O acesso à justiça e os desafios à efetiva proteção contra a discriminação racial à luz do caso Simone André Diniz vs. Brasil


Resumo: O presente trabalho analisa a responsabilidade internacional do Estado por violação de Direitos Humanos, especificamente, aquela decorrente da incompatibilidade entre a legislação interna brasileira e a Convenção para Prevenir e Punir a Discriminação Racial, que atribui proteção singular às vítimas dos crimes de natureza racial. Enfoca a responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos, oriunda do controle de convencionalidade que constatou a deficiência legislativa, da qual o Estado Brasileiro foi condenado em razão de não cumprir com o dever de regulamentar, por intermédio de criação de mecanismos efetivos à referida Convenção no âmbito interno. Destaca que, a inefetividade da legislação anti-racismo brasileira foi reconhecida e pontuada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Caso Simone André Diniz vs. Brasil, da qual resultou a recomendação de reformas legislativas que viabilize a elevação dos parâmetros internos de proteção das vítimas de discriminação racial aos estabelecidos pelas Convenções Internacionais.


Palavras-chave: acesso à justiça; direitos humanos; responsabilidade internacional do Estado; discriminação racial; Caso Simone Diniz vs. Brasil.


Resumen: El presente trabajo analiza la responsabilidad internacional del Estado por violación de Derechos Humanos, específicamente, aquella decurrente de la incompatibilidad entre la legislación interna brasileña y la Convención para Prevenir y Punir la Discriminación Racial, que atribuye protección singular a la víctimas de los crímenes de naturaleza racial. Enfoca la responsabilidad internacional del Estado por violación de derechos humanos, oriunda del controle de convencionalidad que constató la deficiencia legislativa, de la cual el Estado Brasileño fue condenado en razón de no cumplir con el deber de reglamentar, por intermedio de creación de mecanismos efectivos a la referida Convención en el ámbito interno. Destaca que, la inefetividad de la legislación anti-racismo brasileña fue reconocida y pontuada por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos en el Caso Simone André Diniz vs. Brasil, de la cual resultó la recomendación de reformas legislativas que viabilize la elevación de los parámetros internos de protección de las víctimas de discriminación racial a los establecidos por las Convenciones Internacionales.


Palabras-clave: acceso a la justicia; derechos humanos; responsabilidad internacional del Estado; discriminación racial; Caso Simone Diniz vs. Brasil.


Sumário: 1. Introdução; 2. O Processo de Internacionalização dos Direitos Humanos, a Justiça Internacional e o Acesso à Justiça; 3. A Responsabilidade Internacional do Estado e o Controle de Convencionalidade das Normas Internas; 4. A Análise do Caso Simone André Diniz vs. Brasil e as Limitações da Lei Anti-Racismo Brasileira; 5. Considerações Finais; 6. Referências


 “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.” (Boaventura de Souza Santos)


1. INTRODUÇÃO


As limitações do acesso à justiça podem decorrer tanta de uma legislação contrária ou restritiva às garantias e à proteção judicial ou da ausência de mecanismos que permitem o efetivo resguardo. A atribuição da justiça internacional de proteção dos direitos humanos consiste em atuar nessas circunstâncias em que o aparato judicial nacional mostra suas limitações.


Dentre as obrigações dos Estados que ratificaram os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, nasce o encargo de compatibilizar a sua legislação interna aos termos estipulados nas Convenções de modo a permitir o amplo acesso à justiça em consonância com os compromissos internacionais de proteção dos Direitos Humanos assumido pelos Estados, sob pena de serem condenados internacionalmente.


A falta de adequação entre os Tratados Internacionais e a legislação interna gera a responsabilidade internacional do Estado por violação de Direitos Humanos. Por conseguinte, quando é detectada a contrariedade da legislação doméstica, seja por serem contrárias às Convenções, seja por mostrarem-se insuficientes ante os parâmetros mínimos estabelecidos internacionalmente, ou seja, pela ausência de instrumentos internos de efetivação das Convenções Internacionais. Portanto, examinada a incompatibilidade, surge para as Instâncias Internacionais a possibilidade de questionamento, por meio do controle de convencionalidade das normas internas, e em caso de procedência, emerge a prerrogativa de determinar a adequação das normas internas aos parâmetros internacionais.


