Resumo: O presente artigo tem como objetivo fazer um estudo acerca dos caminho de reconhecimento de novos direitos fundamentais, em especial o Direito Humano à Alimentação. Para isso serão abordados autores como Alexy, Gadamer, Betti, Habermas entre outros, a fim de traçar um panorama acerca das modificações de perspectivas interpretativas na transição do projeto da modernidade para a pós – modernidade. Em razão da mudança desse paradigma, inclui-se, pois, no debate questões relacionadas à relatividade do conceito de verdade e, sobretudo, ao papel do intérprete do direito, uma vez que a era pós – moderna propugna a dinamicidade do direito.
Palavras chave: Direitos Fundamentais; interpretação; Verdade;
Abstract: This article aims to make a study on the way to recognition of new rights, especially the Human Right to Food. For authors this will be addressed as Alexy, Gadamer, Betti, Habermas, among others, to give an overview about the changes of interpretive perspectives on the transition of the project of modernity to the post – modernity. Because of this paradigm shift is included because in the debate issues related to the relativity of the concept of truth and especially the role of interpreter of the law, since the post – modern advocates of the dynamic law.
Key words: Fundamental Rights; interpretation; truth;
Sumário: Introdução. I. Revisão da teoria dos direitos fundamentais. 1.1. A Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy e o diálogo com outras. 1.2. O conceito de norma e sua influência na possibilidade de abertura constitucional. 1.3. Considerações acerca das visões procedimentalista dos direitos fundamentais. 2. A influência do neo-constitucionalismo para o reconhecimento de novos direitos. 2.1. Constitucionalismo: Origem e conceito. 2.2. Neoconstitucionalismo. 2.3. Ser humano: fim do Direito, formação de um Estado Democrático de Direito. II. O reconhecimento do direito humano à alimentação adequada como um direito fundamental. 3.1. O Direito Humano Fundamental à Alimentação na Adequada na Constituição de 1988. 3. 2. As dimensões da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Considerações Finais. Referência Bibliográfica.
INTRODUÇÃO
A presente monografia visa fazer uma análise acerca do caminho para o reconhecimento do direito humano à alimentação adequada como um direito fundamental. Para isso, far-se-á um panorama acerca da constituição dessa nova forma hermenêutica passando por autores com Alexy e a sua teoria da argumentação, Schleiermacher com a sua hermenêutica geral, Habermas e sua noção de verdade e consenso, Dworkin, entre outros.
O trabalho se propõe, pois, à um estudo do conceito de verdade como influenciador e possibilitador de uma abertura constitucional e, consequentemente, a inclusão de novos direitos no rol de direitos fundamentais.
Como a nova hermenêutica se insere em um momento de transição histórica, isto é, do século XIX ao XX abordar-se-á, também, a pós-modernidade como período de contribuição de formação de um novo olhar sob a concepção hermenêutica.
O presente trabalho traz à baila tema amplamente debatido e não tem a pretensão de encerrar a discussão. Se propõe, todavia, a fazer uma leitura do temas pelos autores já citados e contribuir com o debate sendo mais uma leitura acerca do tema.
Nesse sentido, questionamentos como o papel do hermeneuta, a transição do período moderno ao pós-moderno, o princípio da dignidade humana como pilar para uma sociedade democrática, serão essenciais no desenvolvimento do tema.
Esse é, entretanto, um tema que tem implicações não apenas na área jurídica, mas também nas áreas da sociologia, da política, etc. Todavia, não se pretende com o presente trabalho abordar a questão da interpretação jurídica com base no principio da dignidade humana em outra perspectiva que não à jurídica.
Importante salientar que a era pós-moderna remete a sociedade a uma ordem plural, isto implica em não mais uma sociedade monista, estática, uniforme. Ao contrário a era pós – moderna concebe a realidade a partir de sua diversidade. Essa não é mais, pois, uma característica que deve ser abolida, ao revés deve ser encarada como parte do todo.
Em sendo assim, o diferente não é mais visto como algo que deve ser extirpado da sociedade, uma vez que o pressuposto básico de uma sociedade pós – moderna é o respeito à dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, o intéprete do direito deve pautar sua leitura de mundo na perspectiva do homem e para o homem, já que este é o centro das atenções na atualidade. Esse, entretanto, está imerso em um mundo de linguagem, logo, somente através dela é possível dar sentido às leis, com o objetivo de transformação social.
Nesta esteira, o juiz assume, também, o papel social, já que as suas interpretações atuam direta ou indiretamente na realidade das partes que compõem cada caso concreto.
É com base nessa perspectiva de modificação social que a decisões jurídicas devem buscar soluções mais justas a cada caso concreto, isso incluem decisões acerca do direito humano à alimentação adequada.
Observe que o foco do presente trabalho reside na idéia de que o caminho para reconhecimento de novos direitos extrapolam a esfera do discurso jurídico. Esses direitos exigem muito mais do que apenas a inserção em uma Carta Constitucional. Eles pugnam pela efetividade. O problema da pós-modernidade relacionado ao direito não está mais atrelado à fundamentação ou positivação de novos direitos, mas sim na realização dos mesmos.
I. REVISÃO DA TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
1.1 A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE ROBERT ALEXY E O DIÁLOGO COM OUTRAS
Alexy afirma que grande parte das disciplinas das ciências humanas consegue formular uma teoria dos direitos fundamentais. Ele enfatiza, entretanto, que o objeto de análise de seu livro é a teoria jurídica geral dos direitos fundamentais da Constituição alemã.
Segundo ele essa teoria decorre de três atributos [1] mencionados: ela é, em primeiro lugar, uma teoria dos direitos fundamentais da Constituição alemã; em segundo lugar, uma teoria jurídica; e, por fim, uma teoria geral.
Nesse sentido, a teoria dos direitos fundamentais concretiza-se como teoria dogmática, isso implica que ela pode ser vista sob três perspectivas, a saber: a analítica, a empírica e a normativa. A dimensão empírica engloba além do conceito de direito um conceito de validade do positivismo jurídico. Já a dimensão normativa relaciona-se à crítica da práxis jurídica e jurisprudencial. Essa dimensão tem, pois, como cerne as questões relacionadas a qual decisão é a mais correta a um determinado caso concreto.[2]
Para Alexy a dogmática jurídica é uma tentativa de se dar uma resposta racionalmente fundamentada a questões axiológicas que foram deixadas em aberto pelo material normativo previamente determinado[3] .
