Resumo: Esta pesquisa almeja a construção de um novo modelo de racionalidade jurídica para os processos de recuperação de empresas no Brasil, partindo de um diálogo entre a interpretação jurídica, as políticas públicas e as instituições econômicas. Com este desiderato, inicialmente examina a legitimidade democrática da jurisdição no sistema de freios e contrapesos estabelecido pela Constituição de 1988. Nesse sentido, estuda a natureza da função exercida pelo Judiciário, cotejando-a com os demais centros decisórios do regime democrático. Ademais, discute a forma de legitimação das decisões judiciais no sistema brasileiro atual, abordando os limites jurídicos e políticos impostos para a argumentação. Em seguida, aprofunda o papel exercido pelo magistrado no processo de recuperação de empresas, de modo a investigar eventuais distinções com relação às demandas de natureza diversa. Trata, então, do local adequado para a implementação da política pública de recuperação de empresas de acordo com o sistema da Lei nº 11.101/2005, examinando se há alguma peculiaridade em comparação com as demais políticas públicas. Ainda, perscruta se há uma forma específica de fundamentação das decisões em matéria de recuperação de empresas, objetivando o desenvolvimento de um instrumental analítico que auxilie na construção de um método capaz de conciliar os diversos interesses envolvidos nesse tipo de lide. Por derradeiro, expõe as conclusões do trabalho relativas à necessidade ou não de um novo modelo de racionalidade jurídica para os processos de recuperação de empresas e, em caso positivo, se deve ser desenvolvido a partir das propostas oferecidas. [1]
Palavras chaves: Recuperação de Empresas. Política Pública. Análise Jurídica da Política Econômica.
Sumário: 1. Introdução. 2. A legitimidade democrática da jurisdição. 2.1. A função política do magistrado no sistema brasileiro de freios e contrapesos. 2.2. O engajamento na política pública como fator de legitimação jurisdicional. 3. O magistrado recuperacional como agente responsável pela implementação da política pública. 3.1. O judiciário enquanto arena eleita pelo legislador para a execução da política. 3.2. A adequação da decisão que tutela o interesse da coletividade à luz de dados socioeconômicos: uma possível aproximação com a metodologia do direito concorrencial. 4. Conclusões. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, um dos temas mais debatidos pelos juristas consiste na forma de implementação das políticas públicas necessárias para a garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, bem como na participação do Judiciário nesse processo[2]. Nesse contexto, levando-se em consideração o fato de que a efetividade desses direitos interfere inexoravelmente no desenvolvimento da política econômica nacional, distintos modelos de racionalidade jurisdicional têm sido apresentados como adequados. Em apertada síntese, é possível fazer referência a quatro abordagens distintas para a resolução das demandas: interpretação formal; interpretação substantiva; ponderação de valores; e Análise Econômica do Direito (AED). A despeito da existência de diversos aspectos relevantes em cada um desses modelos, entende-se, de uma forma geral, que nenhum deles logrou efeitos plenamente satisfatórios para viabilizar a harmonia entre a segurança jurídica, a fruição dos direitos fundamentais, o desenvolvimento nacional e a construção de uma sociedade em bases mais equitativas[3].
Com efeito, os defensores da interpretação formalista concentram seus esforços na análise dos dispositivos constantes na Constituição e na lei, não atribuindo grande relevância para as peculiaridades fáticas, mormente no que tange à construção da norma. Interessante observar a utilização nessa linha argumentativa do princípio da reserva do possível, fundado na distinção consagrada na Alemanha de direitos negativos ou de defesa e positivos ou prestacionais. Contudo, essa separação é passível de críticas, tendo em vista que a fruição dos direitos negativos também exige prestações estatais. A rigor, todos os direitos envolvem atuação estatal e custos elevados, inclusive os tradicionalmente denominados de negativos, uma vez que exigem o funcionamento adequado de sistemas políticos, judiciais e de segurança[4]. A seu turno, a interpretação substantiva almeja a proteção dos grupos vulneráveis. Seus corifeus se dividem entre os que adotam uma linha finalista e os que seguem abordagem procedimentalista. O maior problema dessa teoria consiste na desconsideração das implicações de suas escolhas para a ordem econômica. Na prática, é possível que haja perda de competitividade dos empresários brasileiros no cenário internacional ou criação de insegurança decorrente do subjetivismo[5].
A interpretação baseada na ponderação de valores, de outro lado, analisa abstratamente os valores em questão. Contudo, esse cálculo prudencial abstrato não é capaz de vislumbrar as dificuldades da realidade fenomênica. Ademais, evidente a dificuldade na construção de soluções capazes de conciliar os interesses em jogo sem que se verifiquem os problemas concretos. Por derradeiro, a AED se baseia no exame do custo-benefício em busca da eficiência econômica, desprezando os interesses e valores não econômicos. Nesse cálculo, não entram, contudo, alguns valores consagrados pela Constituição como orientadores da ordem econômica, tal como a promoção da justiça social[6].
Esse cenário se aplica para os processos de recuperação de empresas. Atualmente, percebe-se que uma série de divergências doutrinárias e jurisprudenciais decorre do embate entre as aplicações dos modelos descritos acima. Inclusive, percebe-se com facilidade a construção pelos Tribunais de uma interpretação teleológica que se afasta do sentido admitido pelos dispositivos legais, como são exemplos a dispensa de certidões negativas de débitos tributários para a concessão da recuperação, a prorrogação do prazo de 180 dias para a suspensão das ações e execuções contra o devedor, a ilegitimidade ativa do Fisco para ajuizar ação de falência e a aplicação do cram down para aprovação dos planos de recuperação rejeitados pelos credores, nos moldes norte-americanos. Ademais, para justificar a interpretação teleológica, os Tribunais utilizam a ponderação dos valores constantes no próprio ordenamento jurídico. Essa forma de resposta, malgrado apresente diversas vantagens em relação à interpretação formal, não parece alcançar os melhores resultados, tendo em vista que realiza uma avaliação abstrata dos interesses em conflito, resultando em subjetivismo, o que prejudica a segurança jurídica e o mercado de crédito no Brasil. Desse modo, faz-se mister a busca por um novo modelo.
