1. INTRODUÇÃO
Deve-se entender que o Direito de Família, necessariamente, merece ser analisado sob o prisma da Constituição Federal, o que traz uma nova dimensão de tratamento dessa disciplina. Assim sendo, é imperioso analisar os institutos de Direito Privado tendo como ponto origem a Constituição Federal de 1988, o que leva ao caminho sem volta do Direito Civil Constitucional.
Aqui, não se trata apenas de estudar os institutos privados que se encontram previstos na Constituição Federal de 1988, mas, sim, de analisar a Constituição em confronto com o Código Civil, e vice-versa. Para tanto, deverão irradiar de forma imediata as normas fundamentais que protegem a pessoa, particularmente aquelas que constam nos seus arts. 1º a 6º. Diante dessa realidade, será importante reconhecer a eficácia imediata e horizontal dos direitos fundamentais, a horizontalização das normas que protegem a pessoa, e que devem ser aplicadas nas relações entre particulares, dirigidas que são, também, aos entes privados.[1]
Nessa concepção, utilizando a tão conhecida simbologia de Ricardo Lorenzetti, o Direito Privado seria como um sistema solar em que o sol é a Constituição Federal de 1988 e o planeta principal, o Código Civil. Em torno desse planeta principal estão os satélites, que são os microssistemas jurídicos ou estatutos, os quais também merecem especial atenção pelo Direito de Família, caso do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso.[2] Nesse Big Bang Legislativo, é preciso buscar um diálogo possível de complementaridade entre essas leis (diálogo das fontes).
Em suma, deve-se reconhecer também a necessidade da constitucionalização do Direito de Família, pois “grande parte do Direito Civil está na Constituição, que acabou enlaçando os temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade. A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do Direito Civil à luz da nova Constituição”.[3]
Portanto, os antigos princípios do Direito de Família foram aniquilados, surgindo outros, dentro dessa proposta de constitucionalização, remodelando esse ramo jurídico.
O presente trabalho visa justamente a demonstrar, de forma breve, quais são esses novos princípios aplicáveis a esse importante ramo do Direito Civil. Esse trabalho de sistematização já foi muito bem desenvolvido pelo advogado e professor Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).[4]
Como se sabe, na realidade pós-positivista, os princípios constitucionais ganharam um novo papel, plenamente aplicáveis às relações particulares. Dos princípios gerais do Direito saltamos à realidade dos princípios constitucionais, com emergência imediata. Justamente por isso é que muitos dos princípios do atual Direito de Família brasileiro encontram substactum constitucional.[5]
Ademais, com o novo Código Civil brasileiro, os princípios ganham fundamental importância, eis que a atual codificação utiliza tais regramentos como linhas mestres do Direito Privado. Muitos desses princípios são cláusulas gerais, janelas abertas deixadas pelo legislador para nosso preenchimento, para complementação pelo aplicador do Direito. Em outras palavras, o próprio legislador, por meio desse novo sistema aberto, delegou-nos parte de suas atribuições, para que possamos, praticamente, criar o Direito.
No que tange ao Direito de Família, é preciso sistematizar os princípios, visando à facilitação didática do tema. Essa sistematização serve também para demonstrar a mudança de paradigmas pela qual passou esse ramo do Direito Civil, o estado da arte da matéria. Passemos à análise desses regramentos básicos.
2. PRINCÍPIO DE PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (ART. 1º, INC. III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988)
Prevê o art. 1º, inc. III, da Constituição Federal de 1988 que o nosso Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Trata-se daquilo que se denomina princípio máximo, ou superprincípio, ou macroprincípio, ou princípio dos princípios. Diante desse regramento inafastável de proteção da pessoa humana é que está em voga, atualmente entre nós, falar em personalização, repersonalização e despatrimonialização do Direito Privado.[6] Ao mesmo tempo que o patrimônio perde importância, a pessoa é supervalorizada.
Ora, não há ramo do Direito Privado em que a dignidade da pessoa humana tenha mais ingerência ou atuação do que o Direito de Família. De qualquer modo, por certo é difícil a denominação do que seja o princípio da dignidade da pessoa humana. Reconhecendo a submissão de outros preceitos constitucionais à dignidade humana, Ingo Wolfgang Sarlet conceitua o princípio em questão como “o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana”.[7]
É possível trazer aqui alguns exemplos de aplicação, pela jurisprudência nacional, do princípio da dignidade da pessoa humana no Direito de Família.
Primeiro, podemos citar o comum entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o imóvel em que reside pessoa solteira é bem de família, estando protegido pela impenhorabilidade constante da Lei n. 8.009/90.[8] Como reconhece a própria ementa do julgado (aqui transcrita), o que almeja a lei referenciada é a proteção da pessoa, e não de um grupo específico de pessoas, a família em si. Com isso, protege-se a própria dignidade (art. 1º, inc. III, da CF/88) e o direito constitucional à moradia (art. 6º da CF/88).
