O benefício assistencial e suas questões controvertidas

Resumo: O presente trabalho analisa as principais controvérsias relacionadas ao benefício de prestação continuada previsto no art. 20 da Lei 8.742/93, apontando tendências jurisprudenciais relativas ao tema.


Sumário: 1. Introdução; 2. A interpretação da dupla incapacidade e a Súmua nº 30 da AGU; 3. O critério objetivo para aferição da hipossufiência; 4. Aplicação por analogia da Lei nº 10.741/2003; 5. Conclusão.


1. Introdução


A Assistência Social, por longo tempo encarada como atividade exercida por grupos não relacionados às estruturas de governo, chegou ao status de política pública destinada a proporcionar aos cidadãos com renda inferior ao mínimo legal condições de inclusão na sociedade.


Dentro dessa linha de entendimento, afigura-se importante medida a instituição do amparo assistencial, destinado àqueles que não possuem condições mínimas de sobrevivência.


Os legitimados ao recebimento do benefício assistencial são, de acordo com o artigo 203, inciso V da Constituição da República, aqueles que lutam com a impossibilidade de meios de prover à própria subsistência e de sua família, bem como aqueles que ostentam a qualidade de idosos ou deficientes.


A assistência social é a estratégia social adotada para oferecer aos carentes uma forma de existência digna, proporcionando o atendimento às necessidades básicas e mais urgentes da vida humana, para, desta forma, operacionalizar sua inclusão na sociedade.[1]


A concepção de direitos fundamentais adotada pelo constituinte brasileiro traz uma série de valores, tais como: dignidade da pessoa humana, cidadania, soberania popular e no valor social do trabalho. Em sede doutrinária, os direitos fundamentais têm sido classificados em direitos de defesa e direitos a prestações, estes correspondendo a uma atuação positiva do Estado, objetivando a existência digna das pessoas.[2]


É relevante a noção de mínimo existencial no tocante aos chamados direitos sociais, apta a garantir a dignidade humana a partir dos valores da liberdade, da igualdade de chances e da solidariedade gerenciada. O conteúdo do mínimo existencial resguarda a natureza de direitos humanos de algumas prestações sociais positivas do Estado de caráter preexistente, inalienável e universal, e é devido a todos os homens que se encontrem em situação de necessidade.[3]


Se, por um lado, o Estado não se pode furtar a proporcionar as prestações sociais mínimas, não se pode esquecer que essa meta de justiça social depende da presença de condições materiais.[4]


A assistência social encontra sede constitucional no Título que trata da Ordem Social:


“Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.    Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: I – universalidade da cobertura e do atendimento; II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV – irredutibilidade do valor dos benefícios; V – eqüidade na forma de participação no custeio; VI – diversidade da base de financiamento; VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.”[5]


Prevista nos artigos 203 e 204 da Constituição da República, a Assistência Social foi regulamentada pela Lei 8.742/93[6], norma que ficou conhecida como Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS. Política de seguridade social não contributiva, trata-se do elemento do tripé da seguridade social destinado diretamente a proporcionar o mínimo social.


No cerne da assistência social está o que Sérgio Pinto Martins considera um postulado da seguridade social: a solidariedade.[7]


Assim Marcelo Leonardo Tavares define a assistência social:


“plano de prestações sociais mínimas e gratuitas a cargo do Estado para prover pessoas necessitadas de condições dignas de vida. É um direito social fundamental e, para o Estado, um dever a ser realizado por meio de ações diversas que visem atender às necessidades básicas do indivíduo, em situações críticas da existência humana, tais como a maternidade, infância, adolescência, velhice e para pessoas portadoras de limitações físicas.”[8]


Na redação do art. 203, V da Constituição da República:


“Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;  V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”.[9]


Assim dispõe o artigo 4º da Lei 8.742/93:


“Art. 4º A assistência social rege-se pelos seguintes princípios: I – supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica; II – universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas; III – respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade; IV – igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais; V – divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão.”[10]


Como já mencionado anteriormente, o art. 203, V da Constituição, norma de eficácia limitada, foi regulamentado pela Lei 8.742/93. Referida norma estabeleceu critérios para concessão do benefício de prestação continuada:


“Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.”