Nesse sentido, importante observar que, atualmente, a dinâmica do Estado vem sendo compreendida por intermédio do instrumental analítico das políticas públicas[7]. Deveras, a partir dos anos 80 o modelo baseado nos grandes sistemas de planejamento exibiu sinais de decrepitude motivados por novas variáveis como as grandes crises financeiras e do petróleo. Assim, fez-se necessária a introdução de mecanismos de respostas estatais mais flexíveis, surgindo nesse contexto a gestão estratégica[8]. Nesse período, outrossim, houve uma cobrança crescente por maior participação democrática, facilitada pelo avanço no campo das comunicações e da informática. Esse conjunto de circunstâncias incorporou à análise estrutural da administração pública uma visão dos fluxos de decisão, isto é, do próprio funcionamento estatal. Tratava-se da construção da ação da máquina administrativa a partir da noção de políticas públicas, um sistema de decisões públicas condicionadas pelo fluxo de reações e valores dos agentes sociais influentes com o desiderato de alcançar determinados fins[9].
No bojo desse movimento, pode-se vislumbrar a construção paulatina de uma política pública de recuperação de empresas no Brasil. Com efeito, constatando-se a insuficiência do modelo traçado pelo Decreto-lei 7.661/1945 para a realidade econômica do final do século XX, entrou na agenda governamental o debate relativo ao desenvolvimento de uma nova sistemática. Formulou-se, então, o Projeto de Lei 4.376/1993, que, após mais de dez anos de intensos debates democráticos, foi sancionado em 2005. Em síntese, o novo modelo conta com uma amplitude muito maior, soluções diversificadas, distinção entre a sorte da empresa e do empresário e uma carga axiológica expressa. Os arts. 47 e 75 da Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperações e Falências – LRF) fazem referência a valores como manutenção da fonte produtora, dos empregos e dos interesses dos credores, preservação da empresa, função social, estímulo à atividade econômica, bem como preservação e otimização da utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos.
Naturalmente, o sistema de recuperação de empresas não se resume à sua esfera judicial. Com efeito, são também medidas imprescindíveis para a superação das crises econômico-financeiras oferta de crédito por bancos públicos e privados, capacitação de profissionais, adequação da carga tributária, entre outras. Vale ressaltar que o sistema de insolvência constitui elemento fundamental do mercado de crédito e, portanto, imprescindível ao desenvolvimento econômico nacional. Ademais, os mecanismos de recuperação de empresas se apresentam como um eficiente meio de amortecer as adversidades da conjuntura econômica. Entretanto, os números de empresas efetivamente recuperadas no Brasil representam percentual muito baixo[10]. Desde a entrada em vigor da LRF, apenas 178 empresas conseguiram encerrar a recuperação judicial de um total de 1.136 sentenças de concessão (com dados até maio de 2014)[11]. Ainda assim, os empresários vêm se utilizando cada vez mais do portfólio de soluções da lei de recuperações (já foram propostas, desde o advento da lei em 2005 até agosto de 2014, 4.775 ações de recuperação judicial[12], inclusive de grande impacto social e econômico, como OGX, OSX, VARIG, VASP, LBR, Parmalat do Brasil, Hermes, Mabe, Rede Energia, entre outros). Torna-se, portanto, de grande relevância a avaliação do arranjo institucional a fim de buscar o aperfeiçoamento do sistema. Algumas questões, nesse caminho, entretanto, demandam aprofundamento.
O desenvolvimento de um novo paradigma de recuperação de empresas deve ser capaz de conciliar de forma pragmática todos os interesses conflitantes, dentro do que Duncan Kennedy denominou de “modo contemporâneo de pensamento jurídico”[13]. Trata-se de uma nova compreensão do direito, com três características fundamentais: análise pragmática conjunta das formas jurídicas com as decorrentes de ciências diversas na estrutura das políticas públicas; crença na possibilidade de equilíbrio entre os diversos interesses conflitantes; e tentativa de compensação da “perda do sistema” (a incorporação jurídica da análise das políticas públicas promoveu uma especialização que não forma mais um conjunto sistemático). Interessante ainda, sob essa perspectiva, é a fluidez entre as categorias de direito público e privado[14].
No direito brasileiro, essa perspectiva se afina com a agenda do “Novo Desenvolvimentismo” decorrente da Escola do Direito e Desenvolvimento. Sob essa perspectiva, o aparelho estatal atua de forma efetiva, porém com base no fortalecimento do setor privado. Deve, então, desenvolver e coordenar as políticas públicas de desenvolvimento econômico, promovendo controle da inflação, medidas de distribuição de renda, valorização do salário mínimo e expansão do crédito. Na falta de certezas nesse novo campo, merecem especial atenção o diálogo horizontal e o pragmatismo democrático[15]. Também de grande relevância nessa ótica a Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE), formulação alternativa das articulações entre o direito, as políticas púbicas e o desenvolvimento. Trata-se de abordagem interdisciplinar que analisa o complexo de princípios, regras, instituições e discursos dirigidos à organização da produção, troca e consumo na sociedade. Almeja-se, nessa linha de entendimento, a construção de um instrumental analítico capaz de conciliar os diversos interesses em debate, levando-se em consideração a avaliação empírica, de maneira a possibilitar o desenvolvimento econômico em bases mais equitativas. Outrossim, reconhece-se que as políticas econômicas atuam de maneiras distintas sobre as ações e a fruição de direitos dos diversos grupos sociais[16].
Aplicando essa compreensão para o sistema de recuperação de empresas, algumas questões específicas precisam ser esclarecidas. Inicialmente, constatou-se que os Tribunais não estão mais se restringindo à aplicação de direitos preexistentes, estabelecidos pelo Legislador, em um comportamento comumente denominado de ativismo judicial. Assim, deve se verificar, em primeiro lugar, se compete ao Poder Judiciário julgar sem se ater necessariamente aos textos legais, ou atribuindo-lhes sentido que obviamente escapa dos limites semânticos ordinários. Ademais, cabível a indagação se essa liberdade interpretativa é legítima ou coloca em risco o equilíbrio entre a separação dos Poderes, mormente pelo fato de os membros do Judiciário não haverem sido eleitos pelo povo. De outro lado, necessário o exame da possibilidade de análise dos processos de recuperação de empresas dentro da abordagem das políticas públicas. Indispensável, nesse estudo, a identificação das peculiaridades do sistema de recuperação de empresas. Por derradeiro, deve ser esclarecida a forma de participação do Judiciário na estrutura da política pública de recuperação de empresas, destacando suas peculiaridades e buscando parâmetros para a forma da sindicabilidade jurisdicional.
Para tanto, o itinerário a ser seguido se inicia com a análise da legitimidade da jurisdição no sistema democrático brasileiro. Assim, examina-se a natureza da atividade jurisdicional e os seus limites no regime democrático. Encerra-se o primeiro capítulo com a descrição das peculiaridades existentes na análise jurídica de políticas públicas e com o estudo da construção de uma nova relação entre os Poderes. Na segunda parte da exposição, o foco estará na busca de novas bases para as demandas de recuperação de empresas. Com esse objetivo, inicialmente será investigado o local adequado no ordenamento jurídico brasileiro para a implementação de uma política pública de recuperação de empresas. Ademais, haverá a análise da Análise Jurídica da Política Econômica aplicada às decisões nos processos de recuperação de empresas. Por fim, apresentam-se as conclusões alcançadas ao longo da pesquisa.
