O Comprometimento da Imparcialidade do Juiz Diante da Possibilidade de Produção de Provas “Ex Officio” Frente ao Modelo Processual Penal Brasileiro

Adriana Silva Castro[1]

 

RESUMO

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O presente artigo tem por propósito analisar o comprometimento da imparcialidade do julgador frente a permissibilidade de iniciativa probatória no âmbito do sistema processual penal brasileiro. Com a proposta, realiza-se análise inaugural sobre os sistemas processuais penais históricos acusatório, inquisitivo e misto, a fim de enunciar o modelo vigente no Brasil, bem como apontar suas características inerentes. Após, passa-se à análise da gestão da prova no processo penal, bem como a possibilidade legal de o juiz penal determinar a produção de provas “ex officio”. Discute-se a compatibilidade da iniciativa probatória com o sistema processual penal adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro. No desfecho, ventila-se tal questão frente ao princípio da imparcialidade do juiz.

Palavras-chave: Sistemas processuais. Verdade real. Gestão da prova. Iniciativa probatória do juiz. Princípio da imparcialidade.

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze the impairment of the impartiality of the judge against the permissibility of a probative initiative within the Brazilian criminal procedure system. With the proposal, an inaugural analysis on historical, accusatory, inquisitive and mixed criminal procedural systems is carried out, in order to state the current model in Brazil, as well as to indicate its inherent characteristics. Afterwards, the analysis of the management of the evidence in the criminal proceeding is analyzed, as well as the legal possibility of the criminal court to determine the production of evidence “ex officio”. It discusses the compatibility of the probative initiative with the criminal procedural system adopted by the Brazilian legal system. In the end, this question is addressed in the light of the principle of impartiality of the judge.

Keywords: Procedural systems. Real truth. Management of proof. Proof of Judgment Initiative. Principle of impartiality.

SUMÁRIO: 1. APRESENTAÇÃO. 2. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS. 2.1. Sistema Inquisitório. 2.2. Sistema Acusatório. 2.3. Sistema Misto. 3. O SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO. 3.1. Reflexo inquisitorial no Código de Processo Penal de 1941. 4. O INSTITUTO DA PROVA E A BUSCA PELA VERDADE NO PROCESSO PENAL. 4.1. Papel do juiz na gestão da prova no modelo processual brasileiro. 5. A IMPARCIALIDADE DO JULGADOR. 5.1. Iniciativa probatória do juiz e sua imparcialidade. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS. BIBLIOGRAFIA

 

  1. APRESENTAÇÃO

Originando-se da premissa de identificação de um Estado como Totalitário ou Democrático a partir do sistema processual penal adotado, carece o debate para registro de qual é o adotado no ordenamento jurídico.  A escolha possui, para além de cunho técnico-processual, justificativa política, instituindo e regendo as relações do próprio Estado com seus cidadãos.

Sob a análise do sistema processual penal adotado no Brasil, coadunando com o substancial princípio da imparcialidade, empenha-se em explorar a possibilidade da iniciativa probatória do magistrado dentro de um contexto atual e exposado ao longo do texto.

Para tal, examina-se considerações acrescentadas por diversos autores quando frente ao tema que é tão amplamente debatido pela doutrina. A proposta confronta argumentos contrapostos, por meio de um estudo coordenado e destinado a içar o papel do juiz na colheita de provas frente a uma visão harmonizada com o ordenamento jurídico pátrio.

 

  1. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
  • Sistema Inquisitório

De modo inicial, a fim de promover a compreensão acerca dos sistemas processuais penais, necessário clarearmos a noção de “sistema”, inserido neste contexto. Sistema traduz a ideia de estrutura organizada, abarcadora de princípios e regramentos construídos sob um contexto político e social próprio, capaz, portanto, de refletir seus pilares e de salvaguardar compatibilidade entre os meus e a aplicação do direito.

Cediço que cada modelo processual consagrado – e aqui abordado – pode apresentar versões maleáveis em determinados países ou contextos históricos. Trataremos, pois, de assediá-los em suas características fundamentais, a fim de traçarmos distinções medulares entre os mesmos.

O modelo inquisitório possui raízes históricas atreladas à ideia de centralização de um poder absoluto, garantidor da ordem social. Essa essência é representada na principal característica de tal sistema: a concentração das funções de acusar, defender e julgar no Estado.

