O acesso à justiça, a teoria da mediação e a Resolução 125/2010 do CNJ

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Resumo: O texto, partindo da terceira onda ou movimento do acesso à justiça, procura formular um panorama da teoria da mediação, a qual realça essa modalidade de meio alternativo de controvérsias ao enfatizar vantagens, estratégias, técnicas e restrições, inclusive para distanciá-las da via heterocompositiva e mesmo da conciliação. A partir daí situa a Resolução 125 do CNJ como aplicação da teoria da mediação, reconhecendo no ato a adoção de uma concepção de acesso à justiça como garantia da ordem jurídica justa.

Palavras-chave: Acesso à justiça. Terceira onda. Teoria da mediação. Resolução 125/2010-CNJ.

Abstract: This paper, from the third wave or movement of access to justice, quest to formulate an overview of the mediation theory, which emphasizes this type of alternative dispute resolution to stress the advantages, strategies, techniques and restrictions, including to distance them from the traditional lawsuit and even the appeasement. From this it situate the Resolution 125/2010 of the National Council of Justice as application the theory of mediation, recognizing in this act the adoption of a concept of access to justice as a guarantee of legal justice.

Key-words: Access to justice. Third wave.  Mediation theory. Resolution 125/2010-CNJ.

Sumário: Introdução. 1. A terceira onda de acesso à justiça. 2. A teoria da mediação. 2.1. O conflito. 2.2. Mediação. 2.3. Estratégias de mediação. 2.4. Mediação e conciliação. 2.5. Princípios e limites. 3. A mediação na Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça. 3.1. Panorama geral. 3.2. Mediadores e conciliadores. 3.3 Procedimento de mediação/conciliação. 4. Conclusão.

Introdução

Conforme Capelletti e Garth,[1] o interesse em torno do problema do acesso à justiça resultou em três movimentos com as respectivas questões centrais: primeiro, a assistência judiciária para os pobres; segundo, a representação judicial dos interesses difusos/coletivos; e, terceiro, a construção de um novo modelo, com respostas diversificadas diante da complexidade do tema. No último aspecto, ganha importância a adoção de meios alternativos de composição do conflito.

Então o texto que segue, cujo propósito é apresentar um panorama meramente descritivo sobre a teoria da mediação, forma particular de solução autocompositiva de controvérsia que invoca a cultura da paz; a adequação para tratar de relacionamentos continuativos (familiares, vizinhança, empresariais, etc.); a participação cooperativa dos envolvidos no litígio; e a finalidade de resolução da demanda remanescente, que persiste após o processo heterocompositivo porque excluída pelos limites da demanda judicial.[2]

Nesse contexto, o estudo oferece também um cenário da regulamentação da mediação pelo Conselho Nacional de Justiça estampada na Resolução 125.

Esse ato, ao estabelecer a política judiciária nacional para o tratamento adequado dos conflitos de interesses, regulando a mediação e a conciliação no âmbito do Poder Judiciário, é fruto inegável do reconhecimento pelo órgão administrativo de um cariz mais ampliado do princípio constitucional do acesso à justiça, identificado como realização de uma ordem jurídica justa. Por igual, demonstra a relevância dada atualmente aos meios extrajudiciais de solução de disputas, adotando largamente conceitos, princípios e estratégias defendidos pela teoria da mediação.

1. A terceira onda de acesso à justiça

Segundo Azevedo,[3] o movimento de acesso à justiça provocou reformas estruturais no Judiciário, bem como no sistema processual dos países ocidentais, inclusive no Brasil, com o escopo de tornar mais acessível o Poder Judiciário e simplificar a participação em processos heterocompositivos estatais. Contudo, se nas etapas ou ondas anteriores o enfoque era superar a barreira econômica ou a inadequação no trato processual de demandas coletivas, o terceiro movimento de acesso à justiça, ainda em pleno curso, tem como alvo o “obstáculo processual”, ante a insuficiência do processo contencioso para dar uma solução eficaz ao problema.