É certo que, pelo que consta no art. 226 da Constituição Federal, uma pessoa solteira não constituiria uma família, nos exatos termos do sentido legal. Um solteiro, como se sabe, não constitui uma entidade familiar decorrente de casamento, união estável ou família monoparental. Estaria, então, o julgador alterando o conceito de bem de família? Parece-nos que sim, ampliando o seu conceito para bem de residência da pessoa natural ou bem do patrimônio mínimo, utilizando-se a brilhante concepção de Luiz Edson Fachin. Reside, nesse ponto, forte tendência de personalização do Direito Privado.
Como segundo exemplo de aplicação da dignidade humana em sede de Direito de Família, podemos citar a tendência doutrinária e jurisprudencial de relativização ou mitigação da culpa nas ações de separação judicial.[9] A título de exemplo, podemos transcrever:
“SEPARAÇÃO JUDICIAL – PEDIDO INTENTADO COM BASE NA CULPA EXCLUSIVA DO CÔNJUGE MULHER – DECISÃO QUE ACOLHE A PRETENSÃO EM FACE DA INSUPORTABILIDADE DA VIDA EM COMUM, INDEPENDENTEMENTE DA VERIFICAÇÃO DA CULPA EM RELAÇÃO A AMBOS OS LITIGANTES – ADMISSIBILIDADE. A despeito de o pedido inicial atribuir culpa exclusiva à ré e de inexistir reconvenção, ainda que não comprovada tal culpabilidade, é possível ao Julgador levar em consideração outros fatos que tornem evidente a insustentabilidade da vida em comum e, diante disso, decretar a separação judicial do casal. Hipótese em que da decretação da separação judicial não surtem conseqüências jurídicas relevantes. Embargos de divergência conhecidos, mas rejeitados” (STJ, EREsp 466.329/RS, Relator Ministro Barros Monteiro, Segunda Seção, julgado em 14/09/2005, DJ 01/02/2006, p. 427).
Como terceiro e último exemplo, trazemos a tão comentada tese do abandono paterno-filial ou teoria do desamor. Em mais de um julgado, a jurisprudência pátria condenou pais a pagar indenização aos filhos pelo abandono afetivo, por clara lesão à dignidade humana. O julgado mais notório é o do extinto Tribunal de Alçada Civil de Minas Gerais, cuja ementa é transcrita a seguir, com referência expressa à dignidade humana:
“INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana” (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, 7ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 408.555-5. Decisão de 01/04/2004. Relator Unias Silva, v.u.).
Naquela ocasião, reformando a decisão de primeira instância, o pai foi condenado a pagar indenização de 200 salários mínimos ao filho por tê-lo abandonado afetivamente. Isso porque, após a separação em relação à mãe do autor da ação, o seu novo casamento e o nascimento da filha advinda da nova união, o pai passou a privar o filho de sua convivência. Entretanto, o pai continuou arcando com os alimentos para o sustento do filho, abandonando-o somente no plano do afeto, do amor.[10] Entretanto, mais recentemente, a decisão foi reformada pelo Superior Tribunal de Justiça, que afastou a condenação por danos morais.[11]
A decisão provocou manifestações contrárias da doutrina, como a que nos foi enviada por mensagem eletrônica pela jurista Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, professora associada do Departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo, no dia 30 de novembro de 2005.[12]
Como se pode perceber, o princípio de proteção da dignidade da pessoa humana é o ponto central da discussão atual do Direito de Família, entrando em cena para resolver várias questões práticas envolvendo as relações familiares. Concluindo, podemos afirmar, que o princípio da dignidade humana é o ponto de partida do novo Direito de Família brasileiro.[13]
3. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR (ART. 3º, INC. I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988)
A solidariedade social é reconhecida como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil pelo art. 3º, inc. I, da Constituição Federal de 1988, no sentido de buscar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Por razões óbvias, esse princípio acaba repercutindo nas relações familiares, já que a solidariedade deve existir nesses relacionamentos pessoais. Isso justifica, entre outros, o pagamento dos alimentos no caso de sua necessidade, nos termos do art. 1.694 do atual Código Civil.
A título de exemplo, o Superior Tribunal de Justiça aplicou o princípio em questão considerando o dever de prestar alimentos mesmo nos casos de união estável constituída antes de entrar em vigor a Lei n. 8.971/94, o que veio a tutelar os direitos da companheira.[14] Reconheceu-se, nesse sentido, que a norma que prevê os alimentos aos companheiros é de ordem pública, o que justificaria a sua retroatividade.[15]
Mas vale lembrar que a solidariedade não é só patrimonial, é afetiva e psicológica. Assim, “ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa-se o Estado do encargo de prover toda a gama de direitos que são assegurados constitucionalmente ao cidadão. Basta atentar que, em se tratando de crianças e adolescentes, é atribuído primeiro à família, depois à sociedade e finalmente ao Estado (CF 227) o dever de garantir com absoluta prioridade os direitos inerentes aos cidadãos em formação”.[16]
Entretanto, mesmo assim, “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (art. 226, § 8º, da CF/88) – o que consagra também a solidariedade social na ótica familiar.