Ao juiz cabe iniciar as investigações, colher provas, acusar o suposto autor do fato e, ao mesmo passo, julgar este indivíduo que, no processo, figura não como sujeito, mas sim objeto destituído de direitos.

Com o processo sendo sigiloso e destituído de contraditório e ampla defesa, vigora a possibilidade do emprego de tortura para a obtenção de provas. Por meio desta, intenta a obtenção da confissão, tida como rainha das provas dentro do sistema tarifário de provas, podendo isoladamente sustentar uma condenação.

O processo é um instrumento estatal para o alcance da verdade real, a qual deve ser obtida a qualquer custo, restando claro a falta de imparcialidade do juiz diante do caso, conforme afirma Lopes Junior (2011), ao explanar a confusão a qual se submete o juiz diante das funções de acusar e julgar.

Inexistindo a estrutura dialética no processo, ao acusado não é oportunizada a defesa. Além disso, o juiz-inquisidor possui total liberdade na colheita de provas, como assevera Badaró (2003, p. 105):

No campo probatório, que se liga diretamente ao princípio em análise, no sistema inquisitório, havia intervenção ex officio do juiz, que verdadeiramente se identificava com o acusador. O juiz inquisidor tinha liberdade de colher provas, independentemente de sua proposição pela acusação ou pelo acusado. O acusado normalmente, permanecia preso durante o processo. Na busca da verdade material, frequentemente, o acusado era torturado para que se alcançasse a confissão. Em suma, o sistema inquisitório baseia-se em um princípio de autoridade, segundo o qual a verdade é tanto melhor acertada, quanto maiores forem os poderes conferidos ao investigador. Quanto ao método probatório, há uma substituição da concepção argumentativa por uma concepção demonstrativa da prova, baseada nos moldes científicos experimentais.

  • Sistema Acusatório

Rangel (2013) bem sustenta que o sistema inquisitivo não guarda compatibilidade com os direitos constitucionais que devem prevalecer em um Estado Democrático de Direito. Em vista disso, deve ser afastado das legislações contemporâneas que têm o escopo de assegurar ao cidadão as mínimas garantias em apreço à dignidade da pessoa humana.

Eis que o modelo processual acusatório se apresenta como antítese ao modelo inquisitório. Isto porque carrega consigo um ideal democrático e é sustentado por uma relação baseada na limitação de funções e atribuições, a fim de garantir que acusação e defesa, agora materializadas em sujeitos distintos, possam influir, em igualdade de condições, nas decisões do magistrado. O juiz se apresenta como responsável por julgar a causa e, assume ainda a notável atribuição assecuratória dos direitos do acusado.

O juiz, desprovido do encargo de acusar, assume papel de garantidor da legalidade e observância dos princípios norteadores do direito durante todo o processo. Ao acusador recai o dever de levar as provas de imputação do fato criminoso ao conhecimento do juiz. A partir de então, este, no gozo de seu livre convencimento e com atuação imparcial, se atendo às provas apresentadas pelas partes, decidirá sobre eventual condenação.

A defesa ganha força e vê-se permitida a utilizar de todos os recursos possíveis para contradizer os argumentos sustentados por aquele que a acusa, através do contraditório e da ampla defesa. Assim, contrai “status” de sujeito de direitos, e sujeito processual, podendo também influenciar na decisão do magistrado.

Insurgindo contra o autoritarismo do Estado, os atos processuais são dotados de publicidade, como regra. Isso permite ao cidadão o controle do exercício do “jus puniendi” estatal. Destacam-se ainda o mecanismo da inércia da jurisdição e o formato de reserva da posição de terceiro imparcial ao magistrado, desprovendo-o de poderes investigatórios.

Nos ensinamentos de Lopes Junior (2008), o sistema acusatório visa a garantia da natureza dialética no processo, por via da paridade de armas e igualdade entre as partes na persuasão do julgador. Deste modo, faz com que o acusado não mais permaneça como um objeto, transferindo ao magistrado característica mais passiva.

  • Sistema Misto

O modelo processual misto é marcado pelo que entendem ser uma tentativa de conglobação dos dois modelos anteriores. Propõe solução intermediária entre tais sistemas, através da mescla da agilidade e eficácia das investigações desenvolvidas em um sistema inquisitório, com a observância das garantias individuais inerentes ao sistema acusatório.