A impunidade do Caso Simone André Diniz vs. Brasil traduz a insuficiência da regulamentação interna da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial que, levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a recomendar ao Estado Brasileiro que promovesse a adequação da legislação de proteção interna em consonância com a referida Convenção, de modo a elevar os parâmetros mínimos de proteção das vítimas de discriminação racial. Destarte, uma vez reconhecida a responsabilidade internacional por violação de Direitos Humanos, subsiste a obrigação do Estado Brasileiro em implementar a correção legislativa que permita sanar a insuficiência legislativa frente à Convenção Internacional.


Levando-se em consideração as circunstâncias apontadas, efetua-se a leitura da atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos à luz do princípio do acesso à justiça na promoção dos Direitos Humanos vítimas da discriminação racial. Para tanto, analisa-se a responsabilidade internacional decorrente das insuficiências legislativas, que inviabilizou o acesso à justiça no Caso Simone André Diniz vs. Brasil, que pontua os desafios que a efetiva proteção contra a discriminação racial enfrenta no contexto brasileiro.


2. O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS, A JUSTIÇA INTERNACIONAL E O ACESSO À JUSTIÇA


A análise do marco histórico do processo de internacionalização destaca a importância da elevação da proteção dos direitos humanos às instâncias internacionais e revela seu papel fundamental de complementar a jurisdição interna quando esta se mostra insuficiente.


A constatação da insuficiência do ordenamento jurídico interno motivou o fortalecimento da internacionalização dos direitos humanos. Sob a ótica dessa afirmativa, recorda-se que as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial conduziu a sociedade internacional a entender que a proteção dos Direitos Humanos deve transcender os limites jurisdicionais dos Estados. Nesse sentido, Piovesan (1999) assinala que a proteção dos direitos humanos “não deve se restringir, confinar-se às muralhas, à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse da comunidade internacional”.


Com o advento do processo de internacionalização dos Direitos Humanos, o sistema jurisdicional não se limita mais à circunscrição dos limites territoriais dos Estados. Portanto, é preciso lembrar que há, além dessa esfera, o sistema jurisdicional internacional e, dentro desta estrutura, está disposta uma ramificação do Direito Internacional dos Direitos Humanos que postula a proteção internacional dos Direitos Humanos, por intermédio de uma jurisdição internacional atribuída às Cortes Internacionais.


Na esfera do Continente Americano, a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica foi o primeiro documento firmado, no qual se consolidou a proteção dos direitos humanos civis e políticos, e mais tarde por meio de um protocolo adicional, pelo Tratado de São Salvador, foi normatizada a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, que constituem os Tratados mais relevantes de proteção dos Direitos Humanos no âmbito do Sistema Interamericano.


 A Organização dos Estados da América desenvolveu um sistema de proteção dos direitos humanos composto por dois órgãos de fiscalização: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A jurisdição internacional de proteção dos Direitos Humanos é exercida pela Corte Interamericana, que tem a sua competência delimitada para julgar a responsabilidade internacional dos Estados que aceitaram a sua jurisdição.


A apreciação dos casos levados às Cortes Internacionais depende da observância do princípio da subsidiariedade ou complementariedade que, conforme Ramos (2005, p. 118-119) “significa apenas que o próprio Estado, primeiramente por meio de seus recursos internos, deve assegurar o respeito aos direitos humanos”. Assim sendo, explica Ramos (2005, p. 118-119) que somente “após, no fracasso de tais meios internos, pode a vítima aceder aos mecanismos internacionais” que remete ao requisito do prévio esgotamento das vias judiciais internas para a interposição das demandas internacionais. Portanto, como infere Piovesan (2006, p. 282), “a sistemática internacional só pode ser invocada quando o Estado se mostrar omisso ou falho na tarefa de proteger os direitos fundamentais.”