É nessa perspectiva que surgem os problemas relacionados aos valores, ou melhor, aos problemas de fundamentação e de complementação. Segundo Alexy, os problemas de fundamentação relacionam-se à questão do porque da obediência à Constituição.
Alexy é enfático ao afirmar que o caráter prático da ciência do direito somente é atingido quando se reúnem as três dimensões acima mencionadas. A ciência do direito deve ser, pois, uma disciplina integradora e multidimensional[4]
Nessa perspectiva, ele leciona que para se obter uma resposta a uma questão sobre o que deve ser juridicamente correto é necessário conhecer o direito positivo. O conhecimento do direito positivo válido é tarefa da dimensão empírica. Nos casos mais problemáticos, o material normativo que pode ser obtido por meio da dimensão empírica não é suficiente para fundamentar um juízo concreto de dever ser. Isso leva à necessidade de juízos de valor adicionais e, com isso, à dimensão normativa. [5]
Nessa esteira, concretiza-se, pois, o caráter argumentativo que é dado à decisões com o intuito de alcançar um direito mais justo e adequado a cada caso concreto.
É através da dimensão argumentativa, por intermédio, da utilização de princípios que é possível dar uma abertura ao direito a ponto de encará-lo não como um fenômeno engessado na lei, mas sim como um organismo vivo capaz de se modificar e evoluir, a fim de cumprir a sua finalidade social.
Assim, também, postula Soares ao afirmar que a lei é um ponto de partida importante no processo de aplicação do direito, mas este é muito mais amplo do que um procedimento silogístico de adequação entre o fato e a norma abstrata. [6] Seguindo essa perspectiva argumentativa, Maccormick[7] afirma que uma ordem institucional, na vertente da ordem normativa requer uma interpretação em virtude da contínua necessidade de adaptação dessa ordem aos problemas práticos que se atualizam com o tempo. Esse processo interpretativo, consoante Maccormick, envolve os valores e interesses dos indivíduos, isto é, circunda as lutas sociais de épocas distintas e necessidade diferentes e comuns.
Nessa esteira Maccormick afirma que[8] “ não importa quando cuidado seja aplicado, contudo, as formulações de regras que esses materiais fornecem como base para a ação governamental destinada a efetivar direitos públicos ou privados serão sempre sujeitos a alteração, e, algumas vezes, serão de fato alteradas pelo questionamentos levantados pela defesa. A certeza do direito é, portanto, uma certeza excepcional, sujeita a mudanças.”
Neste diapasão, assevera-se que Alexy concebe as teorias dos direitos fundamentais como uma teoria integradora. É integradora, pois inclui argumentação como alicerce fundamental para a concretização de direitos. Alexy adverte, entretanto, que para constituir uma teoria integrativa é preciso passar por uma teoria estrutural. Essa tem base na estrutura dos direitos fundamentais.
Seguindo essa perspectiva, Alexy afirma que se não há clareza acerca da estrutura dos direitos fundamentais e de suas normas, não é possível haver clareza na fundamentação nesse âmbito.[9]Ele reafirma, então, o seu posicionamento no que diz respeito ao fato de que a Ciência do Direito somente cumprirá sua tarefa se tornar-se uma disciplina multidimensional.
Essa multidimensionalidade caracteriza-se, pois, pela integração entre as várias ciências, isto é, entre as ciências políticas, econômicas, entre outras. A ciência do direito se reveste, portanto, de uma ciência multi, transdimensional, já que sua relação com outras ciências é evidente, bem como a necessidade de interpretação.
Dessa maneira também entende Dworkin ao afirmar que as decisões judiciais são passíveis de conterem /argumentos de princípios e argumentos de política.
1.2 – O CONCEITO DE NORMA E SUA INFLUÊNCIA NA POSSIBILIDADE DE ABERTURA CONSTITUCIONAL
Consoante Alexy, o conceito de norma de direito fundamental deve ser considerado em uma amplitude maior do que o conceito de direito fundamental, assim o conceito de norma de direito fundamental é um conceito de norma e, como tal, compartilha de todos os problemas que são inerentes à esse. Ele enfatiza que o conceito de norma não está adstrito à ciência do direito. É um conceito corrente em outras ciências.
Desta forma, a concepção do conceito de norma varia conforme o entendimento que se tenha dela. Se concebê-la em um sentido subjetivo é ela conceituada como ato pelo qual se ordena ou se permite e, especialmente, se autoriza uma conduta; pode ser concebida também como uma expectativa de comportamento ou ainda como uma regra social.
Há também distinções semânticas que se relacionam ao conceito de norma, nessa perspectiva existe uma diferença entre norma e enunciado normativo. Nesse sentido, norma seria o significado de um enunciado normativo[10] .
Essa diferenciação se faz necessária uma vez que uma mesma norma por ser expressa, consoante Alexy, por diferentes enunciados. Da mesma forma, uma norma pode ser expressa sem que haja a expressão de um enunciado.
Nesse sentido Alexy postula que para compreender essa diferenciação, é suficiente dizer que com enunciados afirmativos se expressa que algo é, enquanto que com enunciados normativos se expressa que algo é devido, proibido. Se resumirmos as diferentes modalidades deônticas ao conceito de dever-ser, é possível dizer que enunciados afirmativos expressam algo que é, enquanto normativos expressam algo que deve ser.[11]
Há quem afirme que as normas não são passíveis de interpretação. Que esta atividade restringe-se aos enunciados normativos. As normas são, portanto, construídas a partir do momento de sua interpretação. Ganham, pois, vida com a atividade do hermeneuta.
Para Alexy as normas constituem-se em regras e princípios e, assim, é de fundamental importância para a teoria dos direitos fundamentais fazer a distinção entre essas duas formas de normas. Nesse sentido, ele afirma que a distinção entre regras e princípios, além de outras coisas, constitui um ponto de partida para a resposta acerca da possibilidade e dos limites da racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais.[12]
Ainda nesse processo de distinção, Alexy postula que tanto regras quanto princípios são normas, porque ambas dizem o que deve ser. Ambas podem ser formuladas por meio das expressões deônticas que implicam em noções de dever, da permissão e de proibição. [13]
Assim, um dos critérios que possibilita a distinção entre regras e princípios é o critério da generalidade. Esse critério traz como pressuposto a idéia de que os princípios são normas com grau de generalidade relativamente alto, enquanto o grau de generalidade das regras é relativamente baixo.
Ressalte-se que os princípios embora tenham uma carga valorativa, não se constituem como os valores. Assim, os princípios possuem força normativa cogente, ao passo que os valores não e isso significa que a noção de princípio está inserida no campo da deontologia, isto é, no campo do dever ser.
Alexy acredita que o critério correto capaz de distinguir as regras dos princípios é o critério ligado à noção qualitativa.
Nessa perspectiva é possível fazer inferência ao que postula Farias quando se posiciona acerca da existência dos princípios na Constituição de 1988. Ele afirma que os princípios constituem critérios objetivos do processo de interpretação-aplicação do direito, ao exigirem do operador jurídico a referência obrigatória aos mesmos, controlando-se, assim, a discricionariedade do intéprete aplicador evitando que este lance mão de valorações meramente subjetivas.[14]
Nesta esteira, infere-se que apesar dos princípios serem considerados mandamentos de otimização e, em razão disso, requerer uma maior ponderação no momento de sua aplicação, não implica em arbitrariedade. A ponderação exprime a tentativa de se alcançar a decisão mais justa a cada caso concreto.
A diferença, pois, entre regras e princípios está justamente na idéia de que os princípios são realizados na medida das possibilidades fáticas e jurídicas, ao passo que as regras devem ser satisfeitas.
O entendimento dos princípios como mandamentos de otimização amplia o olhar do direito no sentido de que as leis não são instrumentos capazes de darem todas as respostas à todas as demandas da sociedade.
Em sendo assim, os princípios surgem como um tipo de norma capaz de traçar diretrizes aos aplicadores do direito, na busca constante por uma decisão mais justa.
Dessa forma, conforme Farias,[15] os princípios cumprem um papel de limite da interpretação, uma vez que sua aplicação implica em ponderação, ou seja, em um processo argumentativo mais profundo, mais trabalhado. Impende ressaltar que o caráter principiológico da Constituição não diminui a sua força normativa obrigatória. Essa é, pois, uma discussão que já não há mais sentido, uma vez que os princípios já estão inseridos no campo da deontologia.
As diferenças entre as regras e os princípios requerem uma atitude distinta no momento em que houver um conflito ou uma colisão entre esses. Dessa forma, diante de um conflito entre regras, este somente poderá ser solucionado se houver a introdução de cláusulas de exceção, o que implica na invalidade de uma das regras colidentes.
Ao passo que, quando houver uma colisão entre princípios, não implicará em invalidade de um dos princípios colidentes e, sim, na aplicação de uma precedência. Isso se dá em virtude do critério utilizado para as regras ser um critério de validade, ao passo que o critério utilizado para os princípios é de peso.
Em razão disso as regras e os princípios possuem um caráter prima facie distinto. Aquelas possuem um caráter definitivo, enquanto essas não. Há que se enfatizar o fato de que o que fortalece o caráter prima facie dos princípios é sua carga argumentativa.
As regras constituem imperativos que no momento de uma colisão há que se introduzir uma cláusula de exceção. Essa resulta na invalidação de uma das regras colidentes. Ao passo que os princípios são mandamentos de otimização, o que implica em precedência de um à outro. Resulta isso, na idéia de sopesamento, isto é, na carga argumentativa.
Nesse sentido Alexy preceitua que o caráter prima facie que as regras adquirem em razão da perda desse caráter definitivo estrito é muito diferente daquele dos princípios. Um princípio cede lugar quando, em um determinado caso, concreto, um peso maior a um outro princípio antagônico. Já uma regra não é superada pura e simplesmente quando se atribui, no caso concreto, um peso maior ao princípio contrário ao principio que sustenta a regra.[16]
1.3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS VISÕES PROCEDIMENTALISTA E SUBSTANCIALISTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A teoria de Alexy é uma teoria que versa sobre o discurso dos possíveis, isso implica, pois, que a ponderação se opera, inclusive, no âmbito dos direitos fundamentais. Não há, portanto, direitos absolutos e externos às questões culturais e históricas.
Não há, consoante essa teoria, mais especificamente sobre aqueles que entendem a teoria de Alexy como uma teoria procedimentalista, espaço para discussões sobre a existência de discursos necessários. Esses deságuam na idéia de que há direitos que devem ser assegurados independente de quaisquer argumentos.
A teoria de Alexy postula que a ponderação é um instrumento discursivo essencial no âmbito dos direitos, sejam eles fundamentais ou não, sejam eles individuais ou coletivos.
Ressalte-se que, independente da visão que se tem acerca da teoria de Alexy, ambas postulam que a ponderação é o principal pilar da teoria dos direitos fundamentais de Alexy. Nesse sentido Alexy postula que uma restrição a um direito fundamental somente é admissível se, no caso concreto, aos princípios colidentes for atribuído um peso maior que aquele atribuído ao princípio de direito fundamental em questão.[17]
Importante observar que, consoante Alexy, a garantia do conteúdo essencial se dá através de um processo de sopesamento. Isso nos remete ao questionamento acera do mínimo existencial dos direitos. Questionamento esse que serve de base de discussão para inúmeros doutrinadores, mas que constitui ponto fundamental para o desenvolvimento do presente trabalho. Estariam os direitos fundamentais passíveis de ponderação ou teriam eles um núcleo inatingível? A inexistência de um núcleo inatingível seria capaz de esvaziar o conteúdo obrigacional dos poderes públicos?.
A resposta a esse questionamento não é pacifica nem fácil. É uma resposta complexa e que divide teóricos nas correntes procedimentalista e substancialista. Ambas postulam, como dito, visões diferentes acerca dos direitos fundamentais, mais especificamente no que diz respeito à existência ou inexistência de núcleos inatingíveis dos direitos fundamentais. Esses debates se acirram, em especial, por estarem intrinsecamente relacionados à questões orçamentárias.
Para fundamentar essa idéia, a teoria de Alexy formula duas teorias, a saber: a teoria absoluta e a teoria relativa. Segundo a teoria relativa, o conteúdo essencial é aquilo que resta após o sopesamento. Restrições que respeitam a máxima proporcionalidade não violam a garantia do conteúdo essencial nem mesmo se, no caso concreto, nada restar do direito fundamental. A garantia do conteúdo essencial é reduzida à máxima da proporcionalidade. Já segundo a teoria absoluta, cada direito fundamental tem um núcleo, no qual não é possível intervir em hipótese alguma.[18]
Ressalte-se, entretanto, que embora Alexy discorra em sua obra acerca da existência dessas duas teorias ele deixa claro que há que se incluir nesse caráter duplo, um terceiro elemento, a saber, a argumentação. Nesse sentido ele conclui que a garantia do conteúdo essencial, não cria em relação à máxima proporcionalidade, nenhum limite adicional à restringibilidade dos direitos fundamentais. Visto que ela é equivalente a uma parte da proporcionalidade, fornece ela mais uma razão a favor da vigência dessa máxima.[19]
É, pois, a argumentação que possibilita a legitimação do discurso, uma vez que este está pautado na aceitação de um discurso que é oriundo de um discurso prático geral.
Tal afirmação ganha claridade no momento em que Alexy afirma que um Estado Democrático se caracteriza por prestações estatais. Isso não implica, entretanto, que esses direitos à prestações não fiquem em perigo ora ou outra.
Em razão disso, Alexy afirma que seja qual for a concepção dos direitos fundamentas, isto é, seja uma concepção formal ou seja uma concepção material o preenchimento dos direitos fundamentais se dá unicamente com a tarefa argumentativa.
Assim, segundo, portanto, a teoria de Alexy, é com o exercício argumentativo e, sobretudo, com a possibilidade de sopesar que há chances de uma maior aproximação de uma decisão mais justa e adequada a cada caso concreto. Impende salientar, entretanto, que esse exercício opera-se através de um processo racional. Essa racionalidade pode ser compreendida como o uso de argumentos que sejam razoáveis[20].
Em face de tudo quanto exposto, infere-se, pois, com isso, que os direitos fundamentais, na perspectiva da constituição brasileira, estão expressamente previstos na Carta Magna, o que obriga os poderes darem efetividade àqueles direitos já consagrados, na medida de suas possibilidades fáticas e jurídicas.
Em sendo assim, o que se torna de fundamental importância não é, verdadeiramente a discussão em torno da existência ou inexistência desse núcleo, mas sim em que medida esses direitos devem ser efetivados. Nessa esteira, Bobbio[21] leciona que o problema dos direitos fundamentais não reside mais na sua fundamentação e, sim, em torno de sua efetivação.
Alguns doutrinadores substancialistas postulam que a discussão em torno dos direitos fundamentais não deveria girar em torno de um mínimo existencial, uma vez que é dever dos poderes públicos garantirem uma existência digna. Isso quer dizer que os direitos já expressos na Carta Magna prescindem de ponderação.
O debate, consoante esses doutrinadores, deveria, pois, girar em torno da efetividade de um máximo existencial, isto é, de garantias não apenas para assegurar um básico, mas sim para concretizar o melhor.
Isso implica que direitos sociais, segundo essa corrente, que direitos tais como a educação, a saúde, a moradia, entre outros, devem ser efetivados pelo poder publico através da implementação de políticas públicas que garantam, em princípio, um mínimo capaz de garantir uma existência digna, mas que em hipótese alguma esse mínimo poderá ser violado. Esse seria, pois, o mínimo indiscutível e inatingível dos direitos fundamentais.
Dessa forma, o mínimo torna-se indiscutível, inquestionável. O que se tornaria por hora discutível seria um máximo existencial. Há, contudo, como dito anteriormente, duas possíveis interpretações acerca desse núcleo, tendo como ponto de partida as visões procedimentalista e substancialista. Com base nessa última, esse mínimo seria uma forma de limitação do poder estatal e de garantia de um básico pautado na dignidade.
Sob a perspectiva procedimentalista, esse mínimo engessaria o direito, limitando-o à um espaço temporal e histórico, contradizendo, pois a possibilidade de ponderação, assim como o caráter argumentativo do direito. Caráter esse que se dá em razão da sua historicidade, dinamicidade e mutabilidade.
Observe que Alexy em algumas passagens do seu texto parece corroborar ora com a visão procedimentalista e ora com a teoria substancialista. Isso se torna perceptível ao analisar-se o trecho da obra de Alexy quando ele afirma que embora o sopesamento não tenha levado, na decisão numerus clausus, a um direito definitivo de todos à admissão no curso universitário de sua escolha, ao menos levou a um direito definitivo a um procedimento de seleção que dê chances suficientes a todos, o que aponta para a conexão entre direitos fundamentais sociais e os direitos a procedimentos, analisados posteriormente.[22]
Observe que no trecho acima Alexy deixa claro que a necessidade de ponderação é essencial, todavia essa ponderação não exclui, de alguma maneira a existência de direito à educação superior. No caso em análise, não houve restrição ampla a inserção de indivíduos no ensino universitário de escolha individual, mesmo levando em consideração o fato de que o sopesamento não resultou em uma decisão definitiva. A oportunidade, entretanto, de um processo de seleção que viabilize o ingresso desses indivíduos em um ensino superior de sua escolha foi garantido.
O que se observa, todavia é que Alexy, na sua obra teoria dos direitos fundamentais, não deixa explícito se ele é totalmente procedimentalista ou se substancialista, logo essa distinção fica, pois, à cargo daqueles que o interpretam.
Existindo ou não um núcleo inatingível é inegável a importância da argumentação e da interpretação das normas para que estas alcancem a sua efetividade e função social à mesma. É esse caráter que jamais poderá ser esquecido, uma vez que não há como se conceber o direito sem estar embutido no dinamismo social. Assim, é a periodicidade interpretativa que transforma as normas passando-as de meras letras frias à modificadores de realidade individuais e coletivas.
É necessário, portanto, atentar-se ao caráter ideológico que o discurso jurídico pode assumir e como tal fato pode ser capaz de criar falsos entendimentos acerca do que realmente seja efetividade de direitos.
Isso traz à baila o que já fora suscitado por Eco ao questionar a importância do debate em torno da fundamentação do direito. A inserção de um direito na nossa Carta Magna é capaz de dar efetividade à esse direito, ao ponto deste prescindir argumentos para tal efetividade?
Nesse sentido, que mudanças a EC nº 64 trouxe na efetivação do Direito Humano à Alimentação Adequada?
Nessa perspectiva, serão abordadas em que medida as relações entre direito e política podem contribuir ou obstacularizar a efetividade dos direitos fundamentais ou, ainda, em qual grau a inserção de um direito na Constituição Federal representa, realmente, uma luta social ou uma manipulação ideológica de uma minoria. [23]
2. A INFLUÊNCIA DO NEO-CONSTITUCIONALISMO PARA O RECONHECIMENTO DE NOVOS DIREITOS
2.1 Constitucionalismo: Origem e conceito
Segundo o Dirley, foi com o surgimento do constitucionalismo que enfatizou-se a importância da Constituição. Para ele, é através deste instrumento legal que se possibilita a criação de meios e instituições necessárias para limitar e controlar o poder político[24].
O constitucionalismo é, pois, a mola propulsora dos ideais de liberdade e de igualdade, uma vez que veicula o trilhar de um caminho de limitação do poder estatal, bem como impõe à este obrigações e deveres a serem cumpridos.
Segundo Farias[25] é característica do constitucionalismo interpretar e concretizar o Código Fundamental como uma hard law e não como uma soft law, bem como estender a obrigatoriedade de lei a princípios e valores até então colocados à margem do direito positivo.
O constitucionalismo é, portanto, “um movimento político e filosófico inspirado por idéias libertárias que reivindicou, desde seus primeiros passos, um modelo de organização política lastreada no respeito dos direitos dos governantes e na limitação do poder dos governantes”[26]. Ressalte-se que são esses movimentos que possibilitam o surgimento e a realização de novos direitos no ordenamento jurídico.
É, pois, com esse novo olhar acerca das normas constitucionais, isto é, normas capazes de possibilitar a garantia de direitos, bem como limitar o poder estatal, que se abre espaço à discussão sobre a interferência do judiciário no plano político.
Esse não é, entretanto, o tema central do presente trabalho, apesar de ter relação com esse, uma vez que as decisões políticas estão intrinsecamente relacionadas com a efetividade de direitos. É, justamente, no momento em que há omissão do poder público na efetivação dos direitos fundamentais que o judiciário suprirá ou não, a partir da provocação do interessado, o direito que fora violado por uma ação ou omissão.
Discute-se, pois, nessa perspectiva o ativismo judicial como forma de assegurar os mandamentos constitucionais. Antes, porém, de adentrar nessa discussão faz-se necessário definir qual vertente conceitual de ativismo será adotada com o fito de proteger os direitos sejam eles individuais ou coletivos.
Entende-se, aqui, o ativismo judicial como uma atividade que o juiz tem de criar uma solução nova, cujas bases não estão alicerçadas em nenhum sistema jurídico. Nesse sentido, não estaria o juiz, ao decidir em favor da garantia do direito humano à alimentação adequada, agindo consoante o ativismo judicial, uma vez que suas decisões estão pautadas em normas já positivadas, apesar de não ter a mesma profundidade que o ”novo” direito requer.
Importante observar que, embora, não estejam embasadas em sistemas já positivados, o ativismo judicial não deixa de levar em conta a relevância dos valores morais como forma de influenciar nas decisões. Ressalte-se, entretanto, que esses valores morais não são valores pessoais, intrínsecos à pessoa do aplicador do direito. São valores, consoante Dworkin, embasados em uma moralidade institucional e coletiva.
Nessa perspectiva Maccormick[27] afirma que o direito é uma ordem normativa institucional, isso significa que a ordem jurídica normatiza a sociedade, fazendo-a seguir de uma maneira ordenada. Nesse sentido a ordem jurídica dá um sentido de segurança jurídica, uma vez que traz elementos pré-definidos das condutas sociais.
Importante observar que Maccormick afirma que o sistema jurídico não é uma entidade intangível. É apenas uma construção ideal.[28] Isso implica que as regras de conduta, ou seja, o sistema jurídico de uma época pode não ser adequado à outra, assim como pode não ser adequado não apenas com relação histórica, mas também a depender da cultura de cada sociedade. Nesse sentido Maccormick[29] postula que “ o problema da mudança surge da necessidade sentida pelos seres humanos de ajustar suas expectativas a um ambiente natural, tecnológico e social em mudança.
Enfim, o sistema jurídico nada mais é do que a reunião de uma série fatores capazes de formar um todo jurídico. Esse todo jurídico é, pois, capaz de traçar diretrizes de condutas sociais
2.2 Neoconstitucionalismo
Como visto anteriormente o constitucionalismo abriu a via para um novo paradigma constitucional, qual seja: o paradigma neoconstitucionalista. Segundo Cunha esse novo modelo de pensamento constitucional voltou-se a reconhecer a supremacia material e axiológica da Constituição, cujo conteúdo, dotado de força normativa e expansiva, passou a condicionar a validade e a compreensão de todo o Direito e a estabelecer deveres de atuação para os órgãos de direção política[30].
Foi, pois, com o neoconstitucionalismo que o indivíduo assumiu o papel de protagonista nas relações sociais em seu sentido mais amplo. Nos dizeres do professor Cunha o neoconstitucionalismo proporcionou o florescimento de um novo paradigma jurídico: o Estado Constitucional de Direito.[31]
Impende salientar, que o neoconstitucionalismo não trouxe apenas, como mudança significativa, a centralização do homem, mas, sobretudo, a centralização do homem como um ser que deve ser respeitado de forma a garantir a sua dignidade enquanto pessoa humana.
O neoconstitucionalismo consolidou, inclusive, a noção de que a Constituição possui eficácia jurídica e vinculante. Nesse sentido leciona Cunha ao afirmar que com a implantação do Estado Constitucional de Direito opera-se a subordinação da própria legalidade à Constituição, de modo que as normas de validade das leis e demais normas jurídicas dependem não só da forma de sua produção como também da compatibilidade de seus conteúdos com os princípios e regras constitucionais. [32]
Nesse sentido, observa-se que o neoconstitucionalismo operou conseqüências no modo de enxergar o direito e, com isso, a sua hermenêutica e, conseqüentemente, o discurso jurídico passou a operar de maneira mais dinâmica, mais aberta, sem tanta linearidade, pois enquanto ciência humana o direito não poderia continuar a assumir uma postura reta, sem curvas e entradas, portanto.
Dessa forma, o direito assume seu caráter de apenas verossimilhança e se despede da noção de verdade fixas e absolutas. O discurso jurídico visa, portanto, assegurar direitos sob o fundamento de que esses direitos se modificam com o tempo e, em razão disso, não há possibilidade de assumirem um caráter estagnado em uma determinada época. Assim, a efetividade desses direitos se dá, sobretudo, pela possibilidade de ponderação, ou seja, pela possibilidade do exercício argumentativo.
2.3 Ser humano: fim do Direito, formação de um Estado Democrático de Direito.
O ser humano desde a modernidade passou a ser o centro do direito, ou seja, a atuação está pautada e voltada para aquele. Dessa forma o homem passou a ser o limite para a atuação do outro homem. Isso implica consoante Soares que o princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade física e moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo, relacionando-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de substância.[33]
Em sendo assim, atitudes degradantes e humilhantes que se inserem tanto no campo da violência física como psicológica não são mais toleradas, assim como diferenciações em razão de cor, credo, sexo são inadmissíveis.
Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, concretiza o princípio da dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, como se pode lê em seu artigo 1º, III.
Nessa esteira, Farias leciona que[34] a pessoa humana é hoje considerada como o mais eminente dede todos os valores porque constitui a fonte e a raiz de todos os demais valores. Representa a fonte principal de enriquecimento e de dinamismo da sociedade. Por conseguinte, a pessoa humana expressa a fonte e a base mesma do direito, revelando-se, assim, critério essencial de legitimidade da ordem jurídica.
Ressalte-se que o princípio da dignidade humana tem como característica o fato de ser universal, todavia não implica em uma hierarquia superior a outros princípios ou que o mesmo seja absoluto. Todavia, tal discussão não é o foco deste trabalho, em razão disso não se abordará tais discussões.
O importante, pois, nesse ponto é enfatizar que o princípio da dignidade humana assume uma postura limitadora à atitudes discriminatórias e violentas, além de pautar uma vida baseada na democracia.
Saliente-se, inclusive, que o principio da dignidade humana não serve apenas de limitação à violências, mas serve também como base para a formação de políticas públicas, ou melhor, para a formulação de ações positivas.
Nesse sentido, ao Estado cabe a proteção dos direitos individuais e coletivos, a manutenção e a efetividade desses direitos com base na dignidade da pessoa humana. Para Silva[35] a configuração do Estado Democrático de Direito significa muito mais a união dos conceitos de Estado de Direito e Estado Democrático. Significa, ao revés, a possibilidade revolução, de transformação do status quo. Esse estado pressupõe, pois, haveres de uma convivência das pluralidades. Esse convívio, tal como se pressupõe em um Estado Democrático de Direito, deve pautar-se na dignidade da pessoa humana. Isso é, entretanto, óbvio, uma vez que não há que se falar em Estado Democrático de Direito, em dignidade, se não houver o mero respeito às diferenças.
Nessa esteira, o princípio da dignidade humana assume os prismas individuais e coletivos, ou seja, ele se manifesta no indivíduo e na comunidade. Dessa maneira, o princípio da dignidade humana se realiza quando cada homem, mulher, criança, isto é, quando cada individuo é respeitado, essencialmente, por ser um ser humano.
É possível inferir que o principio da dignidade humana é um ampliador de horizontes que o intérprete do direito não pode abrir mão, ao contrário deve utilizá-lo como forma de alcançar um direito mais justo e igualitário.
Importante, pois, citar Gadamer que leciona sobre a noção de horizonte afirmando que aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Ao contrário, ter horizonte significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas pode ver para além disso. [36]
Isso implica que ao intéprete do direito não é dado o direito de fechar-se à realidade social, pois o social e o legal são “regras” que caminham lado a lado.
Mais além, Gadamer ainda postula que ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver para além do que está próximo e muito próximo, não para abstrair dele, mas precisamente para vê-lo melhor, em um todo mais amplo e com critérios mais justo.[37]
É, pois, afirmável que a Constituição Federal de 1988 tem como uma de suas metas a promoção do bem estar, cujo ponto inicial está alicerçado na dignidade, o que inclui condições materiais de sobrevivência.
II O RECONHECIMENTO DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL
2.1 O Direito Humano Fundamental à Alimentação na Adequada na Constituição de 1988
O Estado Liberal caracterizava-se por sua indiferença à vida econômica e social. Preocupava-se, apenas, com a vida política. Era um Estado, portanto, passivo. Logo, não se envolvia nas relações travadas entre seus integrantes. Esse modelo perdurou até o século XIX.
Durante esse século ainda, importantes transformações econômicas e sociais alteraram profundamente o quadro que se apresentava outrora. O individuo que tentava ao máximo dispensar a presença do Estado, passou a buscar deste a proteção para desenvolver as suas necessidades. Foi nesse contexto que nasceu o Estado do Bem Estar Social. O Estado então passou a intervir diretamente nas relações dos seus integrantes.
É, pois, com o Estado Social que surgem os direitos de segunda geração, caracterizados por outorgarem aos indivíduos, prestações estatais. Esses direitos de segunda geração ou direitos sociais surgem como forma de minimizar as desigualdades sociais do período pós-guerra que debilitavam a dignidade humana.
Antes, porém, de discutir a natureza dos direitos sociais é essencial que se entenda que os direitos sociais se constituem em apenas uma parcela dos direitos fundamentais, ou seja, os direitos sociais estão contidos em uma categoria maior que é a de direitos fundamentais. Esses, por sua vez, estão inseridos em outra maior categoria que é a dos direitos do homem.
Dessa forma Silva[38] chama os direitos fundamentais de os direitos fundamentais do homem por entender que essa seja a melhor maneira de referir-se aos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais humanos resultam para Silva em uma concepção ideológica política de cada ordenamento jurídico.
Esses direitos são, pois, essenciais à realização do homem, sem os quais, nas palavras de Silva, não convive e, as vezes, nem mesmo sobrevive. Inserido nessa categoria maior estão os direitos sociais fundamentais. Esses têm, uma natureza positiva.
Isso, entretanto, não implica que sua efetividade não requeira um trabalho argumentativo. A interpretação é, portanto o cerne de todo e qualquer direito. Principalmente quando se trata de um direito que se insere no campo, inclusive, das escolhas pessoais. Isso é o que ocorre, por exemplo, com o Direito Humano à alimentação adequado que para ser, plenamente, efetivado requer muito mais do que ter alimento à mesa, requer, inclusive, ter a consciência e a liberdade de escolher aquilo que é melhor para si próprio.
Nesta esteira, o comitê de direitos econômicos, sociais e culturais[39] do alto comissariado de direitos humanos da ONU 1999, conceitua em seu artigo 11 o Direito Humano à Alimentação Adequada, como O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deverá, portanto, ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. O direito à alimentação adequada terá de ser resolvido de maneira progressiva. No entanto, os estados têm a obrigação precípua de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome, como estipulado no parágrafo 2 do artigo 11, mesmo em épocas de desastres, naturais ou não.
Quando o enunciado acerca do que seja direito humano à alimentação adequada enfatiza que o conceito desse direito não deve ser interpretado de maneira restritiva, implica que este se relaciona, inclusive e sobretudo com outros direitos sociais, tais como a educação, o saneamento básico, a moradia, entre outros.
Revela-se, portanto, o caráter transversal do Direito Humano à Alimentação Adequada. Essa transversalidade implica no diálogo entre diversos setores, esferas do governo, bem como a sociedade civil. É com esse diálogo participativo que o discurso jurídico alcança a sua plenitude.
Nesse sentido, Haberle leciona que todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente do processo hermenêutico[40].
Nessa esteira, Cerqueira afirma que o texto só assume sua existência e significados reais no diálogo do intéprete com o próprio texto, e a situação do intérprete é uma condição relevante para o entendimento do texto[41].
O diálogo entre a sociedade civil e o poder público é, pois, essencial para dar plena efetividade ao Direito Humano à Alimentação Adequada, bem como para realizar o exercício da cidadania.
Ressalte-se que, como já dito, o discurso jurídico é uma forma de poder e consoante Soares quem detêm esse poder tem outras atribuições, qual seja, a de mobilizar grandes poderes sociais como é o caso do Direito. Tais linguagens – poderes imprimem novas condições de possibilidade à vivencia do e no mundo.
Quem por oficio manipula essas linguagens, na sua lida cotidiana, recebe, então, uma responsabilidade adicional: a de fazer não só o seu próprio mundo, mas também o daqueles onde muitos outros podem viver.[42]
Eis porque o Direito Humano à Alimentação Adequada é um dos requisitos para o exercício da cidadania. Nesse diapasão, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição[43] afirma que a alimentação e a nutrição constituem requisitos básicos para a promoção e a proteção da saúde, possibilitando a afirmação plena do potencial de crescimento e desenvolvimento humano, com qualidade de vida e cidadania.
Nesse compasso, a lei 11.346/2006, cria o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional, cujo objetivo é assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada e em seu artigo 2ª, postula que a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
Seguindo essa perspectiva, o Relatório do Brasil para a Cúpula Mundial de alimentação de 1994 traz em seu corpo a afirmação de que o acesso à alimentação é um direito humano em si mesmo, na medida em que a alimentação constitui-se no próprio direito à vida. Ainda diz que negar esse direito é, antes de mais nada, negar a primeira condição para a cidadania, que é a própria vida.
Vê-se que o Direito Humano à Alimentação Adequada integra tanto as dimensões alimentares e nutricionais, como as dimensões econômicas, sociais e culturais, por isso, diz-se que a efetividade desse direito se dá quando se garante a acessibilidade física e econômica, a disponibilidade de alimentos, a utilização biológica em sua integralidade e o seu consumo.[44]
Neste sentido, Bezerra afirma que ele denomina como realização dos direitos, a efetivação dos mesmos, a sua concretização, a sua viabilidade. Sem essa dimensão, o direito é apenas um papel, letra morta, potencialidade, intenção[45].
Deste modo, entende-se que o Direito Humano à Alimentação Adequada não deve se restringir à lei. Deve, ao contrário, ser efetivado a fim de realizar os direitos já assegurados na Constituição Federal.
A efetivação do Direito Humano à Alimentação Adequada implica algumas obrigações, tais como a de respeitar, a de proteger, a de promover e a de prover.
Essas são dimensões diferentes apesar de que a linha que separa uma da outra ser bem tênue. Respeitar significa o não bloqueio do acesso à esse direito; proteger requer que o Estado tome medidas contra ações violadoras desse direito; promover significa que o Estado deve envolver-se proativamente em atividade destinadas a fortalecer o acesso à esse direito. Isso implica em promover os recursos e os meios necessários à amplitude de acesso, e, por fim, exige que os Estados provenham esse direito no sentido de garantirem a alimentação e a nutrição das famílias que passam fome. Constitui-se, pois, essa obrigação em uma dimensão emergencial.
Apenas ações emergenciais não são suficientes para a garantia do DHAA. Esse direito requer, sobretudo, ações estruturais. Dessa forma, a violação ao DHAA ocorre, também, quando outros direitos também são violados.
Pense, por exemplo, em uma família que possui alimentos saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas, porém, em sua casa, não há esgotamento sanitário, fazendo com que os moradores se alimentem ao lado de dejetos. Essa família teve o DHAA violado, em razão da não realização de outro direito.
Imagine, também, uma família, cujo chefe está desempregado, mas recebe ajuda dos vizinhos e familiares. Essa família teve o DHAA violado, uma vez que se encontra em estado de insegurança. É pressuposto do DHAA que ele seja garantido de forma contínua.
Em sendo assim, conclui-se que a realização do DHAA é complexa, já que requer ações conjuntas. Sua complexidade, entretanto, não se constitui como requisito para sua não efetividade. A garantia do DHAA é além de requisito do exercício da cidadania é fundamento de sobrevivência.
2. 2 As dimensões da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN)
Historicamente falando é possível dizer que o conceito de Segurança alimentar e nutricional encontra-se em um processo de construção. Como fenômeno histórico, o entendimento de SAN passou pela insuficiência de alimentos no que diz respeito à disponibilidade desses alimentos. Nesse sentido, as políticas voltaram-se à produção com o fim de possibilitar essa disponibilidade alimentar. Viu-se, todavia, que isso não era suficiente e, em razão disso, passou-se a adotar uma política de armazenamento de alimento, uma vez que constatou-se que ter alimentos disponíveis não era o suficiente. Era necessário, pois, que esses alimentos fossem garantidos com certa regularidade.
Observe que essa visão estava ligada à década de 70, período em que ainda não havia sido promulgada a nossa atual Carta Magna. Nesse sentido, o foco das políticas públicas não estava voltado ao homem, mas sim ao produto, qual seja: o alimento.
Somente na década de 90 é que o foco das políticas começa a se modificar e passa do produto ao homem. Há, portanto, um forte movimento de garantia dos direitos humanos. Nessa perspectiva a SAN passa a ter como dimensão não apenas a alimentar, mas também a nutricional. A primeira tem o foco na produção e disponibilidade dos alimentos. A segunda incorpora as relações entre o homem e o alimento.