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O sistema misto possui uma acentuada divisão de fases. A primeira, investigatória, estágio preparatório (pré-processual) e precipuamente de caráter inquisitivo, é marcada por traços deste modelo. O procedimento visa propiciar a colheita de provas para que, eventualmente, possa se proceder com a acusação na segunda fase, em juízo.

Mantido do modelo inquisitório, o acusado continua a ocupar posição de mero objeto das investigações, não lhe cabendo influenciar nas apurações. Observação feita por Rangel (2013, p.51): “No modelo processual misto as investigações criminais são feitas pelo magistrado, o que acarreta no óbvio comprometimento de sua imparcialidade”.

Em contrapartida, na fase processual, preponderam-se qualidades típicas do sistema acusatório, com suas marcantes garantias de cunho processual. Aqui o acusado figura como sujeito e ocupa posição de igualdade na relação processual, compatibilizando o processo com os direitos humanos.

Além disso, é garantida publicidade ao procedimento, que garante ainda o contraditório e ampla defesa do acusado. Em linhas gerais, nas lições de Avena (2009, p.9), o modelo misto:

Abrange duas fases processuais distintas: uma inquisitiva, destituída de contraditório, publicidade e defesa, na qual é realizada uma investigação preliminar e uma instrução preparatória; outra posterior a essa, correspondente ao momento em que se realizará o julgamento, assegurando-se ao acusado, nesta segunda fase, todas as garantias do processo acusatório.

A tida conciliação entre ambos os sistemas processuais seria possível, segundo autores que defendem sua compatibilidade com o Estado Democrático de Direito. Acredita-se que os resquícios inquisitórios, apesar da aparente antinomia, em tese, se harmonizariam com os direitos essenciais da pessoa humana, não tornando possíveis as aberrações legitimadas pelo modelo inquisitório em sua essência.

No entanto, nas palavras de Rangel (2013, p. 52), o modelo misto não se apresenta como o melhor sistema, por ainda manter o juiz na colheita de provas, ainda que na fase preliminar da acusação. Ainda nas palavras do autor: “A função jurisdicional deve ser ao máximo preservada, retirando-se, nos Estados democráticos de direito, o juiz da fase persecutória e entregando-se a mesma ao Ministério Público (…)”.

 

  1. O SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO
  • Reflexo inquisitorial no Código de Processo Penal de 1941

Em meio a um período histórico ditatorial conturbado, o Código de Processo Penal Brasileiro surgiu com o Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941, influenciado pelo modelo do Estado Novo regido pela autoritária Constituição Federal de 1937. Tal diploma legal foi inspirado na legislação processual penal italiana, produzida durante o regime fascista de Benito Mussolini, com bases totalmente autoritárias. Desta forma, o sistema inquisitório e a presunção de culpabilidade adotada pelo Código Processual Penal brasileiro traduzem claramente a fonte de inspiração buscada pelo nosso legislador.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 não houve a adoção explícita de qualquer dos modelos apresentados. No entanto, foram estabelecidas as funções de acusar e julgar a órgãos distintos, prevendo inclusive os juízes naturais para as causas. Além disso, vários princípios de cunho garantista de liberdade e de regramento processual penal também foram listados, transvestindo-se em sistema acusatório.

Conforme assegurado por diversos autores, o sistema vigente no Direito Processual Penal Pátrio é o acusatório. Corrobora dessa linha, Capez (2014), que menciona as garantias inerentes ao sistema acusatório incorporadas ao  sistema constitucional, como a tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV); garantia do acesso à justiça (art. 5º,LXXIV);  garantia do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII); devido processo legal (art. 5º, LIV); igualdade entre as partes (art. 5º, caput e I); ampla defesa (art. 5º, LV, LVI e LXII); publicidade dos atos processuais e motivação dos atos decisórios (art. 93, IX); a presunção de inocência (art. 5º, LVII).

O modelo acusatório é o tipo processual penal que privilegia a dignidade da pessoa humana diante do arbítrio do Estado. A partir de garantias fornecidas ao acusado, com “status” de direitos constitucionais, evidente o intento de repudiar traços inquisitivos que vigoravam até então.