No caput do artigo 20 da norma em comento vê-se a presença de dois requisitos alternativos: ser portador de deficiência ou idoso.


Ainda:


Art. 20 § 1º Para os efeitos do disposto no caput, entende-se por família a unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes. § 2º Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho. § 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo. § 4º O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o da assistência médica”.[11]


Assim, verifica-se que o art. 20 da referida norma estabelece que o benefício de prestação continuada será prestado ao deficiente ou idoso que não possuir condições de prover sua subsistência ou tê-la provida por sua família. Saliente-se que o conceito de família deve ser buscado no artigo 16 da Lei 8.213/91:


Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:  I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido; II – os pais;  III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido;”[12]


2. A interpretação da dupla incapacidade e a Súmua nº 30 da AGU


Em conformidade com o § 2º do artigo 20 da LOAS, o portador de deficiência é aquele incapaz para a vida independente e para o trabalho.


Interessante evolução interpretativa ocorreu nesse aspecto. Sempre se afirmou que não bastaria apenas a impossibilidade de exercer a atividade laborativa, mas também a prova de incapacidade para a vida independente.[13] Atualmente, contudo, entende-se que a incapacidade para o trabalho já é suficiente para caracterizar a incapacidade para a vida independente, entendimento inclusive constante no Enunciado AGU Nº 30, de 09 junho de 2008, de observância obrigatória pelos Procuradores Federais responsáveis pela defesa do INSS:


“A incapacidade para prover a própria subsistência por meio do trabalho é suficiente para a caracterização da incapacidade para a vida independente, conforme estabelecido no art. 203, V, da Constituição Federal, e art. 20, II, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993.”


Trata-se de reconhecimento de entendimento que melhor atende aos comandos constitucionais pertinentes à dignidade humana, também refletido na Súmula 29 da Turma Nacional de Uniformização:


“Para os efeitos do art. 20, § 2º, da Lei n. 8.742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilita de prover ao próprio sustento”.


A grande vantagem prática da Súmula da Advocacia-Geral da União é o fato de liberar os advogados públicos de manejarem recursos relacionados a essa questão já superada, em detrimento das necessidades fundamentais dos demandantes, colaborando com a celeridade da prestação jurisdicional.


Além disso, tendo em vista excelente trabalho preventivo que está sendo implementado pela Procuradoria-Geral Federal, a aplicação do entendimento sumulado em breve irá repercutir na quantidade de indeferimentos em sede administrativa.


Sem dúvida, tal atitude revela a disposição de conferir à advocacia pública um caráter institucional que objetiva garantir os direitos fundamentais dos cidadãos.


3. O critério objetivo para aferição da hipossufiência


No tocante ao requisito da hipossuficiência econômica do requerente, deve ser observado o § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93, que considera carecedor do benefício o idoso ou portador de deficiência que não tenha como manter sua subsistência ou tê-la provida por sua família, tendo como renda per capita familiar o valor inferior a ¼ do salário mínimo em vigor.


É no critério fixado em ¼ do salário mínimo como limitador de renda per capita familiar, que tem ocorrido controvérsia. É comum a simples e precipitada alegação de que o INSS utiliza interpretação por demais literal da norma legal. Eis o entendimento da Autarquia consubstanciado na Instrução Normativa nº 20/2007:


Art. 624. Para efeito da análise do direito ao benefício, serão consideradas como: (Alterado pela INSTRUÇÃO NORMATIVA INSS/PRES Nº 29, DE 4 DE JUNHO DE 2008 – DOU DE 6/6/2008)


I – família: o conjunto de pessoas que vivam sob o mesmo teto, na forma do art. 16 da Lei nº 8.213/91, assim entendido o cônjuge, o companheiro ou a companheira, os pais, os filhos e irmãos não emancipados de qualquer condição, menores de 21 (vinte e um) anos ou inválidos, e os equiparados a filhos, caso do enteado e do menor tutelado;


II – pessoa portadora de deficiência: aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho, em razão de anomalias ou lesões irreversíveis de natureza hereditária, congênita ou adquirida;


III – família incapacitada de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa: aquela cujo cálculo da renda per capita, que corresponde à soma da renda mensal bruta de todos os seus integrantes, dividida pelo número total de membros que compõem o grupo familiar, seja inferior a um quarto do salário mínimo.”


