O resultado do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 197.917 causou grande celeuma nos meios jurídicos do País. No exercício de sua competência recursal, em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo em relação à Câmara Municipal de Mira Estrela, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 6° da Lei Orgânica de Mira Estrela, que fixava em 11 o número de vereadores daquele Município. Por maioria de votos, entendeu o Pretório Excelso que o aludido artigo da Lei Orgânica Municipal é inconstitucional, na medida em que não foi observada a proporcionalidade entre o número de vereadores e o número de habitantes daquele Município, conforme seria de rigor em razão do artigo 29, inciso VI, da Constituição Federal vigente.
A partir de tal julgamento, movido por representação formulada pelo Procurador Geral Eleitoral, “Objetivando assegurar a observância da orientação emanada da Corte Suprema, não apenas, evidentemente, para o município de Mira Estrela, mas para todos os municípios brasileiros, e considerando, ainda, a proximidade das eleições municipais, o MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, invocando as competências dessa Corte Superior previstas no art. 23 do Código Eleitoral, propõe a edição de ato normativo que estabeleça prazo razoável às Câmaras Municipais para adaptação das respectivas leis orgânicas, visando o pronto atendimento dos parâmetros de fixação do número de Vereadores” (1) o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução n.º 21.702, baixando instruções sobre o número de vereadores a eleger segundo a população de cada município.
Por tal Resolução, baixada nos termos do disposto no inciso IX, do art. 23, do Código Eleitoral (Lei n.º 4.737/65), o Tribunal Superior Eleitoral determinou que, nas eleições municipais deste ano, a fixação do número de vereadores a eleger observará os critérios declarados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 197.917 (art. 1o), sendo que até 1º de junho de 2004, o Tribunal Superior Eleitoral verificará a adequação da legislação de cada município ao disposto no art. 1º e, na omissão ou desconformidade dela, determinará o número de vereadores a eleger (art. 2o).
Assim posta a questão, discute-se se o Tribunal Superior Eleitoral teria poderes para determinar aos Municípios a adequação das respectivas Leis Orgânicas ao julgado no Recurso Extraordinário n.º 197.917.
Para a correta compreensão da questão, mister sejam relembradas algumas particularidades do controle brasileiro de constitucionalidade e da competência do Tribunal Superior Eleitoral.
Em primeiro lugar, frise-se que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal o foi em sede de controle difuso de constitucionalidade. Sendo assim, a decisão relativa ao município de Mira Estrela não teria a aptidão de lançar seus efeitos sobre as Leis Orgânicas dos demais municípios brasileiros, haja vista que a eficácia de tal decisão opera-se somente entre as partes do processo, sem a produção de efeitos vinculantes. A esse respeito, inexiste discussão na Doutrina e na Jurisprudência pátrias. Assim, por não terem as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal em Recurso Extraordinário fundado no artigo 102, inciso III, letra “c”, da Constituição Federal efeito vinculante, bem como por não caber perante o Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade em face de atos normativos municipais, nada impede que entendimentos diversos surjam a respeito da matéria.
A propósito, “oportuno frisar que o Tribunal de Justiça de São Paulo mantém – ou ao menos mantinha – o entendimento firme e reiterado de que a fixação do número de vereadores era matéria inserida no campo da autonomia dos municípios. Assim, bastaria que as Leis Orgânicas obedecessem aos números mínimo e
máximo de edis traçados pelo artigo 29, VI, da CF/88 para que tais normas fossem tidas como constitucionais”. (2)
Apenas a título de lembrança, fechadas as portas para a discussão da matéria em nível de ação direta de inconstitucionalidade, ante a competência do Supremo Tribunal Federal estampada no art. 102, inciso I, letra “a”, nada impede que a matéria venha a ser discutida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, via argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1o, da Constituição Federal, c.c. art 1o, da Lei n.º 9.882/99).
Estabelecido que a decisão do Recurso Extraordinário n.º 197.917 não irradia efeitos fora do limite dos autos, resta analisar se o Tribunal Superior Eleitoral teria competência para estabelecer o número de vereadores de cada Município brasileiro.
A meu ver, respeitados entendimentos diversos, a resposta é negativa.
Consoante dispõe o artigo 23, inciso IX, do Código Eleitoral (Lei n.º 4.737/65), e o artigo 105, “caput”, da Lei n.° 9.504/97, que estabelece normas para as eleições, tem o Tribunal Superior Eleitoral a atribuição de expedir Resoluções e Instruções visando a regulamentar o Código Eleitoral e as disposições da própria Lei das Eleições, advertindo-se que as Resoluções do Tribunal Superior Eleitoral têm força de Lei Federal, mas restringem-se à regulação da legislação eleitoral, tão somente, ficando claro que citadas Resoluções, ainda que com força de Lei, estão dispostas em patamar inferior à Constituição Federal, que estabelece, com todas as letras, no inciso IV, do art. 29, competir ao Município, por meio de sua Lei Orgânica, dispor sobre o respectivo número de Vereadores. Observe-se que a possibilidade de o Tribunal Superior Eleitoral editar Resoluções a respeito de assuntos eleitorais não contraria a Constituição Federal, mas o conteúdo da Resolução n.º 21.702 é materialmente inconstitucional, por ferir de morte a autonomia Municipal que, não se pode negar, não é matéria eleitoral.