Assim, continua o autor, a atenção na atualidade é dirigida a instituições e mecanismos usados na prevenção e no processamento de disputas, embora retomando uma perspectiva clássica da teoria de direito processual: aquela que considera a jurisdição uma atividade secundária, meramente substitutiva da resolução de controvérsia espontaneamente pelas partes e cujo insucesso autoriza a intervenção estatal. Sob esse enfoque, prossegue, a escola processual brasileira caminha em duas vertentes: a deformalização do processo tradicional, com técnicas mais simplificadas, econômicas e rápidas para certos conflitos; e deformalização das controvérsias, por meio de equivalentes jurisdicionais ao processo tradicional com o intuito de evitá-lo, pois é crescente a certeza de esgotamento da função estatal na pacificação da sociedade, em virtude da sobrecarga dos tribunais, dos custos elevados com as demandas e do excessivo formalismo processual.[4]

Ainda conforme Azevedo, crescente também o reconhecimento de que o escopo social mais relevante é harmonizar a sociedade mediante critérios justos, com abandono de fórmulas exclusivamente positivadas. Daí o estímulo a mecanismos para ou metaprocessuais que efetivamente complementem o sistema instrumental na busca de seus escopos fundamentais ou no cumprimento de metas não pretendidas diretamente no processo heterocompositivo judicial.[5]

De fato, é voz corrente na teoria da mediação que o monopólio jurisdicional já se revela insuficiente para solucionar com celeridade e eficiência o volume de ações ajuizadas, ante o crescimento populacional e a multiplicação de litígios, com diversos obstáculos na via tradicional de solução das controvérsias surgidas na sociedade: morosidade, formalismo acentuado, custos com advogado, falta de meios orçamentários, excesso de recursos processuais, número insuficiente de juízes ou servidores, legislação ultrapassada e demandas inúteis ou desnecessárias. [6]

É nesse ambiente que se argumenta a legitimidade de políticas públicas de incentivo a conciliação, arbitragem e mediação, bem como a mecanismos administrativos de proteção das relações de consumo, permitindo um sistema “pluriprocessual” de complementaridade e adaptabilidade e de múltiplas portas, conferindo amplitude ao princípio constitucional de acesso à justiça de modo a ultrapassar a via meramente judicial.[7]

Para Azevedo, é por meio da autocomposição que o conceito de justiça se apresenta em uma das suas acepções mais básicas, pois a decisão é adequadamente obtida num espaço discricionário e via procedimento equânime, que auxilia os envolvidos a produzir resultados satisfatórios com total conhecimento do contexto fático e jurídico, sem prejuízo da normatização mínima estabelecida pelo Estado. Nessa linha, pontua, a terceira onda de acesso à justiça importa a compreensão de que a justiça não é alcançada de modo absoluto com a aplicação da norma material positivada. [8]

A doutrina, contudo, reconhece que a tarefa não está imune a desafios, sendo necessário: atribuir-se ao direito material dispositivo e à jurisdição o campo de atuação devido; reconhecer no conflito a possibilidade de ser resolvido de forma construtiva, contribuindo para que relações sociais possam ser fortalecidas; e redefinir o papel do Poder Judiciário na sociedade como menos judicatório e mais harmonizador.[9]

2. A teoria da mediação

2.1 O conflito

Não raro visto como fenômeno negativo, o conflito pode ser concebido “como um processo ou estado em que duas ou mais pessoas divergem em razão de metas, interesses ou objetivos individuais percebidos como mutuamente incompatíveis”.[10]

Em Freitas Junior, trata-se de conflito de intersubjetivo de justiça, no qual os sujeitos envolvidos não convergem quanto à forma moralmente mais justa de decisão alocativa e que é objeto de políticas públicas que oferecem meios pacíficos de administração da disputa.  A questão central, portanto, recai no ônus de decidir a quem destinar um bem, material ou imaterial, presumidamente escasso, ou um encargo, material ou imaterial, que se considera inevitável, quando há antagonismo. A forma de solução interessa à jurisdição e também ao modelo alternativo de solução de disputa – ADR (Alternative Dispute Resolution). [11]

Na teoria da mediação o processo heterocompositivo judicial, ao tratar a disputa como exclusivamente relacionado ao direito, exclui aspectos possivelmente tão ou mais relevantes do que aqueles juridicamente tutelados. Além disso, reforça a natureza destrutiva do processo, referida por Morton Deutsch.[12]

De fato, para esse autor, um processo se apresenta como destrutivo quando há enfraquecimento ou rompimento da relação social preexistente à disputa, em razão do modo pelo qual esta é conduzida, com tendência a se expandir ou se intensificar. Com isso, o conflito se torna independente da causa inicial e assume feição competitiva e centrada na busca da vitória, desprezando-se as possibilidades de coexistência dos interesses.