Por fim, vale frisar que o princípio da solidariedade familiar também implica respeito e consideração mútuos em relação aos membros da família.
4. PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE FILHOS (ART. 227, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, E ART. 1.596 DO CÓDIGO CIVIL)
Prevê o art. 227, § 6º, da Constituição Federal que “os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Complementando o texto constitucional, o art. 1.596 do Código Civil em vigor tem exatamente a mesma redação, consagrando, ambos os dispositivos, o princípio da igualdade entre filhos.
Esses comandos legais regulamentam especificamente a isonomia constitucional, ou igualdade em sentido amplo, constante do art. 5º, caput, do Texto Maior, um dos princípios do Direito Civil Constitucional.[17] Em suma, juridicamente, todos os filhos são iguais, havidos ou não durante o casamento. Essa igualdade abrange também os filhos adotivos e aqueles havidos por inseminação heteróloga (com material genético de terceiro). Diante disso, não se pode mais utilizar as expressões filho adulterino ou filho incestuoso, as quais são discriminatórias. Também não podem ser utilizadas, em hipótese alguma, as expressões filho espúrio ou filho bastardo. Apenas para fins didáticos utiliza-se a expressão filho havido fora do casamento, já que, juridicamente, todos os filhos são iguais.
Isso repercute tanto no campo patrimonial quanto no pessoal, não sendo admitida qualquer forma de distinção jurídica, sob as penas da lei. Trata-se, portanto, na ótica familiar, da primeira e mais importante especialidade da isonomia constitucional.
5. PrincÍpio da igualdade entre cônjuges e companheiros (art. 226, § 5º, da constituição Federal, e art. 1.511 do código civil)
Assim como há igualdade entre filhos, o Texto Maior reconhece a igualdade entre homens e mulheres no que se refere à sociedade conjugal formada pelo casamento ou pela união estável (art. 226, §§ 3º e 5º, da CF/88). Lembramos que o art. 1º do atual Código Civil utiliza o termo pessoa, não mais homem, como fazia o art. 2º do Código Civil de 1916, deixando claro que não será admitida qualquer forma de distinção decorrente do sexo.
Especificamente, prevê o art. 1.511 do Código Civil de 2002 que o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Por óbvio, essa igualdade deve estar presente na união estável, também reconhecida como entidade familiar pelo art. 226, § 3º, da Constituição Federal, e pelos arts. 1.723 a 1.727 do atual Código Civil.[18]
Diante do reconhecimento dessa igualdade, como exemplo prático, o marido/companheiro pode pleitear alimentos da mulher/companheira ou vice-versa. Além disso, um pode utilizar o nome do outro livremente, conforme convenção das partes (art. 1.565, § 1º, do CC). Vale lembrar que o nome é reconhecido, pelo atual Código Civil, como um direito da personalidade (arts. 16 a 19).
Quanto aos alimentos, reconhecendo essa igualdade, há julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo apontando que a mulher apta a trabalhar não terá direito a alimentos em relação ao ex-cônjuge. Em alguns casos, a jurisprudência paulista entende que haverá direito à pensão somente por tempo razoável para sua recolocação no mercado de trabalho.[19]
Ressalte-se, entretanto, que o Superior Tribunal de Justiça tem reformado essas decisões, que merecem análise caso a caso.[20] Como se pode perceber, a grande dificuldade reside em saber até que ponto vai essa igualdade no plano fático.
6. PrincÍpio da igualdade na chefia familiar (ARTS. 226, § 5º, e 227, § 7º, da cONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, E ARTS. 1.566, INCS. III E IV, 1.631 E 1.634 DO CÓDIGO CIVIL)
Como decorrência lógica do princípio da igualdade entre cônjuges e companheiros, temos o princípio da igualdade na chefia familiar, que deve ser exercida tanto pelo homem quanto pela mulher em um regime democrático de colaboração, podendo, inclusive, os filhos opinarem (conceito de família democrática).
Assim sendo, pode-se utilizar a expressão despatriarcalização do Direito de Família, já que a figura paterna não exerce o poder de dominação do passado. O regime é de companheirismo ou colaboração, não de hierarquia, desaparecendo a figura do pai de família (patter familias), não podendo ser utilizada a expressão pátrio poder, substituída, na prática, por poder familiar.
No Código Civil de 2002, o princípio em questão pode ser percebido pelo que consta dos incs. III e IV do art. 1.556. Isso porque são deveres do casamento a assistência mútua e o respeito e consideração mútuos, ou seja, prestados por ambos os cônjuges, de acordo com as possibilidades patrimoniais e pessoais de cada um.
Complementando, prevê o art. 1.631 do atual Código Civil que durante o casamento ou união estável o poder familiar compete aos pais. Na falta ou impedimento de um deles, o outro exercerá esse poder com exclusividade. Em casos de eventual divergência dos pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer um deles recorrer ao juiz para a solução do desacordo.