Leva-se a crer que os princípios basilares para o processo penal moderno são o da imparcialidade do juiz e do contraditório, haja vista que os demais princípios surgem como decorrência destes, da oportunidade conferida de influenciar na decisão de um julgador que atue com neutralidade.

Parte da doutrina defende ainda que o sistema adotado pela Constituição Federal é o misto, haja vista a existência do inquérito policial como inserido em fase pré-processual, desprovida de contraditório, ampla defesa e publicidade, dotado, portanto de características inquisitivas. Ficaria reservado a segunda fase então, o desenvolvimento do processo e a acusação propriamente dita, sob a égide dos princípios inerentes ao modelo acusatório.

Não seria o inquérito policial compreendido como ação penal, possuindo como objeto único o fato delitivo, não o autor. Dos autores que rechaçam a concepção do sistema misto no ordenamento jurídico pátrio, Eugênio Pacelli Oliveira (2011, p. 14) apresenta argumento ao afirmar que:

No que se refere à fase investigativa, convém lembrar que a definição de um sistema processual há de limitar-se ao exame do processo, isto é, da atuação do juiz no curso do processo. E porque, decididamente, inquérito policial não é processo, misto não será o sistema processual, ao menos sob tal fundamentação.

Portanto, o inquérito policial se apresenta como procedimento dispensável de investigação preliminar, destinado especificamente a colheita de elementos de informação (distinguindo-se tecnicamente de provas), a fim de viabilizar a ação penal, através de contribuição na formação da justa causa.

 

  1. O INSTITUTO DA PROVA E A BUSCA PELA VERDADE NO PROCESSO PENAL

Núcleo para a caracterização de todo e qualquer modelo processual penal, o sistema de provas empregado reflete a orientação legislativa na atividade judicial. A partir da determinação de tendência ativa ou não do juiz na iniciativa probante, coadunam interesses e objetivos processuais primados por determinada sociedade.

Delineado o sistema processual adotado, são determinados regramentos norteadores, incluindo princípios éticos e jurídicos, incidentes sobre a matéria, orientando a produção, a determinação e a aceitação das provas no processo.

As provas, seriam, por vez, o meio pelo qual se permitiria ao aplicador do direito tomar conhecimento dos fatos tal como eles se deram no mundo real, através da confirmação das afirmações sustentadas pelas partes. Constituiriam então na representação da realidade diante dos fatos ocorridos no passado. Possuem como principal finalidade o convencimento do magistrado, destinatário das provas. Evidente então que as partes atuarão no cerne probatório motivados por seus interesses processuais.

Tais propriedades funcionam como obstáculos lógicos à apresentação dos fatos nos exatos moldes de sua ocorrência, nutrindo a discussão a respeito da busca pela “verdade real” na esfera criminal. Tourinho Filho (2013, v.1, p. 62) orienta que “(…) as naturais reservas oriundas das limitações e falibilidade humanas, submetem-se a certas restrições do próprio ordenamento jurídico que impedem tal busca”.

Sustentada por muitos a distinção entre a orientação de busca da verdade nos processos civil e penal. Este se nortearia pela verdade formal, aquela trazida pelas partes na desincumbência do ônus que lhes competiria (ao autor a prova do fato constitutivo de seu direito e ao réu provar o fato negativo, extintivo ou modificativo do direito do autor). A seu turno, o processo penal seria informado pelo princípio da verdade real, a verdade decorrente da reconstrução exata (ou muito aproximada) dos fatos, permitindo ao juiz pesquisar as alegações trazidas, inclusive por iniciativa própria, a fim de elucidar os acontecimentos.

O principal argumento utilizado para justificar essa disposição dualista atrelava-se às consequências advindas dos processos. Argumenta-se que, diante da transcendência mais gravosas ao condenado em processo penal, de privação da liberdade, seria exigido do magistrado maior envolvimento probatório. Em contrapartida, num juízo cível, as questões versariam estritamente sobre direitos disponíveis, não justificando atuação supletiva do juiz.

Todavia, a ideia da coexistência de duas verdades encontra relutância de aceitação. A tese não se sustenta quando analisamos que, as condenações criminais não recaem exclusivamente sobre a privação da liberdade do acusado. Por vezes, resultam na imposição de multa, atingindo o patrimônio do mesmo.

