Resumo: Objetiva-se nesta pesquisa apontar a fundamentação jurídica do direito à identidade genética e do direito à intimidade do doador nas técnicas de assistida, contrapondo os dois direitos. Para tanto, buscou-se a partir de doutrina de bioética, biodireito e direito civil, além de pesquisa jurisprudencial, verificar em quais situações estes direitos devem ser protegidos. Por fim, propõe-se a resolução do conflito entre estas garantias fundamentais com base na análise de cada caso concreto, junto a um processo discursivo permeado pelo Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Direito à intimidade genética; direito à intimidade; Estado Democrático de Direito.
1 Direito à identidade genética[1]
O direito á identidade genética tem seu fundamento com base na dignidade da pessoa humana, conforme preceitua o art.1º, inc. III da Constituição da República de 1988.
De acordo com Maria de Fátima Freire de Sá e Ana Carolina Brochado Teixeira:
“Saber de onde vem, conhecer a progenitura proporciona ao sujeito a compreensão de muitos aspectos da própria vida. Descobrir as raízes, entender seus traços (aptidões, doenças, raças, etnia) socioculturais, saber quem nos deu a nossa bagagem genético-cultural básica são questões essenciais para o ser humano, na construção da sua personalidade e para seu processo de dignificação […]” (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p.64).
Ademais, com base ainda na Constituição, o direito à identidade genética fundamenta-se com base na não discriminação, a partir do art. 3º inc. IV[2] e no art. 227 §6º[3] em analogia ao direito dos filhos adotivos poderem saber quem são seus pais biológicos.
Segue este entendimento André Rüger, para quem:
“É possível estabelecer um paralelo entre a adoção e a utilização de técnicas de RA heterólogas: o filho, em ambos os casos, não descende biologicamente de seus pais. No entanto, o filho adotivo, via de regra, tem a possibilidade de investigar sua origem biológica, através de um pedido judicial de expedição de uma certidão de inteiro teor. O registro civil mantém arquivados todos os dados anteriores à adoção, bem como o mandado judicial que determinou o cancelamento do registro anterior. […]Tal possibilidade viabiliza ao adotado o exercício oportuno do direito de conhecer as próprias origens”. (RÜGER, 2007, p.122-123).
Por meio do art.5º, inc. XIV[4] e LXXII a)[5], ambos do diploma constitucional, seria possível os filhos oriundos da reprodução assistida heteróloga requererem o acesso aos dados pessoais dos seus pais biológicos, doadores de gametas; no caso da primeira norma, por solicitação ao médico, e, para o habeas data, para que o hospital ou órgão público que detenha as informações do doador possa fornecê-las em juízo.
Ainda que a Resolução n. 1.957/2010 do CFM proíba aos receptores o conhecimento dos doadores e vice-versa, salvo em casos excepcionais, por motivação médica, que mesmo assim, resguarda o sigilo da identidade dos doadores[6], seria questionável, pois referida resolução é ato administrativo, que vincula somente a classe médica e não tem força de lei.
Sendo assim, com base no art. 5º inc. II da Constituição[7], haveria a possibilidade do conhecimento dos doadores, já que não há vedação legal[8] para tanto.
Ademais, o direito à identidade genética é consagrado pela doutrina como um direito de personalidade, ainda que não disposto taxativamente no Código Civil de 2002, pois este direito é necessário para a formação da identidade do indivíduo e sua construção biográfica.
Coadunam Maria de Fátima Freire de Sá e Ana Carolina Brochado Teixeira:
“Deflagra-se o biológico como o primeiro fator a compor a pessoa humana, que carrega consigo o dado correspondente à herança genética. Portanto, ele é inegável na composição de sua ontologia. O direito ao conhecimento da origem genética, que ora denominamos de fundamental, traz consigo a revelação da memória genética, que pode coincidir – ou não – com a memória familiar, componente indelével da historicidade pessoal” (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p. 64-65).
Como direito de personalidade, o direito à identidade genética é permeado pelo melhor interesse da criança, para proteção da saúde e conhecimento de possíveis doenças genéticas que o menor possa estar predisposto.
Paulo Luiz Netto Lóbo afirma que:
“[..] O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida. Não há necessidade de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por doador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou do que foi concebido por inseminação artificial heteróloga […]” (LÔBO, 2004, p.13).
Diante do exposto, passa-se a seguir ao estudo da fundamentação civil constitucional do direito à intimidade do doador de gametas.
2 Direito à intimidade do doador de gametas
A intimidade do doador de gametas é protegida pela Constituição de 1988 como um direito fundamental, previsto no art. 5º, inc. X.
A intimidade é um direito inviolável e, portanto, passível de indenização. Refere-se à vida privada do indivíduo, do seu viver em si, aspectos relacionados aos seus gostos, hábitos, segredos, pudores e relacionamentos íntimos e afetivos.
