptada ao resultado, somente se tiver aumentado, de modo relevante, a possibilidade de tal. Tem-se, também, aclarado esta teoria no sentido do chamado prognóstico objetivo-posterior: “o juiz deve colocar-se posteriormente (ou seja, no processo) no ponto de observação de alguém objetivamente julgue antes do fato e disponha dos conhecimentos de um homem inteligente do correspondente setor de tráfego e, ademais, do saber especial do autor” (ROXIN, 1997, p. 359-60). Esta teoria, cumpre observar, não pode ser uma teoria causal, senão que uma teoria da imputação, ou seja, não aponta quando uma circunstância é causal para um resultado, e sim intenta responder a pergunta: quais circunstâncias causais são juridicamente relevantes e podem ser imputáveis a um agente?. Mas, não obstante, quando se considera que com a adequação de um curso causal está solucionado o problema da imputação, poder-se-á ver que, sozinha, a teoria da adequação é insuficientemente, inclusive como teoria da imputação. Por isso, limita-se esta teoria, em seu âmbito operativo, essencialmente, a excluir a imputação nos cursos causais anômalos ou inusuais. Logo, “o princípio de adequação só é um elemento estrutural, se bem que certamente importante, dentro de uma teoria geral da imputação; forma parte da mesma e já não necessita de um tratamento separado no marco de uma teoria independente” (ROXIN, 1997, p. 360-361).
A teoria da imputação objetiva, em apertada síntese, em sua forma mais simplificada, manifesta-se a imputação objetiva no seguinte sentido: um resultado somente pode ser imputado ao agente como obra sua quando seu comportamento criar um risco não permitido para o objeto da ação, e este risco se realiza no resultado concreto e este resultado há de se encontrar dentro do alcance do tipo (ROXIN, 2006, p. 104). Em muitíssimo apertada síntese, a imputação ao tipo objetivo pressupõe a realização de um perigo criado pelo autor e não acobertado por um risco permitido dentro do alcance do tipo (ROXIN, 2006, p. 364). Essa teoria, que hodiernamente já se tem firmado em boa parte da literatura jurídica, como demonstrado por Roxin em seus inúmeros escritos, é capaz de solucionar satisfatoriamente as questões a ela submetidas, pois, com precisão sistemática, delimita o tipo objetivo e, em efeito, reduz e dele afasta as hipóteses de resultados que a tal se devem imputar. Fixada em uma base de princípios normativos, a imputação objetiva decide conforme as regras gerais de causalidade e imputação se a lesão ao bem jurídico pode ou não ser imputada ao agente como obra sua. Ademais, demonstra a imputação que nos delitos comissivos, de antemão se torna possível inferir que em hipótese alguma é possível a imputação objetiva se o autor não tiver causado o resultado. Torna-se possível também perceber que pode a imputação ainda faltar, mesmo que o autor tenha causado o resultado, quando esta causação dever-se à pura causalidade. Muito diferente das dogmáticas anteriores, a imputação ao tipo objetivo indica desde já as circunstâncias que fazem de uma causação uma ação típica. E, por isso, mostra com meridiana clareza sua superioridade para a com a teoria da ação final e sua adequação social.
VI – OBJEÇÕES DOS “JOVENS” FINALISTAS AO TIPO E AO FUNCIONALISMO TELEOLÓGICO-RACIONAL DE CLAUS ROXIN
Não obstante, há quem diga que a imputação objetiva não pode representar o que se aduz aqui e em diversos escritos firmados na doutrina jurídico-penal, seja europeu-continental seja latino-americana. Inúmeras críticas são direcionadas tanto à teoria da imputação objetiva como ao funcionalismo teleológico-racional de Claus Roxin; e, é claro, também para as demais concepções funcionalistas, em especial a de Günter Jakobs. Mormente partem tais críticas de adeptos da teoria finalista da ação. Muitos, inclusive se autodenominam “finalistas ortodoxos”. Estes autores, herdeiros diretos e indiretos de Welzel, buscam apegar-se em pontos que entendem obscuros ou falhos da doutrina de Roxin e, em seguida, com isso, a minorar e até, frustradamente, tentar torná-la sem qualquer valor sistemático. Mas, como adiante se demonstrará com o rechaço a algumas críticas[viii], este objetivo não é – e não será – tão facilmente alcançado, pois, o funcionalismo teleológico-racional, doutrina que aqui se segue, é, de fato, uma construção extrema e rigorosamente elaborada. Arquitetado de forma a novamente aproximar a ciência jurídico-penal da realidade social que, desde há muito, quando buscou sua razão em um universo pré-constituído, dela havia se apartado, o funcionalismo teleológico busca, pautando-se em uma racionalidade material, empírica, ao invés de uma razão meramente formal, fazer de fato valer as premissas de um Estado de Direito. Por isso, só por isso, desde já está evidenciado que as críticas não passam de mero ato de agonia.
Pois bem, uma das críticas destinadas à imputação objetiva, é de que ela distingue [incorretamente] o tipo objetivo do subjetivo. Luis Régis Prado e sua discípula Érica Mendes de Carvalho afirmam que a doutrina da imputação objetiva “desconhece” que os tipos objetivo e subjetivo não podem operar isolada e “discordantemente”, e que essa “ignorância” seria fatal[ix]. De forma um pouco mais elaborada, Luis Gracia Martín acusa que não se pode conceber uma separação entre tipo objetivo e subjetivo em dois níveis independentes de imputação ou de apreciação, pois o tipo seria uma unidade “final-causal”, indissolúvel de sentido[x]. Mas isso não ocorre bem assim. Pois bem, a teoria da imputação objetiva não conjuga tipo objetivo e tipo subjetivo como separadamente no sentido unidades distintas. Muito pelo contrário, assim como o diz fazer a doutrina da ação final, a imputação teleologicamente orientada apenas os distingue por questões didáticas e metodológicas. Na verdade, a diferença radica no fato de que na imputação objetiva confere ao tipo objetivo maior importância do que a ele ofertou o finalismo. Ora, o causalismo reduziu o ilícito dos delitos ao nexo de causalidade, o que, conseqüentemente, conduziu ao conhecido regressus ad infinitum, e é ai que falha uma teoria do tipo causal, pois não alcança delimitar um respectivo delito. A doutrina da ação final, muito embora tenha conferido avanço à teoria do tipo ao posicionar o dolo no tipo subjetivo, na realidade em nada desenvolveu o “conceito” de tipo objetivo causalista, ou seja, apenas deslocou o centro de gravidade do delito para o tipo subjetivo, o qual privilegiou em detrimento do objetivo. Mas, depois dos estudos funcionais, este é um quadro que já não mais se sustenta. Ora, está evidente, pois, que, o núcleo central da teoria do tipo deve ser sua face objetiva e não a subjetiva. A moderna teoria da imputação objetiva, como já dito, confere maior importância ao tipo objetivo, ou seja, o centro de gravidade do delito é novamente deslocado para a face objetiva do delito. Mas isto, cumpre observar, não se dá como no tipo causalista. Por outro lado, o dolo no tipo subjetivo é plenamente compatível com a imputação objetiva. Diferente é, pois, a concepção de ação. Na imputação objetiva não somente o direcionamento consciente do curso causal no sentido do resultado pode ser considerado uma ação típica, mas toda causação objetivamente imputável de um resultado. E aqui, o dolo não interfere decisivamente, pois não é ele que cria a ação típica, podendo, portanto, nela existir ou estar ausente (ROXIN, 2006, p. 115-16)
Os atuais defensores da concepção finalista desferem amargas críticas ao funcionalismo teleológico-racional, de base normativista. Luis Régis Prado e Érika Mendes de Carvalho acusam a imputação objetiva, espinha dorsal do funcionalismo teleológico, de representar um “risco à segurança jurídica”[xi]. Hirsch, o último “grande” finalista alemão, de seu turno, afirma que a imputação objetiva faz com que se perca “o nexo com a prática da vida jurídica”, e, com isso, faz com que ocorra uma minimização da dogmática, e esta minimização abriria caminho para a “arbitrariedade” e a conseqüente perda do Estado de Direito[xii]. No mesmo sentido, o professor mexicano Moreno Hernández. Este aduz que a doutrina de Roxin dá azo a um “exercício ilimitado ou arbitrário do poder estatal em detrimento dos direitos individuais”[xiii]. Podem até ter, em certa medida, parcial razão. Com efeito, esta, sem dúvida, é uma preocupação que sempre acompanhou a doutrina finalista desde seus primórdios. Vale lembrar que Welzel observou de perto a assunção do poder pelo nacional-socialismo. Por isso, além de outros motivos, buscou ele em sua construção princípios e valores independentes da vontade estatal, que, inclusive, a esta deveriam fazer oposição. Esta parece ser uma preocupação legítima. No entanto, há que se observar, primeiramente, que nem mesmo uma concepção ontológica do direito penal ou um conceito finalista de ação pode evitar tal perigo[xiv]. Ora, uma das formas de tentar se evitar os excessos estatais é insistir nos direitos humanos e nas liberdades invioláveis. De regra, os ordenamentos jurídicos contemporâneos, ao menos teoricamente, possuem em seus respectivos corpos núcleos duros, imutáveis, nos quais são alocados os direitos e as garantias de liberdade que devem observar. Este é, com efeito, o caso do Brasil. Quando acolhidos constitucionalmente, devem ser respeitados e sua realização torna-se obrigatória para qualquer dogmática que argumente político-criminalmente. Neste sentido, Roxin esclarece que, quando se extrai de direitos fundamentais possibilidades de exclusão jurídico-penais, isso tem um efeito pragmático: “uma política criminal que deseje fundamentar o sistema do direito penal tem de acolher em seu bojo os direitos humanos e de liberdades internacionalmente reconhecidos. Onde isso não ocorre, os preceitos e interpretações não passam de exercício do poder, mas não são normas ou conhecimentos jurídicos”[xv]. Por isso, desde há muito se sabe que uma dogmática político-criminalmente fundada, ao contrário do que aduzem os finalistas, não dá azo a tendências autoritárias, mas sim garante a liberdade civil. E isto, com efeito, em maior medida do que a mera fixação em teorias ônticas o conseguiria fazer. Portanto, em uma linha: completamente infundada a acusação.