Nada obstante, indiscutível que de decisões proferidas em processos cíveis podem advir consequências gravíssimas que, inclusive, extrapolam a esfera de direitos tidos como disponíveis.

Ademais, a utilização do princípio da busca pela verdade real, a rigor serve para reafirmar uma aspiração de cunho autoritário, que atropela as garantias fundamentais. Outrossim, vale asseverar que se trata de uma busca utópica que não finda com o alcance de uma certeza absoluta, tão somente com uma probabilidade ou certeza possível que decorrerá da reconstrução do fato histórico.

Além das limitações humanas, o Estado de Direito impõe barreiras que impossibilitam a atuação do juiz na busca da verdade.

Conforme Parente (2011), ocorre que o princípio da verdade real sempre esteve atrelado à figura de um juiz ativo no campo probatório. É o recorrente socorro para se justificar a diversidade no tratamento da prova, especialmente quanto à distribuição de sua carga entre as partes, nos processos civil e penal.

Conforme assinalado por Tourinho Filho (2013, v.3, p. 59): “Há certa tendência no sentido de vedar ao juiz penal a produção de provas, tornando o Processo Penal um verdadeiro processo das partes, (…) ficando o juiz, como órgão superpartes, impossibilitado de intervir na produção da prova”.

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Essa orientação corrobora com a proteção da dignidade humana e de garantias processuais compatíveis com o modelo de processo acusatório. Dentre as principais características fundamentais desse sistema, a doutrina é uníssona ao apontar a separação das atividades de acusar e julgar, a colocação do juiz como um terceiro imparcial e a estrutura dialética do processo marcado pelo contraditório, de modo a denotar um processo penal orientado por um modelo político-democrático. Todavia, as indagações sobre qual seria a verdade orientadora do processo desaguam em uma discussão vazia e que pode levar a conclusões sem utilidade prática ao Direito.

Do tema, decorre a importância óbvia de análise do ônus da prova, que nos permite identificar quais atores processuais possuem incumbência de comprovar fatos determinados, além de conferir ao julgador uma regra para proferir seu julgamento. O ônus da prova serviria como um estímulo às partes a produzirem provas acerca de suas afirmações, pois sabedoras das consequências em caso de inércia nessa atividade.

Nessa linha, Badaró (2003) destaca que a distribuição do ônus da prova serve para indicar a qual recairá a incumbência de provar esta ou aquela alegação e, ainda, ao juiz funciona como limite a ser adotado no momento da decisão caso perdure dúvidas.

Como o produto da atuação ou da inércia, aproveitará ao sujeito sobre o qual recaia o ônus, este costuma ser compreendido como uma imposição subjetiva, ou obrigação para consigo mesmo.

  • Papel do juiz na gestão da prova no modelo processual brasileiro

Como delimitado neste trabalho, o modelo processual adotado pelo Brasil é o acusatório. Por assim ser, exige-se que o tratamento das provas esteja em perfeita consonância com os princípios inerentes ao sistema.

Lopes Junior (2013, p. 540) nos recordar que “(…) a gestão/iniciativa probatória é fundante do próprio sistema, e que atribuir a gestão e o poder de ter iniciativa probatória ao juiz funda um sistema inquisitório e, como consequência, afeta o próprio regime legal das provas. ”

O trato dado à dinâmica probatória é o que, precisamente, distingue os modelos processuais penais. Laconicamente, a principal diferenciação entre os dois principais modelos processuais penais de consagração histórica recai, exatamente, no conteúdo probatório, essencialmente na destinação das provas e na distribuição dos ônus atinentes sobre cada sujeito processual.  Como visto, o modelo inquisitório é orientado pela busca da verdade real que, por seu caráter absoluto, despe o processo de contraditório e ampla defesa e atribui enorme atividade probatória ao julgador.

Diferentemente, a paridade de armas e as limitações para o alcance da verdade são fundamentos do modelo acusatório, juntamente com a incumbência do magistrado de assegurar a prevalência dos direitos e garantias fundamentais do acusado, retirando-o da figura de um juiz-inquisidor e fazendo-o permanecer como destinatário das provas, não como um produtor.

