Resumo: O presente trabalho buscará analisar a aplicação compulsória ou facultativa pelas instituições financeiras operantes no crédito rural, do Manual de Crédito Rural, documento editado pelo Banco Central do Brasil, mais especificamente o seu item 2.6.9, que dispõe sobre o alongamento compulsório de financiamentos rurais em casos de incapacidade de pagamento do mutuário.
1 – INTRODUÇÃO
Por ser uma atividade econômica totalmente dependente de fatores climáticos, a agricultura de tempos em tempos vive certas crises financeiras, ainda que regionais e localizadas, onde o produtor rural, em virtude de frustrações de safras ou dificuldades de comercialização de seus produtos, não consegue com sua produção criar condições para o pronto pagamento de todas suas obrigações financeiras assumidas. Com isso, sempre se traz à tona o instituto jurídico da Modificação do Cronograma de Pagamento no Financiamento Rural, debatendo-se o cabimento facultativo ou obrigatório do referido instituto, previsto no Manual de Crédito Rural 2.6.9, editado pelo Conselho Monetário Nacional, reacendo discussões pacificadas e muito bem analisadas juridicamente pelos Tribunais superiores.
Dispõe a referida norma:
“9 – Independentemente de consulta ao Banco Central do Brasil, é devida a prorrogação da dívida, aos mesmos encargos financeiros antes pactuados no instrumento de crédito, desde que se comprove incapacidade de pagamento do mutuário, em conseqüência de: (Circ 1.536)
a) dificuldade de comercialização dos produtos; (Circ 1.536)
b) frustração de safras, por fatores adversos; (Circ 1.536)
c) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações. (Circ 1.536)”
O debate se acende sobre a obrigatoriedade das instituições financeiras ou creditícias em aplicar a prorrogação da dívida quando cumprido um dos requisitos objetivos e requerido pelo produtor rural ou se tal fato refere-se a uma faculdade da instituição financeira, que pode ou não aplicá-la segundo seus próprios critérios, através de uma análise puramente subjetiva.
Para a análise completa e devida do caso, cumpre analisar, resumidamente, a estrutura do sistema financeiro do país e do sistema nacional de crédito rural.
2 – DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
A Lei nº 4.595/94, que institucionalizou o Sistema Financeiro Nacional, criou o Conselho Monetário Nacional (CMN), órgão público vinculado ao Poder Executivo, com a finalidade de formular a política da moeda e do crédito, objetivando o progresso econômico e social do País. (art. 2º, caput). Dentre os objetivos da sua política, destaca-se o inciso VII, do art. 2º, que dispõe:
“VII – Coordenar as políticas monetária, creditícia, orçamentária, fiscal e da dívida pública, interna e externa”.
Elencando ainda as competências do Conselho Monetário Nacional, ressaltam-se três incisos que serão importantes para o estudo, assim dispostos no art. 4º da mesma lei:
“VI – Disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações creditícias em todas as suas formas, inclusive aceites, avais e prestações de quaisquer garantias por parte das instituições financeiras;
VIII – Regular a constituição, funcionamento e fiscalização dos que exercerem atividades subordinadas a esta lei, bem como a aplicação das penalidades previstas;
XXII – Estatuir normas para as operações das instituições financeiras públicas, para preservar sua solidez e adequar seu funcionamento aos objetivos desta lei; “
E também o art. 5º da Lei 4595/64:
“Art. 5º. As deliberações do Conselho Monetário Nacional entendem-se de responsabilidade de seu Presidente para os efeitos do art. 104, nº I, letra "b", da Constituição Federal e obrigarão também os órgãos oficiais, inclusive autarquias e sociedades de economia mista, nas atividades que afetem o mercado financeiro e o de capitais.” (Nota do autor: Constituição Federal vigente ao ano de 1964)
Estruturalmente, observa-se que a presidência do órgão será exercida pelo Ministro da Fazenda (art. 6º). No art. 7º, consta que junto ao CMN funcionarão as Comissões Consultivas bancárias, de mercado de capitais, de crédito rural e de crédito industrial. Já no art. 46, consta que as atribuições legais e regulamentares do Ministério da Fazenda relativamente ao meio circulante são transferidas ao CMN e ao BACEN.
Uma análise mais acurada das competências do Conselho Monetário Nacional mostrará suas competências e prerrogativas, e, em comum, se verá que em vários aspectos e situações será o órgão responsável pela regulamentação ou fiscalização de matéria financeira. Isto porque preferiu o legislador, conhecedor da volatilidade e da rápida dinâmica do mercado financeiro mundial, deixar ao arbítrio do Ministério da Fazenda a regulamentação da estrutura econômica, mais rápida e menos oprimida por ataques políticos do que o processo legislativo.
Assim, foram verdadeiras normas em branco as criadas pela Lei nº 4.595/64, que dispôs sobre os objetivos e princípios básicos do Sistema Financeiro Nacional, derrogando ao Poder Executivo, através do CMN, a dinâmica do mercado, para melhor adequação às políticas públicas e conjunturais do mercado. Sobre esse aspecto, já decidiu o Egrégio STJ:
“Doutrina e jurisprudência reconhecem que uma das áreas mais sensíveis ao poder regulamentar é o setor que abrange as instituições financeiras, sujeitas a um conjunto de leis que abrange normas regulamentares de nível inferior, representadas pelas resoluções. Daí o poder normativo do Conselho Monetário Nacional, como consta da Lei 4.595/64 que, ao disciplinar o mercado financeiro, editou verdadeiras normas em branco, cujo conteúdo é preenchido com suas deliberações.