A regra do prévio esgotamento dos recursos internos implica em uma obrigação paralela aos Estados, enquanto supõe a existência de um aparelho judicial que funcione e que contemple recursos apropriados para a proteção dos indivíduos no exercício dos direitos humanos, pois é a inexistência de recursos internos efetivos que justifica a proteção internacional em razão de permitir o estado de vulnerabilidade das vítimas (Lesdema, 2007, p. 1).


O Sistema Internacional de Proteção atua somente após o uso dos recursos jurisdicionais locais, sem ter obtido um remédio para a violação que se alega, visto que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos é subsidiário, uma vez que deve permitir, em primeiro lugar, que o próprio Estado possa adotar as medidas de ajustes necessárias (Lesdema, 2007, p. 1). Assim sendo, o acesso à justiça internacional pressupõe o prévio esgotamento dos recursos internos.


Conforme pontua Ayala Corao (2008) em razão do caráter complementar da jurisdição internacional seria impensável, em circunstâncias normais, que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos substitua, por exemplo, os tribunais nacionais no seu papel de proteger os habitantes de um Estado contra a violação de direitos humanos. Portanto, exclusivamente nos casos em que existam restrições perante a jurisdição doméstica torna-se possível a interposição das ações internacionais.


Importa enfatizar que esses obstáculos são as limitações ao princípio do acesso à justiça que são corrigidos por intermédio da atuação das Cortes Internacionais, que atua de modo complementar diante da insuficiência da ordem jurídica interna na promoção dos Direitos Humanos. Denota-se o papel relevante da justiça internacional na proteção dos Direitos Humanos que permite suplementar a ordem jurídica interna quando esta se mostra deficitária diante de casos de violação de Direitos Humanos.


A relevância do acesso à justiça na proteção dos direitos humanos é destacada por Annoni (2005, p. 114) ao inferir que “a maior ameaça aos direitos do homem reside, essencialmente, na incapacidade do Estado em assegurar sua efetiva realização”. Entende que “essa incapacidade, relevada pela ausência de mecanismos de materialização dos direitos reconhecidos, traduz-se na negação do próprio Estado, constituído como democrático e de Direito”.


Destarte, confere-se a importância do acesso à justiça complementar, por intermédio da análise do Caso Simoni André Diniz, que foi levado ao conhecimento das Instâncias Internacionais no momento em que o ordenamento jurídico brasileiro mostrou-se insuficiente para protegê-la da discriminação racial da qual foi vítima.


3. A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO E O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE DAS NORMAS INTERNAS


A violação dos Estados aos compromissos internacionais de proteção dos Direitos Humanos implica na responsabilidade internacional e as respectivas punições são determinadas por intermédio das condenações exaradas pelos Organismos Internacionais, que atuam no controle de convencionalidade.


A atribuição do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos conforme Galli e Dulitzy (2000, p. 56) esclarecem “é fazer valer a responsabilidade internacional dos Estados de respeitar e garantir o exercício dos direitos humanos”.


O fundamento para apresentação de denúncias de casos individuais perante a Comissão Interamericana deriva do princípio que impõe a responsabilidade dos Estados em razão dos compromissos internacionais decorrentes da ratificação dos instrumentos internacionais (Galli; Dulitzky, 2000, p. 56). Nesse contexto, o Estado fica subordinado ao dever de prestar contas à comunidade internacional sempre que solicitado por órgão de supervisão internacional quando ocorrem violações de direitos humanos em seu território. Feita a análise da defesa apresentada pelo Estado, incumbe aos organismos internacionais proferir a decisão sobre responsabilidade ou não pela violação de direitos humanos pelo Estado demandando, que resulta da ação direta de seus agentes ou da omissão do dever de garantia (Galli; Dulitzky, 2000, p. 56).