2 A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISDIÇÃO
No ano de 1748, o Barão de Montesquieu lançou a obra “Do Espírito das Leis” com uma proposta de arranjo institucional inspirado na Constituição da Inglaterra da primeira metade do século XVIII. Estruturalmente próxima do modelo proposto por John Locke, o escritor francês buscava, a rigor, uma sistemática capaz de combater o absolutismo, ou seja, um sistema de controle recíproco (freios e contrapesos) entre os órgãos mais relevantes do Estado. Tratava-se de uma alteração pragmática para garantir a liberdade política. Diferentemente de Locke (que estabelecia a supremacia do Parlamento), o modelo de Montesquieu não estabelecia qualquer hierarquia entre os Poderes e o sistema de freios e contrapesos visava não a garantia de direitos preexistentes, porém a construção dinâmica de relações sociais confiáveis, viabilizando, inclusive, o surgimento de interesses emergentes por meio da ação concertada do Poder Público[17].
O modelo de Montesquieu ainda hoje exerce grande influência nas democracias ocidentais. Não obstante, com o passar do tempo, houve uma grande ampliação da função jurisdicional, tornando-se necessário o aprofundamento acerca do seu papel e dos seus limites no sistema de freios e contrapesos praticado atualmente. Duas questões centrais demandam esclarecimento a fim de evitar bloqueio na efetivação dos direitos fundamentais: a natureza da atividade do magistrado e a legitimidade de suas decisões.
2.1 A FUNÇÃO POLÍTICA DO MAGISTRADO NO SISTEMA BRASILEIRO DE FREIOS E CONTRAPESOS
Nos últimos anos, houve uma intensificação dos debates em torno do cotejo entre o sistema judicial e os demais fóruns de tomada de decisão do aparelho estatal. Nesse contexto, construiu-se o entendimento na Ciência Política de que não há distinções essenciais entre as decisões judiciais e aquelas adotadas pelas demais instâncias institucionais, tendo em vista que nos dois casos há a observância de um determinado procedimento com a conclusão decorrendo da maioria dos votos. O exercício da jurisdição, portanto, sofre profundas transformações a fim de se adequar ao modelo democrático vigente, mormente em razão da necessidade de persecução conjunta de cumprimento das políticas públicas[18].
Com efeito, nos debates político-jurídicos, freqüentemente se invoca o princípio da separação de Poderes como fundamento para definir os limites de atuação de cada um dos órgãos estatais. Não obstante, mister verificar em que medida esse argumento se amolda ao presidencialismo de coalizão no sistema constitucional brasileiro. A rigor, a separação de Poderes no Brasil confere ênfase no modelo de freios e contrapesos desenvolvido a partir das idéias de Montesquieu. Deveras, vislumbrando na Constituição da Inglaterra um arquétipo capaz de garantir liberdade política, Montesquieu previu a divisão do aparelho estatal entre três estruturas com funções distintas: Poder Legislativo, com o encargo de elaboração das leis; Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes, com o encargo de conduzir a política externa e manter a segurança nacional; e o Poder Executivo das coisas relacionadas com o direito civil, com competência para julgamento criminal e civil. Com essa organização institucional, Montesquieu buscava um controle recíproco entre os Poderes para que nenhum deles abusasse no exercício de suas atribuições[19]. Esse modelo influenciou a elaboração da Constituição norte-americana, contudo, no modelo atual, longe de possuir um poder neutro, o Judiciário exerce um relevante controle de constitucionalidade, caracterizando o veto absoluto. Essa distinção, entretanto, se afina com o conjunto das idéias da obra, uma vez que aprimora o sistema de controle recíproco entre os Poderes[20].
Interessante observar que, na prática, com a decisão de Marbury v. Madison (1803), houve a superação do “mito” da separação dos poderes e o Judiciário passou a exercer um papel ativo no sistema de freios e contrapesos. Conseqüentemente, assumiu, juntamente com outros centros de autoridade (nacionais e internacionais, como a Organização Mundial do Comércio), o encargo de selecionar os interesses emergentes que seriam alçados à categoria de direitos subjetivos. Esse fenômeno se intensificou no decorrer do século XX, mormente com a “Era Lochner” (entre 1890 e 1940), em que se apresentou uma seletividade restritiva. Nos anos 50, o Judiciário adotou uma postura mais neutra e a partir da decisão de Brown v. Board of Education (1954), o Judiciário assumiu uma postura de seletividade inclusiva. Na Europa, a determinação judicial de direitos se expandiu a partir do término da Segunda Guerra Mundial com a sistemática do “controle de constitucionalidade”. No Brasil, percebe-se desde a República Velha a tentativa de reconhecimento de interesses emergentes pela via judicial, como simboliza a tentativa de ampliação do habeas corpus por Rui Barbosa. Contudo, a reforma constitucional de 1926 freou esse movimento naquele momento[21].
Essa forma de atuação do Judiciário evidencia que a jurisdição há muito tempo se afastou da noção de declaração de direitos preexistentes aos conflitos de interesses. A rigor, a atribuição do rótulo de “direito subjetivo” a determinadas posições decorre da seleção dos interesses que devem ser estabilizados na sociedade. Dos embates institucionalizados entre os grupos sociais, nos diversos fóruns de tomada de decisão na sociedade democrática (inclusive no Judiciário), exsurgem os interesses que passarão a se incorporar oficialmente na atuação do aparelho estatal e mesmo nas relações entre os particulares. A dinâmica social se intensificou pela participação democrática (mormente com a ampliação do sufrágio e organização de determinados grupos de trabalhadores), interação entre mercados diversos, desenvolvimento tecnológico e política econômica. Nesse cenário, a jurisdição deve ser compreendida como participação efetiva na estruturação de políticas públicas, com base no modelo de freios e contrapesos, almejando a construção de relações sociais justas e confiáveis[22].
O discurso jurídico dominante ainda busca a manutenção do caráter científico, politicamente neutro, da interpretação judicial. Não obstante, Hans Kelsen há muito já reconhecera a natureza política da hermenêutica, contrapondo-se à visão tradicional. Kelsen observou que, sob a perspectiva do direito positivo, não existe qualquer critério capaz de indicar qual das possíveis interpretações possíveis dentro da moldura legal deve prevalecer, tratando-se de problema de política do Direito. Finaliza o seu raciocínio, sustentando que na atividade cognoscitiva do aplicador do direito, na escolha de uma das alternativas cabíveis na moldura legal, incidirão normais morais, de justiça e valores sociais simbolizados por expressões, tais como bem comum, interesse do Estado, progresso, entre outros. A interpretação realizada por um órgão aplicador do Direito (autêntica) poderia inclusive resultar na construção de uma norma completamente fora da moldura legal[23].