Assim, podemos dizer que o sistema tem suas normas estruturais formuladas pelo Legislativo; as normas conjunturais sobre a política da moeda e do crédito ficaram a cargo do Conselho Monetário Nacional, mediante resolução.” (STJ – Resp nº 507.123/RS – 2ª T. Rel. Min. Eliana Calmon – j.01.09.2005)
Basta imaginar se a competência da fixação das taxas básicas dos juros, por exemplo, ficasse a cargo do poder legislativo. Interesses políticos envolvidos, desconhecimento da matéria e dinâmica do mercado de capitais, e demais assuntos legislativos, poderiam levar à publicação de leis incongruentes, atrasadas e distantes da realidade, causando uma quebra no sistema financeiro do país. Por essa e outras razões, a lei derroga poderes normativos ao Conselho Monetário Nacional de elaborar normas que vinculam os órgãos do Sistema Financeiro Nacional.
Ainda, o art. 9º da Lei em análise ao dispor sobre a criação e funcionamento do Banco Central da República do Brasil (BACEN) diz:
“Art. 9º Compete ao Banco Central da República do Brasil cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são atribuídas pela legislação em vigor e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional.”
Desta forma, o próprio Banco Central do Brasil está vinculado às normas expendidas pelo Conselho Monetário Nacional. Veja que aqui não há distinções de normas, mas sim que deve o BACEN cumprir e fazer cumprir “as normas”, ou seja, toda a normatização fixada pelo CMN.
Da mesma maneira, dispõe o art. 22 da mesma lei acerca das instituições financeiras públicas que no seu parágrafo primeiro vem escrito, de forma clara e objetiva que:
“Art. 22. O Conselho Monetário Nacional regulará as atividades, capacidade e modalidade operacionais das instituições financeiras públicas federais, que deverão submeter à aprovação daquele órgão, com a prioridade por ele prescrita, seus programas de recursos e aplicações, de forma que se ajustem à política de crédito do Governo Federal.”
Ao analisar a estrutura e competência do CMN, disposto no Capítulo II da Lei nº 4.595/64, observa-se que o legislador derrogou competência normatizadora ao órgão, e, ao vincula-lo ao Poder Executivo, deu-lhe o regime jurídico-administrativo do Poder de Polícia, uma vez que suas disposições e regulamentos criam prerrogativas e sujeições dos envolvidos, quais sejam, Administração Pública e as instituições e órgãos do sistema financeiro nacional.
O próprio fundamento do Poder de Polícia, segundo DI PIETRO, é o “princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração posição de supremacia sobre os administrados”[1]. Assim é que o Conselho Monetário Nacional tem o poder fiscalizatório sobre o Sistema Financeiro Nacional como um todo, seja sobre órgãos públicos ou particulares, como o Banco Central, Banco do Brasil e demais instituições financeiras ou creditícias.
E mais do que o Poder de Polícia, recebeu também o CMN o Poder Normativo, já que seus regulamentos e circulares estão previstos nas normas em branco criadas pela Lei nº 4.595/64, na medida em que derroga a competência disciplinadora das matérias referentes ao mercado financeiro, justamente para se cumprir seu papel fiscalizatório e regulamentador do Sistema Financeiro Nacional.
Sendo um órgão da própria Administração, criado e presidido por autoridades públicas, têm-se que seus normativos são nada mais do que atos administrativos, pois produzem efeitos jurídicos no mundo dos fatos, e, sendo ato administrativo, goza das prerrogativas da presunção de legitimidade e veracidade, imperatividade, auto-executoriedade e tipicidade. Assim, são atos válidos, legítimos, até que decisão judicial lhe retire eficácia ou suprima seus efeitos.
Por serem atos discricionários, a melhor doutrina do direito administrativo aduz que mérito e legalidade podem ser analisados para se verificar sua validade. Sob esse aspecto, os normativos do CMN cumprem tais requisitos, na medida em que há a legalidade porque tais atos são expressamente previstos na Lei nº 4.595/64, como vistos anteriormente, quando se derroga ao referido órgão a competência para normatizar vários pontos do sistema financeiro nacional. Por outro lado, a análise do mérito do ato, mostra que há a oportunidade e conveniência diante do interesse público a atingir, que é a salvaguarda e o controle estatal da economia do país, como forma de garantir a ordem pública e a paz social.
Tais poderes administrativos que possuem o Conselho Monetário Nacional, poderes de polícia e normatizador, advêm da própria política neoliberal adotada pela Constituição Republicana de 1988. Se contrapondo ao liberalismo em sua forma plena, o Estado chama para si a capacidade regulatória e normatizadora do mercado financeiro, através de mecanismos legais para a proteção dos seus administrados e da própria estrutura financeira nacional.
Não fosse dessa maneira, seria o mercado financeiro quem ditaria as regras do país, muito mais do que já o faz, na prática. Não fosse o poder regulamentador do Estado, privando e retirando garantias de instituições financeiras e creditórias, derrogando direitos e prerrogativas à população que usufrui do sistema, o poder econômico do Estado estaria todo nas mãos de algumas poucas instituições que, controlando as regras cambiárias e financeiras, controlaria todo o mercado nacional e, conseqüentemente, toda a riqueza da sociedade. O princípio fundamental da Constituição de distribuição de riquezas e redução das desigualdades sociais estaria completamente atingido, pois a riqueza nacional estaria, fatalmente, nas mãos de poucos.
3 – DO SISTEMA NACIONAL DE CRÉDITO RURAL
No ano de 1965, cerca de um ano após a edição da Lei nº 4.595/64 que dispôs sobre o Sistema Financeiro Nacional, foi promulgada a Lei nº 4.829/65, que institucionalizou o Sistema Nacional de Crédito Rural.
A elaboração desta Lei se deu em razão da necessidade de uma política pública específica voltada ao desenvolvimento e proteção da produção rural do país, tendo em vista, segundo dispõe seu art. 1º, o bem-estar do povo.
Uma análise da estrutura do Financiamento Rural brasileiro, em todos os aspectos, desde a Lei nº 4.829/65, passando pela Constituição vigente e pela Lei da Política Agrícola (Lei nº 8.171/91), mostra que a atividade campesina possui uma proteção especial do Estado, para garantia de ordem pública, paz social e bem-estar do povo.
Assim são os artigos 23, VIII[2] e os artigos 184[3] e seguintes da CF/88, que dispõem ser competência de todo o Estado o fomento da produção agropecuária e a organização do abastecimento alimentar, deveres que somente se atingirão através da adequada Política Agrícola, instituída no Capítulo III, do Título VIII – Da Ordem Econômica e Financeira, da Carta Republicana.
Note-se, então, que a Política Agrícola, ao contrário de outras políticas setoriais, por sua tamanha importância está institucionalizada no texto constitucional, devendo isso ser observado quando da análise dos contratos agrários.
Já escreveu o Prof. Lutero de Paiva Pereira[4]:
“Quando foi institucionalizado pela Lei 4.829/65, já no seu art. 1º o legislador se preocupou em determinar o caráter fomentista do crédito rural, bem assim o seu alcance social, pois sua aplicação levará em conta o desenvolvimento da produção rural do País, e isto visando o bem-estar do povo. (…)
Desta forma, financiadores e tomadores de crédito rural, por se envolverem com recursos que têm aplicação voltada ao interesse socioeconômico do País, quando contratam operações da espécie, não podem fazê-lo senão sob estreita observância das regras especialmente traçadas para sua condução.”
Vê-se, portanto, que a legislação brasileira dispõe sobre o Sistema Financeiro Nacional e sobre o Sistema Nacional de Crédito Rural, em dois diplomas diferentes, contendo este último normas específicas e conjecturais do setor agropecuário.
Assim, o sistema que rege os contratos rurais é o Sistema Nacional de Crédito Rural, previsto na Lei nº 4.829/65, muito embora tais contratos tenham por vezes como uma das partes pessoa jurídica adstrita ao regime do Sistema Financeiro Nacional.
E a referida Lei assim dispõe no seu art. 4º:
“Art. 4º – O Conselho Monetário Nacional, de acordo com as atribuições estabelecidas na Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, disciplinará o crédito rural do País e estabelecerá, com exclusividade, normas operativas traduzidas nos seguintes tópicos:
I – avaliação, origem e dotação dos recursos a serem aplicados no crédito rural;
II – diretrizes e instruções relacionadas com a aplicação e controle do crédito rural;
III – critérios seletivos e de prioridade para a distribuição do crédito rural;
IV – fixação e ampliação dos programas de crédito rural, abrangendo todas as formas de suplementação de recursos, inclusive refinanciamento”. (grifo do autor)
Repare que o caput do art. 4º de maneira clara e inequívoca estabelece que o CMN, no uso das atribuições previstas na Lei 4.595/64, disciplinará e estabelecerá o crédito rural do País, e isto de maneira exclusiva.
Ora, assim como a Lei nº 4.595/64, a Lei nº 4.829/64 cria uma norma em branco delegando competência normativa ao órgão público, delegando-lhe funções vinculativas aos integrantes do Sistema Nacional de Crédito Rural. Após, logo no art. 5º, a mesma Lei estabelece que o cumprimento das deliberações do CMN aplicados ao crédito rural será dirigido, coordenado e fiscalizado pelo Banco Central do Brasil[5].
Aqui mais uma vez tem-se a expressão abrangente, onde cumpre ao BACEN a fiscalização e, conseqüentemente, o cumprimento de todas as deliberações do CMN.
De plano já pode ser traçado um critério, utilizando da máxima jurídica de que “quem pode o mais, pode o menos”. Ora, se as normas traçadas pelo Conselho Monetário Nacional tem a previsão legal e o poder para obrigar o Banco Central do Brasil a cumpri-las, quanto mais as instituições financeiras que são totalmente vinculadas aos enunciados e disposições do BACEN. Assim, seria uma incongruência imaginar que as instituições vinculadas possuem autonomia discricionária de normativos que a instituição principal (BACEN) é obrigada por lei a seguir.
O crédito rural possui como fonte de recursos valores provenientes de fontes internas e externas, conforme disciplina o Capítulo IV (arts. 15 e seguintes) da Lei nº 4.829/65. Em seu art. 21[6] a Lei estabelece que o CMN fixará uma percentagem sobre os recursos operados onde as instituições financeiras elencadas no art. 8º estarão obrigadas a disponibilizarem para o crédito rural.[7] E ainda a alínea n, do inciso I do art. 15 que estabelece:
“Art. 15 – O crédito rural contará com suprimentos provenientes das seguintes fontes:
I – internas: (…)
n) recursos nunca inferiores a 10% (dez por cento) dos depósitos de qualquer natureza dos bancos privados e das sociedades de crédito, financiamento e investimentos.”
Observa-se então que a Lei obrigou as instituições financeiras a disponibilizarem parte dos recursos captados em operações para a aplicação compulsória no crédito rural, sob pena das sanções previstas do §3º do art. 21. Isto porque, como já dito, o financiamento rural goza de proteção especial do Estado, e uma das formas de proteção foi justamente a limitação de taxas e cláusulas contratuais nos contratos de mútuo rural. Em outras palavras, as instituições mutuantes estão adstritas a um teto de ganho nas atividades rurais.
Se não fosse assim, onde os recursos destinados aos financiamentos rurais são compulsórios e com taxas limitadas, ocorreria uma das duas hipóteses: ou as instituições financeiras não disponibilizariam recursos para o crédito rural, em virtude das baixas taxas de ganhos, em função de que outras linhas de crédito são mais atraentes ou as instituições aproveitariam a linha aberta e colocariam taxas e emolumentos ao seu livre alvedrio, como acontece com as demais linhas de financiamento, o que com certeza acarretaria prejuízos ao produtor rural.
Vê-se ainda que a Lei nº 4.829/65 estabelece outras fontes de recursos para o crédito rural, sejam internas ou externas. Assim, conclui-se que o financiamento rural é operado pelas instituições financeiras e demais órgãos instituídos no art. 8º da Lei nº 4.829/65 através de um munus publico, ou seja, muito embora sejam contratos particulares firmados entre as instituições e os produtores rurais ou suas cooperativas, são contratos de caráter público, que exercem uma verdadeira função social, na medida em que são amparados não só pela legislação especial mas pela própria Constituição Federal, que evoca para o Estado a obrigação de fomentar a produção agrícola e sistematizar a política agrícola a ser regida no país.
Por ser verbas de caráter público, a livre vontade das partes na elaboração dos contratos sofre limitação expressa pela própria legislação que regula a matéria, dentre eles, os próprios regulamentos e resoluções do Conselho Monetário Nacional, órgão público incumbido pelo próprio Estado para disciplinar a matéria. É o que será visto a seguir.
4 – FORÇA VINCULANTE DOS NORMATIVOS DO CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL.
Primeiramente viu-se que há no Brasil um Sistema Financeiro regido pelas disposições da Lei nº 4.595/64. Esta Lei criou o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil e vincula todas as instituições financeiras aos seus normativos e disposições, aplicando a teoria neoliberal de gestão estatal.
Depois, foi visto que em virtude de uma especial atenção ao setor agrícola do país, e a importância de seu fortalecimento para a economia nacional e desenvolvimento social, foi institucionalizado do Sistema Nacional de Crédito Rural, através da Lei nº 4.829/65.
Essa Lei, portanto, é especial, específica para as relações agrícolas e igualmente vinculante às instituições creditícias para o setor rural e os mutuários de recursos que, embora disponibilizados por tais instituições, são verbas de caráter público.
Com isso conclui-se que entre as relações de tomadores de recursos rurais e mutuantes, a Lei que deve reger tais pactos é a Lei nº 4.829/65, visto seu caráter especial e posterior à Lei nº 4.595/64. E dentro desta Lei, há clara e expressa disposição que será o Conselho Monetário Nacional que disciplinará o crédito rural no país.
Tal disposição mostra o caráter cogente das normas do CMN que disciplinam o crédito rural, que por sua vez foram compiladas no Manual de Crédito Rural, este editado pelo BACEN, órgão que recebeu da mesma Lei nº 4.829/65 a incumbência de fiscalizar, dirigir e coordenar o cumprimento das deliberações do CMN a respeito do crédito rural.
Também foi visto que os valores destinados ao financiamento rural possuem caráter público, fomentista, muito embora o mutuante seja instituição de natureza particular. Assim, as normas operativas do CMN são as próprias normas estatais, reguladoras e disciplinadoras da matéria.
Por essas e outras se concluem que os normativos do Conselho Monetário Nacional, sobretudo em relação ao crédito rural, possuem natureza cogente, normativa, devendo ser aplicadas em todos os casos que se enquadrem.
O Sistema Nacional de Crédito Rural é sistema único, que vincula produtores rurais e suas cooperativas, instituições financiadoras e o próprio Estado, que possui como prerrogativa o fomento do setor agropecuário. Vale lembrar o art. 1º da norma em questão:
“Art. 1º – O crédito rural, sistematizado nos termos desta Lei, será distribuído e aplicado de acordo com a política de desenvolvimento da produção rural do País e tendo em vista o bem-estar do povo.”
Deste modo, não são as instituições financeiras que determinam as normas contratuais, nem sobre elas há a livre estipulação de vontades e prerrogativas inerentes aos demais contratos de crédito. Mas do que isso, as normas do CMN podem ser vistas como a própria viabilização da Política Agrícola estatal, sendo, portanto, de aplicação compulsória pelas partes.
O financiamento e crédito rural não são instrumentos criados para se buscar a maior rentabilidade das partes, mas sim em fortalecer a agricultura brasileira como um todo, e, conseqüentemente a própria sociedade. Esse é o princípio aplicável quando da análise dos contratos. Além disso, o crédito rural e suas normas e resoluções visam a busca dos princípios constitucionais da busca do pleno emprego, da função social da propriedade e da ordem social, uma vez que nenhum país se desenvolve sem o adequado abastecimento alimentar, que somente se faz através de uma política forte e estrutural para o setor agrícola, setor este que não depende apenas do mercado e da habilidade do empresário, mas muito mais de fatores naturais, que fogem ao controle dos técnicos rurais, tais como chuvas e sol no momento certo, a não ocorrência de geadas, pragas, ou outro fatores adversos, sendo considerado como verdadeiras “empresas ao céu aberto”.