Não se pode olvidar, todavia, que a Autarquia não pode se descurar da observância do princípio da legalidade, motivo que impede que seus servidores concedam benefícios nas hipóteses em que não se mostram preenchidos os requisitos legais.


Saliente-se que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema na ADIN n.º 1.232, que questionava exatamente essa rigidez na definição do critério objetivo de ¼ do salário-mínimo como renda per capita familiar, como suposta afronta à Constituição. O Supremo Tribunal Federal, como se sabe, entendeu constitucional a norma combatida. A ementa deixou bem clara a posição do Supremo de que a lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado.


O STJ, por sua vez, entendeu que a análise deveria ser feita caso a caso, para que a aferição do critério miserabilidade fosse feita de forma mais completa e com análise mais detalhada do caso concreto:


“Ementa: PREVIDENCIÁRIO. ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO DA PRESTAÇÃO CONTINUADA. REQUISITOS LEGAIS. ART. 203 DA CF. ART. 20, § 3º, DA LEI Nº 8.742/93. I – A assistência social foi criada com o intuito de beneficiar os miseráveis, pessoas incapazes de sobreviver sem a ação da Previdência. II – O preceito contido no art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93 não é o único critério válido para comprovar a condição de miserabilidade preceituada no artigo 203, V, da Constituição Federal. A renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário-mínimo deve ser considerada como um limite mínimo, um quantum objetivamente considerado insuficiente à subsistência do portador de deficiência e do idoso, o que não impede que o julgador faça uso de outros fatores que tenham o condão de comprovar a condição de miserabilidade da família do autor. Recurso não conhecido. (Acórdão RESP 314264 / SP ; RECURSO ESPECIAL 2001/0036163-3 DJ DATA:18/06/2001 PG:00185 Relator Min. FELIX FISCHER (1109) Orgão Julgador T.5 – QUINTA TURMA)” (Grifo nosso)[14]


A Lei 10.689/2003[15], que dispõe sobre a criação do Programa de Acesso a Alimentação, tem sido invocada, a nosso sentir equivocadamente, como novo critério valorativo para concessão do benefício assistencial. Tem-se recorrido à analogia, com base no art. 2º § 2º:


“Art. 2o O Poder Executivo definirá: I – os critérios para concessão do benefício; II – a organização e os executores do cadastramento da população junto ao Programa;  III – o valor do benefício por unidade familiar; IV – o período de duração do benefício; e  V – a forma de controle social do Programa. § 1o O controle social do PNAA será feito: I – em âmbito nacional, pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA; II – em âmbito estadual e no Distrito Federal, por um dos Conselhos Estaduais da área social, em funcionamento, ou por um Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA Estadual, instalado pelo Poder Público Estadual, nos termos de regulamento; e III – em âmbito local, por um dos Conselhos Municipais da área social, em funcionamento, ou por um Comitê Gestor Local – CGL, instalado pelo Poder Público Municipal, nos termos de regulamento. § 2o Os benefícios do PNAA serão concedidos, na forma desta Lei, para unidade familiar com renda mensal per capita inferior a meio salário mínimo. § 3o Para efeito desta Lei, considera-se família a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e mantendo sua economia pela contribuição de seus membros. § 4o O recebimento do benefício pela unidade familiar não exclui a possibilidade de recebimento de outros benefícios de programas governamentais de transferência de renda, nos termos de regulamento.       § 5o Na determinação da renda familiar per capita, será considerada a média dos rendimentos brutos auferidos pela totalidade dos membros da família, excluídos os rendimentos provenientes deste Programa, do Bolsa-Alimentação, e do Bolsa-Escola.”[16] (grifo nosso)


Para os que defendem referida tese, se para o PNAA o critério é de renda per capita é inferior a meio salário mínimo, gerando novo conceito de necessitado.


A interpretação que parece correta, com a devida vênia, é a de que existe um critério objetivo específico estabelecido em norma especial e que deve ser observado. Reporta-se, nesse sentido, aos termos da ADI 1.232:


“Inexiste a restrição alegada em face ao próprio dispositivo constitucional que reporta à lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso. Esta lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado.” (ADI 1.232, Rel. p/ o ac. Min. Nelson Jobim, julgamento em 27-8-98, DJ de 1-6-01)”


Resta evidente que o critério de ¼ não é o mais apropriado à proteção à dignidade humana, mas qualquer alteração deve ser implementada em sede legislativa. Tal entendimento não significa defender que, em casos específicos, não se possa aferir por outros meios a miserabilidade, como tem entendido o STJ e o próprio STF.


Parece correta, portanto, a opinão ponderada de Fabio Cristiano Woerner Galle:


“Quanto ao INSS, e por simples decorrência, nenhuma pecha de ilegalidade há de ser inflingida nos casos em que recusa a prestação quando constata o extravasamento da renda per capita qualificada em lei. Por fim, o judiciário federal identicamente age com acerto ao reconhecer que a necessidade é algo que o demandante pode comprovar no caso concreto, mesmo em se tratando de um núcleo de viventes cuja renda não se enquadre no permissivo do art. 20, § 3º, da LOAS. Para que assim o faça, realmente não precisa desrespeitar a autoridade da decisão do Supremo Tribunal, pois este, como pretendemos já ter deixado claro, pronunciou-se em controle abstrato de constitucionalidade, e a norma realmente não apresentava qualquer dessintonia com o ordenamento. Situação muito diversa seria aquela em que a lei, julgada inconstitucional e aniquilada do sistema, ainda fosse aplicada por eventual recalcitrante. Não vemos nisso, com a vênia de quem pensa o contrário, qualquer julgamento contrário à lei, pois casos há em que um núcleo familiar percebe mais que o salário mínimo, e dispende, contudo, a majoritária parte dos ganhos com a provisão de criança deficiente. Basta atentar às máximas do mundo como ele é para saber-se que, não fosse suficiente a própria condição debilitada dos destinatários do texto constitucional (art. 203, V), ainda são requeridos gastos de vulto para com essas pessoas.”[17]


4. Aplicação por analogia da Lei nº 10.741/2003


O terceiro elemento polêmico do tema é a impossibilidade de acumulação determinada pelo § 4º do artigo 20 da Lei 8.742/93 e a aplicação por analogia do parágrafo único do artigo 34 da Lei nº 10.741/2003.


Embora o benefício assistencial possa ser conferido a mais de um membro de um mesmo núcleo familiar, a partir da primeira concessão o valor deste benefício assistencial passa a integrar a renda mensal per capita do núcleo familiar para efeito de cálculo de benefício requerido posteriormente.


Consulte-se, sobre o tema a tema Ação Civil Pública nº 2004.38.03.003762-5. A sentença, fundada no Estatuto do Idoso, condenou o INSS e a União a não computarem na renda familiar do idoso ou portador de necessidades especiais, para fins de concessão do benefício assistencial previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (Loas – Lei 8.742/93), o valor de qualquer benefício previdenciário ou assistencial igual a um salário mínimo.


O parágrafo único do artigo 34 da Lei nº 10.741/2003 determina que o valor do benefício assistencial já concedido a qualquer membro de uma família não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Lei Orgânica da Assistência Social(LOAS).


Argumenta-se que a não extensão da referida norma aos segurados que gozam de benefícios previdenciários seria injusta, uma vez que o legislador estaria privilegiando aqueles que nunca contribuíram em detrimento dos que efetivamente contribuíram à seguridade social. Trata-se de argumentação evidentemente incorreta, tendo em vista que não se pode confundir assistência social, de caráter não contributivo, com previdência social, de caráter contributivo.