Alguns opositores da moderna doutrina da imputação objetiva aduzem que os casos que esta tenta abarcar, em verdade, seriam satisfatoriamente resolvidos, e somente assim resolvidos, no tipo subjetivo. Assim, os jovens Luis Régis Prado e Érika Mendes de Carvalho afirmam que a solução adequada aos problemas formulados pela doutrina da imputação como abarcáveis pelo tipo objetivo, deveras, se resolveriam precisamente no tipo subjetivo, pois, para eles, neste é que se atribui o sentido a uma ação típica. Luis Gracia Martín afirma categoricamente que não pode haver a criação de um perigo penalmente relevante com a independência do tipo objetivo, pois a realização do tipo penal seria absolutamente dependente da vontade de realização do autor e, portanto, do dolo (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 20-21), e “velho” Hirsch, vai mais além quando afirma que é possível notar que a doutrina da imputação trata de diversos fenômenos, portanto, de natureza diversa, e que, por isso mesmo, somente podem ser resolvidos sem a sua presença. Os casos de desvio essencial do curso causal, assim como os casos em que o autor não pode conduzir o resultado típico representado como factível seriam, assim, para ele, não problemas do tipo objetivo, mas do tipo subjetivo, do “dolo do tipo” (HIRSCH, 2003, p. 17-18). Mas, como ensina com muita clareza o professor Claus Roxin, desde a perspectiva finalista, tem-se que nos casos de desvios dos cursos causais o dolo deve abranger o curso causal em suas linhas gerais; e, no caso de um desvio essencial deve-se excluir o dolo. Isso equivale a dizer que a doutrina finalista, cuida aqui do caso apenas com a exclusão ou não do dolo, isto é, do tipo subjetivo. Esta é uma solução apenas aparente, porque o decisivo é se existe ou não um desvio essencial. E isto, definitivamente, é um critério objetivo e não um problema do dolo. Logo os problemas abarcados pela teoria da imputação objetiva são, com efeito, problemas do tipo objetivo e não do subjetivo, como querem os jovens e velhos adeptos do finalismo. Conclui com precisão o mestre: o deslocamento dos problemas de imputação objetiva ao âmbito do dolo nada mais faz do que os travestir de um subjetivismo estranho a sua natureza, o que, além disto, obscurece as respectivas soluções “através do uso de elementos pobres de conteúdo como a ‘essencialidade’” (ROXIN, 2006, p. 106-07).
Disse-se que seria incorreta a criação de um perigo juridicamente relevante sem se levar em consideração o tipo subjetivo. Mais incorreta ainda parece ser, considerar preenchido o tipo objetivo para se negar o subjetivo, quando na verdade desde já não há a criação ou a realização de um risco não permitido, ou ainda que isto ocorra, a causação do resultado não se encontra na esfera de proteção do tipo. Ou seja, ainda que em determinados casos esteja o dolo ausente, isto ocorre por lhe faltar qualquer ponto referência objetivo e não pela mera negação do dolo (ROXIN, 2006, p. 127-28). E Hirsch, afirmou que a teoria da imputação objetiva trata de fenômenos de natureza diversa e que, portanto, melhor se resolveriam sem ela. Aqui, cumpre chamar para responder o próprio Roxin, ou seja, Hirsch assim acusa, mas sequer menciona quais seriam as “melhores” maneiras que supostamente resolveriam melhor os problemas abarcados pela teoria da imputação objetiva. A teoria da imputação objetiva, pelo contrário, funda-se em princípios político-criminais de uma proteção a bens jurídicos no estrito limite do Estado de Direito e possui, portanto, uma fecunda base teórica e satisfaz perfeitamente as exigências de uma sistemática fundada sobre finalidades político-criminais. Portanto, nas palavras de Roxin, “a teoria está bem longe de constituir unicamente uma etiqueta para uma série de problemas diversos e desconexos, como pensa Hirsch”(ROXIN, 2006, p. 131).
Para Luis Régis Prado e Érica Mendes de Carvalho, a imputação objetiva significa “de certo modo” um retorno às dogmáticas causalistas, pré-finalistas, pois não observam o tipo subjetivo no primeiro plano de análise valorativa (PRADO, CARVALHO, 2005, p. 105). E Hirsch, ao seu turno, afirma que a teoria da imputação objetiva introduzida por Roxin com o apoio das conexões de Ronig não passa do ressurgimento de uma “relíquia do tempo do sistema dogmático anterior”, superada até então (HIRSCH, 2003, p. 29). Moreno Hernández acusa que a “volta ao normativismo”, que implica a imputação objetiva, em certa medida, conduz a um retorno ao positivismo jurídico (MORENO HERNÁNDEZ, 2001, p. 611-12). Estas acusações, destarte, a guisa das anteriores, também não se mostram corretas.