Desta forma, as normas que o CMN, órgão isento e conhecedor das conjecturas políticas, setoriais e financeiras, estabelece a partir de estudos e de pareceres de especialistas no assunto, devem sempre prevalecer sobre interesses de qualquer uma das partes, ainda que contratos desta natureza estabeleçam o contrário.
Sobre o tema, o magistério de Lutero de Paiva Pereira[8]:
“A alteração do calendário de pagamento do financiamento rural é preceito oriundo do Conselho Monetário Nacional, ou seja, do Estado, já que este, a teor do tratado do Capítulo 2 supra, tem não só o interesse mas o dever de proteger a atividade agrícola do País. (…)
O direito do mutuário de alterar o cronograma de pagamento do mútuo deve ser visto sob a seguinte ótica:
– que o crédito rural, dentre outros objetivos, se propõe a fortalecer economicamente so seu tomador – art. 3º, inc. III da Lei 4.829/65;
– que a propriedade rural, a teor do que dispõe o art. 186, inc. IV, da Constituição Federal tem função social a cumprir, o que inclui uma exploração que favoreça o bem-estar do proprietário.
– que a agricultura, como atividade econômica, inc. III do art. 2º da Lei Agrícola – Lei 8.171/91 – deve proporcionar rentabilidade compatível com a de outros setores da economia aos que a ela se dediquem e,
– que o adequado abastecimento alimentar do País, inc. IV, do art. 2º da Lei 8.171/91, é condição básica para garantir a tranqüilidade social e a ordem pública.
Da somatória de todas estas vertentes que envolvem a atividade agrícola é que o direito do produtor rural, relativamente à modificação do cronograma de pagamento, deve ser tutelado.”
Desta forma, conclui-se que a norma estabelecida no Manual de Crédito Rural, item 2.6.9, que estabelece a modificação do cronograma de pagamento sempre que ocorrer algumas das situações previstas em suas alíneas, é de aplicação compulsória às instituições financeiras.
O egrégio TJPR já se pronunciou sobre o tema, reconhecendo o direito do produtor rural em modificar o cronograma de pagamento, desde que preenchidos os requisitos exigidos para tanto.
Pode-se dizer que o leading case da questão foi colocado em discussão no ano de 1998, onde o Des. Cunha Ribas em extenso estudo sobre o tema, proferiu o voto no sentindo de permitir a alteração do cronograma de pagamento, em acórdão assim ementado:
“CRÉDITO RURAL – APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO – PRETENSÃO DE ALTERAÇÃO DE CRONOGRAMA DE PAGAMENTO DE DÉBITO DECORRENTE DE CRÉDITO AGRÍCOLA, EXTIRPAÇÃO DA TR COMO INDEXADOR DE CORREÇÃO MONETÁRIA E SUA SUBSTITUIÇÃO PELA VARIAÇÃO DE PREÇOS MÍNIMOS, COMISSÃO DE PERMANÊNCIA POR IMPONTUALIDADE E COBRANÇA DE IOF – PROVIMENTO PARCIAL – INTELIGÊNCIA DO ART. 187, INC. I E II DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DAS LEIS NºS. 4.829/65, 8.171/91; 8.427/92; 8.880/94; 9.138/95; DECRETOS-LEIS Nº 79/66 E 167/67 – RECURSO DO AUTOR PROVIDO EM PARTE – RECURSO DO RÉU PREJUDICADO. A legislação que traça a política agrícola nacional constitui direito especial e de ordem pública, sobrepondo-se às normas gerais de direito e de crédito, o que consoa com o disposto na Constituição Federal, impondo-se, pois, sua aplicação. Nesse cariz, o cronograma de pagamento do crédito rural fica sujeito a alterações, quando circunstâncias alheias à vontade do devedor dificultar ou impedir o cumprimento dos mútuos nos prazos contratados. Nesse sentido e também em face da lei nº 9.138/95, vem decidindo o e. S.T.J, que: "DIREITO ECONÔMICO. DÍVIDA AGRÁRIA. SECURITIZAÇÃO. LEI 9.138/95. ALONGAMENTO DA DÍVIDA. DIREITO SUBJETIVO DO DEVEDOR. CONSEQÜENTE INEXIGIBILIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO. DOUTRINA. RECURSO PROVIDO", REsp. nº 166.592-MG, julgado em 07.05.98. Mesmo sentido REsps. nºs. 154.025-MG de 10.02.98 e 156.015-MG, de 10.03.98. A atualização monetária, far-se-á pela variação do preço mínimo do produto, conforme a legislação especial, afastando-se a TR também por ser imprestável para tal fim e por se constituir em cláusula abusiva. É vedada a estipulação de cláusula de Comissão de Permanência por eventual inadimplemento, devendo o encargo da mora ser atendido pelo disposto no parágrafo único do art. 5º do DL. 167/67, conforme, em verdade, tem proclamado o E. S.T.J. (REsp. nº 28.907-9-RS, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo) "…os juros moratórios, limitados, em se tratando de crédito rural, a 1% ao ano, distinguem-se dos juros remuneratórios. Aqueles são forma de sanção pelo não pagamento no termo devido. Estes, por seu turno, como fator de mera remuneração do capital mutuado, mostram-se invariáveis em função de eventual inadimplência ou impontualidade. Cláusula que disponha em sentido contrário, prevendo referida variação, é cláusula que visa burlar a disciplina legal, fazendo incidir, sob as vestes de juros remuneratórios, autênticos juros moratórios em níveis superiores aos permitidos." A incidência do IOF, ainda que discutível, não encontra vedação legislativa.” (TAPR – Primeira C.Cível (extinto TA) – AC 101678-4 – Peabiru – Rel.: Cunha Ribas – Unânime – J. 17.11.1998)
Após, a jurisprudência do TJPR se consolidou sobre o tema, como se pode ver dos demais acórdãos abaixo:
“APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CRÉDITO RURAL. ALONGAMENTO DA DÍVIDA. INADMISSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PROVA DOS REQUISITOS LEGAIS. INAPTIDÃO DA PROVA TESTEMUNHAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. EXCESSO DE EXECUÇÃO. RAZÕES RECURSAIS QUE NÃO ENFRENTAM OS FUNDAMENTOS DA SENTENÇA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. NÃO CONHECIMENTO. RECURSO CONHECIDO EM PARTE E NÃO PROVIDO. 1. Para obter o alongamento da dívida rural, o devedor deve provar que efetuou requerimento administrativo perante a instituição credora, adicionado à prova do preenchimento dos requisitos legais, constantes da legislação específica e das Resoluções e Manual do Crédito Rural, expedidos pelo Banco Central do Brasil BACEN. 2. Não há que se falar em cerceamento de defesa quando os embargantes, intimados para especificação das provas, aduziram pretender a produção apenas da prova testemunhal, a qual não se revela apta a demonstrar os requisitos necessários à concessão do alongamento da dívida. 3. As razões recursais devem rebater, especificamente, os fundamentos da sentença, sob pena de não conhecimento do recurso por ofensa ao princípio da dialeticidade.” (TJPR – 14ª C.Cível – AC 591267-6 – Campo Mourão – Rel.: Edgard Fernando Barbosa – Unânime – J. 08.02.2012)
“APELAÇÃO CÍVEL DE NR. 807624-4. AÇÃO ORDINÁRIA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA. 1) JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO CARACTERIZAÇÃO. 2) CAPITALIZAÇÃO MENSAL DE JUROS. PREVISÃO CONTRATUAL. POSSIBILIDADE. 3) COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA. REGULAMENTAÇÃO EM LEI ESPECIAL. 4) EXISTÊNCIA DE MORA. ENCARGOS MORATÓRIOS DEVIDOS. 5) JUROS MORATÓRIOS. ART. 5º DA LEI DE USURA. LIMITAÇÃO EM 1% AO ANO. 6) PRORROGAÇÃO DA DÍVIDA. REJEITADA. EFETIVA INCAPACIDADE DO PAGAMENTO. NÃO COMPROVADA. 7) ÔNUS SUCUMBENCIAL. READEQUAÇÃO. 1. (…) 6. A concessão da prorrogação da dívida deve estar respaldada de prova da efetiva impossibilidade do devedor ao pagamento da dívida, de acordo com o item 2.6.9 do Manual de Crédito Rural. 7. Vencido parcialmente na demanda, impõe-se ao réu o pagamento proporcional dos ônus de sucumbência. APELAÇÃO CONHECIDA E PARCIALMENTE PROVIDA 2 APELAÇÃO CÍVEL NR. 807622-0. MEDIDA CAUTELAR INOMINADA INCIDENTAL DE ABSTENÇÃO DE INSCRIÇÃO E/OU RETIRADA DO NOME DO AUTOR DE ÓRGÃOS DE RESTRIÇÃO DE CRÉDITO. IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. APELAÇÃO CONHECIDA E DESPROVIDA” (TJPR – 16ª C.Cível – AC 807624-4 – Londrina – Rel.: Shiroshi Yendo – Unânime – J. 07.12.2011)
“AGRAVO DE INSTRUMENTO AÇÃO ANULATÓRIA PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA – PRORROGAÇÃO DE DÍVIDA DECORRENTE DE CRÉDITO RURAL POSSIBILIDADE PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS. 1. O ajuizamento de ação anulatória questionando acordos judicialmente homologados em ações de execução não tem, por si só, o condão de levar à suspensão de tais processos. 2. Contudo, o deferimento de liminar em sede de ação cautelar, determinando a suspensão da exigibilidade da dívida decorrente do crédito rural constitui causa prejudicial ao prosseguimento da execução, sendo recomendável, nesse caso, a suspensão do processo executivo. 3. O prolongamento da dívida constitui um direito subjetivo do devedor rural e não mera faculdade da instituição financeira (Súmula 298 do STJ), desde que preenchidos os requisitos objetivos elencados no item 2.6.9 do Manual de Crédito Rural editado pelo BACEN, a saber: a) dificuldade de comercialização dos produtos; b) frustração de safras, por fatores adversos; c) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações. 4. No caso dos autos, o direito ao alongamento da dívida decorre de quebra de safra ocorrida no ano de 2009, restando preenchidos, outrossim, os requisitos do aludido Manual de Credito Rural. 5. Recurso conhecido e provido.” (TJPR – 14ª C.Cível – AI 810946-0 – Campo Mourão – Rel.: Celso Jair Mainardi – Unânime – J. 28.09.2011)
“AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. FINAME AGRÍCOLA. FINANCIAMENTO PARA AQUISIÇÃO DE IMPLEMENTOS AGRÍCOLAS. INSURGÊNCIA CONTRA DECISÃO QUE DEFERIU A LIMINAR DE PRORROGAÇÃO COMPULSÓRIA DA DÍVIDA DEVIDO ÀS FRUSTRAÇÕES DE SAFRA E MERCADO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS EXIGIDOS PELA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA (ART. 14 DA LEI Nº 4.8129/65 E MANUAL DE CRÉDITO RURAL) E, CONSEQUENTEMENTE, DE VEROSSIMILHANÇA NAS ALEGAÇÕES. LAUDO PRODUZIDO UNILATERALMENTE. RECURSO PROVIDO. 1. Sem a demonstração, ainda que superficialmente, da verossimilhança das alegações, não se concede a tutela antecipada prevista no art. 273 do CPC. 2. Para deferir liminarmente a prorrogação da dívida pleiteada pelo produtor rural, não basta a invocação da disposição do art. 4 da Lei nº 7.843/89, art. 14 da Lei nº 4.829/65 e da cláusula 2.6.9 do Manual de Crédito Rural do Conselho Monetário Nacional. 3. É necessária a demonstração da incapacidade de pagamento da dívida, decorrente da frustração de safra e de redução de receitas. 4. Não basta a afirmativa de que as dificuldades sofridas pelo setor agropecuário são notórias para que se possa deferir o prolongamento dos prazos do financiamento.” (TJPR – 17ª C.Cível – AI 766044-8 – Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba – Rel.: Lauri Caetano da Silva – Unânime – J. 18.05.2011)
Portanto, preenchidas qualquer uma das condições previstas no Manual de Crédito Rural nº 2.6.9, e sendo requerido pelo produtor rural, a prorrogação do vencimento do contrato é medida que se impõe, ainda que ao alvedrio da instituição creditória, visto o caráter cogente e especial dos normativos do Conselho Monetário Nacional.