Vezzulla alega que nos processos tradicionais a pessoa comum se depara com modos e palavras que desconhece e tem negada a participação direta, pois obrigada a confiar plenamente no advogado, num formalismo que substitui a espontaneidade cotidiana e “nada é o que parece”. Sustenta o autor que a orientação do advogado para negativa da situação verdadeira por razões procedimentais não somente parece incompreensível, como também deteriora o relacionamento com o outro.[13]

Já quanto ao processo construtivo, a doutrina ressalta a capacidade de estimular soluções criativas que permitam compatibilizar interesses aparentemente contrapostos; a possibilidade dos próprios envolvidos ou do condutor do processo serem motivados a resolver as questões sem atribuição de culpa e de modo prospectivo; o desenvolvimento de condições para reformulação dos problemas diante de eventuais impasses; e a disposição das partes ou do condutor do processo em abordar, além das questões juridicamente tuteladas, tudo que esteja influenciando o relacionamento entre os envolvidos. Objetiva-se, assim, fortalecer a relação social preexistente à disputa, o conhecimento mútuo e a empatia.[14]

No ponto, também se deve a Morton Deutsch a diferença entre procedimento competitivo e cooperativo segundo o modo como o objetivo pode ser alcançado. Se para atingir uma meta se faz necessário que o outro não atinja a dele, o procedimento chama-se impositivo, baseado na competição; se, ao contrário, para que um objetivo seja alcançado é imprescindível que o outro igualmente atinja o procedimento será cooperativo.[15]

Conforme Almeida, a competição estimula a assertividade em busca da satisfação pessoal desconsiderando necessidades, pontos de vista e interesses do outro. Na colaboração, ou cooperação, a assertividade ocorre em sentido duplo, tanto no interesse e necessidade próprios, quanto no interesse e necessidades do outro.[16]

2.2. Mediação

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Vezzulla propõe um quadro comparativo entre heterocomposição e mediação. Assim, a primeira teria procedimento formal; o tratamento seria indireto; é centrada em causas; o meio é a leitura; vale-se da burocracia e imposição; tem como protagonistas juiz e advogado; parte da lei; foca o passado; o objetivo é decidir quem tem razão; o método é impositivo; o paradigma é patriarcal, ordem, exclusão e poder; conclui-se com uma sentença; baseia-se na ideologia do juiz ou tribunal; a justiça é cumprir lei e assegurar o prêmio ou castigo; resulta em dependência; e o limite é habilidade do advogado e a interpretação ideológica judicial.[17]

Já a mediação é informal, direta; centrada nas pessoas, no diálogo e na cooperação e escuta; tem como protagonistas os envolvidos e advogados; parte da necessidade e foca o futuro; pretende capacitar para participação e decisão responsável; é cooperativo-didático, negocial, harmônico, inclusivo e baseado na confiança; resulta em satisfação e emancipação; o tempo é o dos mediandos; a justiça é baseada no reconhecimento e na satisfação e responsabilização; tem como limite a ideologia da mediação, o desejo dos mediandos, a capacidade do mediador e má-fé dos envolvidos.[18]

Nesse cenário, Vezzula argumenta que o modelo adversarial não atende o relacionamento, procura conseguir vencer e impor a posição de um sobre o outro e determinado “vale-tudo” orienta a ação do advogado, formado para vencer. Tampouco preserva a plenitude da dignidade humana, entendida como autodeterminação, pois a autonomia na resolução dos conflitos interpessoais não é aplicada quando do acesso à justiça.[19]

Esse último aspecto, aliás, é destacado por Fernanda Tartuce ao defender que o protagonismo dos próprios envolvidos na mediação, ao tomar suas decisões e ser responsável por seu próprio destino, tem fundamento numa concepção ampla de dignidade humana.[20]

Indo além, Warat ressalta que a mediação constitui um instrumento de realização da autonomia, da democracia e da cidadania, enquanto medida que educa, facilita e ajuda a produzir diferentes e a decidir sem a intervenção de terceiros influenciados por um conflito.[21]