É a perspectiva nutricional que corrobora a tese de um Estado Democrático de Direito, de um Estado que tem como cerne o homem e a garantia de sua dignidade, uma vez que impulsiona discussões em torno dessa relação do homem com o alimento nas mais variadas perspectivas, tais como: a cultural, a econômica, a educacional, entre outras.
Nessa esteira, o conceito de SAN, consoante a conferência nacional de segurança alimentar e nutricional, é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis. [46]
Observe que o conceito de SAN engloba perspectivas que não se limitam ao caráter nutricional e alimentar, ele integra um conceito intersetorial, isto é, requer que as políticas de SAN sejam desenhadas e desenvolvidas com base em ações articuladas e coordenadas entre a sociedade civil e setores governamentais.
Ressalte-se, pois, que construir uma política de SAN, com o fito de assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada, faz-se necessário uma integração entre os sistemas previdenciário, de assistência, de saúde, bem como com outros sistemas que são também constitucionalmente garantidos.
Nesse sentido, a efetivação do direito humano à alimentação adequada, com base nas diretrizes da segurança alimentar e nutricional, requer muito mais do que a inserção desse direito na Carta Magna. A inclusão desses e outros direitos na Constituição reveste-se tanto de lutas sociais e nesse caso assumem real característica de direito, mas podem figurar também como fator de uma manipulação estatal ideológica. Dessa forma figura como algo que pode ser potencialmente perigoso, já que pode caracterizar-se por uma manutenção de interesses da minoria. Violando, dessa maneira, princípios constitucionais como, por exemplo, o da igualdade e o da universalidade.
Todas essas questões permeiam o tema central do presente trabalho, uma vez que o discurso jurídico tem-se mostrado insuficiente para garantir, ou melhor, para efetivar o direito humano à alimentação adequada. Dessa maneira, o discurso jurídico, pode caracterizar-se como um obstáculo à efetividade de direitos, já que são idealizados, formulados e efetivados apenas para parcela da população.
Somente, portanto, através da participação popular efetiva e o termo efetiva implica em condições de igualdade no entendimento do que seja direito e do que seja uma manipulação ideológica, será possível pensar no discurso jurídico como uma forma real de efetivar o direito fundamental alimentação adequada. É através desse caminho que se possibilita a exigibilidade desse direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo quanto exposto, conclui-se que independente das variadas percepções individuais que se formam ao longo das leituras feitas sobre os objetos interpretados e, inclusive, da ausência de um consenso jurídico absoluto ou de conceito estanque de verdade, os Direitos não se submetem a argumentos que justifiquem a sua falta de efetividade e/ou exigibilidade.
Apesar dos conceitos de consenso e de verdade estarem relacionados à provisoriedade e à relatividade isso não implica em um impedimento de sua implementação, ao contrário, significa que o intérprete do direito deve estar aberto às mudanças que ocorrem na sociedade, assim como deve estar apto a entender que essa mesma sociedade é um organismo vivo e como tal se transmuda, se modifica, se adapta à novas realidades, à novas leituras de mundo.
Nessa perspectiva, a normas constitucionais ou infraconstitucionais não devem estar pautadas na idéia de imutabilidade, ou seja, na não adaptação das normas as novas realidades, assim como da inserção de novos direitos.
Interpretar com o olhar voltado às novas formações culturais e sociais, não implica em arbitrariedade, ao revés significa que o hermeneuta, ao abster-se, única e exclusivamente, da literalidade da lei, busca por uma solução mais justa a cada caso. Significa ponderar, utilizar-se das técnicas, não apenas a literal, para, possivelmente, alcançar uma justiça justa.
O sistema jurídico, portanto, é plural e essa pluralidade se dá em razão da variadas e possíveis concepções de verdade e de consenso. Habermas propõe em sua teoria um agir comunicativo despido de autoritarismo, composto, portanto, de diálogos participativos que se dão, em função do consenso entre os interlocutores.
Essa verdade, esse consenso, cujo interesse está voltado à emancipação, está imerso na intersubjetividade de uma compreensão que se dá mutuamente, uma vez que os participantes do agir comunicativo são diferentes, logo possuem perspectivas de vida e necessidades diferentes.
É nesse contexto de dissensos que atua o hermeneuta jurídico. À ela cabe, pois, a tarefa de encontrar para cada caso a solução mais justa e adequada. Para isso faz-se necessário levar em conta os fatores espaciais e temporais nos quais estão imersos a dialética da comunicação.
Essa dialética não pode, por seu turno, olvidar, as questões relacionadas às vivências de mundo, uma vez que ao fazer isso, corre-se o risco de aplicação de interpretações esvaziadas de conteúdo social.
Como, pois, o objetivo do intéprete jurídico é, sobretudo, o de atuar na realidade social, transformando-a, melhorando-a, impossível, portanto, conceber, uma interpretação desprovida de função social, cujas bases estejam apenas alicerçadas na literalidade da lei.
Ao hermeneuta jurídico é dado, pois, um trabalho árduo, mas não impossível. Não se exigirá desse profissional, entretanto, um poder sobre humano ou como diz Dworkin um poder hercúleo.
Há que se entender que também o hermeneuta é um ser humano que influencia e é influenciado pelas ideologias políticas, econômicas e midiáticas. E, em razão disso, suas decisões não são “puras”, ou seja, cem por cento imparciais. A diferenças do trabalho do hermeneuta para o intéprete do senso comum está, justamente, no trabalho de, em cada caso, buscar a decisão mais justa a partir de sopesamentos, de ponderações, de avaliações que vão além da simples reprodução da norma.
Ao senso comum é dado, pois, a possibilidade de julgar sem fazer esse trabalho, mas ao hermeneuta não há mais espaço para esses julgamentos desprovidos de interpretações aprofundadas. À esse cabe, portanto, o descortinar das ideologias, dos quereres políticos e econômicos intrínsecos em cada ato do poder público.
Nesse sentido, talvez, o discurso jurídico consiga desenvolver o seu papel mais importante, ou seja, ser o protagonista capaz de revelar o que há por traz da lei. Quem sabe assim, chegar-se-á a um consenso acerca da não efetividade das normas.
Informações Sobre o Autor
Vanesca Freitas Bispo
Advogada, Mestranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Direito Público e em Pedagogia com Ênfase em Orientação Escolar, respectivamente pelo Juspodium e Unifacs; Graduada em Letras com Ênfase em Tradução pela Unifacs e em Direito pela Facet