Resumo:A legislação brasileira, especialmente a Lei Federal 8.429/92, o Código de Processo Civil e o Código de Defesa do Consumidor, prevê a possibilidade de o agente público ser afastado do exercício de suas funções por ato de improbidade administrativa antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, entretanto, as suas normas são comumente compreendidas de modo restritivo a ponto de impedir que essa medida tenha eficácia, fazendo prevalecer o interesse particular em detrimento da aspiração coletiva de preservação do patrimônio público. É necessária uma mudança de paradigma, de maneira a conferir uma interpretação sistemática e teleológica o artigo 20 da Lei de Improbidade Administrativa, e mais consentânea com o quadro de impunidade que ainda impera nacionalmente, a fim de obrigar que o gestor réu em ação civil seja suspenso antecipadamente do desempenho de suas atividades em outras situações que não aquelas textualmente previstas nessa lei federal, sobretudo quando seu histórico denuncia a reiteração de ações atentatórias à moralidade pública.
Palavras-chave: Lei de Improbidade Administrativa. Legislação brasileira. Agente ímprobo. Afastamento. Possibilidade. Interpretação restritiva. Interesse Público. Prevalência. Patrimônio Público. Ilícitos. Reiterações. Medida assecuratória. Exercício das funções. Suspensão antecipatória. Exegese sistemática e finalística. Paradigma. Mudança.
Abstract: Brazilian law, especially the Federal Law 8.429/92, the Code of Civil Procedure and the Consumer Protection Law, provides that the agent be removed from the public exercise of their functions by act of administrative misconduct before the final judgment of conviction, however, their rules are commonly understood so restrictive as to prevent this measure to be effective, making prevail over the private interest of the collective aspiration of preservation of public property. We need a paradigm shift in order to provide a systematic and teleological interpretation of Article 20 of Impropriety Administrative Law, and more in line with the framework of impunity that still prevails nationally, in order to force the manager is accused in civil suit suspended in advance of the performance of its activities in other situations than those envisaged by the federal law verbatim, especially when his record reveals the repetition of actions prejudicial to public morality.
Keywords: Impropriety Administrative Law. Brazilian law. Agent unrighteous. Removal. Chance. Restrictive interpretation. Public Interest. Prevalence. Public Property. Unlawful. Reiterations. Security Measure. Performance of duties. Suspension anticipatory. Exegesis systematic and teleological. Paradigm. Shift.
Sumário: Introdução. 1. A Lei de Repressão à Improbidade Administrativa (Matriz e Mens Legis). 2. As Sanções Impostas aos Ímprobos e a sua Eficácia. 3. Das Causas de Afastamento do Gestor antes do Trânsito em Julgado da Decisão Condenatória e da Possibilidade de Suspensão Temporária do Exercício da Função Pública. Considerações finais. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
A Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal n.º 8.429/92), cujo advento foi anunciado no próprio texto constitucional em 1988 (art. 37, § 4º), é um diploma legal extensível a todos os entes públicos e que, sem dúvida, representou um enorme avanço no campo do combate às gestões públicas ineficazes, incúrias ou vocacionadas à dilapidação do patrimônio público.
Se, por um lado, antes da edição dessas normativas específicas de repressão à imoralidade administrativa, mecanismos legais já existiam capazes de propiciar ao Ministério Público o exercício da defesa desse destacado interesse transpessoal, indiscutivelmente com o advento dessa lei tanto o órgão ministerial quanto o próprio ente público lesado passaram a contar com uma ferramenta mais eficiente não apenas para promover a recomposição dos danos causados ao patrimônio público como também coibir que novas condutas ofensivas à coletividade continuassem a ser perpetradas.
No entanto, embora tenha sido de todo louvável a iniciativa do legislador infraconstitucional, notadamente ao estabelecer penas mais enérgicas aos agentes públicos desidiosos ou ímpios, não se pode perder de vista que muitas delas (as mais temidas e que, portanto, possuem maior carga pedagógico-preventiva) somente podem alcançar efeitos no mundo jurídico, em regra, após o decurso do trânsito em julgado da sentença condenatória.
É sabido e consabido que o sistema processual civil hoje brasileiro, sob o ponto de vista revisional, é enormemente licencioso aos demandados, em especial aos que têm o privilégio de serem mais bem assistidos processualmente, já que lhes oportuniza a utilização de reiterados instrumentos recursais, e nas mais variadas instâncias, como meio de postergar a imutabilidade do decreto judicial que lhe é desfavorável.
Em socorro ao interesse da coletividade e com vistas a corrigir essas excrescências, eis que surge, enfim, notável corrente no meio jurídico sustentando a possibilidade de se operarem alguns desses efeitos tão indesejáveis pelos gestores ímprobos antes mesmo do trânsito em julgado da sentença.
Doutrinária ou jurisprudencialmente exsurge no país atualmente, ainda que de maneira ainda incipiente, um movimento tendente a mitigar os efeitos nefastos que decorrem da interpretação literal e apartada da Lei 8.429/92, defendendo-se assim a ideia de que é perfeitamente viável juridicamente, em determinados casos, o afastamento temporário e antecipado dos agentes públicos processados, mormente quando o que estiver em xeque for essencialmente a higidez administrativa e a incolumidade do erário.
A proposta deste singelo trabalho não é senão auxiliar na propagação desse salutar entendimento, que tanto vai ao encontro dos anseios sociais de efetivo combate da corrupção e de preservação do patrimônio público, tema o qual se passará a desenvolver doravante.
1. A LEI DE REPRESSÃO À IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (MATRIZ e MENS LEGIS)
Sabiamente o legislador constituinte originário de 1988, no elogiável propósito de conferir contornos mais democráticos e isonômicos à população, trouxe a lume disposições expressamente endereçadas aos que desempenham atividades funcionais na Administração Públicas, em qualquer um de seus patamares federativos.
Logo no preâmbulo do artigo 37 da Constituição da República percebe-se nitidamente a pretensão do constituinte de instituir um caderno de condutas mais rígido e definido inclusive aos que ocupam funções de relevo perante os entes públicos, merecendo sobrelevado destaque o dever de observância por parte dos agentes aos princípios da impessoalidade e da moralidade.
Em sequência, ainda nesse mesmo preceptivo, mais precisamente em seu parágrafo 4º, institui o legislador originário as balizas pelas quais os atos administrativos imorais ou ofensivos ao patrimônio público haveriam de ser tratados juridicamente. Veio à baila poucos anos depois, então, a propalada Lei Federal n.º 8.429/92, consolidando, por conseguinte, a vontade externada pelo constituinte de coibir de maneira mais eficaz atos de agentes públicos que sabida e historicamente tanto já haviam prejudicado o bom funcionamento do Estado e a consequente implementação de suas políticas públicas.
Com efeito, através de uma conceituação abrangente de sujeito ativo e passivo dos atos de improbidade administrativa, e mediante a tipificação não menos ampla do que vêm a ser condutas ímprobas que causam enriquecimento ilícito, ofensa ao erário e desrespeito às princípios administrativos, estabeleceu a alcunhada Lei de Improbidade Administrativa um rosário de punições passíveis de ser imposto aos que as suas regras infringem, sem prejuízo, por óbvio, da imposição do dever de recomposição do dano causado ao patrimônio público.
Algumas dessas sanções, especialmente as mais severas, tiveram o seu poder retributivo e preventivo (a sua eficácia) acentuadamente mitigados, em virtude da impossibilidade de elas se fazerem operantes enquanto ainda esteja sujeita à revisão a decisão judicial condenatória. Por conta disso, há os que se convenceram de que nem mesmo parcela de seus efeitos poderia ocorrer antecipadamente.
Entretanto, entendimento assim somente tem lugar, em verdade, se o operador do Direito não prestar a atenção devida ao sentido emprestado pelo legislador constituintes originário à Lei de Improbidade Administrativa, concebida que foi ela essencialmente para substituir um passado favorável aos agentes públicos, de injustiças e de impunidade, por um presente e futuro em que as atitudes corruptivas dos intraneus, prejudiciais ou não ao patrimônio público, seriam intoleráveis e energicamente repreendidas.
Conforme se perceberá oportunamente, não se pode admitir que o diploma legal – que reconhecidamente representou um marco no país no combate à corrupção e à imoralidade administrativa – sirva-se justamente de instrumento para o fomento de situações prejudiciais à própria coletividade.
Daí se segue que as disposições consignadas em seu texto de lei hão de ser tomadas pelo intérprete à luz exatamente dos motivos que levaram os órgãos legiferantes a editá-lo, abstraindo-se, por consequência, qualquer tradução que não condiga com o propósito de trazer um mínimo de ética e responsabilidade ao cenário administrativo nacional.