Daí também a vinculação doutrinária da mediação à cultura da paz, que é convivencial e baseada na superação das divergências e na promoção do diálogo de modo horizontal e participativo. Nessa compreensão, a modalidade se afasta da cultura demandista ou antagonista, fundada na lógica binária e dialética, na qual se confiam as disputas a uma decisão judicial impositiva, como se fosse houvesse incapacidade dos envolvidos alcançarem por meios próprios a justiça consensuada do caso concreto.[22]

Assim, para Almeida, a postura colaborativa é essencial na mediação, cuja atualidade faz essa forma autocompositiva se aproximar intensamente dos princípios contemporâneos de construção de consenso, pautados na sustentabilidade das diferenças e que possibilitam criar soluções de mútuo benefício.[23]

É sintomático, portanto, que a teoria da mediação sustente a existência de controvérsias cuja solução pela via heterocompositiva e adversarial é inadequada, seja pela natureza continuativa das relações, seja pela complexidade do próprio relacionamento, seja ainda por não alcançar todo o universo do conflito. Em tais hipóteses, torna-se imperioso um tratamento diferenciado que inclua também a disputa oculta e promova o restabelecimento da comunicação, a transformação do litígio, a cooperação, a corresponsabilidade e a construção de um consenso eficaz.[24]

Na espécie, o conto da disputa pela laranja, citado por diversos autores que estudam mediação, é emblemático: dois irmãos brigam pela fruta e não chegam a um acordo sobre quem tem direito. A mãe decide então reparti-la em duas partes rigorosamente iguais. Porém, um filho queria apenas a polpa e o outro, a casca. Como não houve consulta sobre os interesses de cada um, que também não negociaram a melhor forma de solução, o resultado final imposto, e não dialogado, foi menos satisfatório.

A doutrina da mediação enfatiza, por isso, o uso desse mecanismo na solução de controvérsias, porque a técnica pretende identificar as reais motivações dos envolvidos e resolver situações conflituosas de forma ampla e não pontual, ao ter em mira: crises latentes, pois não reveladas de forma plena; conflitos emergentes, cuja disputa não foi ainda objeto de formalização; e conflitos manifestos, por haver disputa ativa e contínua.[25]

Na América Latina, Colômbia e Argentina se destacam pelo pioneirismo no uso da mediação, desenvolvida, por sua vez, nos Estados Unidos de forma intensa na década de 70 devido ao crescimento do número de dissoluções conjugais, sendo o país que dispõe do maior número de formas de composição de controvérsias: estatutária, contratual, voluntária e judicial. [26] Na Inglaterra, a mediação foi objeto de inovações no Código de Processo Civil de 1998, que conferiu prioridade absoluta a Alternative Dispute Resolution (ADR), resultando em drástica diminuição de processos em trâmite no Judiciário.[27]

A teoria da mediação invoca, então, as seguintes vantagens: voluntariedade; rapidez; consensualidade; eliminação completa do litígio, suprimindo a demanda remanescente e as chamadas ‘ações-filhotes; conservação da comunicação dos envolvidos; produção de alternativas criativas; e solução mais satisfatória e duradoura porque ajustada, o que evita a violência. Além disso, a mediação, como processo cooperativo, induz um jogo de soma não zero, pois os disputantes têm simultaneamente interesses comuns e opostos, diferentemente dos jogos de soma zero, em que os participantes têm interesses totalmente opostos e o ganho do vencedor importa sempre derrota do perdedor. [28]

Sintomático, portanto, que a mediação advogue ser o modo consensual de resolução mais indicado para disputas familiares, por ensejar um resultado satisfatório e eficaz e preservar o vínculo de afetividade e o relacionamento harmonioso, aniquilando desejos de vingança e desforra e a figura perdedor-ganhador.[29]

Nessa perspectiva, embora alcance outros litígios familiares (adoção, guarda, assistência material, sucessão, etc.), é no fim do relacionamento de casais que se evidencia mais tormentoso o conflito, porque tem início uma complexa negociação: perdas afetivas juntamente com aspectos materiais; e múltiplas separações: psíquica, emocional, física, famílias primárias, amigos e filhos em comum. A questão se torna mais grave quando a prole funciona como instrumento de agressão mútua, produzindo não raro inúmeras e sucessivas demandas.[30] Na hipótese, acentua Ivan Aparecido Ruiz que o ajuizamento da petição inicial se apresenta como verdadeira “declaração de guerra”, restringindo a discussão ao binômio perde-ganha, ao estresse e ao sofrimento, com marcas indeléveis.[31]