Referida abordagem do tema, com recurso a uma duvidosa analogia, fere a isonomia, por igualar pessoas em situações desiguais, conforme argumenta José Aldízio Pereira Júnior:


“(…) a teor do entendimento judicial que sendo adotado, se algum membro do conjunto familiar do idoso receber um benefício previdenciário, como do segurado, o valor desse benefício não será também computado no cálculo da renda daquele grupo familiar, para fins de concessão do auxilio assistencial a um outro membro dessa mesma família. Ao aplicar analogicamente a exceção prevista no parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso ao caso em tela, permitindo que verba de natureza previdenciária ou salarial seja desconsiderada no calculo da renda familiar, juiz estaria sepultando o § 3º, do art. 20, da Lei 8.742/93, já que seguindo este entendimento, toda e qualquer verba, seja de natureza assistencial, previdenciária, ou salarial deixaria de entrar no computo deste beneficio, ampliando, demasiadamente a abrangência do Amparo Assistencial.”[18]


No mesmo sentido tem se manifestado a Jurisprudência:


“PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA REQUISITOS LEGAIS. ART. 20, § 3º, DA LEI Nº 8.742/93. REEXAME DO CONJUNTO PROBATÓRIO. SÚMULA Nº 7 DO STJ. ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO, DO ESTATUTO DO IDOSO. NÃO INCIDÊNCIA. ANÁLISE DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL. I – Se o v. acórdão hostilizado, com base no material cognitivo constante dos autos, consignou que a autora não faz jus ao benefício assistencial pleiteado, rever tal decisão implicaria reexame de prova, o que não é possível na instância incomum (Súmula 7-STJ). II – O cônjuge da autora não recebe benefício da assistência social, não se aplicando o parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso. III – Não cabe o exame de matéria constitucional em sede de recurso especial, conquanto se admite apenas a apreciação de questões referentes à interpretação de normas infraconstitucionais. Agravo regimental desprovido. (AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 868.590 – SP (2006/0155371-0) -RELATOR : MINISTRO FELIX FISCHER – AGRAVANTE : APARECIDA CONCEIÇÃO BENEVENTE REBELLATI – AGRAVADO : INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS – 28 de novembro de 2006 (Data do Julgamento – MINISTRO FELIX FISCHER).”


Impende salientar, por derradeiro, que a questão está sendo analisada mais uma vez pelo STJ, desta vez na PETIÇÃO Nº 7.203 – PE (2009/0071096-6), extraindo-se a seguinte fundamentação:


“(…) a Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência consignou que, na aferição da renda familiar do autor da ação de concessão de beneficio de prestação continuada, não deve ser incluída a renda percebida por integrante do grupo que, tendo 65 anos de idade ou mais, auferir exclusivamente benefício previdenciário, no valor de um salário mínimo. Contudo, com razão o peticionário, pois este Superior Tribunal tem entendimento no sentido de que somente o benefício assistencial recebido por outro membro do grupo familiar deve ser excluído do cálculo da renda familiar per capita, nos termos do artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso.”


5. Conclusão


O benefício assistencial de prestação continuada apresenta-se, portanto, como assunto ainda permeado por controvérsias. No que tange ao duplo requisito para configuração da incapacidade, salienta-se a importância da novel súmula da AGU, reconhecendo a incapacidade para a vida independente como resultado da própria incapacidade laboral.


No tocante à questão da limitação de ¼ do salário mínimo para verificação da miserabilidade, tem-se verificado uma flexibilização do entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal, que não pode ser acompanhado pelo INSS devido à limitação da legalidade na administração pública. Por esse motivo, entende-se que eventual mudança no critério objetivo deve ser realizada pelo legislativo, sob pena de afronta à Constituição.


Por derradeiro, não se afigura correto o emprego da analogia para concessão de benefício assistencial, nas hipóteses em que existe disposição legal específica a dispensar tal recurso, como é o caso aqui analisado.