Nesse contexto, não seria despiciendo ressaltar a distinção ontológica entre texto e norma. Naturalmente, o magistrado deve levar em consideração o contexto social e as próprias idéias debatidas na comunidade jurídica acerca do texto, contudo é inegável que ele construirá a norma individual a regular o caso concreto. Ademais, por vezes, o significado se afasta tanto do significante que não é mais possível reconhecer na norma a aplicação do texto. A consagração dos direitos sociais ensejou a constitucionalização de uma série de promessas políticas e normas principiológicas, demandando dos seus aplicadores uma postura muito mais ativa. Há uma influência recíproca entre a política que transforma o direito e o papel político da magistratura que cria a norma tomando como ponto de partida o texto[24].
No sistema de freios e contrapesos brasileiro, evidente a atuação política dos juízes. Com efeito, a Constituição de 1988 criou um modelo de controle de constitucionalidade amplo, previu uma série de direitos fundamentais com aplicação imediata, diversos compromissos políticos e normas com conteúdo aberto. Acrescente-se ainda que desde o advento da referida Constituição, construiu-se o entendimento de que o seu texto possui caráter jurídico no sentido de vinculação dos intérpretes e não apenas de exortação ao legislador. Definiu-se, outrossim, a força normativa dos princípios, que alteraram a forma de compreensão das regras, atribuindo grande poder criativo ao intérprete. Por derradeiro, digno de registro que o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (DL 4.657/42) impõe que o magistrado aplique a lei de acordo com os fins sociais e as exigências do bem comum.
Inegável, portanto, a natureza política da atuação jurisdicional. Tanto quanto os legisladores e gestores, os magistrados possuem liberdade criativa e se sujeitam a uma série de constrições institucionais. Não obstante, todos são responsáveis por selecionar os interesses emergentes que merecem a institucionalização em relações justas e confiáveis. Entretanto, a tese da função política do Judiciário enfrenta uma crítica relevante. Não parece razoável aceitar a idéia de que pessoas destituídas de legitimidade popular gozem de liberdade tão ampla em uma sociedade democrática. O argumento é relevante e demanda aprofundamento. É o que se pretende no próximo tópico.
2.2 O ENGAJAMENTO NA POLÍTICA PÚBLICA COMO FATOR DE LEGITIMAÇÃO JURISDICIONAL
A argumentação ainda hoje dominante de que a aplicação do direito constitui uma função técnica cumpre uma finalidade relevante: atribuir legitimidade para que atores sociais não eleitos possam interferir em decisões políticas de agentes escolhidos pelo voto popular. Desse modo, a constatação de que no sistema constitucional brasileiro os magistrados exercem função política requer a busca por outros fatores de legitimação, até mesmo porque o texto da Carta Magna estabelece que o povo exercerá o poder político diretamente ou por meio de representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único, CF). A ausência de legitimação do Judiciário se encontra na base de diversas discussões jurídicas atuais.
Inicialmente, contudo, uma observação precisa ser destacada. Os juízes encontram limites evidentes para a sua atividade, tanto de natureza jurídica quanto política. Os limites jurídicos apontam para as regras de fixação da competência, a necessidade de provocação, o cumprimento das regras processuais, a garantia da fundamentação, entre outros. No que tange aos limites políticos, registre-se que os magistrados possuem grande liberdade criativa, porém devem buscar a legitimidade de suas decisões em cada caso. Indubitavelmente, a ampliação da legislação e a universalização da jurisdição e do controle de constitucionalidade (mormente com base em uma constituição repleta de carga axiológica) conferiram um evidente status político ao Judiciário e, portanto, ele está sujeito a constrições próprias da atividade política. Nesse contexto, mostra-se de fundamental importância a construção de um diálogo institucional entre as diversas instâncias de decisão do sistema político nacional. O principal consectário desse pensamento remete à concepção de que não cabe ao Supremo Tribunal Federal a última palavra sobre a Constituição.
Roberto Dahl há muito tempo já sustenta a natureza política e jurídica da Suprema Corte. Isso porque os processos que chegam à Suprema Corte envolvem desacordos entre membros da sociedade, caracterizando a decisão como de viés político. A atuação da Suprema Corte demanda a escolha de alternativas de uma política pública cujo fundamento não pode ser extraído diretamente da jurisprudência ou do ordenamento jurídico. Trata-se, sem dúvidas, de uma função formuladora de políticas por parte da Suprema Corte. Essa constatação implica na necessidade de busca pela legitimação da atuação da Suprema Corte. Assim, observa que a forma de nomeação dos juízes da Suprema Corte enseja o alinhamento com as convicções políticas da maioria da população que elegeu os governantes nomeantes. Ademais, os dados demonstram que uma maioria sólida de legisladores sempre consegue contornar o veto da Suprema Corte para uma determinada política pública por meio da edição de novas leis, o que faz com que a atuação judicial nos casos mais relevantes no máximo apenas consiga postergar a implementação da política. A Suprema Corte integra a aliança nacional dominante e, consequentemente, apóia as suas principais políticas. Dessarte, a Suprema Corte possui como principais funções conceder legitimidade às políticas fundamentais da aliança política dominante, bem como aos padrões relevantes para o funcionamento da democracia[25].
No Brasil, a atuação do Supremo Tribunal Federal possui semelhanças evidentes. A despeito dos riscos permanentes de uma supremacia judicial em um sistema que confere poderes tão amplos ao Judiciário, as evidências empíricas apontam para uma atuação do STF alinhada com a aliança política dominante e com a opinião pública. Do mesmo modo como nos Estados Unidos, nas questões políticas mais relevantes, o Judiciário mantém uma visão sincronizada com o grupo político dominante, enquanto que nas políticas secundárias os ministros estão menos sujeitos a constrangimentos institucionais. A credibilidade política adquirida pelo alinhamento com a aliança política viabiliza a atuação contramajoritária em casos de violação de direitos fundamentais.