2.3 Estratégias de mediação

Conforme Silva, existem diversas estratégias de mediação, cuja escolha deve observar a autodeterminação das partes; a visão do conflito como algo inerente à vida e que pode implicar respostas promissoras; a construção da alteridade; o desenvolvimento de novas formas de comunicação; a promoção de reparações; a flexibilização de padrões rígidos de conduta; a criação do maior número possível de alternativas; e as condições para a obtenção de um acordo.[32]

Assim, o modelo harvardiano, surgido na área empresarial e direcionado para conflitos familiares, tem por base a negociação cooperativa, na qual o mediador atua como facilitador do diálogo para a descoberta dos reais interesses, para a desvinculação do problema das pessoas e para soluções criativas de ganhos múltiplos, realçando o protagonismo dos envolvidos e o alcance do acordo como principal meta.[33]

Já a linha transformadora, a par de situar o acordo apenas como uma possibilidade, sublinha a mudança de qualidade do conflito, transformando-o de modo que as partes compreendam a si mesmas e a própria disputa. Procura viabilizar o restabelecimento de laços afetivos, englobando integralmente a controvérsia de modo a alcançar uma pluralidade de aspectos, tais como o emocional, o financeiro, o legal e o psicológico.[34]

A abordagem narrativa propõe desconstruir narrativas iniciais com diferentes versões da situação em litígio e, com isso, construir uma variante integrada a partir da história narrada pelos próprios envolvidos, via discurso convergente: formulação de questões abertas; apresentação de resumos; e recontextualização dos discursos.

O modelo interdisciplinar defende a formação de equipe multidisciplinar para a solução dos casos, sendo recomendável nos conflitos familiares. [35]

Sem embargo de tais modelos ou escolas, elencam-se ainda como técnicas de mediação: o rapport, instrumento de comunicação eficiente do mediador com os envolvidos, de modo a fixar a aceitação e a confiança; a escuta ativa entre os mediandos, por meio do estímulo a se ouvirem um ao outro; o parafraseamento, reformulação de frases para sem alterar o sentido organizá-las e sintetizá-las e neutralizar os conteúdos; o caucus, que são encontros em separado e sob confidencialidade com os mediandos; e o teste de realidade, reflexão objetiva dos mediandos acerca do que está sendo colocado ou proposto.[36]

2.4. Mediação e conciliação

A doutrina procura fazer a distinção entre mediação e conciliação a partir da presença nesta última do terceiro imparcial, que apresenta alternativas para a obtenção de um acordo influenciando o conteúdo, enquanto o mediador não formula propostas e, sim, promove o diálogo, como um facilitador da comunicação.

Outra diferença entre a mediação e a conciliação, embora ambos os métodos de justiça consensuada, é que a segunda não foca a transformação do relacionamento entre os dissidentes.[37]

Além disso, na conciliação o debate é superficial e centrado apenas na disputa como exposta no início da demanda, limitando-se ao atendimento do interesse pessoal, numa pauta objetiva; na mediação, ao revés, há uma imersão na estrutura relacional, explorando a fundo os problemas, a demonstração dos reais interesses e a construção de alternativas inteligentes, numa intervenção qualitativa, com desconstrução do conflito e atendimento das demandas de todos os envolvidos, em pauta subjetiva.[38]

A conciliação tem foco na identificação de responsabilidades pelo passado e pela correção presente das conseqüências, com soluções reparadoras e corretivas; a mediação ultrapassa a noção de culpa pelo ocorrido, mirando o futuro. Na mediação, vigora a confidencialidade; na conciliação, a publicidade é a regra.[39]

Na conciliação, os advogados permanecem com a postura antagônica dos processos heterocompositivos, atuando como defensores e porta-vozes e almejando a satisfação de um interesse imediato do cliente; a mediação exige mudança de comportamento, pois são os mediandos os autores da solução, aqueles que têm poder decisório, funcionando o advogado como assessor legal na escolha do mediador quando a mediação ocorrer em âmbito privado e como consultor, na identificação dos interesses e necessidades do cliente.[40]