Esse exercício de forma igualitária também consta do art. 1.634 do Código Civil, que traz as suas atribuições, a saber: a) dirigir a criação e a educação dos filhos; b) ter os filhos em sua companhia e guarda; c) conceder aos filhos ou negar-lhes consentimento para casarem; d) nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou se o sobrevivo não puder exceder o poder familiar; e) representar os filhos, até aos 16 anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; f) reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; g) exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Quanto à última atribuição, ela deve ser exigida com moderação, sem que a relação entre pais e filhos seja uma relação ditatorial, violenta ou explosiva. Qualquer abuso cometido, como se sabe, pode gerar a suspensão ou a destituição do poder familiar.
7. PRINCÍPIO da não-intervenção ou da liberdade (art. 1.513 do cÓDIGO CIVIL)
Prevê o art. 1.513 do Código Civil em vigor que “É defeso a qualquer pessoa de direito público ou direito privado interferir na comunhão de vida instituída pela família”. Trata-se da consagração do princípio da liberdade ou da não-intervenção na ótica do Direito de Família.
Por certo que o princípio em questão mantém relação direta com o princípio da autonomia privada, que também deve existir no âmbito do Direito de Família. A autonomia privada é muito bem conceituada por Daniel Sarmento como o poder que a pessoa tem de auto-regulamentar os próprios interesses.[21]
A autonomia privada não existe apenas em sede contratual ou obrigacional, mas também em sede familiar. Quando escolhemos, na escalada do afeto[22], com quem ficar, com quem namorar, com quem ter uma união estável ou com quem casar, estamos falando em autonomia privada, obviamente.
Retornando ao art. 1.513 do Código Civil em vigor, é importante frisar que se deve ter muito cuidado na sua leitura. Isso porque, o real sentido do texto legal é que o Estado ou mesmo um ente privado não pode intervir coativamente nas relações de família. Entretanto, o Estado poderá incentivar o controle da natalidade e o planejamento familiar por meio de políticas públicas.[23] Vale lembrar, também, que a Constituição Federal de 1988 incentiva a paternidade responsável e o próprio planejamento familiar, devendo o Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desses direitos, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais e privadas (art. 227, § 7º, da CF/88). Além disso, o Estado deve assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações (art. 227, § 8º, da CF/88).
Tudo isso consagra o princípio da não-intervenção. Mas vale lembrar que esse princípio deve ser lido e ponderado frente a outros princípios, caso do princípio do melhor interesse da criança, que passamos a analisar.
8. PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA (ART. 227, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, E ARTS. 1.583 E 1.584 DO CÓDIGO CIVIL)
Prevê o art. 227, caput, da Constituição Federal de 1988 que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Essa proteção é regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), que considera criança a pessoa com idade entre zero e doze anos incompletos, e adolescente aquele que tem entre 12 e 18 anos de idade.
Em reforço, o art. 3º do próprio ECA prevê que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e as facilidades, a fim de facultar-lhes o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.[24]
Na ótica civil, essa proteção integral pode ser percebida pelo princípio do melhor interesse da criança, ou best interest of the child, conforme reconhecido pela Convenção Internacional de Haia, que trata da proteção dos interesses das crianças. O Código Civil de 2002, em dois dispositivos, acaba por reconhecer esse princípio de forma implícita.
O primeiro dispositivo é o art. 1.583 do Código Civil em vigor, pelo qual, no caso de dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal pela separação judicial por consentimento mútuo ou pelo divórcio direto consensual, será observado o que os cônjuges acordarem sobre a guarda de filhos. Segundo o Enunciado n. 101 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, a expressão guarda de filhos constante do dispositivo deve abarcar tanto a guarda unilateral quanto a compartilhada, sempre atendido o melhor interesse da criança.[25] Se não houver acordo entre os cônjuges, a guarda deverá ser atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la (art. 1.584 do CC). Certamente, a expressão melhores condições constitui uma cláusula geral, uma janela aberta deixada pelo legislador para ser preenchida pelo aplicador do Direito caso a caso.[26]
Como se pode perceber, no caso de dissolução da sociedade conjugal, a culpa não mais influencia quanto à guarda de filhos, devendo ser aplicado o princípio que busca a proteção integral ou o melhor interesse do menor, conforme o resguardo do manto constitucional.
9. PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a palavra afeto no Texto Maior como um direito fundamental, podemos dizer que o afeto decorre da valorização constante da dignidade humana.[27]
No que tange a relações familiares, a valorização do afeto remonta ao brilhante trabalho de João Baptista Vilella, escrito no início da década de 1980, tratando da Desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procurava dizer que o vínculo familiar seria mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. Assim, surgiria uma nova forma de parentesco civil, a parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de filho.[28]
A defesa da aplicação da paternidade socioafetiva, hoje, é muito comum entre os atuais doutrinadores do Direito de Família. Tanto isso é verdade que, na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal sob a chancela do Superior Tribunal de Justiça, foi aprovado o Enunciado n. 103, com a seguinte redação: “O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho”.