Para conter os excessos do Judiciário, inclusive, muitas vezes houve uma reação legislativa. No Brasil, pode-se citar como exemplo a Emenda Constitucional 29/2000, que permitiu o estabelecimento de alíquotas progressivas para o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) que havia sido vedado pelo RE 153.771. Do mesmo modo, a Emenda Constitucional 39/2002 permitiu a contribuição para custeio da iluminação pública após diversas decisões haverem decretado a inconstitucionalidade de leis municipais que instituíam taxa de iluminação pública. Entre tantos outros, esses exemplos demonstram a incidência adequada da teoria dos diálogos institucionais, provando que a interação entre o STF e o Congresso contribuiu com a adoção de melhores soluções para o sentido da Constituição. Nesse sentido, o sistema de freios e contrapesos brasileiro não atribui a nenhum órgão o poder de dar a última palavra sobre o sentido da Constituição, até mesmo por não vincular o Parlamento (art. 28, parágrafo único, Lei 9.868/99). As vantagens desse modelo são notáveis, tendo em vista que estabelece pontos de acesso diversos aos interessados, reduz atuações unilaterais e desenvolve uma concretização constitucional interativa e aberta a críticas constantes[26].
Naturalmente, essa interação também envolve o Poder Executivo. No presidencialismo de coalizão praticado no Brasil a partir da Constituição de 1988, o presidente assumiu grande poder institucional de maneira que a iniciativa legislativa das áreas mais relevantes foi atribuída ao Chefe do Executivo (tributação, orçamento e organização da administração pública). A interferência de uma política pública depende do alinhamento com o presidente. Ademais, o Executivo vem demonstrando grande sucesso de aprovação legislativa dos seus projetos e dominância expressiva em relação aos projetos de lei de iniciativa do Legislativo[27].
Da análise da função política do Judiciário e da sua interação dialógica com os demais Poderes, percebe-se que a legitimidade da interpretação judicial repousa no seu alinhamento com as políticas públicas estabelecidas pelo Executivo e pelo Legislativo. Nos últimos anos, houve uma crescente interferência do Judiciário em matéria de políticas públicas, como fica evidente no caso de medicamentos e terapias. Não obstante, a falta de um raciocínio jurisdicional apropriado para esse tipo de demanda levou a uma profusão de decisões emocionais que colocam em risco a continuidade da política pública, desorganizam a atividade administrativa e comprometem recursos escassos[28]. Na realidade, a construção de soluções pelos juristas tem perpassado pela ponderação de valores, como reserva do possível e mínimo existencial, valendo-se ainda do princípio da proporcionalidade, bem como do abuso da utilização de princípios. No mais das vezes, desprezam-se as conseqüências econômicas das decisões. Para além do evidente cenário de insegurança jurídica, referida atuação judicial, a todas as luzes, viola o sistema de freios e contrapesos brasileiro.
Deveras, a configuração da interpretação judicial como atividade política afasta a possibilidade de se encontrar respostas para problemas jurídicos no próprio ordenamento jurídico ou mesmo na importação de teorias da filosofia pós-metafísica[29]. O reconhecimento da ausência de qualquer método efetivo de se chegar a uma resposta “correta” e a compreensão da jurisdição como mecanismo de seleção dos interesses emergentes que merecem estabilização institucional (da mesma forma como ocorre nas demais instâncias políticas) exigem o alinhamento do magistrado com as escolhas políticas oriundas dos representantes eleitos. Naturalmente, isso não significa apego às formas jurídicas tradicionais, mas sintonia com o instrumental das políticas públicas, campo próprio para a persecução dos objetivos pinaculares da sociedade. A liberdade decisória do magistrado, desse modo, é conformada pela política pública em que se insere o direito subjetivo em debate.
3 O MAGISTRADO RECUPERACIONAL COMO AGENTE RESPONSÁVEL PELA IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA
A política de recuperação de empresas possui uma série de particularidades relacionadas com os seus próprios atores, idéias e instituições, que demandam uma avaliação específica[30]. Trata-se de política que ocorre de forma preponderante no bojo de um processo judicial. Diferentemente das políticas de saúde e educação, por exemplo, cuja participação do Judiciário ocorre a partir do descumprimento das promessas constitucionais por parte dos Poderes Executivo e Legislativo, a arena adequada para o exercício dos direitos subjetivos relacionados com a política de recuperação de empresas consiste em uma Vara Empresarial. A despeito de naturalmente haver participação do Executivo e do Legislativo no sistema recuperacional, tais como nos casos de oferta de crédito, treinamento de profissionais, aquisição de participações acionárias (nas hipóteses de graves crises financeiras nacionais), diversos benefícios ao devedor se restringem ao âmbito judicial, como o trespasse sem que o adquirente assuma a responsabilidade pelos débitos do alienante, a suspensão das ações e execuções contra o empresário por 180 dias etc.
Nesse contexto, vem à baila a discussão acerca da construção da decisão no processo de recuperação judicial. Ao longo da história, percebe-se na legislação brasileira uma alternância entre os credores e o magistrado na palavra final acerca da aprovação da reorganização empresarial. Propõe-se este trabalho, após a constatação da natureza política da jurisdição e da sua legitimação na conjugação com o arranjo das políticas públicas, a buscar um novo modelo capaz de conciliar todos esses interesses com segurança jurídica.
3.1 O JUDICIÁRIO ENQUANTO ARENA ELEITA PELO LEGISLADOR PARA A EXECUÇÃO DA POLÍTICA
O atual sistema de recuperação de empresas no Brasil foi instaurado com o advento da LRF. Deveras, após a constatação da decrepitude da antiga Lei de Falências (DL 7.661/45), com os seus institutos da falência e da concordata (preventiva e suspensiva), no bojo de uma série de mudanças ocorridas no plano macroeconômico nacional no início da década de 90, houve a instituição de uma Comissão no Ministério da Justiça, que elaborou um projeto em 1992, transformado no Projeto de Lei 4.376/1993. Após mais de uma década de intensos debates, veio a lume a Lei 11.101/2005, com os institutos da recuperação judicial, recuperação extrajudicial, recuperação especial para microempresas e empresas de pequeno porte e falências.
A distinção mais relevante entre as duas leis se refere ao objetivo precipuamente liquidatário no DL 7.661/45 e o foco essencialmente recuperatório no novel diploma. Deveras, toda a estrutura da novel legislação gira em torno dos princípios da preservação da empresa e da função social. Mesmo na hipótese da falência, a idéia da preservação da empresa é protegida, tendo em vista que o art. 140, I, da LRF, estabelece a preferência pela alienação em bloco do estabelecimento empresarial (complexo organizado de bens que o empresário destina ao exercício da empresa)[31]. Avulta de grande relevância, nessa toada, a separação evidente entre a sorte do empresário (sujeito que explora a empresa assumindo os seus riscos) e a empresa (atividade econômica organizada voltada para a produção ou circulação de bens ou serviços dirigidos para o mercado). Portanto, a falência é do empresário e não da empresa, que, na medida do possível, será assumida por outro empresário, adquirente do estabelecimento.