A responsabilidade internacional do Estado em razão do exercício do Poder Legislativo decorre da atuação do referido órgão em dissonância com os compromissos internacionais. Como elucida Ramos (2005, p. 56):


“[¼] nada impede que uma lei aprovada pelo Parlamento local viole os direitos humanos. Portanto, mesmo se as leis tiverem sido adotadas de acordo com a Constituição, e em um Estado democrático, isso não as exime do confronto com os dispositivos internacionais de proteção aos direitos humanos. A razão de ser do Direito Internacional dos Direitos Humanos é justamente oferecer uma garantia subsidiária e mínima aos indivíduos, em especial às minorias.”


 Essa atuação das instâncias internacionais no questionamento sobre a compatibilidade ou não da atuação dos organismos internos decorre da prerrogativa internacional de controle de convencionalidade. Com efeito, quando se constata a existência de legislações incompatíveis com os Tratados Internacionais, segundo Ramos (2005, p. 56):


“[¼] forma-se, então, o chamado ‘controle de convencionalidade’ de leis perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Há o crivo direto de leis internas em face da normatividade internacional dos direitos humanos, na medida em que sua aplicação possa constituir violação de um dos direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos.”


Por conseguinte, de modo similar ao controle da constitucionalidade, as Cortes Internacionais detêm a competência para efetuar o controle da convencionalidade de modo a exigir dos Estados a compatibilização sob pena de gerar a responsabilidade internacional por violação de direitos humanos em face às incompatibilidades entre as Convenções e a legislação interna.


Para Nikken (2008, p. 4) da ratificação das convenções internacionais advêm as obrigações legislativas, entre as quais, o dever, por exemplo, de respeitar a reserva legal. Dentro desta modalidade de obrigação insere-se a de compatibilizar o Direito interno aos termos das Convenções em matéria de direitos humanos, em consonância com as determinações dos artigos 2 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e 2.2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.


Deve-se esclarecer que é uma obrigação de natureza positiva que significa que o Estado não se limita a deixar de praticar um ato lesivo contra os direitos humanos, mas implica uma obrigação de fazer, cujo conteúdo engloba promover as medidas legislativas pertinentes para garantir a efetividade dos tratados no Direito Interno, apesar de que em certo sentido admite-se que o cumprimento possa ser efetuado dentro de um prazo razoável, mas não poder ser postergado de modo indefinido (Nikken, 2008, p. 4).


A protelação indeterminada contraria o princípio da boa-fé na interpretação e execução das convenções internacionais, ademais, nunca poderia ser invocado como uma escusa diante da limitação da garantia legislativa eficaz para a proteção direitos reconhecidos, em razão da regra costumeira codificada no artigo 27.1 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, na qual uma parte não pode invocar legitimamente seu direito interno como justificativa para deixar cumprir as suas obrigações convencionais de Direito Internacional (Nikken, 2008, p. 4).


Vale salientar que a responsabilidade internacional do Estado não se limita à verificação da existência da legislação, mas a efetividade dos mecanismos internos à luz dos parâmetros mínimos estipulados internacionalmente, de modo a possibilitar a aplicação interna desses Tratados. Assim, foi reconhecida, no caso em análise, a falta de efetividade da legislação do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana, que gerou a violação do compromisso internacional que impõe a adequação da legislação interna aos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos.


Com efeito, para aqueles Estados que ratificaram a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial surge a responsabilidade de implementar a proteção contra a discriminação racial no âmbito interno conforme os parâmetros estabelecidos na citada convenção, sob pena de responsabilidade internacional por violação de direitos humanos, como se deu no Caso Simone André Diniz vs. Brasil, na qual foi discutido a responsabilidade internacional do Estado Brasileiro pelo fato de não ter regulamentando adequadamente a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.


4. A ANÁLISE DO CASO SIMONE ANDRÉ DINIZ VS. BRASIL E AS LIMITAÇÕES DA LEI ANTI-RACISMO BRASILEIRA


O Caso Simone André Diniz vs. Brasil foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, visto que o Estado Brasileiro denegou o acesso à justiça à suposta vítima. A jurisdição brasileira mostrou-se insuficiente para solucionar a discriminação racial da qual foi vítima Simone André Diniz.