Pois bem, é bem verdade que as raízes históricas da teoria da imputação objetiva remontam até a filosofia jurídica de Hegel, e que de tal, Larenz, em 1927, extraiu uma concepção de imputação objetiva que seria subseqüentemente aplicada por Honig, especificamente na dogmática jurídico-penal. De fato, com apoio nas concepções de Honig e Larenz, Claus Roxin delineou em 1970 o princípio do risco. Mas, na verdade, cumpre salientar, Roxin encontrou nas concepções de Larenz e Honig apenas um ponto de partida para a construção de um dos pilares fundamentais de seu edifício intelectual. E isso, definitivamente, não significa que a concepção moderna de imputação objetiva conduza ao contexto em que forma cunhadas as antigas. A moderna teoria da imputação objetiva possui sim um campo de aplicação bem mais extenso que a primitiva, de Larenz e Honig (ROXIN, 2006, p.,125-126). Mas este dado somente faz significar que Roxin tem aprimorado a dogmática com suas contribuições, principalmente no que tange à imputação objetiva, o que demonstra e comprova que a dogmática jurídico-penal não pode – e não deve – encerrar seu desenvolvimento com o obtido pelo finalismo de e pós Welzel.
Demais disso, quando se parte da idéia de que todas as categorias do sistema de Direito Penal se baseiam em princípios reitores político-criminais, que ainda não contém a solução para os problemas concretos e que serão aplicados na “matéria jurídica” aos dados empíricos, obviamente se chegará a conclusões diversas. Mas isto, por si só, não deve conduzir a algo semelhante o “positivismo jurídico” do passado. Pelo contrário, apenas se poderá chegar, sim, a decisões adequadas à realidade social e, inclusive, em consonância com o sistema de Direito Penal; o que já demonstra o quão melhor pode ser apoiar-se em uma base normativista. Portanto, não se mostram, de maneira alguma, consistentes também tais acusações.
Luis Régis Prado e Érika Mendes de Carvalho afirmam que se busca na doutrina da imputação objetiva uma elaboração de uma “teoria do tipo”, no entanto, devido ao não exame do conteúdo da vontade do autor, essa busca converte-se em uma “teoria incorreta do tipo”, em efeito, não consegue explicar ou captar o sentido social da ação concreta. Segundo pensam, o que em verdade se daria, seria um retorno ao primitivismo objetivo, uma vez que não seria possível determinar o sentido social de uma ação sem o exame do conteúdo de vontade do autor. Pensam, e afirmam, que determinação do sentido social da ação exige conferir importância à unidade de elementos objetivos e subjetivos a que se encerra, e não somente aos elementos objetivos, pois estes seriam incapazes de dotar sentido a uma determinada conduta (PRADO, CARVALHO, 2005, p. 108-10).
Parece que se esquecem que, como já dito, a teoria da imputação objetiva não representa um retrocesso, senão que um aprimoramento à teoria do tipo penal, encerrada até então nos avanços impostos por Welzel e o finalismo. Quando Roxin se esforçou para extrair dos princípios reitores político-criminais a fundamentação de um sistema de Direito Penal, conseqüentemente, a reestruturou das categorias do delito à luz de tais princípios, conduziu, de fato, a dogmática à elaboração de uma teoria do tipo penal; que pode sim ser considerada ainda em elaboração, jamais de tudo incorreta. Para conclusões “universais”, como a pretensão ideológica finalista, obviamente não conduzirá a imputação objetiva, porque quando se submetem casos concretos a um sistema político-criminalmente fundado, aberto aos dados empíricos, certamente serão obtidas soluções diversas; mas isto, em absoluto, não deve ser enxergado como um retorno ao “positivismo primitivo”, onde a realidade da administração da justiça era algo bem distinto do que se tem hoje. Em verdade, como bem lembra Schünemann, a imputação objetiva determina, assim, o exato sentido social da ação, pois não há como negar que decisões estritamente vinculadas à realidade social, em observância aos dados empíricos e em consonância com os princípios político-criminais reitores do sistema de Direito Penal, os princípios de direitos humanos e as garantias de liberdades individuais, vão de encontro ao “sentido social da ação concreta”. O mesmo não se pode dizer de um sistema que visa, basicamente, a adequação da realidade fática a uma realidade ôntica, a dados pré-jurídicos, que busca uma adequação sistemática do ser ao dever ser, e não o contrário; e isto conduz a uma tentativa [vazia] de se amoldar à realidade social ao Direito, quando na verdade, o Direito é que deve se amoldar ao fato social (Cf.: SCHÜNEMANN, 2003, p. 30). Ora, quando se apóia uma acusação como esta no fato de que a imputação objetiva “não examina o conteúdo de vontade do autor”, logo se vê o quão frágil se mostra a acusação, pois esta última afirmação demonstra que se esquece – ou não quer se lembrar – que a imputação objetiva apóia-se também em dados subjetivos; ainda que estes não sejam exatamente idênticos ao “conteúdo de vontade do autor” finalista. Vale lembrar que este é um elemento que pode ou não estar presente em uma ação. Mas isto, não é o definitivo para torná-la uma causação de um resultado imputável ao tipo objetivo, e sim a presença ou não de elementos de imputação, cujo caráter, com efeito, é exatamente objetivo. O “dolo”, na perspectiva da imputação objetiva, não é um elemento descartado, senão que tomado em análise em um momento posterior, quando da imputação ao tipo subjetivo e, portanto, em observância a critérios específicos. Tudo isso, sem sombra de dúvidas, evidencia, uma vez mais, a superioridade da doutrina propugnada por Claus Roxin.