Lopes Junior (2013) assegura ainda que o limite probatório é dado pelo próprio sistema processual e que somente seria possível atribuir poderes instrutórios ao juiz quando tiver na adoção de modelo processual inquisitório. Por outro lado, em um modelo acusatório, o juiz assume seu verdadeiro papel de espectador (alheamento), essencial para assegurar a imparcialidade e a estrutura acusatória.

Apesar da opção realizada pelo constituinte de 1988, não é difícil identificar tendência inquisitória (e nada compatível com o atual modelo de Estado Democrático de Direito) no Código de Processo Penal de 1941. Irrefutável que tais características autoritárias são incompatíveis com os fundamentos do sistema acusatório e da própria Constituição Federal.

A alteração mais marcante na temática da iniciativa probatória do juiz, é advinda da Lei nº 11.690/2008. Enquanto todos acreditavam que o legislador promoveria modificação de forma a extinguir a produção discricionária de provas pelo magistrado, este conferiu, nos incisos do art. 156 do diploma processual, a produção de provas “ex officio” no curso da instrução processual e, ainda mais absurdamente, antes mesmo de iniciada a ação penal. Quanto ao possibilitado pelo inciso II do referido artigo, vale sublinhar que se trata, não menos de facultar ao juiz a prática de atos típicos de parte, em sondar elementos para viabilizar a acusação.

Tourinho Filho (2013, v.1, p. 59) afiança que:

A natureza pública do interesse repressivo, entendeu o legislador de 1941, exclui limites artificiais que se baseiam em atos ou omissões das partes. A força incontrastável desse interesse consagra a necessidade de um sistema que assegure o império da verdade (…)”

 

  1. A IMPARCIALIDADE DO JULGADOR

Historicamente, a lógica contratualista surgiu em reação a uma estrutura que concentrava poderes ilimitados a um único ser soberano, aliado de Deus, a quem cabia investigar, acusar e julgar. A fundamentação do movimento reacionista era exatamente a necessidade de submissão do juiz ao império da lei.

Difundidas ideias durante a Revolução Francesa conduziram à redução do juiz como mero “boca da lei”, calhando a este a atuação dentro dos estritos ditames das normas legais, inviabilizando atuações interpretativas e discricionárias.

Com a posterior rasgadura da divisão estanque, antes realizada pelo Estado, entre os três poderes, o Poder Judiciário ganha atuação de maior destaque no papel que lhe caberia de interpretar a lei.

Neste cenário, assume especial relevância a figura do juiz, a quem, na condição de representante do Poder Judiciário, compete o exercício da função de garantidor dos direitos fundamentais dos acusados na seara processual penal.

A partir de então, começa-se a discutir sobre a imparcialidade desta figura que se incumbe de aplicar o direito no caso concreto. Atrela-se a noção de justiça das decisões proferidas à característica de imparcialidade de quem as proferiu. A imparcialidade do juiz se apresenta então como um elemento da jurisdição, como um valor estruturante do próprio processo.

O princípio da imparcialidade passa a ser compreendido como um dos pilares do sistema acusatório, impondo a necessidade de prolação de decisões eivadas de vícios de interesses. Para sua efetivação, a Constituição Federal de 1988 asseverou garantias no intuito de assegurar a independência dos magistrados, dentre elas a vitaliciedade no cargo; inamovibilidade e; irredutibilidade de vencimentos (artigo 95).

Patente, conforme Fernandes (prefácio na obra de MAYA, 2014, p. xv) que não se concebe o julgador como um ser isolado de si, de seus fatores hereditário-constitucionais, de suas experiências emocionais antigas, de seus traumas, das interferências do ambiente cultural e ideológico.

Inevitavelmente, desde o inquérito e com o desenrolar do processo, com as argumentações desenvolvidas e provas apresentadas, bem como diante de possíveis necessidades de atuação em decisões cautelares, o magistrado acaba por desenvolver juízos de valor sobre a materialidade e autoria delitiva.

Aury Lopes Júnior (2013, p.224) esclarece que “a imparcialidade não é uma qualidade pessoal do juiz, mas uma qualidade do sistema acusatório.”

Ocorre que o Código de Processo Penal brasileiro, de criação inserida em modelo histórico autoritário, desde 1941 sofreu pontuais alterações, sem, contudo, afastar a essência fundamentadalmente inquisitória.