Se a Lei Orgânica Municipal não observa a proporcionalidade estabelecida no inciso IV, do art. 29, da Constituição Federal, tal como definida pelo julgamento do Recurso Extraordinário n.º 197.917, somente o Poder Judiciário, diante de um caso concreto, com eficácia entre as partes (controle difuso de constitucionalidade), é que pode corrigir o erro, exatamente como ocorreu com a Lei Orgânica do Município de Mira Estrela. Em conseqüência, é de se concluir que uma Resolução do Tribunal Superior Eleitoral que, mesmo dispondo de força de Lei, não está inserida como medida de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos no Brasil, instrumento hábil a preservar a supremacia da Constituição Federal, não se presta a tal fim.
Permitir-se que a Resolução n.º 21.702 do Tribunal Superior Eleitoral, que tem “status” de Lei Federal, amolde as Leis Orgânicas Municipais ao resultado do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 197.917 seria classificar a Constituição Federal Brasileira como flexível, já que permitida seria sua alteração por procedimento despido de especialidade, reservado à legislação ordinária, o que, é inegável, contraria toda a Doutrina e Jurisprudência Constitucional Brasileiras, que conferem às Constituições Brasileiras – exceto a de 1824 – o caráter de rígidas, exigindo, para sua alteração, um processo solene, especial e dificultoso, diverso daquele exigido pela legislação ordinária ou complementar.
Não se podendo perder de vista, ainda, a independência entre os Poderes, estatuída no art. 2o, da Constituição Federal, pois, em última analise, o Poder Judiciário estaria definindo regras de composição do Poder Legislativo.
Nem se argumente que a Lei Orgânica flagrantemente inconstitucional poderia ser descumprida, o que tornaria legítima a aplicação do disposto no art. 2o, da Resolução 21.702 (o Tribunal Superior Eleitoral verificará a adequação da legislação de cada município ao disposto no art. 1º e, na omissão ou desconformidade dela, determinará o número de vereadores a eleger), haja vista que o descumprimento de lei inconstitucional pode ocorrer – com moderação – por parte dos Poderes Executivo e Legislativo (TJSP, Apelação n.º 220.155-1; RDP 5/234; RDA 82/358; Adin 221/DF). No entanto, considerando-se que a função típica do Poder Judiciário é aplicar a lei ao caso concreto, não lhe cabe negar-lhe cumprimento, mas, de acordo com os instrumento processuais vigentes, declarar-lhe ou não a inconstitucionalidade.
Aliás, se a questão que se debate, quando diluída em uma lide, é estranha à competência da Justiça Eleitoral, parece até intuitivo que dela não poderá cuidar o C. TSE por meio de resoluções e instruções.(3)
A adequação espontânea do número de Vereadores, alterando-se a Lei Orgânica para compatibilizá-la ao resultado do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 197.917, ainda que nos termos do disposto no art. 2o, da Resolução n.º 21.702, seria mera liberalidade do Poder Legislativo Municipal.
Por outro lado, perfeitamente possível o questionamento judicial da matéria no exercício do controle concentrado de constitucionalidade, por meio do qual um dos legitimados pelo art. 103 da Constituição Federal pode questionar a Resolução 21.702 do Tribunal Superior Eleitoral, ato normativo primário com força de Lei Federal que, sem status constitucional, viola o a Separação dos Poderes (art. 2o, da Constituição Federal) e a Repartição Constitucional de Competência (art. 29, inciso IV, da Constituição Federal).
Todavia, a questão dificilmente chegará às portas do Poder Judiciário. A decisão criou um alvoroço no Congresso Nacional, que instalou uma Comissão para tentar aprovar antes das eleições municipais deste ano uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC n.º 71/2003) para tentar barrar a decisão do Judiciário. Tal espécie legislativa, se aprovada, dará nova redação ao inciso IV, do artigo 29 da Constituição Federal, definindo o número máximo dos Vereadores em relação à população do Município.(4)
Posto isso, à vista da importância da matéria, aguarda-se que a questão seja solucionada – senão pela promulgação de Emenda Constitucional alterando o inciso IV, do art. 29, da Constituição Federal – à luz das disposições constitucionais e dos ensinamentos doutrinários pátrios atinentes ao controle de constitucionalidade e à repartição constitucional de competência, que, como se afirmou, apontam para a impossibilidade de o Tribunal Superior Eleitoral, por Resolução, fixar o número de Vereadores nos Municípios brasileiros, a uma por ter a decisão do Supremo Tribunal Federal sido proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade, com eficácia somente entre as partes e, a duas, ante o fato de que a Constituição Federal reservou aos Municípios, e não ao Tribunal Superior Eleitoral, o poder de fixar o número de componentes do Poder Legislativo Municipal (art. 29, inciso IV).
Informações Sobre o Autor
Renato Bernardi
Procurador do Estado de São Paulo
Mestre em Direito Constitucional – ITE-Bauru
Doutorando em Direito Tributário – PUC-SP
Autor do livro A inviolabilidade do Sigilo de Dados
Professor da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos