O aproveitamento hidrelétrico castelhano e os direitos das comunidades afetadas: fatos, argumentos e teorias

Resumo: Este trabalho tem como escopo relatar o caso do projeto de construção da barragem Castelhano, descrevendo os principais fatos acerca do empreendimento, apontando também os argumentos a favor e contra, bem como relacionando o caso a teorias sociológicas do direito aplicáveis à realidade dos eventos e às propostas de resolução dos conflitos entre os interesses dos empreendedores e os direitos da comunidades tradicionais e quilombolas.[1]

Palavras-chave: AHE Castelhano. Comunidades tradicionais. Sociologia Jurídica.

Abstract: This work has the objective to report the case of the construction project the Castilian dam, describing the main facts about the enterprise, also pointing out the arguments for and against, as well as relating the case to sociological theories of law applicable to the reality of events and to proposals for resolving conflicts between the interests of entrepreneurs and the rights of traditional communities and maroon.

Keywords: AHE Castilian. Traditional communities. Sociology of Law.

Sumário: Introdução. 1. O caso da barragem Castelhano e as comunidades tradicionais e quilombolas. 2. O desenvolvimento econômico e o direito dos atingidos: quem irá progredir? 3. As teorias sócio-jurídicas na análise do caso da barragem Castelhano: crítica e reafirmação do direito. Conclusão. Referências.

Introdução

O Piauí vive atualmente momentos de destaque no cenário nacional e internacional, em que se tem descoberto a cada dia mais riquezas no Estado. A mineração desponta por todo o Piauí e a agroindústria tem investido cada vez mais em solo piauiense. Todo recurso do Estado, seja mineral, hídrico, ou energético é agora aproveitado pelas empresas e pelo próprio governo para desenvolver o estado que outrora era considerado um dos mais pobres do Brasil.

No entanto, esse progresso pretendido pelos governos e pela iniciativa privada tem atingido diversas comunidades que vivem nos locais de instalação dos empreendimentos, tirando as comunidades tradicionais do meio onde sempre viveram, realocando-as em assentamentos ou indenizando os bens materiais afetados. Não há outra opção para elas: ou se retiram do lugar ou a supremacia do interesse público e do progresso prevalecerá.

O presente trabalho se propõe a discutir o que está sendo feito pelos empreendedores acerca de alternativas para as comunidades tradicionais, visto que têm seus direitos assegurados na própria Constituição e em vários dispositivos legais que protegem o conhecimento tradicional, a cultura local e o patrimônio material e imaterial que fazem parte do seu modo de vida. O artigo se aterá ao caso da barragem Castelhano, um Aproveitamento Hidrelétrico a ser construído onde existem diversas comunidades tradicionais e quilombolas, descrevendo-o e apontando os prós e contras da instalação do empreendimento. Será feita também uma abordagem teórica que corresponda aos fatos apontados e às possíveis propostas de solução do impasse, visando aliar teorias sociológicas do direito à realidade e às demandas sociais da atualidade.

1 O caso da barragem Castelhano e as comunidades tradicionais e quilombolas

A barragem de Castelhano é um empreendimento que integra o conjunto de cinco barragens do Projeto Parnaíba a serem construídas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e propostas pelo consórcio de quatro empresas: CHESF, Construtora Queiroz Galvão, CNEC Engenharia S.A. e ENERGIMP S.A., com o objetivo de suprir as necessidades energéticas da região. A referida barragem será instalada na bacia hidrográfica do rio Parnaíba, entre os estados do Piauí e Maranhão, na microrregião do Alto Parnaíba e terá como Área de Influência Direta – AID quatro cidades nordestinas: Palmeirais e Amarante, no Piauí; São Francisco do Maranhão e Parnarama, no Maranhão.

Segundo os Estudos de Impacto Ambiental – EIA e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental – RIMA, elaborados para o consórcio pela empresa Projetec – Projetos Técnicos Ltda., como parte do processo de obtenção do licenciamento ambiental da obra, a área que formará o reservatório da barragem de Castelhano terá um lago de 77 km² e abrangerá um trecho do rio Parnaíba com cerca de 86 km de extensão nos municípios/localidades de Amarante (PI), Palmeirais (PI), Formosa (PI), São Francisco do Maranhão (MA) e Riacho dos Negros (PI), sendo esta última uma comunidade quilombola, porém não reconhecida pelos estudos com essa característica.

Ainda segundo os estudos, a barragem implicará o remanejamento de aproximadamente 556 famílias, representando aproximadamente 2224 habitantes, todos residentes na área a ser inundada e nas futuras áreas de preservação permanente. Estima-se que a maioria destas famílias (279) seja residente nas áreas urbanas de Riacho dos Negros, Palmeirais e Amarante, sendo que numericamente a população mais afetada será a de Riacho dos Negros, com o total de 231 famílias a serem deslocadas somente nessa localidade.

O deslocamento compulsório da população afetada é apenas um dos inúmeros impactos que serão causados pelo empreendimento. Ao longo das fases de pré-implantação, implantação, enchimento, linha de transmissão e operação, contidas no processo de instalação do AHE Castelhano, ocorrerão diversas alterações nos meios físico, biótico e antrópico ou socioeconômico, como supressão da vegetação, alteração da qualidade da água, alteração na comunidade ictíica, interrupção da navegação fluvial etc., além de vários impactos decorrentes dessas modificações. Contudo, o deslocamento compulsório dos habitantes do local é considerado pelos próprios estudos ambientais o impacto mais sério dentre os vários inerentes a instalação de empreendimentos como esse, por implicar em modificação e desestruturação das relações sociais e perda de referências socioespaciais e culturais, dentre outras consequências.

Para mitigar esse impacto, os empreendedores propõem a aplicação de três programas e planos ambientais: Programa de Comunicação Social, o Plano de Apoio aos Municípios e o Programa de Remanejamento e Reassentamento da População Diretamente Atingida. Esse último, em seus dois subprogramas, detalha que é de responsabilidade do empreendedor, porém, deverá contar, necessariamente, com apoio e parceria com instituições públicas (governos municipais e estaduais). O Plano de Apoio aos Municípios também precisa da interferência do Poder Público, sendo patrocinado pelo empreendedor, mas co-executado pelas Prefeituras. Assim, além de a obra ser licenciada por instituições públicas, a própria administração pública será co-responsável na aplicação das medidas mitigadoras.

Esse empenho por parte dos governos em apoiar os empreendimentos é colocado como supremacia do interesse público em desenvolver o Piauí. Porém, esses atos estão desconsiderando os direitos das comunidades tradicionais e quilombolas locais, que não desejam ser remanejadas do meio onde vivem e trabalham. As comunidades vivem na região há anos e construíram, pela interação com a natureza, um conhecimento tradicional associado à biodiversidade local e um patrimônio cultural que é protegido por diversas legislações. Assim, além de serem deslocados involuntariamente, se distanciarão do meio onde se apropriaram de saberes tradicionais que fazem parte de seu modo de vida, do ambiente e da cultura piauiense.

Durante as audiências públicas realizadas para a discussão dos impactos decorrentes da barragem Castelhano, a população manifestou-se contra a instalação do projeto, que, segundo as comunidades, não é benefício para o povo; pelo contrário, o deixará em prejuízos por afastar as pessoas que ali vivem dos locais onde nasceram, cresceram e tiram seu sustento. Contudo, os empreendedores e o Governo Federal não levaram em consideração o manifesto dos afetados e a data do leilão para a construção da barragem foi marcada antes mesmo de ser expedida a licença prévia do AHE Castelhano.

Diante desse impasse, cabe agora colocar as posições de defesa e contrárias a construção da hidrelétrica, apontando o argumento dos empreendedores, contido no EIA e no RIMA, e os argumentos dos atingidos, que foi veiculado por diversas entidades que representam os seus interesses, por legislações que protegem as comunidades locais e pela Ação Civil Pública que tramita pela 2ª Vara da Justiça Federal com pedido de liminar para impedir o leilão da barragem.

2 O desenvolvimento econômico e o direito dos atingidos: quem irá progredir?

Segundo os Estudos de Impacto Ambiental, o AHE Castelhano e as demais barragens contidas no Projeto Parnaíba, visam propiciar a exploração do potencial de geração hidrelétrica do rio Parnaíba, aumentando a oferta energética para o Piauí, que, de fato, não é autossuficiente na produção de energia para atender a sua demanda atual. Mas o que se tem visto no Piauí é que diversas empresas como agroindústrias e mineradoras se instalam no Piauí sobre o argumento de que aqui terão todos os recursos à disposição e, inclusive, energia suficiente para realizar suas atividades. Assim, os discursos dos empreendimentos se contradizem e acabam por confirmar o real destino da energia piauiense, que não servirá para atender especificamente as necessidades das comunidades sem energia elétrica, mas, na verdade, suprirá as empresas instaladas no Estado para obterem seus lucros.

Mas um argumento elaborado pelos empreendedores para justificar a obra é o fato de as cidades atingidas e vizinhas da barragem terem índices econômicos baixos e a instalação do empreendimento trará mais emprego e renda a esses municípios. O EIA/RIMA desenvolve isso como impacto positivo, dizendo que haverá uma dinamização da economia, aumento na arrecadação de tributos e ampliação da oferta de postos de trabalho. Contudo, logo depois o estudo esclarece que essa oferta será temporária e, devido à baixa escolaridade das pessoas da região, a obra terá dificuldade em inserir grande parte da população e precisará que pessoas qualificadas vindas de outros locais para trabalhar na construção e implantação da barragem. Então, além de perder seu modo de trabalho, a população local dificilmente será inserida nos novos empregos ofertados e, se alguns forem inseridos, saberão que após a construção da barragem serão dispensados.

Mas um argumento tem prevalecido no discurso de quem defende a construção do aproveitamento hidrelétrico: o argumento do progresso. Muitos dizem que o Piauí precisa se desenvolver assim como os outros estados do Sul e Sudeste e os estudos apontam que o Nordeste tem grande potencial de crescimento. Para isso, é justificável a construção da barragem, visto que ela gerará avanços na economia e nos negócios. Porém, o que questiono é em que medida o desenvolvimento é possível, ou seja, quais os limites que cercam o progresso econômico, já que o enfoque excessivo na questão econômica pode trazer males a outras formas de progresso, como por exemplo, o progresso da própria dinâmica social das comunidades.

Agora posso então discorrer acerca dos argumentos das comunidades, que também tem o direito de definir aquilo que é melhor para suas vidas, e não apenas se ater ao discurso de benefício para todos implantado pelos empreendedores do AHE Castelhano. Como já foi dito, as comunidades tradicionais e quilombolas afetadas não desejam serem remanejadas. A manutenção do seu modo de vida, sua própria forma de trabalhar e interagir com o meio é para a comunidade a melhor alternativa, muito mais benéfica que qualquer ação governamental que anuncie progresso a todos, mas que busque retirá-los do local onde querem permanecer.

Além disso, a comunidade não sabe claramente para onde vai e como é que vai ficar, longe da terra onde produzem e pescam. Não conseguem visualizar seu futuro em outro local, pois o próprio EIA/RIMA não aponta o real destino das pessoas que ali vivem, apenas diz que serão reassentadas ou indenizadas. Esse é mais um motivo para o qual as populações da região não desejam ser remanejadas, pois se a barragem for construída, terão que sair do local rumo a um destino incerto e desconhecido.

Diante desses fatos, é nítido o desrespeito à legislação brasileira e as diversas convenções ratificadas pelo Brasil no tocante aos direitos das comunidades tradicionais e quilombolas. A própria Constituição versa, no seu art. 3º-IV, como objetivo da República, promover o bem de todos e, no art. 6º, aponta como direitos sociais a alimentação, o trabalho, a moradia e o lazer. Além disso, os art. 215 e 216 da CF-88 protegem as manifestações culturais e o patrimônio material e imaterial na forma de patrimônio cultural como as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver.

A Convenção 169 da OIT é mais um exemplo de texto legal que não está sendo cumprido nesse caso. A Convenção determina aos governos, no art. 6º, a consulta os povos interessados cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente e o estabelecimento de meios onde estes povos possam participar livremente com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Assim, a consulta prévia deve permitir que as comunidades participem na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes.

O art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT reconhece a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos, e o Decreto nº 4.887/2003 regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata esse artigo, dizendo que a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. Essas legislações então asseguram a proteção do território das comunidades quilombolas a serem atingidas, visto que elas assim se autodefinem e, portanto, tem o direito de permanecer na terra onde vivem atualmente.

Reconhecendo as reclamações feitas por diversas entidades civis que apontam o direito dos afetados, o Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública com pedido de liminar para impedir os leilões das barragens do Projeto Parnaíba, com destaque aos AHEs de Cachoeira, Estreito e Castelhano, cujos leilões foram marcados para ocorrer em conjunto. O MPF denunciou mais irregularidades e inconsistências encontradas nos estudos de impacto ambiental pelas análises técnicas do Inquérito Civil Público.

Segundo os pareceres e laudos técnicos do ICP, os EIAs não apresentam dados suficientes para a análise comparativa dos impactos no que concerne às alternativas de locação dos empreendimentos, bem como também não apresentam de forma clara e precisa a hipótese de não execução, que deve ser considerada de acordo com a Resolução nº1/1986 do CONAMA. Ademais, os limites das áreas de influência não estão claramente definidos e a população atingida foi subestimada.

A Ação Civil Pública foi ajuizada antes do licenciamento prévio da barragem Castelhano, mas pôde prever a pressão política causada pela marcação da data do leilão para a obtenção dessa LP pelos empreendedores, o que realmente aconteceu, apesar de a ACP solicitar que sejam invalidados, desde o início, os processos de licenciamento ambiental de todas as cinco barragens, ante os vício insanáveis apontados, que remontam ao início e à própria concepção dos projetos, e que os requeridos se abstenham de licenciar HEs no rio Parnaíba, ou de iniciar qualquer atividade relativa à construção de empreendimentos dessa espécie, sem contemplar, analisar e solucionar todos os aspectos referidos nesta ação e nos pareceres/laudos técnicos constantes no ICP.

Diante desse impasse entre os direitos das comunidades tradicionais e quilombolas e a ações das instituições públicas responsáveis pelo licenciamento da obra e os empreendedores, faz-se necessário o estudo teórico que explique os fatos apontados e que proporcione, na medida do possível, caminhos aceitáveis para a resolução dos dissensos e para a construção de consensos.

3 As teorias sócio-jurídicas na análise do caso da barragem Castelhano: crítica e reafirmação do direito

Pelo que se tem visto até agora, é flagrante o cenário de desrespeito às legislações e aos direitos das comunidades, pelo qual se pode fazer uma abordagem crítica usando teóricos como Marx, Foucault e outros autores, que analisam as inconsistências entre o discurso do direito e o que ele produz de fato, apontando a sua aplicação na vida real.

A proposta de Marx (2001) está contida na expressão “materialismo histórico-dialético”, que parte de bases reais para explicar a evolução histórica das sociedades, concluindo que o motor da história é a contradição, a luta entre classes. Na fase histórica do capitalismo formam-se duas classes que sustentam o modo de produção: proletários e os donos dos meios de produção e, dentro dessa contradição, o direito surge como discurso ideológico da classe dominante ao propor uma igualdade não-real, que usa o Estado para promover os interesses desta classe como se fossem interesses coletivos.

No caso da barragem de Castelhano, ocorre algo semelhante, já que o empreendedor, ao propor programas que necessitam do apoio e parceria dos governos, está querendo usar o Estado para atender os seus interesses de lucro e exploração, escondidos pelo discurso ideológico de desenvolvimento e de mais energia para a região. Então, além de ter licenciado a obra, o Estado também terá que atuar cooperativamente na ação privada dos empreendedores, colocando esse interesse privado como interesse público e acima dos interesses da população local.

Em Foucault (1987), a crítica permanece, porém sem a categoria da ideologia, mas usando outra categoria: a da disciplina. Segundo Foucault, as disciplinas são técnicas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas, “docilizando” os indivíduos e aumentando a sua utilidade no sistema. A sociedade disciplinar é constituída por diversas formas de disciplina que, por sua vez, são constituídas por mecanismos miúdos, cotidianos e físicos que representam a forma que o direito se concretiza na sociedade.

Porém o autor diz que a disciplina está mais próxima de ser um contradireito do que um infradireito, visto que a disciplina é um sistema que hierarquiza e coloca em posições desiguais os indivíduos, negando tudo aquilo que o direito afirma sobre igualdade e democracia. Assim, apesar de o direito afirmar que todos são iguais, a sua aplicação na forma de disciplina propõe o contrário, caracterizando, classificando e hierarquizando os indivíduos.

Visto que, apesar de termos uma Constituição que determina o tratamento de todos de maneira igual, sejam empresários ou quilombolas, isso não se faz na realidade do andamento do processo de instalação do AHE Castelhano, pois os interesses dos empresários têm se sobressaído frente aos direitos das comunidades tradicionais, exatamente como versa a disciplina para Foucault.

É interessante analisar também como no caso retratado existe tanto a hierarquização entre empresários e a comunidade local, quanto à uniformização da comunidade ao tratar a comunidade ribeirinha apenas como tradicional e não reconhecer as especificidades das dinâmicas sociais e das vivências culturais da localidade. Na região afetada pela barragem, existem diversos tipos de comunidades: pescadores, quilombolas, quebradeiras de coco, vazanteiros e outros, porém suas especificidades não foram relatadas no EIA. É o que Malinowski (2003) chama de olhar etnocêntrico, uma visão das comunidades tradicionais que apenas busca adequar à realidade local as teorias antropológicas, vindas de fora sem analisar a comunidade como ela é.

Para Norbert Rouland (2004), num contexto universalista, que generaliza as sociedades sob uma mesma forma, é cada vez mais complicado atender às diferenças culturais; é como navegar entre dois rochedos – o da uniformidade e o da heterogeneidade. Um exemplo disso é a globalização, no seu aspecto econômico, que visa tornar homogêneos indivíduos que estão em diferentes realidades. Com seu ideal desenvolvimentista, onde os países são considerados melhores por seus indicadores econômicos, a globalização faz com que outros países não desenvolvidos economicamente busquem também índices semelhantes, mesmo tendo dinâmicas sociais distintas.

Isso se parece com o argumento do progresso, tão utilizado para defender a construção da hidrelétrica, pois esse argumento está focado apenas no aspecto econômico do desenvolvimento, sem discutir a importância do conhecimento tradicional e sem respeitar o modo de vida das populações atingidas. Além disso, Rouland diz que “O desenvolvimento econômico não foi para eles [os povos autóctones] sinônimo de progresso, salvo ao contrário. Em muitas regiões do mundo, as ‘necessidades’ desse desenvolvimento são a causa de sua devastação” (ROULAND, 2004, p.21), portanto, aquilo que se anuncia como progresso para todos pode não ser progresso real às minorias, como bem sabe a comunidade local.

Assim, Rouland é importante porque denuncia que, em busca de um desenvolvimento econômico, é possível destruir comunidades e suas respectivas culturas. Além disso, ele diz que a democracia não pode estar ligada ao desenvolvimento econômico, pois, se assim fosse, impediria a participação das minorias e ainda as massacraria sob a vontade da maioria. Voltando ao caso da barragem, se vê que, ainda que sua construção tivesse aceitação pela maioria, não se podem ignorar os direitos da minoria, principalmente quando ela é a mais afetada.

