Resumo: este singelo artigo se propõe a discutir a possibilidade de a penalidade “suspensão temporária” imposta por entidade de uma esfera da Federação ser suscetível de irradiar efeitos perante as demais esferas, ou se haveria de se circunscrever à esfera abrangente do ente que a cominou.
Palavras-chave: licitação – contratos – sanção – administrativa – suspensão – temporária – âmbito – abrangência – interpretação – estrita – ampliativa.
Sumário: 1 – Notas iniciais; 2 – Corrente restritiva – posição do TCU; 3 – Corrente ampliativa – posição do STJ; 4 – Nossa posição; 5 – Conclusões.
1. NOTAS INICIAIS
Na tentativa de resguardar o interesse público quanto à escorreita e adequada execução das atividades públicas submetidas a delegação negocial, a Lei n. 8.666/93 estipula uma série de sanções passíveis de cominação ao contratante inadimplente, ou mesmo àquele potencial contratante considerado inidôneo à assunção das sobreditas atividades. Os artigos 87 e 88 da aludida lei contêm o rol das sanções de ordem administrativa, a saber:
“Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I – advertência;
II – multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.”
“Art. 88. As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior poderão também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais que, em razão dos contratos regidos por esta Lei:
I – tenham sofrido condenação definitiva por praticarem, por meios dolosos, fraude fiscal no recolhimento de quaisquer tributos;
II – tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da licitação;
III – demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Administração em virtude de atos ilícitos praticados.”
Com relação à sanção contida no inciso III do art. 87, subsiste profunda controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre o seu âmbito de abrangência, pois ainda se discute se o termo “Administração” empregado no dispositivo teria sido empregado em seu sentido mais amplo, em ordem a abranger toda a Administração Pública, ou empregado em sentido restrito, circunscrito ao âmbito do ente sancionador. Consequentemente, questiona-se a possibilidade de penalidade imposta por entidade de uma esfera da Federação ser suscetível de irradiar efeitos perante as demais esferas, ou se haveria mesmo de se circunscrever à esfera abrangente do ente que a cominou.
De um lado, os adeptos da corrente restritiva costumam invocar como argumentos a literalidade da lei, a impossibilidade de interpretação ampliativa em matéria de infrações, e, por último, a essência do modelo federalista de Estado. Já os adeptos da corrente ampliativa refutam a posição da primeira sob o argumento de que o princípio da unidade da Administração imporia interpretação em sentido contrário. É o que tentarei demonstrar em seguida, finalizando com a minha posição em relação ao tema, na medida do possível comentando um a um os argumentos adotados por ambas as correntes.
2. CORRENTE RESTRITIVA – POSIÇÃO DO TCU
Conforme anteriormente dito, a corrente restritiva sustenta que a sanção de suspensão temporária circunscreve-se ao âmbito da Administração que a cominou.
Para tanto, valem-se, por primeiro, da própria literalidade do inciso XII do art. 6º da mesma lei, que emprega ao termo “Administração” um conceito restritivo, definindo-a, para os efeitos de sua aplicação, como o “órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente”. Partindo dessa lógica, chegam à conclusão de que somente a sanção do inciso IV do art. 87 – consistente na “declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade” – é que se estende a todos os órgãos e esferas da Administração, pois o termo ali empregado – “Administração Pública” – recebe definição mais ampla pelo inciso XI do art. 6° da lei, englobando “a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas”, o que, segundo entendem, não poderia ser diferente, considerando se tratar de sanção mais gravosa do que a do inciso III, tanto que, nos termos do inciso III do art. 87, “é de competência exclusiva do Ministro de Estado, do Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso”.
Em complementação a esse argumento, costumam também sustentar que a ampliação do termo “Administração” para abranger todas as demais esferas do Poder Público somente seria possível mediante interpretação extensiva do preceito legal, o que seria vedado em matéria de infrações administrativas.
Não bastasse, utilizam ainda como subsidio à sua conclusão o argumento de que a preconizada interpretação (ampliativo) seria incompatível com o modelo federalista de Estado consagrado na Constituição da República, tendo em vista que a autonomia político-administrativa dos entes federativos (art. 18 da CF) seria suficiente para repelir qualquer condicionamento ou interferência de um ente federativo em relação a outro.