2. AS SANÇÕES IMPOSTAS AOS ÍMPROBOS E A SUA EFICÁCIA
Embora reconhecidas como de natureza cível, algumas das sanções irrogadas aos agentes públicos praticantes de atos de improbidade são tão restritivas quanto às comumente previstas no ordenamento jurídico penal.
E de outra maneira não poderia estabelecer a Lei 8.429/92, na medida em que a intensidade dessas “penas” guarda inequívoca relação de proporcionalidade se considerada a mácula causada por esses infratores ao patrimônio público material e imaterial.
Agindo assim, quem concebeu esse diploma legal evidentemente pretendeu prestigiar os bens pertencentes ao Estado e à população em geral, estabelecendo aos que dele diretamente cuidam o dever de zelo e moralidade, erigindo à coisa pública ao patamar de bem jurídico eminentemente tutelado, atribuindo, por corolário, acentuado desvalor às condutas que o põem em xeque.
Das sanções que mais se prestam a coibir a prática dos atos de improbidade, merecem destaque a de suspensão dos direitos políticos e à perda do cargo público; ambas, contudo, ao menos pela literalidade da norma vigente, somente poderiam se efetivar depois de esgotados todos os mesmos processuais disponíveis de se impugnar o decreto condenatório (LIA, art. 20, caput).
Por certo, nenhum detentor de cargo público, especialmente os que ocupam postos de ordem eletiva, seja por sua incúria seja por seus ímpetos de desonestidade, desejam se ver tolhidos de seu direito de ser novamente reconduzido pelo voto popular à função da qual se valeu para se locupletar, ou mesmo de outra que lhe propicie idênticas facilidades.
De igual modo, nenhum gestor ímprobo aspira a ser surpreendido com um decreto judicial que promova a absoluta ruptura de seu vínculo funcional com a Administração Pública.
Entretanto, apesar da razoabilidade da imposição dessas penalidades e da sua inegável importância para que se concretize aquele propósito originário de iniciar o processo de instalação da moralidade na seara público-administrativa no Brasil, o legislador ordinário fez consignar no artigo 20 da Lei Federal 8.429/92 que “A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória”.
Tendo como foco especialmente a sanção de perda do cargo, até seria defensável o entendimento de que o afastamento do agente público das suas funções (sem finalidade de colheita de prova [1]), somente se operaria após a imutabilidade da sentença. Ocorre que, lamentavelmente, não militamos em um mundo jurídico-processual ideal, em que os instrumentos de revisão das decisões judiciais somente são usados criteriosamente e apenas com o propósito de corrigir injustiças que se acreditam terem sido cometidas.
É cediço que a realidade jurídica brasileira é bem diversa, não sendo rigorosamente incomuns as ocasiões em que recursos são interpostos ou ações autônomas são ajuizadas com o fito único e exclusivo de retardar a todo custo a eficácia de decisão judicial que se afigura inconveniente ao demandado.
Logo, a se tomar como premissa a inclinação histórica e arraigada dos réus de utilizarem em seu favor de expedientes meramente procrastinatórios, evidentemente não se conforma com o interesse do legislador constitucional nem infraconstitucional a ideia de que (além do interesse na colheita de provas) nenhum outro motivo seria apto a promover a retirada temporária do gestor público da cadeira que tanto lhe favorece o cometimento de injuridicidades.
Aqui cabe se levantar a seguinte hipótese, apenas com o intuito de melhor ilustrar quão prejudicial pode ser esse entendimento à tutela do bem jurídico patrimônio público – especialmente tutelado pelo ordenamento jurídico nacional.
Não raramente, os órgãos do Ministério Público se deparam com situações em que o réu na ação civil de improbidade, já considerado ímprobo por duas instâncias judiciárias e que ocupava posto eletivo de relevo à época dos fatos ímprobos, consegue ainda se reeleger por copiosas vezes consecutivamente, em que pese a imposição da penalidade de perda do cargo.
Fatos tão descabidos como esses acontecem justamente pelo fato de não ter sido ordenado antecipadamente o afastamento do requerimento das funções públicas que desempenhava.
Por causa da não utilização desse expediente e à base do uso de consecutivos recursos com aparente viés procrastinatório, cotidianamente agentes públicos praticante de ato que não os credenciam minimamente para permanecer exercendo tarefas de notável relevância estatal, veem-se desobrigado de se afastar de seu cargo por anos a fio.
Importa chamar-se à atenção, inclusive, para o fato de que com o esgotamento da jurisdição das instâncias ordinárias a nenhum de seus novos recursos provavelmente será conferido efetivo suspensivo, mas ainda assim serão eles bastantes para impedir que salutar providência em favor do interesse público seja levada a efeito.
3. AS CAUSAS DE AFASTAMENTO DO GESTOR ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO CONDENATÓRIA E DA POSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA
Bem se sabe que a Lei de Improbidade Administrativa autoriza a autoridade judicial a determinar o afastamento temporário do agente público processado, cuidadosa que foi para que o processo alcançasse a máxima eficácia (art.20, parágrafo único).
Igualmente é consabido, contudo, que essa normativa contempla apenas as situações em que a permanência do processado no cargo tem o condão de conspurcar os atos de colheita de prova, seja testemunha ou documental. Esse instituto, portanto, apresenta nítida feição cautelar.
No entanto, não raras vezes encontram-se os operadores do Direito que oficiam nesses processos, notadamente juízes e promotores de justiça, em situações de absoluta perplexidade e aparente impotência, obrigado que fica o Poder Judiciário, por mais deletéria que possa ser essa medida à coletividade, a permitir que o gestor público afastado regresse normalmente às suas atividades simplesmente por causa da cessação da fase de instrução.
Ocorre que, em conformidade com o que já foi destacado anteriormente, permite, sim, o ordenamento jurídico pátrio, por força de uma interpretação sistemática e teleológica dos diplomas legais vigentes, que motivos outros ensejem o afastamento do gestor ou agente público processado das suas funções.
Seria ilógico sustentar outro entendimento, a menos que fosse possível se conceber que o legislador infraconstitucional tivesse instituído meios de desvincular provisoriamente o agente apenas para fins probatórios, relegando o fato de que a conservação do demandado em seu posto – mantendo-o em contato com as mesmas situações e submetendo-o às mesmas oportunidades que lhe motivaram a falir – resultaria fatalmente em novas lesões ao patrimônio público e à moralidade administrativa, inclusive depois de finda a etapa processual instrutória.
A propósito, não se pode perder de vista que em matéria de ação de improbidade administrativa, comumente, a fase de colheita de provas acaba por ser dispensável, em virtude da profusão de provas documentais antecipadamente apresentadas pelo Ministério Público. De tal sorte, para aqueles com entendimento pouco abrangente desse diploma legal, estaria terminantemente rechaçada a chance de afastamento temporário do agente público.
Excrescência, em rigor, seria defender a tese de que a Lei de Improbidade Administrativa, ao estabelecer como marco da incidência da sanção da perda do cargo a imutabilidade da decisão condenatória (art. 20, caput), estaria tornando absolutamente defesa a desvinculação temporária do agente público de seus afazeres enquanto o processo não chega enfim ao seu termo.
Ninguém olvida que o Código de Processo Civil prevê textualmente o poder/dever da autoridade judicial de antecipar alguns ou todos os efeitos da tutela que se busca obter ao final da ação, com vistas a impedir que a pretensão levada a conhecimento da Justiça seja fadada a total imprestabilidade (arts. 273 e 461). Também não se pode deslembrar que o próprio Código de Defesa do Consumidor, sabidamente um dos diplomas legais que compõem o denominado Microssistema da Tutela Coletiva Brasileira, prevê a possibilidade de concessão de idêntica medida de satisfação antecipada da pretensão principal deduzida no processo (Lei Federal 8.078/90, art. 84).
De igual modo, bem se sabe que às ações instauradas por ato de improbidade administrativa são aplicáveis subsidiariamente os regramentos genéricos contidos na lei processual civil, sendo certo que de nenhum preceptivo existente na Lei 8.429/92 é possível abstrair o propósito de esgotar todas as possibilidades de afastamento temporário do agente público antes do trânsito em julgado do decreto condenatório.
Aliás, no contexto desse microssistema de tutela do interesse coletivo, oportuno destacar que as próprias Leis de Ação Popular e de Ação Civil Pública preveem, cada qual, a necessidade de incidência subsidiária das regras processuais gerais sobre os próprios regramentos que elas estabelecem [2]. Disso forçosamente se conclui que o Código de Processo Civil tem aplicação em todos os diplomas legais que visam à tutela de direitos transindividuais, a não ser que normas expressamente contrárias constem dos respectivos textos legais.