2.5 Princípios e limites

Morais e Sanomya relacionam os seguintes princípios formadores da atuação do terceiro na mediação: imparcialidade, como característica fundamental diante do papel de restaurador do diálogo entre os envolvidos e condutor do processo; credibilidade, conquistada e mantida durante todo o processo da mediação; competência, que exige efetiva aptidão para mediar a controvérsia; confidencialidade, que assegura aos participantes o sigilo nas informações e experiências compartilhadas; e boa-fé e transparência entre os mediandos.[41]

Como limites a doutrina elenca: forte presença histórica da cultura adversarial, com automatismos incorporados e difíceis de modificar, que geram a ilusão de ser a única solução possível; certeza dos mediandos de que apenas os profissionais sabem resolver e as pessoas comuns, não; visão distorcida da demanda que oculta as verdadeiras razões em favor de argumentos e pedidos mais convincentes; e comportamento de má-fé, pois a boa-fé é o limite fundamental para determinar a viabilidade da mediação, o que afasta qualquer propósito de lesar, enganar ou até participar como estratégia.[42]

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A teoria da mediação indica igualmente a necessidade de observância da natureza indisponível do direito, pois como mecanismo de renúncia esbarra em normas cogentes do ordenamento jurídico.[43] No ponto, convém fazer alusão à nota formulada por Freitas Júnior, ao apontar que embora da mediação não possa resultar decisões ilícitas, ainda que conforme a moralidade dos envolvidos, o controle sobre eventuais ilegalidades será realizado ao final, como condição necessária à validação, e não durante o curso do processo.[44]

Oportuno registrar, a doutrina reconhece que o meio heterocompositivo judicial e os meios alternativos de autocomposição, sobretudo a mediação, são procedimentos de resolução de conflitos que não se excluem; ao revés se complementam, podendo coexistir e se auxiliarem.[45] Como refere Fernanda Maria Dias de Araújo Lima, os meios alternativos não devem pretender substituir o Poder Judiciário, mas, sim, cooperar na resolução de conflitos,[46] até porque há conflitos que jamais poderão ser tratados pela mediação como exemplifica Toaldo.[47]

3. A mediação na Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça

3.1. Panorama geral

Emblemático, então, que o Conselho Nacional de Justiça, repetindo o exemplo argentino[48] e tendo em mira os objetivos estratégicos do Poder Judiciário, em 29 de novembro de 2010, tenha editado a Resolução 125, disciplinando a política nacional para o tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário.

Segundo Azevedo, a abordagem do conflito consagrada na Resolução, se conduzida com técnica apropriada, tende a ser um importante meio de conhecimento, amadurecimento e aproximação de seres humanos. Além disso, quando adequadamente impulsionada pelo Judiciário, vai estimular relevante alteração no seu papel e nos níveis de satisfação da população, pois, segundo o autor, já constatado que o ordenamento jurídico processual se organiza em processos destrutivos, lastreados no direito positivo.[49]

Desse modo, a Resolução tem como objetivo expresso dar efetividade ao direito constitucional de acesso à justiça com o fito de alcançar a ordem jurídica justa, portanto, uma perspectiva formal e material do princípio. Com tal propósito, atribui ao Judiciário a política pública permanente de tratamento adequado dos conflitos de interesses, organizando nacionalmente mecanismos de solução alternativa de controvérsia no modelo consensual de modo a ser este incentivado e aperfeiçoado.

Com a regulamentação, o CNJ reconheceu que a mediação é instrumento efetivo de pacificação social e de solução e prevenção de litígios, cuja implantação tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos e a quantidade de recursos e processos em execução.

A Resolução foi objeto de atualização em 31 de janeiro de 2013. Assim, na vigente configuração, a política judiciária objetiva expressamente assegurar a todos o direito à solução das controvérsias por meios adequados à respectiva natureza e peculiaridade, devendo os órgãos judiciais, no prazo de 12 (doze) meses, ofertar instrumentos de composição, em especial os chamados meios consensuais como a mediação e a conciliação, bem como atendimento e orientação ao cidadão.

A implantação do programa não deve prejudicar projetos similares em funcionamento e deve observar, além da boa qualidade dos serviços e da disseminação da cultura de pacificação social, a formação e o treinamento apropriados de servidores, conciliadores e mediadores, em uma rede entre órgãos do Poder Judiciário e entidades públicas e privadas parceiras, inclusive universidades e instituições de ensino.