Em síntese, o fato originário da denúncia deu-se quando um anúncio publicitário para a vaga de empregada doméstica deixava clara a preferência por candidatas de cor branca. Assim, ao candidatar-se à vaga anunciada, Simone André Diniz foi recusada após informar aos anunciantes que era negra.


Apresentado os fatos à justiça brasileira, após o término do inquérito policial, foi encerrado com a justificativa de que as circunstâncias não revelavam elementos suficientes para a propositura da ação penal. Em resumo, no âmbito interno o caso foi arquivado após as investigações criminais, uma vez que, o órgão ministerial entendeu que não existiam provas suficientes para iniciar a ação penal e o juiz, compartilhando do mesmo entender do ministério público, confirmou o arquivamento do caso.


Observa-se que embora houvesse provas substanciais da prática de discriminação racial em razão da comprovação sobre a existência e a autoria da publicação de anúncio publicitário de cunho discriminatório a ação penal não foi instaurada.


Com efeito, denunciado o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, esta defendeu que houve a violação de direitos humanos, e, por conseqüência, foi reconhecida a denegação do acesso à justiça em relação à Simone André Diniz, vítima de preconceito racial.


Salienta-se que o arquivamento do presente caso em exame não é um fato isolado, pois essa circunstância espelha um padrão comportamental das autoridades brasileiras frente às denúncias de prática de crime de racismo (CIDH, 2006, par. 102).


A Comissão (2006, par. 78), após analisar a legislação brasileira anti-racismo, aponta que a necessidade de provar o ódio racial ou a intenção de discriminar acaba tornando a Lei insuficiente para a efetiva proteção contra a discriminação, ao comentar que:


“[¼] a lei 7716/89 ‘não representou maior avanço no campo da discriminação racial por ser excessivamente evasiva e lacônica e exigir, para a tipificação do crime de racismo, o autor, após pratica o ato discriminatório racial, declare expressamente que sua conduta foi motivada por razões de discriminação racial’. Se não o fizesse, seria sua palavra contra a do discriminado.”


A exigência da declaração expressa acaba gerando dificuldades na comprovação da discriminação, como informa os peticionários ao assinalar que na maioria das vezes em que recebem as denúncias de prática da discriminação racial surge a barreira da “dificuldade em provar a intenção discriminatória, toda vez que o perpetrador nega que quis discriminar a vítima”, pois essa circunstância é aceita como motivo plausível para não processar a denúncia (CHDI, 2006, par. 85).


Enfatiza-se que a limitação da legislação anti-racimo brasileira já havia sido apontada pela Comissão Interamericana por ocasião da elaboração do Relatório sobre a situação dos Direitos Humanos no Brasil[1] (CHDI, 1997, par. 13 e 15).


A legislação brasileira impõe a comprovação da intenção discriminatória e, ante a inviabilidade de provar tal fato, os casos são sumariamente arquivados. Como recorda a Comissão (2006, par. 103) “esse requisito leva ao arquivamento automático de denúncias de racismo que impede a apreciação pelo Poder Judiciário da ocorrência ou não do dolo”. Assim, “a ausência da motivação racial tem levado à inaplicabilidade da Lei 7.716/89 seja por arquivamento automático das denúncias na fase de inquérito, seja em sentenças absolutórias”. O arquivamento do inquérito do presente caso deu-se exatamente em razão das circunstâncias mencionadas.


Destarte, baseadas nas declarações de Gisele Silva (autora do anúncio) feitas durante o inquérito policial, na qual manifestou que “não tinha a intenção de discriminar racialmente ou que tinha motivos para preferir uma empregada branca”, o caso foi findando. Todavia, entende a Comissão que essa manifestação por si só não deveria levar ao encerramento do caso, pois o fato precisa ser levado à apreciação do Poder judiciário o qual deve abrir oportunidade de julgar a falta de motivação racial argüida no âmbito de um processo penal regular (CIHD, par. 103).