O Tribunal de Contas da União adota essa orientação. Eis, a título de exemplo, a fundamentação levada a efeito na decisão n° 36/2001 proferida pela Corte:
“4.3 Existem duas interpretações possíveis para o dispositivo: a de que o termo ‘Administração’ refere-se apenas ao órgão que aplica a penalidade e aquela que o DNER apresenta em sua justificativa, de que o impedimento abrangeria todos os órgãos da Administração Pública na esfera do órgão sancionador. O responsável traz em sua defesa a tese do Administrativista Marçal Justen Filho, in verbis:
‘(…) essa interpretação não apresenta maior consistência, ao menos enquanto não houver regramento mais detalhado. Aliás, não haveria sentido em circunscrever os efeitos da ‘suspensão de participação de licitação’ apenas um órgão específico. Se um determinado sujeito apresenta desvios de conduta que o inabilitam para contratar com a Administração Pública, os efeitos dessa ilicitude se estendem a qualquer órgão. (…) A mais nítida diferença entre as figuras é a do prazo. (…)’
4.3 Não é esse o entendimento do Tribunal, conforme podemos observar nas Decisões 369/99, 226/00 e 352/98 do Plenário. Desta última, proferida no Processo TC 017.801/95-8, destaco três fortes argumentos para combater a tese acima:
As sanções elencadas no art. 87 da Lei n.º 8.666/93 encontram-se em escala gradativa de gravidade: advertência, multa, suspensão do direito de licitar e declaração de inidoneidade. Percebe-se a intenção do legislador de distinguir as duas últimas figuras, de forma a permitir ao administrador que penalize uma falta não tão grave apenas com a suspensão do direito de licitar e contratar com a Administração, por prazo não superior a dois anos. Por outro lado, a sanção mais grave seria declarar o licitante inidôneo para contratar com a Administração Pública. O legislador utilizou os conceitos da própria Lei, art. 6.º, incisos XI e XII, para definir a abrangência das duas sanções: a primeira aplica-se apenas à Administração como órgão, entidade ou unidade administrativa que atua concretamente, e a segunda aplica-se à administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Tais dispositivos cuidam de restrição de direitos, pelo que devem ser interpretados de forma restritiva. Não se permite estender a lei penal, aplicá-la por analogia ou paridade, reprimindo ações e aplicando penas sem fundamento legal específico e prévio. A impropriedade de termos ou lapso na redação não se presume, deve ser demonstrada cabalmente, sob pena de se praticar a injustiça.
O art. 97 da Lei comprova a diversidade de abrangêcia das duas sanções, suspensão do direito de licitar e declaração de inidoneidade. É crime ‘admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo’, para o qual existem penas de detenção de 6 meses a 2 anos e multa. ‘Essa constatação ratifica o entendimento de que o impedimento de licitar ou contratar com alguém apenado com a sanção do art. 87, inciso III, restringe-se ao órgão ou entidade que aplicou a sanção, já que não há quaisquer óbices a que outros órgãos venham a fazê-lo.’
4.4 Desta forma, entendo inviável a proibição de participar na licitação a empresas penalizadas com a sanção do inciso III do art. 87 da Lei n.º 8.666/93, cabendo razão ao interessado quanto à impugnação da cláusula 9.1 do edital.”
3. CORRENTE AMPLIATIVA – POSIÇÃO DO STJ
Os adeptos da corrente ampliativa, por sua vez, defendem que a punição prevista no inciso III do artigo 87 da Lei não produz efeitos somente em relação ao órgão ou ente federado que determinou a punição, mas a toda a Administração Pública, basicamente sob o o princípio da moralidade administrativa não se harmonizaria com a idéia de que a improbidade, decorrente da conduta indevida (inadimplência ou fraude), possa produzir efeitos apenas limitadamente a determinada jurisdição administrativa. Ademais, costumam trazer à tona a afirmação de que a Administração é em sua essência una, sendo descentralizadas as suas funções apenas para o melhor atendimento do interesse público.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça parece caminhar nesse exato sentido, senão vejamos:
“ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DE PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÕES. MANDADO DE SEGURANÇA. ENTES OU ÓRGÃOS DIVERSOS. EXTENSÃO DA PUNIÇÃO PARA TODA A ADMINISTRAÇÃO. 1. A punição prevista no inciso III do artigo 87 da Lei nº 8.666/93 não produz efeitos somente em relação ao órgão ou ente federado que determinou a punição, mas a toda a Administração Pública, pois, caso contrário, permitir-se-ia que empresa suspensa contratasse novamente durante o período de suspensão, tirando desta a eficácia necessária. 2. Recurso especial provido. (REsp 174274/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/10/2004, DJ 22/11/2004, p. 294)”
“ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – LICITAÇÃO – SUSPENSÃO TEMPORÁRIA – DISTINÇÃO ENTRE ADMINISTRAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – INEXISTÊNCIA – IMPOSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO DE LICITAÇÃO PÚBLICA – LEGALIDADE – LEI 8.666/93, ART. 87, INC. III. – É irrelevante a distinção entre os termos Administração Pública e Administração, por isso que ambas as figuras (suspensão temporária de participar em licitação (inc. III) e declaração de inidoneidade (inc. IV) acarretam ao licitante a não-participação em licitações e contratações futuras. A Administração Pública é una, sendo descentralizadas as suas funções, para melhor atender ao bem comum. A limitação dos efeitos da “suspensão de participação de licitação” não pode ficar restrita a um órgão do poder público, pois os efeitos do desvio de conduta que inabilita o sujeito para contratar com a Administração se estendem a qualquer órgão daAdministração Pública. Recurso especial não conhecido. (STJ – REsp 151567 – RJ – 2ª T. – Rel. Min. Francisco Peçanha Martins – DJU 14.04.2003)”
4. NOSSA POSIÇÃO
Em que pese a coerência dos argumentos de ambas as correntes, e não obstante a aparente complexidade que envolve a matéria, tenho que a primeira posição não se compadece com a ordem constitucional vigente.