Fernandes (prefácio na obra de MAYA, 2014, p. xvi) nos revela que:

Filtros objetivos não exaustivos de redução da arbitrariedade e da contaminação judicial, como hipóteses de incompatibilidades, impedimento e suspeição e, por via de consequência dos danos ao processo e aos sujeitos processuais pelo vício da imparcialidade, o qual medra a confiança e a democracia processual, deverão ser construídos.

Concludente óbvia a existência de sentimentos do julgador que acabam por influenciar nas decisões do mesmo, inclinando-o a uma ou outra posição, a partir de suas percepções subjetivas e tendências pessoais desenvolvidas quanto às partes e às testemunhas.

Para uma atuação imparcial, exige-se do magistrado equidistância em relação às partes, de modo que atue de maneira objetiva sem favorecer ou prejudicar os envolvidos por qualquer que seja a motivação.

Lopes Junior (2013, p. 224) dispõe que:

Nesse contexto, dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios (como o famigerado art. 156 do CPP) devem ser expurgados do ordenamento ou, ao menos, objeto de leitura restritiva e cautelosa, pois é patente a quebra de igualdade, do contraditório e da própria dialética do processo.

A imparcialidade do magistrado configura elemento essencial para a efetivação do princípio acusatório, apresentando-se como segurança de que as garantias incorporadas no texto constitucional possam também se efetivar, cravando a independência do juiz e afastando-o o máximo de vínculos e influências subjetivas, a fim de assegurar legitimidade à motivação das decisões.

  • Iniciativa probatória do juiz e sua imparcialidade

A consagração do sistema acusatório impõe medidas para coadunarem a efetivação dos princípios norteadores do próprio sistema. Afim de assegurar a imparcialidade do julgador, determina a correta fragmentação das atribuições de acusar e julgar, ordena a inércia judicial, extinguindo a ação penal de ofício, estipula a necessidade de motivação das decisões judiciais, dentre outros.

Desta forma, ao juiz cabe julgar após efetivado o contraditório das provas trazidas ao processo pelas partes, de modo que não lhe seja permitido deduzir hipóteses e sair em busca de provas que sustentem essa cultivada suspeita. Rangel (2013, p. 500) afirma que “colocar o juiz agindo “ex officio” na colheita da prova é contaminar sua (aparente e imaginária) imparcialidade (…).”

Quando o julgador não se dá por convencido pelas provas apresentadas pelas partes, insatisfeito com os elementos sustentadores de uma condenação, compromete sua imparcialidade a fim de superar a máxima do direito penal da presunção de inocência, e intensificar o arcabouço probatório desfavorável ao réu. A afirmação de que a colheita supletiva de iniciativa judicial propender para um sustento condenatório é irrefutável, vez que para absolver bastaria a dúvida ou mesmo a falta de provas que, por sua vez, deveriam ter sido produzidas pelo Ministério Público, no estrito cumprimento de suas atribuições.

Substituindo o protagonismo das partes e contrariando a aplicação do ônus na prova no processo penal, a iniciativa probatória reforça o contorno de um juiz inquisidor e, portanto, de um processo inquisitivo. Conforme acertado por Tourinho Filho (2013), o juiz deveria se restringir unicamente a prover a regularidade do processo, limitando-se a recolher as provas apresentadas e julgar. Contudo, assevera o autor que, infelizmente, o nosso Processo Penal apresenta acentuados traços de inquisitoriedade que desviam essa sequência de procedimentos.

A Constituição Federal de 1988, ao atribuir distintamente as funções de investigar, acusar e julgar, demonstra clara intenção de preservação da imparcialidade do juiz, deixando-o afastado da colheita de provas, conciliando com os princípios do devido processo legal e paridade de armas. Este último consagra o tratamento isonômico das partes no curso do processo e assegura mesmas oportunidades de influência nas decisões do magistrado. Observa-se, para tanto, que se trata de igualdade em seu sentido material.

Assim, quando o magistrado atua com iniciativa probatória, ocasiona claro desequilíbrio entre as forças processuais. Ou seja, ele atua de modo parcial, auxiliando a uma ou outra parte. Provar é deduzir interesse, quer dizer que se há intenção probatória, certamente há uma expectativa de resultado para integrar hipótese já formulada.