Na mesma Jornada, aprovou-se o Enunciado n. 108, prevendo que: “No fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea e também a socioafetiva”. Em continuidade, na III Jornada de Direito Civil, idealizada pelo mesmo STJ e promovida em dezembro de 2004, foi aprovado o Enunciado n. 256, pelo qual “a posse de estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.
Na jurisprudência nacional, o princípio da afetividade vem sendo muito bem aplicado, com o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, predominante sobre o vínculo biológico.[29]
Para nós, o princípio da afetividade é importantíssimo, pois quebra paradigmas, trazendo a concepção da família de acordo com o meio social. É sobre o princípio da função social da família que passamos a expor, para encerrar este breve trabalho.
10. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA
Há algum tempo se afirmava, nas antigas aulas de Educação Moral e Cívica, que “a família é a célula mater da sociedade”. Apesar de as aulas serem herança do período militar ditatorial, a frase ainda serve como luva no atual contexto, até porque o art. 226, caput, da Constituição Federal de 1988 dispõe que a família é a base da sociedade, tendo especial proteção do Estado.
Assim, as relações familiares devem ser analisadas dentro do contexto social e diante das diferenças regionais de cada localidade. Sem dúvida, a socialidade também deve ser aplicada aos institutos do Direito de Família, assim como ocorre com outros ramos do Direito Civil.
A título de exemplo, a socialidade pode servir para fundamentar o parentesco civil decorrente da paternidade socioafetiva. Pode servir também para afastar a discussão desnecessária da culpa em alguns processos de separação. Pode servir, ainda, para a admissão de outros motivos para a separação-sanção em algumas situações práticas (v.g., infidelidade pela internet). Isso tudo porque a sociedade muda, a família se altera e o Direito deve acompanhar essas transformações.
A jurisprudência, por diversas vezes, reconhece a necessidade de interpretação dos institutos privados de acordo com contexto social.[30]
Em suma, não reconhecer função social à família e à interpretação do ramo jurídico que a estuda é como não reconhecer função social à própria sociedade!
Referências bibliográficas
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
FARIAS, Cristiano Chaves de. Redesenhando os contornos da dissolução do casamento. Anais do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, Del Rey, 2004,
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Disponível em: <http://www.ibdfam.com.br/public/artigos.aspx?codigo=109>. Acesso em: 24 jan. 2006.
Lorenzetti, Ricardo Luís. Fundamentos de direito privado. São Paulo: RT, 1998.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais orientadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Boletim do IBDFAM, Belo Horizonte, IBDFAM, jul./ago. 2005.
Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
Sarmento, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
Notas:
[1] Cf. Sarmento, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
[2] Lorenzetti, Ricardo Luís. Fundamentos de direito privado. São Paulo: RT, 1998, p. 45.
[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 33.
[4] O doutrinador desenvolveu o tema em sua tese de doutorado, defendida na Universidade Federal do Paraná, sob a orientação do professor Luiz Edson Fachin. O trabalho apresentado originou a obra Princípios fundamentais orientadores do direito de família (Belo Horizonte: Del Rey, 2006). Tal obra nos serviu de leme para a apresentação deste trabalho.
[5] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 255-294.
[6] Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[7] A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit., p. 124.
[8] “PROCESSUAL – EXECUÇÃO – IMPENHORABILIDADE – IMÓVEL – RESIDÊNCIA – DEVEDOR SOLTEIRO E SOLITÁRIO – LEI 8.009/90. A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário”. (STJ, ACÓRDÃO: ERESP 182223/SP (199901103606), 479073 EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DATA DA DECISÃO: 06/02/2002. ÓRGÃO JULGADOR: CORTE ESPECIAL. RELATOR: MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA. RELATOR ACÓRDÃO: MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS. FONTE: DJ. DATA: 07/04/2003. PG: 00209 REVJUR VOL.: 00306 PG: 00083. VEJA: STJ – RESP 276004-SP (RSTJ 153/273, JBCC 191/215), RESP 57606-MG (RSTJ 81/306), RESP 159851-SP (LEXJTACSP 174/615), RESP 218377-ES (LEXSTJ 136/111, RDR 18/355, RSTJ 143/385)).
[9] Essa relação foi muito bem feita pelo promotor de justiça e jurista baiano Cristiano Chaves de Farias, no IV Congresso Brasileiro de Direito de Família do IBDFAM. Foram as suas palavras: “Ora, como a cláusula geral de proteção da personalidade humana promove a dignidade humana, não há dúvida de que se é direito da pessoa humana constituir núcleo familiar, também é direito seu não manter a entidade formada, sob pena de comprometer-lhe a existência digna” (Redesenhando os contornos da dissolução do casamento. Anais do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, Del Rey, 2004, p. 115).
[10] Consta do corpo da decisão que: “No seio da família da contemporaneidade desenvolveu-se uma relação que se encontra deslocada para a afetividade. Nas concepções mais recentes de família, os pais de família têm certos deveres que independem do seu arbítrio, porque agora quem os determina é o Estado. Assim, a família não deve mais ser entendida como uma relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não somente do sangue. No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, até como necessidade de concretização do direito à saúde e prevenção de doenças, e o direito à relação de parentesco, fundado no princípio jurídico da afetividade. O princípio da afetividade especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional”. (A íntegra da decisão encontra-se disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br>. Jurisprudência. Acesso em: 27 mar. 2006.)