A modernização reflexiva de Ulrich Beck (1997) é o retrato da sociedade de risco em que vivemos, onde estamos frente a frente com os riscos que nossas ações proporcionaram e onde cada ação por nós produzida acarretará em uma consequência, não mais daqui a alguns anos, mas no agora. Ao longo do texto, o autor demonstra como uma sociedade voltada apenas para o progresso econômico pode trazer riscos a ela própria, riscos esses que são incertos.

Na elaboração do EIA/RIMA da barragem Castelhano, são previstos diversos impactos decorrentes da instalação do projeto, mas os impactos podem ser muito mais do que os esperados, pois segundo Beck, “os riscos são infinitamente reprodutíveis, pois se reproduzem juntamente com as decisões e os pontos de vista com que cada um pode e deve avaliar as decisões na sociedade pluralista” (BECK, 1997, p.20), ou seja, à medida que se inclui outras perspectivas, como a das comunidades tradicionais e quilombolas, se verifica que existem outros riscos a serem causados pela construção da barragem, como por exemplo, a separação entre conhecimento tradicional e seu ecossistema local.

Com Beck, já é possível introduzir novas formas de resolução dos conflitos para a construção de consensos e passar de uma análise crítica do direito para uma abordagem que contemple as opções dadas pelo próprio direito. Ao tratar de ambivalência, que se trata da possibilidade de haver duas ou mais perspectivas sobre a mesma ação, o autor mesmo expõe a problemática de maneira evidente: “Na sociedade de risco, as novas vias expressas, instalações de incineração de lixo, indústrias químicas, nucleares ou biotécnicas, e os institutos de pesquisa encontram a resistência dos grupos populacionais imediatamente afetados. É isso, e não (como no início da industrialização) o júbilo diante desse progresso, que se torna previsível. Administrações de todos os níveis vêem-se em confronto com o fato de que o que eles planejam ser um benefício para todos é percebido como uma praga por alguns e sofre sua oposição. Por isso, tanto eles quanto os especialistas em instalações industriais e os institutos de pesquisa perderam sua orientação. Estão convencidos de que elaboraram esses planos “racionalmente”, com o máximo do seu conhecimento e de suas habilidades, considerando o “bem público”. Nisso, no entanto, eles descuram a ambivalência envolvida. Lutam contra a ambivalência com os velhos meios da não-ambiguidade. ”(BECK, 1997, p.42)

Assim, o problema se resume em que as perspectivas dos afetados não estão sendo incluídas na tomada de decisões que a eles estejam relacionadas e a não-ambiguidade está resultando em uma visão unilateral da instalação desses empreendimentos, que apenas considera a perspectiva dos especialistas. Para Beck, para que se criem e realmente aconteçam consensos, é preciso abolir o modelo de racionalidade instrumental não ambígua, através do modelo da “mesa-redonda”, seguido por cinco passos: a desmonopolização da especialização, a informalização da jurisdição, a abertura da estrutura de tomada de decisão, a criação de um caráter público geral e a autolegislação e auto-obrigação.

A categoria do consenso é importante também para Habermas (2003), já que constitui a missão do direito na solução de dissensos, não como uma categoria que reparte os benefícios e prejuízos equitativamente, mas que dá abertura à construção de propostas que possam incluir a participação da outra parte. O argumento contribui para isso, já que para Habermas, o bom argumento é aquele que trata do direito de um interessado sem desconsiderar o que vai ser feito para assegurar o direito da outra parte.

Isso lembra o que deveria ser feito pelos empreendedores nos estudos e nas audiências públicas referentes à barragem, que, na realidade, não disseram o que vai ser feito para as comunidades tradicionais e quilombolas que serão atingidas, no sentido de respeitar seus direitos. Os empreendedores não estão considerando o direito como um sistema coerente de normas, como Habermas defende, onde não se aplica apenas uma lei específica, mas todo o conjunto de direitos deve ser considerado, inclusive diversos direitos constitucionais e legais das comunidades locais.