Daí a obrigação de os Tribunais criarem núcleos permanentes de métodos consensuais de solução de conflitos, inclusive em matéria penal e restaurativa, compostos por magistrados da ativa ou aposentados e servidores, sem prejuízo do estímulo a programas de mediação comunitária.

Deverão ser criados ainda centros judiciários de solução de conflitos e cidadania como unidades do Poder Judiciário nos Juízos com competência cível, fazendária, previdenciária e de família, que serão responsáveis pela realização das sessões e audiências de conciliação e mediação, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão, com atuação do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Procuradoria e de advogados.

Tais centros poderão ser organizados por áreas temáticas (juizados especiais, família, precatórios, empresarial, etc.) e terão separadamente setores de solução pré-processual, processual e de cidadania.

3.2. Mediadores e conciliadores

Diferentemente da ênfase dada à diferença formulada pela teoria da mediação, a Resolução do CNJ optou por uma disciplina uniforme entre mediação e conciliação, ao instituir em anexo o Código de Ética, que fixa princípios e regras que impõem ao mediador e ao conciliador a necessidade de lisura, termo de compromisso e submissão às orientações do Juiz Coordenador.

Dessa forma, ao conciliador/mediador são aplicáveis as mesmas razões de impedimento e suspeição judicial, a serem informadas aos envolvidos. Apenas mediadores e conciliadores capacitados e submetidos à reciclagem permanente e à avaliação do usuário serão admitidos, sendo vedada de modo absoluto a prestação de serviços profissionais, de qualquer natureza, aos envolvidos em processo de conciliação/mediação sob sua condução.

O Código, em sintonia com a teoria da mediação, estabelece os seguintes princípios e diretrizes que devem formar a consciência dos terceiros facilitadores e representam imperativos de conduta:

a) Confidencialidade – dever de manter sigilo sobre informações para atuar obtidas na sessão, salvo autorização expressa das partes, violação à ordem pública ou às leis vigentes, não podendo ser testemunha do caso, nem atuar como advogado dos envolvidos, em qualquer hipótese.

b) Decisão informada – que assegura ao jurisdicionado a plena informação quanto aos direitos e ao contexto fático no qual está inserido.

c) Competência – dever de qualificação para atuar, com capacitação periódica obrigatória.

d) Imparcialidade – dever de agir com ausência de favoritismo, preferência ou preconceito, garantindo que valores e conceitos pessoais não interfiram no resultado do trabalho, vedada a aceitação de qualquer espécie de favor ou presente.

e) Independência e autonomia – significa atuação com liberdade, sem sofrer qualquer pressão interna ou externa, sendo permitido recusar, suspender ou interromper a sessão se ausentes as condições necessárias para o bom desenvolvimento, estando o dispensado de redigir acordo ilegal ou inexequível.

f) Empoderamento – como estímulo aos envolvidos no aprendizado para melhor resolução de seus conflitos futuros em função da experiência de justiça vivenciada.

g) Validação – incentivo aos interessados para percepção recíproca como seres humanos merecedores de atenção e respeito.

3.3. Procedimento de mediação/conciliação

O Código estabelece também regras que regem o processo de conciliação/mediação. São por igual normas de conduta para o bom desenvolvimento do trabalho de modo a engajar os envolvidos, alcançar a pacificação e obter o comprometimento com eventual acordo entabulado:

a) Informação – dever de esclarecimento sobre o método de trabalho empregado, apresentando-o de forma completa, clara e precisa, e sobre os princípios deontológicos, as regras de conduta e as etapas do processo.

b) Autonomia da vontade – respeito aos diferentes pontos de vista de forma a assegurar uma decisão voluntária e não coercitiva aos envolvidos, que detêm liberdade para tomar as próprias decisões.

c) Ausência de obrigação de resultado – dever de não impor um acordo e de não tomar decisões pelos envolvidos, podendo, no máximo, criar opções no caso da conciliação.

d) Desvinculação da profissão de origem – dever de esclarecer aos envolvidos que atuam desvinculados de sua profissão de origem, informando a possibilidade de convocação de um profissional, caso haja necessidade de orientação ou aconselhamento, com a concordância de todos.

e) Compreensão quanto ao método de composição – assegurar que os envolvidos, ao chegarem a um acordo, compreendam perfeitamente as cláusulas.