O silêncio desse diploma legal, portanto, considerando o espírito redentor do qual se imbuiu o legislador ao concebê-lo, deve necessariamente ser tomado como uma não vedação ao Juiz, abrindo-lhe, pois, a faculdade para que esses instrumentos de garantia da efetividade da Justiça consignados nessas normativas processuais genéricas tenham espaço também nas ações civis de improbidade administrativa.
De fato, são exatamente nas ações de improbidade que mais se mostram necessárias medidas antecipatórias dessa espécie, na medida em que de nada adiantaria a formalização pelo Ministério Público da acusação contra o agente público desonesto se não contasse a autoridade judicial, e porque não dizer a própria sociedade, com ferramentas que impedissem que novos atos de malversação do patrimônio público continuassem a acontecer durante todo o período de tramitação processual, quase sempre demasiadamente estendida em consequência da postura protelatória adotada pelos réus. Aí, inclusive, reside a situação de periclitância a que faz referência os incisos I e II do artigo 273 do Código de Processo Civil e o artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor, que justifica plenamente a tomada dessa providência.
Logo, carece de razoabilidade a ideia de que o imperativo legal que proíbe a perda do cargo público antes da irrecorribilidade da sentença ensejaria, a reboque, a total impossibilidade da suspensão provisória das atividades por parte do agente ímprobo. A propósito, jamais se pode perder de vista a garantia prevista constitucionalmente da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV).
É de rigor destacar, aliás, que os mesmos fatos que podem levar ao processamento do agente pela prática de improbidade, quando se em sede de ação de apuração de infração penal, podem manifestamente conduzi-lo a sofrer diversas medidas constritivas temporárias, algumas delas tendentes justamente a evitar que o acusado ainda encontre em seu ambiente funcional as mesmas ocasiões que lhe permitiram infringir a lei.
Além da medida extrema da custódia provisória elencada no artigo do Código de Processo Penal, que bem pode ser ordenada para garantia da ordem pública (e da preservação do patrimônio público), importa salientar que com as modificações impostas em 2011 pela Lei Federal 12.403, estabelecendo novo regramento para as prisões processuais, passou agora explicitamente a ser admitida a possibilidade de “suspensão do exercício da função pública quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais” (CPP, art. 319, VI).
O que não se apresenta sensato, certamente, é reconhecer a viabilidade dessa providência – tomada a bem do interesse público – apenas no âmbito do processo penal, mesmo diante da certeza de que idêntica necessidade pode advir também das ações civis de improbidade administrativa, para a qual poderia ser aplicado o instituto da tutela antecipatória prevista no artigo 273 do Código de Processo Civil.
O que aqui se defende, a rigor, não é o rompimento absoluto dos liames existentes entre o processado e a Administração Pública sem que haja o trânsito em julgado da decisão condenatória; em verdade, a desvinculação a que alude caput do artigo 20 de Lei 8.429 é evidentemente aquela peremptória, através da qual são cessados todos e quaisquer direitos do demandado, notadamente à percepção salarial ou de natureza previdenciária [3].
O afastamento decretado pela Justiça que presentemente se apregoa, que tem o propósito de salvaguardar o interesse público além meramente daquele que diz respeito à prova processual, enseja ao demandado os mesmos efeitos de como se tivesse ele deixado temporariamente o exercício das suas funções por força do que faculta o parágrafo único do artigo 20 da Lei de Improbidade.
Frise-se: a contraprestação, inclusive de ordem pecuniária, conforme consta expressamente na parte final do parágrafo único do artigo 20 da Lei de Improbidade, continua a ocorrer em favor do processado, no entanto assegura a medida antecipatória que o agente público não mantenha contato diretamente com o dinheiro público e com as mesmas facilidades que favoreceram o cometimento do ato injurídico.
Obviamente que a providência de antecipação de tutela somente pode ter lugar nas situações em que exista a probabilidade de provimento do pedido condenatório ministerial (CPC, 273, caput; CDC, 84, § 3º). Não menos certo é que incumbirá ao autor da ação civil de improbidade, em regra o Ministério Público, aparelhar a autoridade judicial com provas que evidenciem a plausibilidade do pedido punitivo endereçado ao agente público. Nada impede, sendo até recomendável, que a providência seja adotada quando da formação do convencimento condenatório, ou seja, no instante da entrega da prestação jurisdicional, sabedor que será o magistrado que o resultado de seu exercício de cognição exauriente muito provavelmente, por conta dos diversos recursos que deverá enfrentar a sua decisão, ainda tardará a ter a eficácia pretendida, sobretudo em relação às penalidades mais severas (e eficazes) impostas por ele.