Geralmente, na análise da participação do Judiciário na análise de políticas públicas, a doutrina faz referência ao princípio da subsidiariedade, isto é, o Judiciário atua na hipótese de descumprimento de concretização dos direitos fundamentais sociais por parte do Executivo e do Legislativo. Na política pública de recuperação de empresas, entrementes, não há espaço para a aplicação desse princípio. Isso porque diversos benefícios para um empresário em dificuldade apenas são alcançados no bojo de um processo judicial, ou seja, a despeito da conveniência de negociação direta entre o devedor empresário e seus credores pela preservação da reputação, o legislador apresenta benefícios para o acordo celebrado com o acompanhamento judicial.
À guisa de ilustração, pode-se fazer referência à suspensão das ações e execuções contra o empresário pelo prazo de 180 dias (art. 6º, § 4º, LRF), de grande relevância para o titular da atividade reorganizar o seu negócio e buscar a superação da crise econômico-financeira. Na mesma linha, a alienação judicial de unidades produtivas isoladas com base no plano de recuperação judicial isenta o adquirente de responsabilidade pelos débitos do alienante, inclusive os de natureza tributária e trabalhista (art. 60, parágrafo único, LRF). Vale ressaltar que fora do processo de recuperação, o adquirente do estabelecimento responde pelos débitos gerais anteriores regularmente escriturados (art. 1.146, Código Civil), pelos débitos trabalhistas (art. 448, CLT) e pelos débitos tributários (art. 133, CTN). Quanto a esse ponto específico, inclusive, o STF declarou a constitucionalidade do dispositivo no julgamento da ADI 3.934[32]. Atentou-se na hipótese para a engenharia institucional criada com o objetivo de adaptação do sistema produtivo nacional às necessidades do mundo globalizado.
Outrossim, como benefício decorrente da propositura da demanda recuperacional se afigura a prioridade dos créditos oriundos de obrigações contraídas durante o processo de recuperação, conforme os arts. 67 e 84 da LRF. Esses créditos serão considerados extraconcursais, possuindo privilégio, por exemplo, em relação aos credores trabalhistas concursais, o que facilita a obtenção de crédito. Por derradeiro, há a previsão de um parcelamento especial mais benéfico para devedores em recuperação judicial (art. 68, LRF; §§ 3º e 4º, art. 155-A, CTN). A esse respeito, faz-se mister salientar que recentemente a Lei Complementar 147, de 7/8/2014, estabeleceu que as microempresas e empresas de pequeno porte em recuperação judicial farão jus a prazos 20% superiores aos atribuídos aos demais devedores empresário sujeitos a esse procedimento (parágrafo único, art. 68, LRF).
Percebe-se, desse modo, que o Judiciário representa o local adequado para implementação da política pública de recuperação de empresas. Não se pode olvidar nesse sentido que não há sequer um órgão do governo que gerencie a política de recuperação de empresas. Dessarte, indubitável o papel do Judiciário no atual sistema enquanto arena adequada para a concretização da política de recuperação de empresas. Nesse contexto, como arena política, deve ser garantida a participação dos demais atores. Inclusive, não há qualquer dúvida de que a recuperação de empresas trata de direitos coletivos. A rigor, o processo de recuperação de empresas representa uma ação coletiva passiva, o que poderia atrair os métodos e regras relativos a esse tipo de demanda. Não seria despiciendo sublinhar ainda que o processo coletivo implica no reconhecimento de maiores poderes ao juiz, ampliação da relevância da argumentação metajurídica, compatibilização do interesse das partes com o interesse coletivo e publicização do processo[33]. Trata-se de um processo civil de interesse público em que o objeto da lide não se restringe aos interesses privados dos indivíduos, mas à operação de uma política pública[34].
Sob essa perspectiva, são necessárias diversas medidas para adequar as regras do sistema concursal brasileiro à base principiológica da LRF. Desse modo, a doutrina especializada vem apresentando muitas sugestões interessantes com esse desiderato. Assim, relevante a proposta de ampliação do rol de legitimados para propor a recuperação judicial e apresentar o plano de reestruturação (credores, trabalhadores, acionistas, governo, comunidade etc.). Outrossim, imprescindível a participação dos demais interessados na resolução da insolvência, uma vez que a assembléia que irá deliberar pela aprovação do plano é formada tão somente por credores. Por essa razão, imprescindível a participação qualificada do Ministério Público, bem como a organização dos diversos interessados em classes ou comitês. Também relevante a intervenção na recuperação judicial de entidades na qualidade de amicus curiae. A tutela completa dos interesses transindividuais no processo de recuperação tornaria desnecessária inclusive a ação civil pública, concretizando a instrumentalidade processual[35].
A questão mais relevante aponta para a compreensão de que na sistemática atual o magistrado é o agente responsável pela implementação da política pública. A sua atuação, portanto, deve se adequar a uma instância democrática, de forma a conferir a possibilidade de manifestação de todos os grupos que sofrerão as conseqüências diretas e indiretas do resultado do processo. Para tanto, mister a instituição de uma comissão interdisciplinar com a participação de todos os interessados nesse tipo de demanda (representantes do governo, dos sindicatos patronais e dos trabalhadores, pesquisadores) para oferecer parecer ao magistrado com os subsídios da interferência daquele caso na política macroeconômica. Nesse contexto, merece atenção especial a questão relativa à forma da cognição jurisdicional, tema do próximo tópico.
3.2 A ADEQUAÇÃO DA DECISÃO QUE TUTELA O INTERESSE DA COLETIVIDADE À LUZ DE DADOS SOCIOECONÔMICOS: UMA POSSÍVEL APROXIMAÇÃO COM A METODOLOGIA DO DIREITO CONCORRENCIAL
A descrição dos princípios norteadores da recuperação de empresas no art. 47 da LRF evidencia que o novo sistema recuperacional brasileiro persegue valores que extrapolam os interesses do devedor e dos credores. Ao lado do interesse dos credores, o dispositivo legal cita a manutenção da fonte produtora e dos empregos, preservação da empresa, função social e estímulo à atividade econômica. Trata-se evidentemente da adoção da perspectiva institucionalista, uma vez que a lei tutela, a rigor, os interesses de toda a coletividade, o que justifica a abordagem enquanto política pública. Nesse sentido, percebe-se que o fato de haver uma política pública de recuperação de empresas faz com que os Tribunais adotem uma forma de interpretação que se afasta da literalidade da LRF. Muitos exemplos demonstram essa conclusão.