Realmente, o fato de ter sido empregado o termo “Administração” no inciso III do art. 87 e, diferentemente, o termo “Administração Pública” no inciso IV parece deixar claro que a mens legis era mesmo a de restringir o âmbito de abrangência da primeira penalidade aos moldes da discriminação estatuída no art. 6°.
Ocorre que a pretendida diferenciação entre “Administração” e “Administração Pública” não se harmoniza com o espírito encartado na norma constitucional regulamentada (art. 37, caput e inciso XXI da CF) e na própria lei de regência, que tem por manifesta e declarada preocupação a de moralizar o procedimento de contratação por parte da Administração, não só para que seja assegurada a isonomia aos eventuais interessados, mas também – e sobretudo – para que se viabilize a escolha do participante e da proposta que melhor atenda ao interesse público, seja em termos de eficiência, seja em termos de segurança quanto à escorreita e tempestiva execução das atividades delegadas, fato que, por certo, põe em relevo a idoneidade técnica, financeira e comportamental do parceiro a ser contratado.
Quer isto dizer que, por força da essência mesma dos institutos pertinentes (licitação e contratos administrativos), a probidade dos licitantes e daqueles que contratam com a Administração acaba tendo de ser vista como uma qualidade indissociável à gestão e operacionalização da coisa pública, de modo a desautorizar, ou ao menos desaconselhar, qualquer raciocínio no sentido de limitar as punições por ato de improbidade à jurisdição administrativa do órgão sancionador, sobretudo quando se trata de um ato de gravidade tal como a dos casos arrolados no art. 88, em que se está diante de um comportamento de alguma forma fraudulento, não raro caracterizadores de ilícitos também penais. Por esse raciocínio, se é verdade que o modelo federal não admite que os atos de um ente federativo interfiram incondicionalmente em determinados atos de outro, não é menos verdade que a constatação definitiva, por parte um ente federativo, de um ilícito dessa natureza caracteriza razão mais do que suficiente para que o outro ente venha também a questionar a idoneidade do apenado, e constitui indubitável justa causa também para o seu descredenciamento nos processos de concorrência de que participe.
Por último, não me parece possível dizer que o legislador tenha estabelecido uma diferença de grau entre a sanção do inciso III (suspensão temporária) e a do inciso IV (declaração de inidoneidade), de modo a autorizar suposta diferenciação na extensão de cada qual. A meu ver, o critério para a imposição de uma ou outra sanção não é o da gravidade da conduta apurada, mas sim o da adequação. É esse o critério que se extrai por dedução lógica do confronto entre os critérios temporais estabelecidos em cada um dos incisos: como a declaração de inidoneidade, uma vez cominada, subsiste enquanto “perdurarem motivos determinantes da punição” ou enquanto houver a “reabilitação” com o ressarcimento dos prejuízos implicados à Administração, dá-se a entender que ela se destina a penalizar aquelas irregularidades que são em tese passíveis de correção (ou reparação) com o tempo; já com relação à suspensão temporária, que subsiste sempre por prazo previamente fixado (de até 2 anos), dá-se a entender que se destina à punição daquelas irregularidades que não são suscetíveis de serem afastadas ou reparadas, ora por se referirem a condutas anteriores à eventual celebração do contrato administrativo (v.g. frustração do procedimento licitatório), ora por se referirem a condutas totalmente estranhas ao âmbito contratual (v.g. prática de ilícitos tributários).
5. CONCLUSÃO
Por todo o exposto, tenho que a sanção de “suspensão temporária” aplicada por um ente, se já não impede a contratação perante toda a Administração Pública, é ao menos suficiente para ser invocada pelo ente não sancionador também para inabilitar o proponente apenado.
Advogado, Chefe de Gabinete da Vice-Presidência do TJ/ES biênio 2008-2009, Pós-graduando em Direito Constitucional pela PUC/SP, Bacharel em Direito pela UFES
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