Acusam a teoria da imputação objetiva de não cumprir seu objetivo inicial, qual seja, separar do mero acaso e da causalidade aquilo que de fato pode ser imputado como obra do autor. Os jovens finalistas afirmam que tal missão não é possível exclusivamente através do tipo objetivo, sem levar em conta a direção de vontade do autor (PRADO, CARVALHO, 2005, p. 96). Luis Gracia Martín segue no mesmo sentido. Afirma que somente se poderia imputar a um sujeito como obra sua aquilo que dependesse exclusiva e absolutamente de sua vontade de realização (PRADO, CARVALHO, 2005, p. 22). Ao que parece, os finalistas desconhecem que a teoria da imputação objetiva depende não somente dos fatores objetivos, mas também de subjetivos. E isto já muito repetido e de início já esvazia a acusação em apreço. Mesmo assim, uma explicação mais aproximada do subjetivo na imputação objetiva não pode ser negada. Pois bem, para a aferição da existência da criação de um risco, tem-se como decisivo o ponto de vista de um observador prudente antes da prática do ato (ex ante); e a este observador deve-se acrescentar os conhecimentos especiais do autor concreto. Este conhecimento especial do autor, que é um dado subjetivo, fundamenta a criação ou a realização do perigo e, via de conseqüência, a imputação ao tipo objetivo. No alcance do tipo fatores subjetivos desempenham também, e comumente, um papel decisivo, como, por exemplo, quando a imputação ao tipo objetivo encontra seus limites na auto-responsabilização da vítima (ROXIN, 2006, p. 120-121). Portanto, resta comprovado que também os fatores subjetivos podem desempenhar um papel na imputação objetiva. Como bem assinala Roxin, a imputação objetiva chama-se “objetiva” não porque as circunstâncias subjetivas lhe sejam irrelevantes, mas sim porque a ação típica constitui-se pela imputação, e isto é algo objetivo. Ao objetivo, só posteriormente, e ainda se for o caso, se acrescenta o dolo, no tipo subjetivo. Ao tipo subjetivo, assim como no finalismo, para a doutrina da imputação, pertencem os elementos subjetivos do tipo, como o dolo e os elementos subjetivos do injusto. Os conteúdos de consciência que não são elementos do tipo, mas que têm importância unicamente para o juízo de perigo ou para a distribuição da responsabilidade entre os diversos participantes, dizem respeito à imputação ao tipo objetivo. De qualquer maneira, deve-se ter sempre em mente, em oposição a acusação finalista, que a imputação objetiva também é influenciada por critérios subjetivos (ROXIN, 2006, p. 122). Por tudo isso, não há como crer que a teoria da imputação objetiva não consiga cumprir o seu objetivo inicial. Muito pelo contrário, tem-se que esta o faz assim como proposto por Roxin e, com efeito, o faz com precisão do ponto de vista sistemático, assim como com maior justeza, desde o ponto de vista dos fins político-criminais que informam o Direito Penal no Estado de Direito; o que, novamente, põe em evidência sua superioridade em relação às doutrinas anteriores.
Gracia Martín afirma que se trata a imputação objetiva de um procedimento sistematicamente incorreto e que, por isso, não pode ser concluído sem que incorra em graves contradições (GRACIA MARTÍN, 2005, p. 21). Moreno Hernández aduz que o normativismo implica um formalismo (MORENO HERNÁNDEZ, 2001, p. 610-11). E Hirsch discursa que resulta duvidoso que se possa pensar em um sistema radicalmente novo, concluindo que não se seguiu à construção de sistema proposta por Welzel, qualquer outra construção dogmática de natureza fundamental convincente (HIRSCH, 2003, p. 24).
Pois bem, depois de tudo que já foi demonstrado neste escrito, além, é claro, do que já firmou o próprio professor Claus Roxin e, evidentemente, seus discípulos, notadamente o grandioso professor Bernard Schünemann, fica difícil concordar com a crítica do eminente professor espanhol Luis Gracia Martín. Um sistema teleológico-racional, político-criminalmente fundado, como por vezes já se disse, não chegará a idênticas soluções nos semelhantes casos a ele submetidos. A razão disto radica na própria essência de sociedade que ao Direito cumpre regular. Mas isto não significa que sejam contradições, senão que necessários provimentos jurídico-penais adequados às individualidades de fatos emanados em contextos sociais reais. Ou seja, uma aproximação do Direito à realidade social.
Dizer com base no ontologismo finalista que o normativismo, base do sistema funcionalista teleológico-racional, implica em um formalismo, é algo que soa um tanto descompassado, como se uma orquestra tocasse uma sinfonia acompanhada do som de uma britadeira pneumática e isto fosse algo absolutamente natural. A pergunta é simples: como poderia conduzir um sistema que formula, desde os pontos de vista empírico e político-criminal, a apreciação individualizada de casos a ele submetidos ao formalismo? Mais bem parece a isto conduzir um sistema que se funde em dados pré-jurídicos, pré-definidos e apartados, em efeito, da realidade da vida em sociedade, pois quando a ele se submetem os casos concretos, são estes subsumidos ou não a uma verdade ideal já estabelecida, e daí se dará a solução; como um objeto que se adapta ou não a uma embalagem já pronta, onde serve aquele que nela entrar e é descartado aquele que isto não fizer. Ora, se para Moreno Hernandez isso não conduz a um formalismo, deve reconhecer que muito menos conduzirá a doutrina de Claus Roxin, a qual, evidentemente, dá aos casos a ela submetidos resultados perfeitamente adequados desde o ponto de vista político-criminal do Estado de Direito assim como do ponto de vista sistemático. E isto, em definitivo, não pode conduzir ao formalismo.
Quanto à acusação de Hirsch, depois de tudo que foi dito, vale, em resposta, transcrever apenas as palavras do próprio professor Roxin sobre o comentário: “depois de tudo fica difícil concordar com a afirmação de Hirsch, um dos últimos defensores engajados do finalismo atualmente, no sentido de que ‘desde a reconstrução do sistema operada por Welzel, não surgiram concepções dogmáticas fundamentais consistentes’” (ROXIN, 2001, p. 17).
Pode-se dizer que todas as críticas desferidas contra a teoria da imputação objetiva até agora giraram em torno de uma, o afastamento desta teoria das estruturas lógico-objetivas do finalismo. Por exemplo, Moreno Hernández acusa as construções funcionalistas de não convincentes, por se fundarem em perspectivas eminentemente normativas ou teleológicas, em efeito, posicionam-se alheias ao ponto de vista ontológico (MORENO HERNÁNDEZ, 2001, p. 607). Luis Régis Prado e Érica Mendes de Carvalho, a seu turno, afirmam que a teoria da imputação objetiva, como uma teoria de valoração externa da conduta, para ser válida deveria reconhecer e respeitar a estrutura ontológica da ação final como uma unidade final-causal, de modo que, assim, todos os critérios da imputação objetiva passariam a constituir “limites externos ou critérios externos da valoração da ação finalista, ação que em princípio concorrem os elementos objetivos e subjetivos do tipo” (PRADO, CARVALHO, 2005, p. 96). E Hirsch, o grande, chega a acusar o ponto de partida da metodologia teleológica, o normativismo, de “idealmente mais cômodo e cientificamente mais difícil de verificar” e, ademais, de estar afastado do verdadeiro caráter científico do método jurídico-penal (HIRSCH, 2003, p. 16). Nada obstante, mas não há como concordar com tais afirmações.
Pois bem, o problema metodológico entre a preponderância de uma dogmática aberta, normativa, sobre uma fechada, ontológica, e vice-versa não é algo novo, que se deva à concepção do professor Roxin, senão que é algo que acompanha a ciência penal desde seus primórdios. Assim, como com razão Carlos Daza Gómes, ao “conceito concreto geral” de Hegel, já conduziria um desenvolvimento dialético entre tópica e sistemática, conceito que, em efeito, se apartaria do tradicional “conceito abstrato geral”, e poderia assim concluir “que – segundo Würtenberger – cada conceito categorial do sistema deveria ‘ser posto em uma relação mais ampla e ser considerado desde o todo’, é dizer, desde o sistema” (GÓMEZ, 1999, p. 141-142). Logo, quando Roxin, com base em um pensamento dialético, abriu o sistema, fixando-o em uma base normativa, empregou, não um retrocesso, senão que um grande avanço na ciência jurídico-penal, pois, com isso, fez com que surgisse uma nova visão de Direito Penal. A proposta teleológica político-criminal [funcionalista] realizou, por assim dizer, “uma verdadeira revolução copernicana” na ciência jurídico-penal, pois, com ela, permitiu-se que a dogmática, até então encerrada em seu edifício conceitual formal, se abrisse para a realidade. Mas o diferencial entre o sistema teleológico-racional do sistema final-causal, no campo do ilícito, como mostra Roxin, não se limita à abertura para o empírico e para a política criminal, e sim estende-se também ao fato de que naquele sistema não se reconhece a ação típica como um dado exclusivamente prévio ontológico, e sim também como produto de uma valoração legislativa (ROXIN, 2001, p.15-17).