4. Conclusão

Como visto, a defesa do esgotamento do monopólio jurisdicional na função de pacificação da sociedade aponta diversas razões para tanto: sobrecarga dos tribunais, custos elevados com as demandas, excessivo de formalismo, volume de ações ajuizadas, crescimento populacional, multiplicação de litígios, morosidade, falta de meios orçamentários, excesso de recursos, número inadequado de juízes e servidores, legislação ultrapassada e demandas inúteis ou desnecessárias.

Daí a terceira onda ou terceiro movimento de acesso à justiça centrar a discussão na insuficiência da via contenciosa como modelo de resolução satisfatória das disputas surgidas na sociedade, propondo respostas diversificadas diante da complexidade do tema. Uma delas, sem dúvida, é a justiça consensuada.

Assim, a conciliação, a arbitragem e a mediação, como meios alternativos de solução de litígios, serem apresentados pela doutrina numa perspectiva de sistema pluriprocessual e com múltiplas portas, que confere amplitude ao princípio constitucional de acesso à justiça de modo a ultrapassar a via meramente judicial heterocompositiva.

No particular, a teoria da mediação, que comumente distancia essa técnica daquela usada na conciliação, põe ênfase na adequação do modelo, porque vinculado ao escopo de harmonizar a sociedade mediante critérios justos e processos construtivos, com abandono de fórmulas exclusivamente positivadas e observância da cultura da paz. Além disso, para essa doutrina, a qualidade de modelo autocompositivo com participação cooperativa dos mediandos assegura sua pertinência na resolução de disputas envolvendo vínculos continuativos, especialmente familiares, bem assim na solução da demanda remanescente.

Diante dessa circunstância, a regulamentação pelo Conselho Nacional de Justiça na Resolução 125, especialmente as razões apresentadas nos consideranda e as regras e princípios estabelecidos no Código de Ética, adota visivelmente conceitos, diretrizes, limites e estratégias sustentados pela teoria da mediação.

O órgão administrativo, ao estabelecer a política judiciária nacional para o tratamento adequado dos conflitos de interesses, regulando especialmente a mediação no âmbito do Judiciário, reconhece um cariz mais ampliado do acesso à justiça, identificado como realização de uma ordem jurídica justa.

 

Referências
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Notas:
 
[1] CAPELLETTI; GARTH, 1989.

[2] AZEVEDO, 2013.

[3] Idem.

[4] Ibidem.

[5] Ib.

[6] TRENTIN; TRENTIN, 2011; TOALDO, 2011a.

[7] AZEVEDO, 2013.

[8] Idem.

[9] Ibidem.

[10] Ib.

[11] FREITAS JUNIOR , 2013

[12] Apud AZEVEDO, 2013.

[13] Idem.

[14] AZEVEDO, 2013.

[15] apud VEZZULLA, 2013.

[16] 2013b.

[17] Idem.

[18] Ibidem.

[19] Ib.

[20] apud MORAIS; SANOMYA, 2012.

[21] apud TRENTIN; TRENTIN, 2012.

[22] SILVA, 2013.

[23] ALMEIDA, 2013b.

[24] SILVA, 2013.

[25] Id.

[26] ALMEIDA, 2013a; ALMEIDA, 2013b.

[27] MORAIS; SANOMYA, 2012.

[28] SILVA, 2013.

[29] Id.

[30] ROSA, 2009.

[31] apud ROSA, 2009.

[32] SILVA, 2013.

[33] ALMEIDA, 2013a.

[34] Id.

[35] SILVA, 2013.

[36] TRENTIN; TRENTIN, 2012.

[37] SILVA, 2013.

[38] SILVA, 2013; ALMEIDA, 2013b.

[39] ALMEIDA, 2013b.

[40] Idem.

[41] MORAIS; SANOMYA, 2012.

[42] VEZZULLA, 2013.

[43] SILVA, 2013.

[44] FREITAS JÚNIOR, 2013.

[45] VEZZULLA, 2013.

[46] apud ALMEIDA, 2013a.

[47] TOALDO, 2011A.

[48] MORAIS; SANOMYA, 2012.

[49] AZEVEDO, 2013.


Informações Sobre o Autor

Gilton Batista Brito

Pós-Graduado lato sensu em Direito Público pela PUC/MINAS, Ex-Defensor Público Estadual, Ex-Advogado da União e Juiz Federal em Sergipe


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