Anuncia Capez (2014, p. 72) que “a colheita da prova pelo juiz compromete-o psicologicamente em sua imparcialidade, transformando-o quase em integrante do pólo ativo da lide penal, colidindo frontalmente com diversas normas constitucionais”.

Lopes Junior (2013, p. 540) acompanha Capez ao afirmar que:

(…) mentalmente (e mesmo inconscientemente) o juiz opera a partir do primado (prevalência) das hipóteses sobre os fatos, porque, como ele pode ir atrás da prova (e vai), decide primeiro (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos (prova) que justificam a decisão (que na verdade já foi tomada). O juiz, nesse cenário, passa a fazer quadros mentais paranoicos.

Permitir um juiz com a possibilidade de determinar a produção de provas “ex officio” é retomar moldes autoritários, incompatíveis com a Carta Magna, ressuscitando os ideais fascistas de inspiração do Código de Processo Penal quando da época de sua promulgação e ainda, de modo insensato, contemporizando com a falácia do discurso de busca da verdade real.

Não se pode desconsiderar que o juiz, antes de nada, é um ser humano, passível de ser contaminado psicologicamente com as teses desenvolvidas no curso das investigações e da instrução processual. Por conseguinte, o julgador quando em iniciativa probatória, é tendente a abreviar sua decisão a ponderar as provas que sustentem a opção criativa que desenvolveu logo no início de sua atuação.

O legislador, na reforma promovida no ano de 2008 nada mais fez que acentuar os efeitos nefastos da permissão de intervenção probatória do julgador, enaltecendo a fragilidade do sistema acusatório brasileiro, que consente com postura autoritária a ser externada no processo.

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dada sua extensão e complexidade, inexistiu a pretensão de esgotamento dos debates concernentes à compatibilidade da iniciativa probatória com o sistema processual brasileiro ante ao comprometimento da imparcialidade do julgador, se reservando este ensaio à formulação de delineamentos conclusivos acerca da problemática que o ordenou.

Considerando os argumentos debatidos, a colheita de provas por iniciativa do juiz demonstra-se conflitante com os preceitos do sistema acusatório, adotado pelo ordenamento pátrio quando da promulgação da Constituição Federal da República (1988). Isso porque se atrela à finalidade (utópica) de busca pela verdade real, predispondo autoritarismo processual, ocasionando distribuição desigual da carga probatória e afastando o magistrado da exigida imparcialidade.

Quando a acusação não cumpre a atribuição constitucional que lhe foi dada, não poderia o juiz fazer suas vezes e demandar interesse através da determinação de produção de provas. Em um sistema acusatório, a distribuição de funções surge exatamente para retirar o juiz desta função de acusador.

As alterações realizadas no Código de Processo Penal (1941) – especialmente a ocorrida no ano de 2008, que alterou o art. 156, que trata especificamente da iniciativa probatória do magistrado – não propiciaram a harmonização do referido diploma com a Constituição Federal, adequando-o às garantias advindas desta nova ordem. Ao contrário, funcionaram como verdadeiros retrocessos, destinando-se tão-somente a sustentar a lógica flagrantemente autoritária inspiradora da referida lei.

Diante dos argumentos aduzidos, forçoso apontarmos a flagrante violação de garantias, tais como a ampla defesa, a paridade de armas, o “in dubio pro reo”, o devido processo legal e a imparcialidade do julgador, esta sacramentadora do princípio acusatório.

Detectou-se que para a garantia de um veredito despido de partidarismo, há a necessidade de comportamento imparcial do julgador. E que, para tal atuação, impõe-se seu afastamento da atividade probatória, visto que sua intervenção por meio de diligências probantes resulta em patologia nociva ao sistema acusatório, promovendo a contaminação psicológica do magistrado e impedindo-o de produzir julgamento isento.

De modo derradeiro, a usurpação da função de acusar, historicamente consagrado em sistemas inquisitórios, demonstra-se incompatível com o Estado Democrático de Direito. Quando atrelada à mentalidade inquisitorial e às práticas culturais forenses de mesma ordem, incluindo a produção de provas “ex officio”, o corolário é a assolação do princípio da imparcialidade do julgador e, por consequência, a ruína do sistema acusatório.

 

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[1]Advogada, formada pelo curso de Direito do Centro Universitário de Belo Horizonte. E-mail: [email protected]

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