O primeiro remete à dispensa da certidão negativa de débitos tributários exigida para a concessão da recuperação judicial pelo art. 57 do citado diploma legal[36]. Nesse julgado, ainda se faz referência à suspensão indireta do processo de execução fiscal, a despeito do art. 6º, § 7º, da LRF, estabelecer expressamente que não ocorreria essa suspensão. Do mesmo modo, o art. 6º, § 4º, da LRF dispõe que o prazo de 180 de suspensão das ações e execuções contra o devedor empresário não será prorrogado em hipótese nenhuma, bem como que, transcorrido esse prazo, independentemente de decisão judicial, os credores poderão cobrar os seus créditos. Não obstante, o STJ já pacificou o entendimento de que será possível a prorrogação na hipótese de a demora não poder ser imputada ao devedor[37].
Um caso emblemático na construção de teses principiológicas consiste na aplicação do instituto norte-americano do cram down no Brasil. Esse instituto autoriza que o juiz derrube o veto dos credores, desde que preenchidos alguns requisitos, tais como o melhor interesse dos credores (devem receber mais do que receberiam na falência), o plano seja justo e equitativo (uma classe menos privilegiada não pode receber seus créditos antes de uma com prioridade) e não haja injusta discriminação (os credores da mesma classe devem receber tratamento equânime)[38]. Ressalte-se que, malgrado a lei brasileira expressamente exija a aprovação da maioria dos credores para a concessão da recuperação, o TJSP[39] e o TJRS[40] já aplicaram expressamente o instituto, mormente para evitar a rejeição da recuperação quando há credor único em alguma das classes do art. 41 (trabalhistas; com garantia real; microempresas ou empresas de pequeno porte; demais credores). Cite-se ainda a construção jurisprudencial que retira do Fisco a legitimidade para ingressar com pedido de falência, apesar de a lei atribuir esse poder a qualquer credor[41].
Dessarte, constata-se que os Tribunais capturaram o núcleo axiológico simbolizado pelos arts. 47 e 75 da LRF, afastando em diversos casos a interpretação literal para se afinar com a política de recuperação de empresas, em uma importante hermenêutica teleológica. Contudo, a forma de aplicação vem utilizando valores abstratos, destituídos da necessária base empírica. Por essa razão, propugna-se nesse trabalho por uma abordagem teleológico-empírica capaz de realizar os valores da LRF de forma compatível com a política econômica e em harmonia com as demais políticas públicas (tributária, concorrencial, industrial, empregatícia). O conteúdo de princípios como função social e preservação da empresa demanda dados socioeconômicos.
Sob essa perspectiva, torna-se recomendável a incorporação, com adaptações, da metodologia empregada para a verificação de atos de concentração no direito concorrencial, uma vez que busca o atendimento dos interesses de toda a coletividade. As decisões prolatadas pelo CADE seguem um procedimento que oferece transparência e conhecimento das causas de decidir, uma vez que fundamentadas em dados socioeconômicos. Ademais, há ampla possibilidade de manifestação de interessados no processo administrativo (art. 50, Lei 12.529/2011). Com efeito, para verificar se determinada operação prejudica a concorrência, o CADE realiza aprofundado exame do mercado em que os atores estão inseridos. Acrescente-se que o Guia para Análise Econômica de Atos de Concentração Horizontal (Portaria Conjunta SEAE/SDE 50/2001) fixa cinco etapas: 1) definição do mercado relevante; 2) determinação da parcela de mercado sob comando das requerentes; 3) exame das possibilidades de exercício de poder de mercado; 4) verificação das eficiências econômicas; 5) comparação entre custos e benefícios com elaboração do parecer final.
Não seria despiciendo observar que também o direito concorrencial protege os interesses da coletividade, inclusive se caracteriza como instrumento de implementação de políticas públicas (de combate ao abuso do poder econômico e promoção da livre concorrência) ou técnica estatal para conformar a política econômica de modo a beneficiar toda a coletividade[42]. A Lei 12.529/2011 representou marco fundamental na adoção da perspectiva institucional no direito concorrencial do Brasil, fazendo com que o Direito encare o desafio de recuperar a capacidade de organizar de forma mais justa e equitativa as relações sociais, a partir de uma análise estrutural da dinâmica econômica. Assim, o Direito Concorrencial também deve avaliar o impacto social e econômico das decisões em todos os setores direta ou indiretamente afetados[43].
Com esse raciocínio, para os processos de recuperação de empresas se pode estruturar um modelo em que ocorrerá uma tentativa de negociação de acordo sem interferência estatal. Havendo a aprovação do plano na assembléia geral de credores, ao Judiciário apenas caberia o controle de legalidade, da forma como já ocorre atualmente, mas aumentando a participação dos interessados. Contudo, na hipótese de negativa de aprovação dos credores, possível a verificação da adequação da concessão com base na implementação da política pública específica. Naturalmente, a política necessariamente envolve a proteção do mercado do crédito e, portanto, os direitos dos credores devem ser assegurados. Para essa compatibilização, que exige uma cognição jurisdicional mais aprofundada, propõe-se a utilização da “análise posicional”, instrumental analítico da Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE).
A análise posicional diz respeito à verificação da fruição empírica de um direito fundamental, mediante cinco etapas. Adaptando essa formulação para o sistema de recuperação de empresas, poderia se pensar no seguinte itinerário: 1) relacionar a política pública ao direito subjetivo (política pública de recuperação de empresas e direito à recuperação da empresa); 2) decomposição analítica do conteúdo relacional do direito (padrão de ação necessário à fruição do direito, como oferta de crédito, infraestrutura, capacitação de profissionais, entre outros, podendo haver a utilização dos índices de competitividade do Banco Mundial – Relatório Doing Business, do International Institute for Management Development e do Fórum Econômico Mundial); 3) quantificação da fruição empírica do direito (condições reais enfrentadas pelo empresário); 4) definição de um padrão de validação jurídica – PVJ (parâmetro com o grau de sacrifício aceitável por parte dos credores de forma a não prejudicar o mercado de crédito, podendo mais uma vez ser utilizado o Relatório do Banco Mundial para se examinar a média de tempo, de custo e de taxa de recuperação dos créditos de países com grau de desenvolvimento semelhante ao do Brasil; também será útil a avaliação dos precedentes que realizarem esse tipo de análise); 5) verificação da efetividade do direito (viabilidade do plano de recuperação e análise da conveniência de manutenção do empresário à frente do negócio, com base na responsabilidade da sua gestão para a crise, levando-se em consideração outros empresários do mesmo setor de porte compatível)[44].
Após essa avaliação, o magistrado poderá decidir de forma fundamentada e transparente de maneira a compatibilizar o direito subjetivo com a política pública. O reconhecimento de que foi violado o direito de produção do empresário implicaria na construção de um complexo de medidas que viabilizassem a retomada da atividade. Podem ser pensados em diversos mecanismos nesse sentido: estímulo para os Fundos de Investimento em Participações (instrumento do mercado de capitais para a recuperação judicial – art. 2º, § 1º, Instrução CVM 391/2003)[45]; criação de uma linha de crédito especial, bem como a constituição de um fundo específico, com subvenção pública e privada[46]; incentivos fiscais[47]; treinamento profissional, inclusive de gestão empresarial, melhoria da infraestrutura, entre outros.
A história da legislação brasileira intercala períodos com soberania do magistrado e outros com prevalência da vontade dos credores. A abordagem da análise jurídica da política pública, contudo, pode apresentar resposta mais completa, evitando a unilateralidade preponderante das soluções consagradas na legislação. Indubitavelmente, não se cuida de uma solução pronta e acabada para toda a complexidade que envolve uma situação de insolvência. Não obstante, cuida-se de procedimento mais transparente e democrático com vistas à construção de soluções capazes de conciliar os diversos interesses envolvidos. Com isso, valoriza-se o mercado de crédito, ao tempo em que evita que decisões relevantes para toda a sociedade sejam deixadas ao alvedrio dos credores.
4 CONCLUSÕES
As dificuldades experimentadas para a implementação das políticas públicas previstas na Constituição Federal de 1988 têm levado os juristas a construírem diferentes modelos de racionalidade jurídica. Nenhum desses paradigmas, contudo, se mostrou plenamente satisfatório para garantir segurança jurídica, desenvolvimento nacional e fruição adequada dos direitos fundamentais. O sistema de recuperação de empresas se insere nesse contexto e a interpretação teleológica concedida pelos Tribunais, malgrado apresente vantagens com relação ao modelo formalista, prejudica a segurança jurídica e o mercado de crédito, razão pela qual se faz mister a busca por um novo arquétipo. Nesse contexto, a partir do advento da LRF se iniciou a construção da política pública de recuperação de empresas no Brasil. Os valores expressos pelos arts. 47 e 75 do referido diploma legal evidenciam que os interesses envolvidos nos processos recuperacionais extrapolam as partes processuais, demandando uma abordagem distinta capaz de conciliar a implementação da política com a dinâmica econômica na interpretação jurisdicional. Com esse desiderato, mostra-se adequado o marco teórico da Escola do “Direito e Desenvolvimento” e especialmente a aplicação específica do instrumental analítico da Análise Jurídica da Política Econômica.
Assim, deve ser desmistificado o papel técnico apontado como próprio do Judiciário e o magistrado precisa passar a buscar a legitimação das decisões em outras bases. Isso porque o conceito de jurisdição evoluiu e não se limita ao reconhecimento de direitos preestabelecidos pelo legislador. Na teoria dos freios e contrapesos desenhada pelo constituinte nacional, o papel do Judiciário assume natureza política, passando a jurisdição a caracterizar a seleção dos interesses emergentes que merecem ser estabilizados em relações justas e confiáveis. Nesse sentido, a atividade jurisdicional, afastando-se da aplicação de técnicas que levem à solução correta, encontra sua legitimidade na compatibilização com as políticas públicas desenhadas pelo Legislativo e pelo Executivo. Nessa linha de raciocínio, vale ressaltar que a política pública de recuperação de empresas possui uma séria de peculiaridades, uma vez que, preponderantemente, sua execução ocorre no Judiciário, diferentemente do que ocorre com as demais políticas, que são implementadas pelo Executivo. Não seria despiciendo registrar que há uma série de mecanismos recuperacionais que apenas são reconhecidos no bojo de um processo judicial. O Judiciário constitui, portanto, a arena adequada para a implementação da política pública. Assim, os processos de recuperação assumem natureza coletiva e devem viabilizar a participação de todos os atores sociais. Os juízes exercem, portanto, a função de agentes responsáveis pela execução da política.
Nessa perspectiva, adequada a utilização, com adaptações, da metodologia própria do direito concorrencial, uma vez que também cuida da articulação entre instituições econômicas, políticas públicas e direito. Ademais, tanto a LRF quanto a Lei 12.529/2011 assumem feição institucionalista – ambas tutelam a coletividade. Por essa razão, a fundamentação deve ser transparente, democrática e capaz de compatibilizar as diversas políticas em conflito. A nova concepção proposta não alteraria substancialmente o processo na hipótese de haver a aprovação do plano de recuperação pela assembléia de credores, uma vez que o mercado já foi capaz de superar a crise, ainda que sob supervisão judicial. No caso de rejeição, entrementes, antes da convolação em falência, o processo passaria por uma análise de compatibilidade com a política pública. Para tanto, haveria a utilização da ferramenta da “Análise Posicional” da AJPE, em uma interpretação teleológico-empírica, com a definição da conveniência ou não da concessão da recuperação (com base em um sacrifício aceitável dos credores a partir de dados de competitividade de países com grau de desenvolvimento semelhante), bem como da decisão quanto ao empresário permanecer à frente do negócio (a partir da análise das condições ofertadas para a fruição efetiva do direito de produção e do seu desempenho em comparação com outros empresários do setor). Seriam apontadas ainda as medidas a serem adotadas com vistas a viabilizar a superação da crise. Nesse procedimento, participaria uma comissão interdisciplinar a fim de subsidiar com dados empíricos a decisão e de sugerir os mecanismos para solucionar a crise de forma democrática.
Desse modo, seria possível se verificar em que medida o direito fundamental de produção foi atendido e no caso concreto elaborar a solução que melhor compatibilize todas as políticas públicas envolvidas com a política econômica. Indubitavelmente, uma avaliação dessa natureza contribuirá com o desenvolvimento nacional e o fortalecimento da democracia, expandindo-se o complexo das liberdades fundamentais. Trata-se de proposta de novo modelo de racionalidade para o sistema de recuperação de empresas com o desiderato de explorar o potencial emancipatório decorrente da simbiose entre direito, políticas públicas e economia.
Aluno Especial no Doutorado em Direito da UNB Mestre em Direito no UniCEUB Especialista em Direito na Escola da Magistratura do DF e Bacharel em Direito na Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito no Centro Universitário Projeção Oficial de Justiça no TJDFT Coordenador da Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e do Ministério Público da União FENAJUFE Presidente da Associação dos Oficiais de Justiça do DF AOJUS/DF e Membro do Conselho Deliberativo da Associação dos Servidores da Justiça do DF Assejus
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