[11] “RESPONSABILIDADE CIVIL – ABANDONO MORAL – REPARAÇÃO – DANOS MORAIS – IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido” (STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 757.411-MG (2005?0085464-3), Relator Ministro Fernando Gonçalves, Votou vencido o Ministro Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro Relator. Brasília, 29 de novembro de 2005 – data de julgamento).
[12] “Queridos amigos e membros de meu grupo de estudos. […] Hoje provavelmente é um dos dias mais tristes de minha carreira jurídica considerada em sua totalidade… Isso acontece comigo sempre que a fé que tenho nas instituições (e no Poder Judiciário em especial – o que me levou a produzir, com vocês, de meu grupo de estudos, o nosso livro ‘A outra face do Judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas’) desaba por terra, como um nada precariamente sustentável… Muito triste… Refiro-me, certamente, à desastrada decisão do STJ, no caso Alexandre, sobre abandono afetivo (veja a decisão abaixo, no final desta mensagem). Quero duas coisas, acerca do assunto, para as nossas reflexões, queridos amigos do grupo de estudos. Primeiro, que releiam, se possível, o artigo que coloquei no nosso livro, e que escrevi a partir da decisão do Tribunal de Alçada de Minas (segue em anexo o artigo, para facilitar a leitura, se preferirem). Segundo, que pensem em seus pais (e mães), em seus filhos (os que tiverem a sorte divina de tê-los) e que reflitam a respeito do que receberam (ou não), na condição de filhos, de seus próprios pais (e mães), neste contexto afetivo que corre em paralelo com o singelo e jurídico dever de alimentar. Pensem em seus filhos e analisem o que e o quanto vocês lhes oferecem, nesta mesma seara. Finalmente pensem no Alexandre (autor da ação recém julgada) e analisem se ele se parece conosco e se seu pai se parece com os nossos pais. Se, depois de assim refletir, não acontecer nada em nossos corações, poderemos considerar que o STJ acertou em seu julgamento e que inexiste dano de qualquer espécie a ser reparado. Em conseqüência, devemos concluir que é normal que um pai (afinal, segundo o STJ, os pais não têm o dom da ubiqüidade, lembrem-se!!!) deixe seu filho para seguir seu projeto pessoal de felicidade, custe o que custar. E, finalmente, devemos refletir acerca de um novo viés que pode estar hoje mesmo nascendo para a sociedade brasileira e para as famílias de nosso país: ‘a Justiça autoriza que os homens (e as mulheres) abandonem afetivamente suas crias, se elas forem empecilhos em suas próprias trilhas de vida, punindo (será mesmo punição ou favor?) apenas com a cessação do poder familiar’!” O artigo citado pela renomada professora pode ser lido em nosso site (www.flaviotartuce.adv.br) na seção Artigos de Convidados. Sugerimos a leitura do trabalho para que o estudioso chegue a uma conclusão sobre o tema, que também pode ser abordado em concursos públicos. De imediato, deixamos claro que nós mesmos ainda não temos uma opinião definitiva quanto ao tema! Pelo teor da mensagem enviada pela nossa querida mestra, fica claro que a decisão do STJ não esgota a discussão. Por certo que a aplicação da dignidade humana em sede de Direito de Família e a tese do abandono paterno-filial serão ainda muito debatidas pela doutrina e pela jurisprudência de nosso País no futuro.
[13] É interessante transcrever e destacar as palavras de Rodrigo da Cunha Pereira ao anunciar o V Congresso Brasileiro de Família, realizado em outubro de 2005: “Dignidade humana é o direito do ser humano. Kant, o ‘filósofo da dignidade’, certamente não imaginava que as suas idéias originais de dignidade ocupariam o centro e seriam o veio condutor das constituições democráticas do final do século XX e as do século XXI. Essas noções de dignidade incorporam-se de tal forma ao discurso jurídico que se tornou impensável qualquer julgamento ou hermenêutica sem a consideração dos elementos que compõem e dão dignidade ao humano. Seguindo a tendência personalista do Direito Civil, o Direito de Família assumiu como seu núcleo axiológico a pessoa humana como seu cerne a dignidade humana. Isso significa que todos os institutos jurídicos deverão ser interpretados à luz desse princípio, funcionalizando a família à plenitude da realização da dignidade e da personalidade de cada um de seus membros. A família perdeu, assim, o seu papel primordial de instituição, ou seja, o objeto perdeu sua primazia para o sujeito. Seu verdadeiro sentido apenas se perfaz se vinculada, de forma indelével, à concretização da dignidade das pessoas que a compõe, independentemente do modelo que assumiu, dada sua realidade plural na contemporaneidade. Se não por outras razões, essa soa suficientemente forte para justificar o tema central do V Congresso: Família e Dignidade Humana” (Boletim do IBDFAM, Belo Horizonte, IBDFAM, jul./ago. 2005, p. 10).