5 – DOS REQUISITOS AUTORIZADORES PARA O ALONGAMENTO DE DÉBITO
Uma vez estabelecido o critério da aplicação cogente do normativo do M.C.R. 2.6.9 às instituições financeiras integrantes do Sistema Nacional de Crédito Rural, cumpre verificar um a um os requisitos que a própria norma estabelece.
Dispõe assim a referida norma:
“9 – Independentemente de consulta ao Banco Central do Brasil, é devida a prorrogação da dívida, aos mesmos encargos financeiros antes pactuados no instrumento de crédito, desde que se comprove incapacidade de pagamento do mutuário, em consequência de:
a) dificuldade de comercialização dos produtos;
b) frustração de safras, por fatores adversos;
c) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações. “
Primeiramente, no “caput” do item 9, vê-se a expressão “independentemente de consulta ao Banco Central do Brasil, é devida a prorrogação”, o que determina o caráter cogente desta norma. Ou seja, o espírito da norma é que a consulta já está aprovada. Assim, basta o preenchimento dos requisitos autorizadores para que o direito surja ao requerente, direito este que não dependerá de análise subjetiva das instituições financeiras submissas ao Banco Central do Brasil. Afinal, se dependesse de análise, a consulta ao BACEN seria necessária.
Após, vê-se que a prorrogação é devida “aos mesmos encargos financeiros antes pactuados no instrumento de crédito”.
Deste modo, não é permitido às instituições creditórias embutir no alongamento outras taxas de juros, encargos, ou qualquer outra taxa que possa onerar o produtor rural, mesmo que a taxa especial estabelecida naquele ano para aquela determinada operação seja maior.
Vale ressaltar, no entanto, que tal prorrogação não poderá servir como convalidação a atos praticados de maneira irregular. Isto porque se no financiamento originário forem embutidos encargos indevidos, a prorrogação via M.C.R. não pode servir como meio de dar uma roupagem legal ao ilegal. A prorrogação deverá ser dada aos mesmos encargos financeiros antes pactuados, desde que tais encargos estejam cobertos pela legalidade. Caso contrário, a prorrogação ficará passível de recálculo desde sua origem, conforme Súmula 286 do STJ[9].
Comumente, os limites da legalidade no Crédito Rural brasileiro nem sempre são respeitados. Os contratos vistos no Brasil comumente são do tipo de adesão, ou seja, de cláusulas fechadas, onde se completa apenas alguns campos de identificação do mutuário, estabelecendo não só encargos legais, mas também criando constantemente novos encargos que acabam sempre no Judiciário tendo que manifestar sobre sua legalidade, como o caso da comissão de permanência, taxas de abertura ou análise de crédito, correção monetária pela CDI, etc., encargos estes criados sempre em desfavor do consumidor.
Entretanto, os encargos financeiros alongados devem ser somente aqueles pautados pela estrita legalidade em sua criação, segundo os preceitos próprios e exclusivos do financiamento rural.
Também é necessário que se prove a incapacidade de pagamento (“desde que se comprove a incapacidade de pagamento”). Não basta a solicitação, ela deverá vir acompanhada de fundamentos que demonstrem sua incapacidade, provando quais foram as perdas obtidas (comentadas item por item abaixo) e o cronograma de pagamento a ser estabelecido, ou seja, se o pagamento do financiamento deverá ser feito em 02, 05 ou 10 anos, por exemplo, a forma e a época de pagamento.
Quanto aos requisitos que entendem como incapacidade de pagamento, a norma estabelece os seguintes, alternativamente ou conjuntamente:
a) dificuldade de comercialização dos produtos
A receita do empresário rural é obtida somente na comercialização de seus produtos. Não basta o homem do campo apenas produzir: é na venda que ele obtém seu sustento, a capacidade para investimentos e, obviamente, a capacidade para pagamento de seus financiamentos.