E o ponto de partida do trabalho dogmático, ademais, consiste, como bem coloca Schünemann, em princípios normativos, como, por exemplo, o da danosidade social e o da culpabilidade, que infinitamente subministram melhores condições para o trabalho científico. As circunstâncias empíricas, de seu turno, passam a desempenhar cada vez mais um papel fundamental no desenvolvimento concretizador dos princípios normativos, o que vai resultar nos denominados “princípios-ponte”. Mas a interpretação das leis tem que desenvolver os princípios normativos de modo tal que sejam tomadas em conta, também, as estruturas ontológicas (SCHÜNEMANN, 2003, p. 30). E isto conduz que: “(1) Em uma aplicação correta da dogmática jurídico-penal, os pontos de vista normativista e ontologista não se excluem em si, senão que se complementam um ao outro. Em efeito, o ponto de partida normativo decide quais estruturas da realidade são juridicamente relevantes. Ao mesmo tempo, no ultimo desenvolvimento e concretização dos princípios normativos, devem ser tomados em consideração os detalhes da estrutura daquele setor da realidade que é declarado normativamente como relevante; e, (2) no discurso dogmático concreto, os argumentos normativos e empíricos vão vinculados uns aos outros e se entrelaçam como em uma roda dentada, com o qual não se chega por geral a conflitos ou contradições, já que os juízos normativos se referem sempre à realidade e são emitidos no marco da linguagem coloquial, o que não se desenvolve arbitrariamente, senão que na maioria dos casos reproduz sempre a realidade” (SCHÜNEMANN, 2003, p. 30).
Ora, tudo isso somente está a demonstrar que, o fato de não se vincular estritamente às estruturas lógico-reais prévias, mas as observar em consonância os princípios reitores e aos dados empíricos, não transforma o método normativista em algo “incorreto”, “não convincente” ou “afastado do verdadeiro caráter científico do método jurídico-penal”, mas sim que está o mais próximo possível da realidade. Em uma linha: não procedem quaisquer das acusações desenvolvidas pelos finalistas.
VII – BREVES CONSIDERAÇÕES
Como se pôde notar, a evolução que trouxe ao tipo penal a teoria da ação final limitou-se ao reconhecimento do tipo subjetivo, porque o tipo objetivo continuava a ser aperfeiçoado de modo meramente causal, no sentido da teoria da equivalência dos antecedentes, assim como ocorria na teoria da ação causal. Com isso, continuava o tipo objetivo demasiado extenso e, portanto, fazia-se necessária a elaboração de um método que pudesse restringir o tipo objetivo, um método que operasse de forma racional e que satisfatoriamente solucione os problemas [do tipo objetivo] não solucionados pelas doutrinas causal e final. Então, propôs-se a solucionar tais problemas a teoria da imputação ao tipo objetivo, segundo os delineamentos do sistema funcionalista teleológico racional de Claus Roxin. A partir desta concepção, tornou-se possível solucionar satisfatoriamente os problemas que não o foram – e nem seriam – pela teoria finalista da ação, nem mesmo com sua “adequação social”. Além do mais, mostrou-se a doutrina funcional como capas de limitar consideravelmente o regressus ad infinitum da teoria causal já campo do tipo objetivo, o que não foi alcançado pelo finalismo.
Pode, não restam dúvidas, a teoria da imputação objetiva de Claus Roxin delimitar o tipo penal objetivo de forma mais precisa e técnica que os métodos das doutrinas pré-funcionais. Isto porque a imputação objetiva não compreende o tipo objetivo cumprido apenas com o estabelecimento da relação causal no sentido da teoria da equivalência, senão que indica desde já as circunstâncias que fazem de uma causação, como limite extremo da possibilidade de imputação, uma ação típica se, v.g., uma causação de morte é uma ação homicida relevante. Em suma, a imputação objetiva manifesta-se nos seguintes termos: um resultado somente pode ser imputado ao agente como obra sua quando seu comportamento criar um risco não permitido para o objeto da ação, este risco se realiza no resultado concreto e, ainda, este resultado encontra-se dentro do alcance do tipo.
Mas para se impor a imputação objetiva na teoria do tipo penal, é preciso antes que se revise o ponto de partida do tipo penal. Mostra-se, pois, fecunda uma reformulação do tipo de injusto penal, de base normativa, abrangente de elementos positivos como os elementos negativamente formulados. Faz-se necessário, junto à teoria da equivalência, reconhecer-se a incidência do princípio da adequação como teoria da imputação, pois, para a imputação objetiva em uma concepção teleológica, há que se ter em conta a conjunção indissolúvel destes dois elementos como elementos estruturais de uma imputação [superior] ao tipo objetivo; e nunca vistos de forma isolada, como teorias causais opostas.