[14] “ALIMENTOS x UNIÃO ESTÁVEL ROMPIDA ANTERIORMENTE AO ADVENTO DA LEI Nº 8.971, DE 29.12.94. A união duradoura entre homem e mulher, com o propósito de estabelecer uma vida em comum, pode determinar a obrigação de prestar alimentos ao companheiro necessitado, uma vez que o dever de solidariedade não decorre exclusivamente do casamento, mas também da realidade do laço familiar. Precedente da Quarta Turma” (STJ, REsp 102.819/RJ, Relator Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 23/11/1998, DJ 12/04/1999, p. 154).
[15] O STJ já fez o mesmo ao reconhecer a retroatividade da Lei n. 8.009/90, por meio da Súmula 205: “A Lei 8.009/90 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência”.
[16] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, op. cit., p. 62.
[17] CF, Art. 5º, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes[…]”.
[18] Nesse sentido, prevê o Enunciado n. 99 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, que “O art. 1.565, § 2º, do Código Civil não é norma destinada apenas às pessoas casadas, mas também aos casais que vivem em companheirismo, nos termos do art. 226, §§ 3º e 7º, da Constituição Federal de 1988, e não revogou o disposto na Lei 9.236/96”. O art. 1.565, § 2º, do Código Civil é o dispositivo que prevê que o planejamento familiar é de livre decisão do casal.
[19] “ALIMENTOS – Prova de dedicação da mulher ao lar, em prejuízo da atividade profissional para a qual se formou – Direito à pensão por tempo razoável para sua recolocação no mercado de trabalho – Recurso parcialmente provido”. (TJ/SP. Apelação Cível n. 196.277-4, São Paulo, Quarta Câmara de Direito Privado, Relator Aguilar Cortez – 23/08/2001 – v.u.).
[20] “FAMÍLIA – ALIMENTOS ENTRE CÔNJUGES – PRAZO. Se, na constância do casamento, a mulher não dispõe dos meios próprios para prover o seu sustento e se o seu marido tem capacidade para tanto, não se pode fixar o dever alimentício pelo prazo de apenas um ano, apenas porque é jovem e capaz para o trabalho. Recurso conhecido e provido (STJ. 4ª Turma, RESP. nº 555.429-RJ, Relator Ministro Cesar Asfor Rocha, j. 8/6/2004, v.u., Boletim AASP nº 2413/1010, abr. 2005).
[21] Ensina o autor fluminense que “esse princípio tem como matriz a concepção do ser humano como agente moral, dotado de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, e que deve ter a liberdade para guiar-se de acordo com estas escolhas, desde que elas não perturbem os direitos de terceiros nem violem outros valores relevantes para a comunidade” (Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit., p. 188).
[22] O conceito é de Euclides de Oliveira, exposto em brilhante palestra no V Congresso Brasileiro de Direito de Família, realizado em outubro de 2005.
[23] O mesmo sentido consta do já citado art. 1.565, § 2º, do Código Civil, inovação pela qual: “O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas”.
[24] Também complementando o que consta do Texto Maior, o art. 4º do ECA dispõe que “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
[25] A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal aprovou recentemente, o substitutivo ao Projeto de Lei n. 6.350/2002, que pretende alterar os arts. 1.583 e 1.584 do atual Código Civil, visando instituir de forma expressa a previsão da guarda compartilhando, incentivando a sua adoção.
[26] O Enunciado n. 102 do Conselho da Justiça Federal, também aprovado na I Jornada de Direito Civil, prevê que “a expressão ‘melhores condições’ no exercício da guarda, na hipótese do art. 1.584, significa atender ao melhor interesse da criança”.
[27] É por isso que, para fins didáticos, destacamos o princípio em questão, como faz Maria Berenice Dias no seu excelente Manual de direito das famílias (op. cit., p. 66).