Assim, tendo o produtor dificuldade na comercialização de seus produtos, lhe é devido a prorrogação do financiamento contratado, vez que seria desproporcional pagar primeiramente o sistema financeiro e deixar sua família desamparada.
Esta dificuldade de comercialização pode ser tanto integral quanto parcial, ou seja, tanto da safra completa quanto da parte da safra. E ela é verificada de várias maneiras, podendo ser citada a baixa demanda ou o excesso de oferta no mercado interno ou externo, o que leva ao achatamento dos preços, o preço que o mercado estiver pagando ser inferior ao estipulado na Política Geral de Preços Mínimos[10] estabelecido pelo Governo Federal, políticas públicas que levam o achatamento dos preços, como por exemplo, a importação de produtos ou derivado de outros países, dificultando o comércio do produto nacional etc.
Importante é o que o produtor tenha a prova de que houve a dificuldade de comercialização. Uma região, por exemplo, onde o escoamento da produção e a consequente venda é feita através de linhas férreas e, em plena época de safra, há um descarrilamento do trem ou uma queda de barreira que impeça a utilização dos maquinários durante dois meses, fazendo com que o produtor rural tenha dificuldade em vender seu produto, seja por falta de armazenamento ou escoamento do produto, onerando-o de forma demasiada a realização da venda por outras vias, seja rodoviária ou fluvial, implica em uma dificuldade de comercialização onde se mostra passível o alongamento do financiamento rural, com base no M.C.R. 2.6.9. Ora, se ele não conseguiu vender no tempo adequado, também não pode lhe ser imputado um pagamento sem a devida receita, haja vista a característica especial dos financiamentos rurais.
Outro exemplo, que também ocorre com certa frequência em determinados tipos de cultura, é a falta de mercado comprador. Por vezes o produtor rural colhe o produto mas não tem quem compra naquela época e naquela região, o que dificulta sua comercialização. Tal fato é visto com certa frequência em culturas de entressafra e ciclo curto, como o feijão, por exemplo. Também nestes casos é permitido ao produtor o alongamento de seu financiamento, caso no vencimento da parcela ainda não tenha tido oportunidade de ter comercializado seu produto, por conta de falta de mercado.
b) frustração de safras, por fatores adversos;
Este seja talvez o principal motivo que leva o produtor rural a buscar administrativamente ou judicialmente o alongamento de seu financiamento. A frustração de safra é um mal que atinge o setor produtivo independentemente se o agricultor é experiente ou novato: a sua ocorrência decorre de fatores climáticos, do qual o homem não tem controle, como a chuva, geada ou a seca.
Infelizmente, safra após safra é visto uma ou outra região com dificuldade de colheita justamente pelas adversidades climáticas, como a chuva em excesso, a estiagem prolongada ou a geada.
O princípio aplicado a este inciso é justamente o fato de que as forças da natureza não estão no controle humano, e portanto, a ocorrência de um fator externo não pode prejudicar o agricultor que retirou o financiamento antes do plantio.
Assim como no inciso anterior, a frustração suportada pode ser total ou parcial. Sendo parcial, a renda obtida primeiramente deverá ser destinada à manutenção familiar, para só depois ser destinada ao pagamento do financiamento.
É importante que o produtor tenha laudos que comprovem a frustração, que muitas vezes é de difícil constatação: por vezes a lavoura produz, mas pelas condições climáticas o fruto acaba ficando imprestável e fora de comércio, o que não deixa de ser uma frustração de safra. Ou mesmo é frustrada uma parcela mínima, mas essencial ao pagamento do financiamento. Assim, a prova é essencial também neste quesito.
c) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações.
Neste tópico, o legislador sabiamente deixou aberta a possibilidade de que outras circunstâncias possam ser levadas em consideração na hora de pleitear a modificação do cronograma de pagamento.
Volatilidade cambial, fatores externos ou internos, políticas públicas, ou seja, qualquer ocorrência que prejudique o plantio, o desenvolvimento da lavoura, a colheita ou a comercialização, desde que provados, deve levar à uma reprogramação do cronograma de pagamentos do produtor.
Uma queimada acidental pode ser, por exemplo, uma ocorrência prejudicial, assim como uma alta exagerada nos preços dos insumos aplicados durante o desenvolvimento da lavoura. Enfim, qualquer situação adversa, desde que provada, pode ser utilizada para o alongamento.
CONCLUSÃO
Os financiamentos rurais são regidos pela Lei nº 4.829/65, que institucionalizou o Sistema Nacional de Crédito rural no país. Esta norma derrogou poderes ao Conselho Monetário Nacional para estabelecer normas e critérios para a consecução do crédito rural no país, sendo que, em uma de suas normas, estabeleceu a possibilidade da alteração do cronograma de pagamento dos financiamentos sempre que o produtor rural sofrer adversidades quanto à comercialização, colheita ou na exploração da atividade, exigindo para tanto apenas o requerimento e a prova de tais fatos.
Como as instituições financeiras estão obrigadas a seguir os normativos editados pelo Banco Central do Brasil, órgão normatizador do Conselho Monetário Nacional, tem-se a conclusão de que a aplicação do disposto no Manual de Crédito Rural item 2.6.9 é de natureza cogente e compulsória aos integrantes do Sistema Nacional de Crédito Rural, cabendo ao produtor rural, contudo, a prova das adversidades sofridas.
Informações Sobre o Autor
Tobias Marini de Salles Luz
Advogado associado da banca Lutero Pereira & Bornelli Advocacia do Agronegócio, em Maringá/PR. Pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera (Uniderp), Bacharel em Direito pela PUC Minas Poços de Caldas