Além disso, a Comissão (2006, par. 94) destaca que a desclassificação do racismo para injúria genérica ou racista acaba limitando a possibilidade de punição ao destacar que:


“[¼] mesmo com a posterior criação da figura penal da injúria racista, aquela que associa elementos com raça, cor, etnia, religião ou origem, o governo vai mais longe e aponta que mesmo a lei tenha feito distinção entre injúria genérica e aquelas baseadas em discriminação (por raça, cor, origem, etnia ou religião), conferindo a esta uma pena mais severa, essa lei permanece mais fraca que o tratamento prescrito para os crimes de racismos prescritos na lei 7716/89, além do que, por ser esse crime perseguível somente por ação privada, quando um particular tipo de conduta é reduzida de racismo para injúria, a vítima é forçada a abrir uma ação dentro do breve prazo de seis meses restantes, o que leva o crime a não ser punido.”


Nesses casos, parte considerável das vezes, o autor da injúria racista fica impune no Brasil. Segundo advogados de organizações afro-brasileiras, o não enquadramento do insulto racista dentro da lei 7716/89 traz mitigação à administração da justiça, isso ocorre porque no Código Penal Brasil o crime é de ação privada, que pressupõe a iniciativa das vítimas e na maioria das vezes essas vítimas são pessoas carentes que não tem condições de contratar um advogado (CHDI, par. 89).


A agravante do racismo institucional como fator de impunidade de crime de racismo no Brasil, igualmente, merece destaque. Postula a Comissão (2006, par. 84) que no Brasil impera o racismo institucional, que constitui ‘um obstáculo à aplicabilidade da lei-racismo no Brasil. Assim, constata que “da prova testemunhal, passando pelo inquérito na polícia até a decisão do Judiciário, há preconceito contra o negro. Os três níveis são incapazes de reconhecer o racismo contra o negro”.


Para apresentar com alguns dados sobre a desigualdade no acesso à justiça em relação às vítimas de crimes de discriminação racial, a Comissão (2006, par. 75) apresenta a pesquisa que analisou 300 Boletins de Ocorrência, de 1951 a 1977, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre. Os dados revelam que desses somente 150 foram considerados como crimes pelas autoridades policiais e foram abertos os respectivos inquéritos policiais, sendo que apenas 40 foram remetidos ao Ministério Público e desses tão-somente nove (cinco em São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul) chegaram à fase de julgado.






Esse quadro de tão poucas perspectivas, que permite a impunidade generalizada, revela a medida da inefetividade da jurisdição interna brasileira. Nesse sentido, salienta-se as considerações de Lesdema (2007, p. 22):





“[¼] la pueba más palpable de la ineficacia de los recursos de la jurisdicción interna puede ser la existencia de violaciones sistemáticas y generalizadas de los derechos humanos en el país objeto de la denuncia, si que ellas sean debidamente investigadas y sancionadas por los órganos jurisdicionales.”


A leitura do artigo 6º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racional, que é utilizado como parâmetro interpretativo, torna clara a obrigação de implementar um padrão mínimo de proteção e de garantia judicial pelos Tribunais internos, dirigida, especificamente, às vítimas de discriminação racial. Nesse sentido, o referido artigo confere que:


“[¼] Os Estados Membros assegurarão, a qualquer pessoa a que estiver sob sua jurisdição, proteção e recursos eficazes perante os tribunais nacionais outros órgãos do Estado, competentes, contra quaisquer tos de discriminação racial e que, contrariamente à presente Convenção, violarem seus diretos individuais e suas liberdades fundamentais, assim como o direito de expressar a sua tribunas uma satisfação ou reparação justa e adequada por qualquer dano de expressar que foi vítima, em decorrência tal discriminação.”