Em sua teoria do discurso jurídico, Habermas se baseia na democracia do diálogo para a resolução dos conflitos e construção de consensos. O diálogo pressupõe uma igualdade procedimental, em que as partes devem possuir as mesmas condições: mesma linguagem, querer ouvir e depois ser ouvido e outras regras de igualdade para que haja uma comunicação. De acordo com isso, as populações locais podem ser ouvidas ao serem colocadas na mesma posição em que os empresários, nem superiores, nem subordinadas.

Isso também se relaciona com a discussão que Habermas faz sobre autonomia pública e privada. Para o autor, “a autonomia privada dos cidadãos não pode ser sobreposta e nem subordinada à sua autonomia política” (HABERMAS, 2003, p.138), isto é, ainda que os governos utilizem o argumento da supremacia do interesse público, este não pode ser válido se não contemplar a autonomia dos sujeitos afetados.

Conclusão

Os procedimentos até agora adotados para a instalação da barragem Castelhano precisam ser repensados e reelaborados, visto que em nenhum momento contam com a possibilidade de não-construção apontada pelos afetados. Além disso, as diversas legislações que o país possui para proteger as comunidades tradicionais e quilombolas não estão sendo levadas a sério, pois é evidente a forma desrespeitosa como os atingidos estão sendo tratados: apenas como objetos; simples e fáceis de remanejar.

Ao se colocar lado a lado os argumentos a favor e contra a barragem, é nítido que a defesa das comunidades prevalece, mas isso não quer dizer que é preciso desconsiderar a hipótese de desenvolvimento econômico. Não incorrerei no mesmo erro dos empreendedores da barragem, mas destaco que existe uma gama de alternativas de desenvolvimento possíveis de ser implantadas na hipótese de não-construção da barragem, enquanto que não haverá alternativa além do descumprimento da Constituição e de diversos direitos das populações, caso a barragem seja instalada.

As teorias aqui presentes e seus autores podem ter entre si alguns pontos de discordância, porém todos eles contribuíram com parte do seu pensamento de forma a se complementarem, seja para censurar o direito naquilo que for cabível, seja para reafirmá-lo quando necessário. O que eles teorizaram no passado não deixou de ter aplicações no presente e ainda podem ser úteis na proposição de caminhos a seguir frente às complexidades da atualidade. Operar o direito é justamente isso: fazer a realidade ser explicável por teorias e ao mesmo tempo, propor saídas inclusivas que solucionem os conflitos e construam consensos.

 

Referências
BECK, U. In: GIDDENS, A. Modernização reflexiva. Política, tradição e estética na ordem social moderna, São Paulo: UNESP, 1997.
BRASIL. Artigo 68 da Constituição Federal – 1988. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, XX – 1988.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Editora Saraiva, 1996. 200 p.
BRASIL. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 de novembro de 2003.
BRASIL. Ministério Público Federal. Ação Civil Pública (Processo nº 21295-73.2011.4.01.4000). Procurador: Marco Aurélio Adão. Teresina, 17 de outubro de 2011. Disponível em: < http://www.prpi.mpf.gov.br/www/arquivos/acp/ACP-Aneel-rio-parnaiba.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2011
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade, vol. I. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e costume na sociedade selvagem. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa oficial do estado, 2003.
MARX, Karl; ENGELS, Friendrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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ROULAND, Norbert (org.). Direito das minorias e dos povos autóctones. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
 
Nota:
 
[1] Trabalho orientado pela Profa. Dra. Maria Sueli Rodrigues de Sousa, Profª Adjunta da UFPI – Departamento de Ciências Jurídicas – DCJ, Doutora em Direito, Estado e Constituição-UnB


Informações Sobre o Autor

Débora Raquel Martins da Silva

Acadêmica de Direito na Universidade Federal do Piauí – UFPI, Bolsista de Iniciação Científica pelo programa PIBIC-UFPI


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