Mostra-se evidente, à luz da realidade social, a necessidade de tutela à dignidade humana, como exposto inicialmente nesse trabalho. Deve-se, contudo, ter o cuidado de fazê-lo em consonância com os demais ditames constitucionais, observando-se os comandos legais e evitando-se saídas casuísticas e arbitrárias.


 


Referências:

BOTELHO, Marcos César. O benefício assistencial de prestação continuada. Jus Navigandi, Teresina, a.8, n.179, 01 jan. 2004. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4654>. Acesso em 19 de junho de 2009.

BRASIL, Acórdão RESP 314264/SP . RECURSO ESPECIAL 2001/0036163-3 DJ DATA:18/06/2001 PG:00185 Relator Min. FELIX FISCHER (1109) Orgão Julgador T.5 – QUINTA TURMA. Disponível em <http://www.stj.gov.br/webstj/Processo/Jurisp/juri.asp>. Acesso em 19 de junho de 2009.

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BRASIL, Lei 8.213 de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br>. Acesso em 19 de junho de 2009.

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BRASIL. Lei 10.689 de 13 de junho de 2003. Cria o Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 19 de junho de 2009.

GALLE, Fabio Cristiano Woerner. Benefício assistencial do art. 203, V, da CRFB. Validade da limitação da renda familiar e a cizânia instaurada nos meios judiciários. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1667, 24 jan. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10882>. Acesso em: 19 jun. 2009.

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

PEREIRA JÚNIR, José Aldízio. Revista da Advocacia-Geral da União. Ano VIII nº 76, de maio de 2008.

SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

TAVARES, Marcelo Leonardo. Previdência e Assistência Social: Legitimação e Fundamentação Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

 

Notas:

[1] SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 60.

[2] TAVARES, Marcelo Leonardo. Previdência e Assistência Social: Legitimação e Fundamentação Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 183.

[3] Ibidem. p. 183.

[4] Ibidem. p. 265.

[5] BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Artigo 194. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 19 de junho de 2009.

[6] BRASIL, Lei 8.742 de 07 de dezembro de 1992. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 19 de junho de 2009.

[7] MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 75.

[8] TAVARES, Marcelo Leonardo. Op. cit., p. 215/216.

[9] BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Artigo 203. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 19 de junho de 2009.

[10] BRASIL, Lei 8.742 de 07 de dezembro de 1992. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Artigo 4º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 19 de junho de 2009.

[11] BRASIL, Lei 8.742 de 07 de dezembro de 1992. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Artigo 20. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 19 de junho de 2009.

[12] BRASIL, Lei 8.213 de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Artigo 16. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br>. Acesso em 03 de agosto de 2007.

[13] BOTELHO, Marcos César. O benefício assistencial de prestação continuada. Jus Navigandi, Teresina, a.8, n.179, 01 jan. 2004. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4654>. Acesso em 19 de junho de 2009.

[14] BRASIL, Acórdão RESP 314264/SP . RECURSO ESPECIAL 2001/0036163-3 DJ DATA:18/06/2001 PG:00185 Relator Min. FELIX FISCHER (1109) Orgão Julgador T.5 – QUINTA TURMA. Disponível em <http://www.stj.gov.br/webstj/Processo/Jurisp/juri.asp>. Acesso em 19 de junho de 2009.

  [15]  BRASIL. Lei 10.689 de 13 de junho de 2003. Cria o Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 19 de junho de 2009.

[16] BRASIL. Lei 10.689 de 13 de junho de 2003. Cria o Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 19 de junho de 2009.

[17] GALLE, Fabio Cristiano Woerner. Benefício assistencial do art. 203, V, da CRFB. Validade da limitação da renda familiar e a cizânia instaurada nos meios judiciários. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1667, 24 jan. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10882>. Acesso em: 19 jun. 2009.

[18] PEREIRA JÚNIR, José Aldízio. Revista da Advocacia-Geral da União. Ano VIII nº 76, de maio de 2008.


Informações Sobre o Autor

Sandro José de Oliveira Costa

Procurador Federal. Professor Universitário e Mestrando em Direito (Faculdade de Direito de Campos)


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