[28] Sobre a valorização desse vínculo afetivo como fundamento do parentesco civil, ensina Paulo Luiz Netto Lôbo: “O modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente, a biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Contudo, o modelo patriarcal desapareceu nas relações sociais brasileiras, após a urbanização crescente e a emancipação feminina, na segunda metade deste século. No âmbito jurídico, encerrou definitivamente seu ciclo após o advento da Constituição de 1988. O modelo científico é inadequado, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, uma vez que outros são os valores que passaram a dominar esse campo das relações humanas. Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filhos, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos. O biodireito depara-se com as conseqüências da dação anônima de sêmen humano ou de material genético feminino. Nenhuma legislação até agora editada, nenhuma conclusão da bioética, apontam para atribuir a paternidade ao dador anônimo de sêmen. Por outro lado, a inseminação artificial heteróloga não tende a questionar a paternidade e a maternidade dos que a utilizaram, com material genético de terceiros. Situações como essas demonstram que a filiação biológica não é mais determinante, impondo-se profundas transformações na legislação infraconstitucional e no afazer dos aplicadores do direito, ainda fascinados com as maravilhas das descobertas científicas. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo” (Princípio jurídico da afetividade na filiação. Disponível em: <http://www.ibdfam.com.br/public/artigos.aspx?codigo=109>. Acesso em: 24 jan. 2006). Como nós, entende o autor que o princípio da afetividade tem fundamento constitucional, particularmente na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), na solidariedade social (art. 3º, I, da CF/88) e na igualdade entre filhos (art. 5º, caput, e art. 227, § 6º, da CF/88). Assim, em síntese, conclui o renomado autor alagoano, um dos fundadores do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM), que: “Impõe-se a distinção entre origem biológica e paternidade/maternidade. Em outros termos, a filiação não é um determinismo biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso à procriação. Na maioria dos casos, a filiação deriva-se da relação biológica; todavia, ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade. No estágio em que nos encontramos, há de se distinguir o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, com esta dimensão, e o direito à filiação e à paternidade/maternidade, nem sempre genético. O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue. A história do direito à filiação confunde-se com o destino do patrimônio familiar, visceralmente ligado à consangüinidade legítima. Por isso, é a história da lenta emancipação dos filhos, da redução progressiva das desigualdades e da redução do quantum despótico, na medida da redução da patrimonialização dessas relações” (Princípio jurídico da afetividade na filiação, op. cit.).
[29] “NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – ADOÇÃO À BRASILEIRA – CONFRONTO ENTRE A VERDADE BIOLÓGICA E A SÓCIO-AFETIVA – TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PROCEDÊNCIA – DECISÃO REFORMADA. 1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade sócio-afetiva, decorrente da adoção à brasileira (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de prevalecer à solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade sócio-afetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular adoção à brasileira, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-ia as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado” (Tribunal de Justiça do Paraná, Apelação Cível 0108417-9, de Curitiba, 2ª Vara de Família. DJ 04/02/2002, Relator Accácio Cambi).
“AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – ADOÇÃO À BRASILEIRA – PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA. O registro de nascimento realizado com o ânimo nobre de reconhecer a paternidade socioafetiva não merece ser anulado, nem deixado de se reconhecer o direito do filho assim registrado. Negaram provimento”. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 00502131NRO-PROC70003587250, DATA 21/03/2002, Relator Rui Portanova, ORIGEM RIO GRANDE).
[30] Com relação ao bem de família, particularmente quanto à impenhorabilidade dos bens móveis que guarnecem a residência da entidade familiar, podemos transcrever o seguinte julgado do STJ: “PROCESSUAL CIVIL – LEI 8.009/90 – BEM DE FAMILIA – HERMENÊUTICA – APARELHO DE TELEVISÃO, JOGO DE SOFÁ, FREEZER, MÁQUINA DE LAVAR ROUPA E MÁQUINA DE LAVAR LOUÇA – IMPENHORABILIDADE. VIDEOCASSETE – PENHORABILIDADE – PRECEDENTES – HERMENÊUTICA – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I – A LEI 8.009/90, AO DISPOR QUE SÃO IMPENHORÁVEIS OS EQUIPAMENTOS QUE GUARNECEM A RESIDÊNCIA, INCLUSIVE MÓVEIS, NÃO ABARCA TÃO-SOMENTE OS INDISPENSÁVEIS À MORADIA, MAS TAMBÉM AQUELES QUE USUALMENTE A INTEGRAM E QUE NÃO SE QUALIFICAM COMO OBJETOS DE LUXO OU ADORNO. II – O APARELHO DE VIDEOCASSETE, NO ENTANTO, SALVO SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS, NÃO SE INCLUI ENTRE OS BENS IMPENHORÁVEIS, CONSOANTE ORIENTAÇÃO ACOLHIDA PELA TURMA. III – AO JUIZ, EM SUA FUNÇÃO DE INTÉRPRETE E APLICADOR DA LEI, EM ATENÇÃO AOS FINS SOCIAIS A QUE ELA SE DIRIGE E ÀS EXIGÊNCIAS DO BEM COMUM, COMO ADMIRAVELMENTE ADVERTE O ART. 5º LICC, INCUMBE DAR-LHE EXEGESE CONSTRUTIVA E VALORATIVA, QUE SE AFEIÇOE AOS SEUS FINS TELEOLÓGICOS, SABIDO QUE ELA DEVE REFLETIR NÃO SÓ OS VALORES QUE A INSPIRARAM, MAS TAMBÉM AS TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS E SÓCIO-POLITICAS DA SOCIEDADE A QUE SE DESTINA” (STJ, REsp 162.998/PR, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 16/04/1998, DJ 01/06/1998, p. 141). É interessante verificar que a decisão é do ano de 1998. Atualmente, o videocassete tornou-se até raro, substituído que foi pelo aparelho de DVD… Será que esses objetos podem ser considerados essenciais à família? Para essa conclusão, recomenda-se a análise caso a caso das situações descritas.
Informações Sobre o Autor
Flávio Murilo Tartuce Silva
Doutorando em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor da EPD e do Curso FMB. Advogado e Consultor Jurídico em São Paulo.