 O exame do Caso Simone André Diniz vs. Brasil à luz do artigo 6º anteriormente mencionado, revela a insuficiência do ordenamento jurídico brasileiro em combater os crimes originários da discriminação racional conforme os parâmetros exigidos pelas Convenções Internacionais, uma vez que permite a impunidade e, portanto, não garante a proteção efetiva ao direito de não sofrer a discriminação racial. Deve-se recordar que a insuficiência dos mecanismos de proteção dos direitos humanos significa a mitigação do acesso à justiça, que gera a responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos.


Com base nas circunstâncias pontuadas, nas suas recomendações ao Estado Brasileiro, a Comissão entendeu que o Estado Brasileiro deve introduzir reformas legislativas que permitam a efetivação proteção contra a discriminação racional. Nesse sentido, assevera que o Estado Brasileiro deve “realizar as modificações legislativas e administrativas necessárias para que a legislação anti-racismo seja efetiva, com o fim de sanar os obstáculos demonstrados nos parágrafos 78 e 94 do presente relatório.


Dentre as várias propostas elencadas para alcançar maior efetividade na proteção contra a discriminação racial, Piovesan (2008, p. 37) postula que é necessário “adequar os procedimentos nacionais para a apuração mais ágil e eficaz de casos de discriminação racial, evitando a demora desnecessária e garantindo respostas públicas efetivas” e “garantir igual acesso ao sistema de justiça, assegurando o pagamento de indenização a vítimas de discriminação racial”.


Vale destacar que, em consonância com o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, os recursos judiciais devem ser efetivos. Sob essa perspectiva, o Caso Ivcher Bronstein reflete bem a situação apontada, na qual se verifica a constatação da existência de normas ineficazes na proteção efetiva dos direitos humanos. Com efeito, diante das restrições adverte a Corte (2001, par. 137) que:


“[¼] los recursos son ilusorios cuando se demuestra su inutilidad en la práctica, el Poder Judicial carece de la independencia necesaria para decidir con imparcialidad o faltan los medios para ejecutar las decisiones que se dictan en ellos. A ésto puede agregarse la denegación de justicia, el retardo injustificado en la decisión y el impedimento del acceso del presunto lesionado al recurso judicial.”


No Caso Damião Ximenes vs. Brasil, que foi o primeiro caso em que o Estado foi condenado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, de modo semelhante ao Caso Ivcher Bronstein, a Corte (2006, par. 136) manifestou que “não basta a existência formal dos recursos, mas é necessário que eles sejam efetivos, ou seja, devem ser capazes de produzir resultados ou respostas às violações de direitos contemplados na Convenção”.


Assim sendo, o Caso Simone André Diniz vs. Brasil demonstra os desafios que persistem para alcançar a efetividade na proteção contra a discriminação racial em razão, dentre outros fatores, da deficiência normativa que não permite o efetivo acesso à justiça às vítimas de discriminação racial e que, por conseqüência perpetua, a impunidade.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Verifica-se que a justiça internacional tem atribuição importante na efetivação do acesso à justiça em razão da função complementar à justiça doméstica, de modo a estender a garantia do acesso quando esta é negada no âmbito interno. Portanto, constata-se que essa atuação vem corrigindo as injustiças cometidas pelos Estados que provocam a violação dos Direitos Humanos, que poderiam passar impunes se não fosse a existência das Instâncias Internacionais.


O Caso Simone André Diniz vs. Brasil reflete a ineficiência do ordenamento jurídico brasileiro que tolera a impunidade nos casos de discriminação racial, portanto a insuficiência da atual legislação específica significa a continuidade da violação dos direitos humanos decorrentes do racismo. [2]


A responsabilização do Estado Brasileiro por deficiência legislativa abriu a possibilidade de revisão dos mecanismos de proteção e a implementação de mecanismos internos de acesso à justiça para milhares de indivíduos vítimas de discriminação, semelhante ao sofrido por Simone André Diniz. Por conseguinte, verifica-se a atuação concreta das Instâncias Internacionais no exercício na promoção do acesso à justiça.