Diferentemente das dogmáticas anteriores, a imputação ao tipo objetivo indica desde já as circunstâncias que fazem de uma causação uma ação típica, e, assim, distingue do acaso e da mera causalidade aquilo que pode se imputar ao autor como obra sua; e, não somente por isso, mas por tudo o que se pôde demonstrar ao largo deste estudo, mostra-se esta teoria imensuravelmente superior às que a ela se opõem. Mas, não obstante, há ainda na literatura científica quem a ela, assim como o funcionalismo teleológico racional de Claus Roxin, afirme objeções. Mas, sempre, cumpre observar, objeções carentes de consistência, portanto, infecundas.
A teoria da imputação objetiva pode sim evitar excessos estatais, e com maior rigor do que a concepção ontológica do finalismo, pois a imputação objetiva insiste na observância aos direito humanos e nas liberdades invioláveis de forma que por nenhuma outra concepção é feita. E isto, com efeito, é o que, sem sombra de dúvidas, unicamente pode evitar os excessos de um Estado autoritário. Por isso o funcionalismo teleológico e sua imputação objetiva, ao contrário do que acusaram, não abre o caminho à arbitrariedade, mas sim o fecha. De fato, pode-se arriscar, blinda as portas para tal intento. E isto é algo que jamais alcançaria qualquer concepção apoiada apenas em estruturas lógico-objetivas. Vale, inclusive, nesse sentido lembrar que o próprio professor Roxin esclareceu que se uma política criminal que fundamente o sistema de direito penal não acolhe em seu bojo os direitos humanos e as liberdades internacionalmente conhecidos, seus preceitos e interpretações não passam de exercício de poder (ROXIN, 2001, p.15-17). Portanto, uma dogmática político-criminalmente fundada, como a proposta por Claus Roxin, ao contrário do que aduzem os finalistas, somente garante maiormente a liberdade civil.
A imputação objetiva não representa um retrocesso, tampouco é uma relíquia já superada. Pelo contrário. A moderna imputação possui um campo de aplicação muito mais extenso que o das primitivas teorias de Larenz e de Honig. E isto somente demonstra que Claus Roxin aprimorou – e continua a aprimorar – esta construção teórica com suas inúmeras contribuições. Além do mais, a teoria da imputação objetiva, da forma como se apresenta hodiernamente, mostra-se fecunda a solucionar os casos concretos a ela submetidos de forma adequada à realidade social e, inclusive, a um sistema de Direito penal; e não apenas e somente a este, como o faz o finalismo.
O objetivo inicial da teoria da imputação objetiva, como demonstrado, pode ser facilmente alcançado. Além de encontrar seu objetivo, a teoria da imputação objetiva o faz com grande precisão do ponto de vista sistemático, assim como com maior justeza do ponto de vista dos fins político-criminais que informam o Direito Penal no Estado de Direito. E isto, definitivamente, põe em clara evidência sua superioridade em relação à doutrina finalista. Não há, portanto, como se negar que um sistema teleológico-racional político-criminalmente fundado, necessariamente confere provimentos jurídico-penais adequados às individualidades de fatos emanados em contextos sociais reais. E que a imputação objetiva dele emanada, junto a tudo, realiza uma verdadeira revolução copernicana na ciência jurídico-penal. E, ademais, que o diferencial disto não se limita à abertura da teoria do ilícito para empírico e para a política criminal, senão que se estende, também, ao fato de que aqui não se reconhece a ação típica como um dado exclusivamente prévio ontológico e sim também como produto de uma valoração legislativa.
Assim, para concluir, como já o disse o próprio Professor Claus Roxin, “depois de tudo, fica difícil concordar com a afirmação de Hirsch, um dos últimos defensores engajados do finalismo atualmente, no sentido de que ‘desde a reconstrução do sistema operada por Welzel, não surgiram concepções dogmáticas fundamentais consistentes’”. Em síntese, não há mais como negar os avanços que a doutrina teleológica e, evidentemente, sua imputação objetiva, impuseram à dogmática jurídico-penal, pois, do contrário, retomar ou manter o finalismo, aí sim, se imporá à Ciência penal um retrocesso que evidentemente não pode ser aceito.
Informações Sobre o Autor
Carlos Henrique Pereira de Medeiros
Mestre em Filosofia, área de concentração Ética e Filosofia Política, pela Faculdade de São Bento – FSB. Professor nos cursos de Direito e Comunicação Social/Jornalismo da Universidade São Judas Tadeu – USJT, Professor no curso de Direito da Universidade Nove de Julho – Campus São Roque FAC/São Roque, Professor no curso de Direito da Faculdade Integrada Torricelli – FIT. Membro de equipe de pesquisa do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba – CCJ/UFPB. Palestrante do Instituto Parthenon. Vice-presidente da Comissão de Assuntos Legislativos e Parlamentares da 57ª Subsecção da Ordem dos Advogados do Brasil