O elemento fundamental do direito à intimidade, manifestação primordial do direito à vida privada, é a exigibilidade de respeito ao isolamento de cada ser humano, que não pretende que certos aspectos de sua vida cheguem ao conhecimento de terceiros. Em outras palavras, é o direito de estar só. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010) (Grifos dos autores).
A intimidade do doador de gametas deve ser preservada, pois este realiza uma doação de parte de seu corpo licitamente[9], pois não compromete sua integridade física, para uma clínica de reprodução assistida, não visando ao lucro e a fins comerciais, independente do motivo, seja por caráter ideológico, como perpetuação, ou por solidariedade, para ajudar casais ou homens e mulheres solteiros a terem filhos. Ressalta-se, por conseguinte, a importância do termo de consentimento livre e esclarecido.
Carlos Nelson Konder conceitua o consentimento livre e esclarecido como:
“[…] é possível conceituar o consentimento livre e esclarecido como a anuência, livre de vícios, do paciente, após explicação completa e pormenorizadamente sobre a intervenção médica, incluindo sua natureza, objetivos, métodos, duração, justificativa, possíveis males, riscos e benefícios, métodos alternativos existentes e nível de confidencialidade dos dados, assim como de sua liberdade total para recusar ou interromper o procedimento em qualquer momento; tendo o profissional a obrigação de informá-lo em linguagem adequada (não técnica) para que ele a compreenda” (KONDER, 2003, p.61).
Sendo assim, depois de esclarecido todo o procedimento da doação de gametas, o indivíduo de forma livre, poderá aceitar o contrato de doação, sem qualquer ônus ou bônus, conforme dispõe a Resolução n. 1.957 de 2010 do CFM[10].
Ademais, a intimidade do doador é um direito de personalidade, previsto no art. 21 do Código Civil de 2002[11]. Deve-se resguardar a identidade do doador com o intuito de evitar a aproximação de um filho que nunca desejou e pode lhe causar inumeráveis transtornos, como por exemplo, na hipótese de ter constituindo uma família, ainda que não tenha deveres jurídicos decorrentes do estado de filiação, dando-se primazia, na atualidade à filiação socioafetiva.
Pontua Paulo Luiz Netto Lôbo que:
“[…] a Constituição não oferece qualquer fundamento para a primazia da filiação biológica, pois amplo é seu alcance. A primazia não está na Constituição, mas na interpretação equivocada que tem feito fortuna, como se o paradigma da filiação não tivesse sido transformado. Até mesmo no direito anterior, a filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares” (LÔBO, 2004, p.08).
Ao discutir o conflito entre este direito e a identidade genética, Maria de Fátima Freire de Sá e Ana Carolina Brochado Teixeira afirmam que:
“[…] Temos, aí, direitos personalíssimos distintos: o direito do filho e o direito do pai, ambos genéticos. O primeiro, consistente em saber sua origem, na busca da construção de sua identidade pessoal. O segundo, preza o anonimato, numa relação em que existiu, tão-somente, a doação de material biológico que permitiu a um casal ou a uma mulher sozinha ter um filho” (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p.147).
Para tentar solucionar este conflito entre a o direito à identidade genética e o direito à intimidade do doador de gametas, seria possível a criação de um banco de dados genéticos em que o filho biológico tivesse acesso somente aos dados genéticos do doador e fosse proibido o conhecimento de sua identidade. Assim, haveria proteção da saúde do filho biológico e preservação do anonimato do doador.
É o que propõe os arts. 16, §2º e 17 do Projeto de Lei n. 1184 de 2003[12] do Senado Federal que dispõe:
“Art. 16. Será atribuída aos beneficiários a condição de paternidade plena da criança nascida mediante o emprego de técnica de Reprodução Assistida.
§ 2º A pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida e o doador terão acesso aos registros do serviço de saúde, a qualquer tempo, para obter informações para transplante de órgãos ou tecidos, garantido o segredo profissional e, sempre que possível, o anonimato.
Art. 17. O doador e seus parentes biológicos não terão qualquer espécie de direito ou vínculo, quanto à paternidade ou maternidade, em relação à pessoa nascida a partir do emprego das técnicas de Reprodução Assistida, salvo os impedimentos matrimoniais elencados na legislação civil” (SENADO, 2003).
Até que referida proposição legislativa se torne lei, como resolver este conflito normativo?
Sugere-se que a possível solução seja resolvida a partir de cada caso concreto, no respeito a iguais liberdades fundamentais, na construção de um processo discursivo em que as partes e os fatos trazidos aos autos possam trazer a resposta mais correta.
Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito Público pelo IEC PUC Minas. Advogado e membro da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/MG. Biotécnico. Professor universitário.
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