 Em face à constatação da limitação dos mecanismos internos de proteção contra a discriminação racial que tolera a impunidade, resta o desafio de atender as recomendações da Comissão Interamericana e buscar as reformas legislavas pertinentes que possibilitem a efetiva punição em casos de crimes raciais, sob pena deixar impunes milhares de violações de direitos humanos e, por conseqüência, ser demandado continuamente perante as Instâncias Internacionais de proteção dos direitos humanos.


 


Referências

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AYALA CORAO, Carlos M. Recepción de la jurisprudencia internacional sobre derechos humanos por la jurisprudencia constitucional. Disponível em: < http://ww w.internationaljusticeproject.org/pdfs/Ayala-writing.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2008.

CIDH. Relatório sobre a situação dos Direitos Humanos no Brasil. 29 de setembro de 1997.

______. Relatório nº 66/06 (mérito), Caso Simone André Diniz vs. Brasil. 21 de outubro de 2006.

CORTE IDH. Caso Ivcher Bronstein vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de febrero de 2001. Serie C n. 74.

______. Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil. Sentencia de 4 de julio de 2006. Versão em português Serie C No. 149.

GALLI, Maria Beatriz; DULITZKY, Ariel E. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o seu papel central no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia. (Coord.) O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 53-80.

LESDEMA, Hector Faúndez. El agotamiento de los recursos internos en el sistema interamericano de protección de los derechos humanos. In: XXV Curso Interdisciplinario en Derechos Humanos. IIDH, San José, Costa Rica 9 al 20 de julio de 2007.

NIKKEN, Pedro. El artículo 2 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos como fundamento de la obligación de ejecutar en el orden interno las decisionesde los órganos del Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Disponível em: <http://www.internationaljusticeproject. org/pdfs/nikkenspee ch.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2008.

RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

_______. Responsabilidade internacional do estado por violação de direitos humanos. Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal Brasília, n. 29, abr./jun. 2005, p. 53-63.

PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.

______. Princípio da complementariedade e soberania. Texto baseado nas notas taquigráficas proferida no Seminário Internacional “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira”, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em 30 de setembro de 1999, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília – DF.

_______. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

______. Direito internacional dos direitos humanos e igualdade étnico-racial. Revista Eletrônica NeabBrasil. vol. 1, nº 1, 2008, p. 1-38.

 

Notas:

[1] O Relatório constatou em seu parágrafo 13 que: “Em 5 de janeiro de 1989, aprovou-se a Lei 7.716, conhecida como “Lei Anti-Racismo” ou “Lei Caó” que trata dos crimes resultantes do prejuízo de raça ou cor. Apesar do seu nome, essa lei não representou maior avanço no campo da discriminação racial por ser excessivamente evasiva e lacônica e exigir, para a tipificação do crime de racismo, o autor, após praticar o ato discriminatório racial, declare expressamente que sua conduta foi motivada por razões de discriminação racial. Se não o fizesse, seria a sua palavra contra a do discriminado. É neste momento que começa a via crucis do discriminado em função de sua cor, que muitas vezes passa da condição de vítima para a de radical ou racista.” E, no parágrafo 15 que: “A mencionada Lei 7.716 mostrou ser de difícil aplicação, já que não cria mecanismos que facilitem a prova de efetiva prática desse crime. Por outro lado, ao tornar necessário provar a intenção discriminatória, conduz a situações de prova em que a palavra do agressor compete com a do agredido e faz evidenciar a ofensa objetiva”. In: CIDH. Relatório sobre a situação dos Direitos Humanos no Brasil. 29 de setembro de 1997.

[2] Observa-se, o Caso Simone André Diniz não é o único caso envolvendo a discriminação racial denunciada perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra o Estado Brasileiro, em 26 de outubro de 2006, foi admitido o Caso Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira vs. Brasil, ver: Relatório 84/2006, petição 1068/2003. 


Informações Sobre o Autor

Erika Maeoka

Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina –PR


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