Impende que o julgador ainda conjugue esses fatores com a avaliação do histórico comportamental do demandado, o qual geralmente já se vê às voltas com diversas outros processos de igual natureza dos quais, inclusive, já resultaram condenações, demonstrando então que todas as demandas ajuizadas e as penalidades irrogadas pela Justiça ainda não foram bastantes para conter seu ímpeto dilapidatório.
Reunidas todas essas condições, é perfeitamente possível que o juiz presidente do processo ou mesmo o órgão judicial de instância superior determine a suspensão do exercício da função pública atribuída ao agente público, certo de que essa providência nada mais traduzirá do que a propósito da Justiça além de simplesmente se preocupar com a higidez da instrução processual, pois terá a finalidade de evitar que novos desfalques ao erário ou imoralidades atentatórias à austeridade administrativa continuem a ser perpetradas enquanto ainda não alcança o efeito desejado (devido ao uso de repetidos instrumentos recursais) o decreto condenatório que lhe impôs a sanção de perda do cargo [4].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei de Improbidade Administrativa, apesar de sua promulgação remontar aos idos anos de 1992, ainda se encontra em período de conformação, e ajuste jurisprudencial e doutrinário em todo o território pátrio, até porque se constitui um diploma legal relativamente recente se levados em conta outros de similar conteúdo que o precederam; a citar: a Lei de Ação Popular (n.º 4.717/65) e de Ação Civil Pública (7.347/85).
O que essa lei nacional mais tem de valoroso, sem dúvida, são as sanções colocadas à disposição do prudente arbítrio do julgador que podem ser aplicadas aos agentes públicos infratores; entretanto, a corrente majoritária pretoriana tem claudicado em reconhecer a possibilidade de algumas dessas sanções poderem ser, ainda que não em toda a sua extensão, aplicadas de maneira antecipada em desfavor do demandado, mesmo tratando-se de medida tendente à preservação do próprio patrimônio público – bem jurídico sublime que o diploma legal tem como escopo tutelar.
Apesar do rigor, e consequentemente do efeito pedagógico benéfico, que encerra a penalidade de perda do cargo público ao agente ímprobo, frequentemente a coletividade tem se visto vítima de situações absolutamente incongruentes, nas quais indivíduos sabidamente despreparados moralmente para o exercício de funções de relevância na Administração conseguem ainda assim se perpetuar no desempenho das suas atividades, mesmo sendo iminentes os efeitos dessa sanção.
Alguns operadores do Direito, especialmente por não emprestarem a devida atenção ao escorço histórico que motivou a edição das disposições constitucionais (art. 37, § 4º) e infraconstitucionais (Lei Federal 8.429/92), acabam por atribuir a determinados preceptivos da Lei de Improbidade Administrativa carga que efetivamente não possuem. Interpretam, pois, que a vedação contida no artigo 20, caput, ou a não permissão explícita de afastamento do processado por razões que não sejam probatórias estaria a impedir que alguns dos efeitos do decreto condenatório, diferidos até o trânsito em julgado da sentença, aconteçam antecipadamente.
Por certo, não há nenhuma impropriedade em o magistrado que preside o processo, a título de antecipação de tutela, conceder o afastamento provisório do agente público de suas funções, em conformidade com o que permite o artigo 273 do Código de Processo Civil, inclusive em sede recursal (CPC, art. 527, III), sendo essa, frequentemente, a única medida capaz de estancar o fluxo de evasão indevida de recursos públicos enquanto ainda não passada em julgado a sentença ou acórdão condenatório.
Da providência acautelatória, evidentemente, deverá lançar mão a autoridade judicial com parcimônia, reservando-a precipuamente para as situações em que o agente implicado, pelo grau de imoralidade do ato cometido, estiver efetivamente sujeito à penalidade da perda do cargo, não se podendo ainda prescindir da constatação de que a continuidade de suas atividades durante o processo provavelmente implicará copiosos danos ao patrimônio, dada a existência de outras ações civis propostas e condenações, passíveis ou não de recurso, por atos de injuridicidade análogos.
Informações Sobre o Autor
Tiago de Sousa Afonso da Silva
Promotor de Justiça do Estado de Mato Grosso. Graduado pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Ciências Criminais pela UNAMA e em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso