O Congelamento de Pessoas*

Quando Alberto Santos Dumont, em 23 de outubro de 1906, nos campos de Bagatelle, Paris, conseguiu erguer no ar seu fantasmagórico e desajeitado “14–Bis”, não podia imaginar que naquele momento lançava as sementes de um futuro ramo do Direito, o Aeronáutico, aceito como autônomo nas mais recentes constituições brasileiras.

Espantoso é saber, hoje, que no segundo vôo, em 12 de novembro no mesmo ano, o aparelho percorreu 220 metros, em 31 segundos, na “vertiginosa” altura de dois metros. Foi o primeiro vôo controlado do homem. Uma velocidade —  37,50 km/h — ligeiramente inferior, claro, à do “tataraneto” do “14-Bis”, o supersônico Concorde.

A evolução, como se vê, foi rápida. Já em maio de 1927 Charles Lindemberg realizava a primeira travessia aérea do Atlântico, no sentido oeste – leste, a comprovar a velocidade criativa do ser humano, pelo menos na área técnica.

Quem, eventualmente, assistiu algum filme documentário sobre a história dos foguetes certamente terá se espantado com o desnorteamento desses primeiros artefatos que, contrariando os cálculos dos engenheiros, mais pareciam gigantescos busca–pés sem vara, destituídos da mais remota noção do lugar em que poderiam cair. Nesses antigos documentários é impossível deixar de rir — não obstante o trágico da situação — quando se observa a velocidade de fuga das pernas dos técnicos, engenheiros e operários —  muito superior, no chão, à do “14 – Bis”, no ar. Filmados de certa distância, os homens parecem formigas desesperadas, fugindo do provável local de impacto da máquina louca e mortal, porque carregada com toneladas de combustível.

Não obstante este difícil começo, em 1969 a “Apollo 11”, nave tripulada, pousava no Mar da Tranqüilidade, Lua. Algo, inicialmente, para muitos — mesmo com formação científica — inconcebível, porque os foguetes espaciais não possuem aletas que possam influir no seu direcionamento. No vácuo as aletas são inúteis. Como já observou alguém, o ar é inimigo do foguete e o vácuo é inimigo da aeronave. E não esquecer que quando o foguete é acionado, o nosso planeta não está imóvel. A velocidade de rotação da Terra é significativa. Só não somos centrifugamente “cuspidos” para o espaço por causa da gravidade. Um mínimo erro de cálculo no projeto e a tripulação da espaçonave perder-se-ia no imenso vazio, numa viagem sem volta. Como calcularam, sem erro, tal viagem? Hoje, a tarefa é café pequeno, comparada ao projeto de enviar nave tripulada ao planeta Marte.

Os “malucos” do foguete — não esquecer o principal, o alemão Von Braun —  não sabiam, à época, que lançavam não só seus foguetes como também as bases de outro ramo do Direito, o Espacial, igualmente alçado ao reconhecimento do legislador constituinte( art. 22 da Constituição Federal de 1988).

Von Braun era tão importante para os previdentes norte-americanos — que pouco sabiam, então, da tecnologia dos foguetes —que as bases de lançamento das “V-2” (foguetes que castigavam Londres na 2ª  Guerra Mundial) poderiam ser destruídas  pela aviação inglesa, desde que poupados os dormitórios que abrigavam os cientistas. Detalhe que dificultava a tarefa dos pilotos britânicos, obrigando-os a se aproximar perigosamente na seleção dos alvos. Mas os ingleses, embora contrariados com a restrição, provaram ter boa pontaria. Von Braun e seus colegas escaparam dos bombardeios e, finda a guerra, foram requisitados para trabalhar nos Estados Unidos, apressando a conquista espacial.

Um avanço tecnológico que, suponho, ainda vai abalar nossa civilização — com reflexos óbvios na área jurídica —, talvez em escala muito mais profunda que a invenção do avião e do foguete, está na utilização do frio como forma de preservação de corpos humanos, afetados por graves acidentes ou moléstias no momento incuráveis.

Se não nossos filhos, pelo menos nossos netos bacharéis terão que coçar a cabeça e criar normas jurídicas para disciplinar o espinhoso campo da criogenia, ou criobiologia, no item de conservação de seres humanos  em temperaturas extremamente baixas, para descongelamento futuro. Haverá, consequentemente, em remoto futuro, um “Direito Criônico”.

A conservação, pelo frio, de frutas, carnes, peixes, sêmen, ou óvulos fertilizados é, hoje, algo rotineiro. Tais atividades referem-se à criogenia. Todavia, para a “ciência”, ou técnica — ainda incipiente — de conservação de seres humanos não foi ainda cunhado um específico termo, no nosso idioma. E o caminho natural para esse “batismo” parece ser o aportuguesamento da palavra inglesa “cryonics”, adotada por Robert Ettinger, professor de Física norte americano, no seu livro “The Prospect of Immortality”, publicado em 1964. O acesso a informações sobre esse tema,  na Internet, só é possível digitando-se a palavra  “cryonics”.

“Criônica”, portanto, será a provável denominação dessa novíssima área de pesquisa. De qualquer forma, a palavra é o que menos importa, não tendo o signatário objeção ao uso de qualquer outro termo, melhor escolhido por mentes autorizadas do mundo acadêmico.

Mesmo  o leitor mais tolerante deve estar se perguntando: —  O que leva o autor deste artigo a procurar tão esdrúxula matéria? Não estaria o tema melhor localizado em uma revista de Ficção Científica?

Realmente, o assunto cabe nos dois espaços. E também no médico. Pondero, a título de justificação, que os bacharéis também têm o direito de especular com o futuro; embora o Direito, normalmente, só seja lembrado depois do trabalho pioneiro dos cientistas e inventores. E assim mesmo quando surgem os primeiros conflitos de interesse. O Direito é como o “leão de chácara”, ou o agente policial: só é convocado após as primeira brigas no baile. Como, no Brasil, pelo menos, não houve ainda qualquer conflito jurídico relacionado com o congelamento de pessoas, para revivificação futura é natural que aqui se desconheça até a palavra. E satisfaço a curiosidade do leitor quanto à origem do aparecimento do tema.

Vários meses atrás li, nas notícias internacionais de um jornal paulistano, que uma senhora inglesa, portadora de doença incurável — a notícia era muito sumária, quase telegráfica —, havia procurado uma firma especializada em congelamento de coisas vivas em nitrogênio líquido — 196 graus centígrado negativos. Pretendia manter-se congelada até o momento em que a ciência estivesse em condições de, não só curar sua doença, como também de reparar os danos causados pelo prolongado congelamento.

Dizia, ainda, o jornal, que o preço exigido para a conservação do corpo inteiro era elevadíssimo — salvo engano do jornal, oitocentos mil dólares. Assim, não dispondo de tal quantia, referida senhora contratou a empresa para que conservasse apenas a cabeça (“neurosuspensão”), o que implicaria na redução dos custos para trezentos mil dólares. Confiava, certamente, na possibilidade futura, embora remota, de “transplante de corpo”.

Aparentemente, referida senhora pagou caro, porque atualmente, no Arizona, EUA, uma entidade denominada “Alcor Life Extension Foundation” cobra cento e vinte mil dólares para a conservação de um corpo inteiro. Redução que parece ser um grande avanço, em termos de incentivo à difusão da idéia e presumindo-se que se trate de entidade séria. O exótico da iniciativa, por si só, não implica em desonestidade porque freqüentemente presenciamos novidades impensáveis poucas décadas atrás. E pelo que tenho lido, um grande entusiasmo contagia os interessados em transformar a mera possibilidade em realidade.

Como se tratava de uma notícia sobre fato real, não uma brincadeira de ficção científica, ou literatura de horror — a menos que se cuidasse de pouco provável irresponsabilidade do jornal  —   interessei-me pelo problema como tema para futura obra de ficção, sem pensar nos desdobramentos jurídicos.

Procurando material informativo, a primeira providência natural seria dirigir-me às livrarias especializadas em Medicina, mas as funcionárias de plantão nem mesmo sabiam do que se tratava. Desconheciam até as palavras.

Através da “Livraria Cultura”, que lida com livros importados, fiquei ciente da existência de um livro, “The First Immortal” ( “O Primeiro Imortal”), de James L. Halperin, editora Del Rey. Trata-se de um romance, obra de ficção, mas que poderia trazer algumas primeiras informações. Afinal, seria preciso começar a pesquisa por algum lugar. À míngua de obras “sérias” — jurídicas, nem pensar!— a solução seria iniciar pelo tal livro.

Ao iniciar a leitura não esperava é que o autor da obra fosse tão aberto, tão sinceramente entusiasta de um tema cujo simples enunciado provoca imediata reação de incredulidade O autor mostrava-se absolutamente confiante quanto à real utilidade dessa nova tecnologia, que mexerá com a profunda fome de eternidade que assola o homem desde o momento em que começou a refletir sobre a perspectiva da morte. Ao contrário de muitos autores que, se “fecham” quando encontram um novo filão, James Halperin menciona, no livro, todas as fontes informativas, possíveis e imagináveis, dando endereços completos e praticamente oferecendo a casa dele para receber as visitas dos interessados no assunto.

Da leitura do livro e de outras fontes, via Internet, conclui-se que as entidades que iniciaram, efetivamente, essa atividade pioneira — ditas sem fim lucrativo, não sei se todas, e que não relaciono aqui porque não visitei pessoalmente nenhuma delas —,  admitem que até agora não conseguiram a “vivificação”, digamos assim, de nenhum dos “pacientes” ( eles utilizam essa palavra, jamais “cadáveres”, “defuntos”, ou termos semelhantes).

Os adeptos da revolucionária novidade apoiam-se na possibilidade teórica da preservação das células, na temperatura do nitrogênio líquido — 196 graus Celsius negativo, como disse — até o momento em que não só a doença do paciente for facilmente curada como também revertidos os danos causados pelo esfriamento. E com o “bonus” eventual de um indefinido prolongamento da vida,se detido ou parcialmente revertido o processo de envelhecimento.

Que o frio extremo paralisa a atividade das toxinas destruidoras das células, não é novidade. Em regiões geladas, há casos de pessoas encontradas aparentemente mortas, com grave hipotermia, congeladas por algumas horas, e que, convenientemente aquecidas e com auxílio de medicamentos conseguem voltar ao estado normal. E, como disse, o congelamento de esperma, de bovinos e humanos também é procedimento cientificamente banal, não havendo indícios de que bezerros e  pessoas concebidas com esperma congelado sejam  de alguma forma inferiores àquelas concebidas normalmente.

O grande problema técnico da criônica — adotemos, pelo menos por enquanto, essa denominação — reside no fato de nossas células conterem um alto percentual de água. Quando a água se congela formam-se cristais, dotados de arestas que perfuram a membrana celular. Ao que deduzi, no processo de descongelamento a água “vaza”, congelando-se do lado de fora das células, entre elas. Com a conversão da água em cristais de gelo há um processo de dilatação, algo parecido com a ruptura dos canos que levam a água das ruas até as residências, nos países de clima frio.

Para minimizar tais danos celulares, as entidades que atualmente congelam seres humanos retiram o sangue do indivíduo imediatamente após o seu falecimento, injetando em suas artérias e veias uma substância chamada glicerol, que suaviza o problema da formação dos cristais. E  impregnam os corpos com anticongelantes, permitindo que a água permaneça em baixíssimas temperaturas sem o congelamento ( é, pelo menos, o que dizem). Tais anticongelantes exerceriam função semelhante àquela exercida por seus equivalentes usados em radiadores de veículos, nos climas gelados.

Os entusiastas da criônica apostam na invenção de uma técnica futura que resolva esse problema dos cristais de gelo. Problemas muito maiores, dizem eles, já foram solucionados pela humanidade. Por que apenas esse seria insolúvel?

Outra abordagem dos novos desbravadores está na utilização futura da nanotecnia, ou nanotecnologia, isto é, a técnica de elaboração de “máquinas” microscópicas que, injetadas imediatamente após o descongelamento, reparariam, uma por uma , as células danificadas. Quem, ao que sei, mais desenvolveu as especulações a respeito dessa ultra-revolucionária perspectiva — a nanotecnologia, reconstrução das coisas em nível molecular — é um cientista de nome Eric Drexler, que publicou um livro denominado “Engines of Creation”, e um trabalho mais técnico chamado “Nanosystems”.

O uso da nanotecnologia ( “nano” vem de “anão”) para reparação de milhões de células danificadas pelo congelamento já é algo mais duro de “engolir”, intelectualmente. A confecção de tais “máquinas” parece-me coisa para se pensar somente em futuro remotíssimo, bem além de um século. É certo que a engenharia genética já trabalha a nível molecular, alterando a  posição dos  genes dentro dos cromossomos, mas é pedir demais acreditar que tão cedo se possam criar essas microscópicas “máquinas” — ainda mais feitas de proteína! —, aptas a consertar, uma por uma, as células danificada.

Os defensores dessa nova técnica, a nanotecnologia — que seria, na Biologia, e demais áreas, mais revolucionária que o “chip” do computador — argumentam que alguns seres microscópicos, os vírus, já fazem, “naturalmente”, tais operações celulares, sem qualquer “formação” universitária. Esses minúsculos seres grudam-se à membrana de uma bactéria, fazem nela um orifício, injetam seus DNAs dentro da bactéria e esta passa a gerar, não novas bactérias, mas novos vírus. Tornam-se “fábricas”, ou “úteros”, de vírus invasores. E  os glóbulos brancos são eficientes policiais em luta constante contra bactérias. Só perdem a batalha quando o número de atacantes é muito superior à capacidade defensiva.

Como a natureza consegue criar tais engenhosidades é realmente um mistério. Pessoas religiosas têm um nome para isso, Deus, enquanto os cientistas agnósticos ficam pensando, intrigados com o fenômeno. Parece-nos demais aceitar que nós, humanos, possamos fabricar e instruir uma “maquininha” capaz de “reparar” células danificadas pelo frio, ou provocar a formação de réplicas sãs dessas mesmas células, quando irreparavelmente destruídas. Parece-nos tarefa científica para um futuro remotíssimo, se é que chegaremos lá um dia. Mas quem arriscaria todo o seu patrimônio na aposta de que tais “maquininhas” não sejam construídas nos próximos quarenta anos, com a nova técnica da nanotecnologia? Estados Unidos e Japão investem pesado nessa área, o que basta para o cético por suas barbas de molho e não arriscar demais em qualquer aposta.

Nada a opor, entretanto, quanto a essa ambiciosa intenção de utilização da nanotecnologia para o conserto de células danificadas. O mundo nada tem a perder, exceto tempo, com tais projetos e tentativas. Particularmente, arrisco meu palpite mais na possibilidade da ciência resolver o problema da danificação das células congeladas de outro modo: impedindo a formação dos cristais.

Alguém, com senso prático, poderá perguntar: Como é que existem pessoas, nos EUA. que arriscam seu dinheiro nessa aventura quando os próprios técnicos confessam que a ainda não “ressuscitaram” um só paciente? Nem mesmo um gato foi “revivido”.

A explicação é simples. Se o paciente sofre de moléstia incurável, apenas aguardando a morte para breve, com enterro ou cremação, o percentual de chance de voltar à vida é zero. Se, entretanto, for congelado, e “acordado” daqui a cinqüenta ou cem anos, a chance será superior a zero, porque a evolução científica é rápida e imprevisível. Em teoria, pelo menos, é perfeitamente concebível um rápido congelamento, seguido da volta ao “status quo”, desde que descoberta a técnica adequada e consertados os danos causados pelo frio. Enquanto perdurar o congelamento não há qualquer apodrecimento dos tecidos.

Em 1966 um cientista japonês, Isamu Suda, congelou o cérebro de um gato após impregná-lo com glicerol. Um mês depois, descongelou cuidadosamente o órgão. Submetido a um eletroencefalograma o aparelho registrou “traços’ de algumas funções cerebrais. É pelo menos o que diz uma página da Internet, “A Short History of Cryonics”, de autoria de Charles Platt. A tese do japonês, segundo o mesmo autor, teria sido publicada na revista “Nature”, periódico de bom conceito no campo da Biologia.

Há também uma boa justificativa, ou desculpa, para não se descongelar, hoje, pacientes mantidos em refrigeração: trata-se de pessoas portadoras de males incuráveis, quase sempre cancerosas, doença para a qual ainda não existe tratamento seguro. Descongelar pacientes, no momento, a título de demonstração — com imediato apodrecimento —, seria irresponsabilidade e quebra de contrato. O compromisso da entidade é de descongelar o “cliente” apenas quando a sua doença for perfeitamente curável, quando será aplicada a técnica capaz de reverter os danos causados pelo próprio frio. É preciso lembrar que o frio extremo também pode provocar fraturas.

Ao que dizem os entusiastas da criônica, alguns cães foram descongelados, aparentemente sem dano, mas somente poucas horas após o congelamento. Uma afirmação que se precisaria conferir.

Um problema que ainda amarra a difusão dessa inusitada — os espiritualistas diriam “aberrante” — tentativa de sobrevivência física após a morte está no custo financeiro. As entidades que inicialmente se dedicavam a essa atividade recebiam dos parentes do paciente a promessa de uma contribuição mensal para o custeio do serviço de conservar  o corpo em nitrogênio líquido. Por mais isolado, termicamente, que fique o corpo nas suas caixas —”dwar” —, um pouco de calor ambiente penetra no recipiente de alumínio, evaporando parte do nitrogênio, que mantém o frio. Assim, é preciso, com certa periodicidade, acrescentar mais nitrogênio líquido, o que custa dinheiro, se bem que não muito pois o nitrogênio, em si, é muito abundante na natureza..

A experiência, entretanto, comprovou que essa sistemática financeira não era adequada. Os parentes do “morto” logo perdiam o interesse de aplicar recursos em algo tão incerto — e conflitante com seus próprios interesses. Se “o velho doido realmente acordar” — eles pareciam pensar — será que não vai exigir o dinheiro da herança de volta?”. Assim, sem recursos para a manutenção dos corpos os pacientes acabavam descongelando parcialmente.

Em 1978 surgiu uma demanda nos EUA que abalou severamente a já exígua confiança da população nessa história de congelar pessoas. O episódio ficou conhecido como “O Escândalo de Chatsworth”.

Robert Nelson, o primeiro “crionauta”, grande entusiasta do assunto, talvez um homem honesto — anteriormente simples consertador de aparelhos de televisão —, foi o fundador da “CSC – Cryonic Society of California”. De boa ou má-fé — desconheço as minúcias do caso —, foi acusado, pelos parentes de um dos pacientes, de negligência na conservação dos corpos, permitindo que os mesmo se danificassem. Jornalistas, policiais e legistas obtiveram autorização judicial para examinar os porões da empresa e constataram que os corpos estavam apenas parcialmente congelados, o que resultou na condenação da CSC a pagar alta indenização, juntamente com o agente funerário que o ajudava nos trabalhos de preparação dos pacientes.

No processo, Robert Nelson alegava que a acusação contra ele viera dos mesmos parentes que não pagavam a manutenção dos pacientes, não cabendo, assim qualquer dano moral. E os parentes acusados argumentavam que não pagavam justamente porque não confiavam na seriedade do negócio. Ao que deduzo — porque não tenho como examinar o caso a fundo —  a questão se tornou semelhante à velha disputa filosófica, de sabor popular, sobre a antecedência existencial do ovo ou da galinha.

De qualquer forma, o caso teve repercussão ruinosa à reputação da criônica, mas serviu para provar o equívoco da sistemática de se deixar para os parentes do “morto” a incumbência de pagar a manutenção do paciente. Assim, os incansáveis entusiasta da novidade passaram a exigir pagamento adiantado.

A nova técnica financeira, todavia, apresentava a desvantagem de exigir uma verba alta para algo tremendamente incerto. E os parentes “do velho maluco” tinham bons motivos para se opor a esse desfalque em suas vivas — em todos os sentidos — perspectivas financeiras. Mesmo porque, convenhamos, a tese do congelamento de pessoas é campo propício aos espertalhões de todo o gênero. Como saber se o “empresário do gelo” está mesmo agindo de boa-fé? Quem garante que a “firma sorveteira” — assim devem ter se expressado seus inimigos — vai estar operando daqui a vinte, trinta, cinqüenta  anos?

Novamente, os ousados norte-americanos encontraram uma saída financeiramente mais engenhosa: o paciente, bem antes do seu fim, antes mesmo de ficar com doença incurável, faz um seguro de vida, instituindo a entidade “congeladora” como beneficiária. Com um prêmio mensal relativamente baixo, um homem de trinta e cinco anos pode acalentar a idéia de uma, quem sabe, quase eternidade — supondo-se que daqui a cinqüenta, cem anos, o processo de envelhecimento esteja parcialmente detido por meio da engenharia genética. E os possíveis herdeiros não sentirão uma sensação de perigo, vendo o pai se congelar, desde que o amado paizinho faça um testamento dizendo expressamente que os seus bens ficam para os herdeiros, em definitivo, após o congelamento,  reservando uma pequena parte para o “jogo” cujo resultado depende do avanço da ciência..

As poucas entidades que, nos EUA, trabalham nessa área, aconselham os candidatos a contratarem o seguro de vida, em favor da empresa, o mais cedo possível, porque quanto mais jovem o candidato a segurado, menor o premio mensal exigido pelas seguradoras. Lembre-se que pessoa atacada de doenças graves não é aceita pelas companhias de seguro. E se ela omitir a doença na proposta, a indenização não será paga.

Com o tempo, as entidades do ramo também aprenderam que tinham de operar com base mais profissional, diminuindo os riscos financeiros de uma demanda de indenização que pode arrasar qualquer empresa. Se uma empresa dessas tiver que pagar alta indenização, ficará privada dos fundos necessários à manutenção dos demais pacientes congelados, que nada têm a ver com aquele processo, e que serão “derretidos” não só em suas esperanças como também em suas próprias bases físicas.

Pensando nisso, as empresas passaram a operar em segmentos distintos: umas cuidam apenas das providências físicas iniciais, logo após a morte do paciente. Outras cuidam somente da conservação. Objetos sociais e patrimônios distintos. Se um parente achar que seu pai foi “pressionado” a assinar o contrato, não estando, em razão do desespero causado pela doença, em condições de bem discernir o que fazia — e convencer disso o tribunal — a indenização será imposta apenas à empresa que contratou com o paciente. A entidade incumbida da conservação nada tem a ver com o alegado vício de vontade, com aquela demanda, não sofrendo abalo capaz de comprometer seu objeto social.

Como se vê, se chegar ao Brasil essa estranha atividade — o que duvido que ocorra tão cedo porque o brasileiro é mais desconfiado que o americano, acostumado a ousar o impensável —, múltiplos serão os problemas jurídicos a serem solucionados. Principalmente na área criminal, pois é da essência dessa nova atividade empresarial congelar o paciente o mais depressa possível, após a morte, antes que ocorra a mínima deterioração orgânica. A presença dos paramédicos ao lado do iminente defunto ( nem sempre figura “eminente”), esperando, atentos, o falecimento, poderá caracterizar o induzimento ao suicídio, ou mesmo uma eutanásia. Um paciente com início do “Mal de Alzheimer” achará conveniente se congelar antes que seu cérebro fique totalmente deteriorado mas aí, tecnicamente, ocorrerá um suicídio. E a “equipe” da entidade conservadora dificilmente escapará de uma suspeita de induzimento ao suicídio. Outro problema: se congelado um criminoso, corre contra ele, nesse período, a prescrição? A legislação, como se vê, terá que ser profundamente alterada, principalmente criando mecanismos de vigilância das entidades que se dedicarem a essa estranho e lúgubre atividade.

As religiões se levantarão contra a idéia de um eventual “retorno”. Dirão: – ” E a alma, como fica? Nos anos de congelamento, por onde andará? Um budista dirá que foi reencarnada. Assim, como trazê-la de volta, abandonando o novo corpo?”

Tudo isso soa agora como divagação ociosa, um quase insulto à inteligência. Mas tenho certeza que a humanidade — melhor, uns poucos obcecados — persistirá nesse caminho e ainda vai conseguir “acordar” pessoas após longo congelamento. Se vai ser recomendável, não sei. Mesmo porque, dando certo, surgirão novos problemas sociais, inclusive de aumento populacional. O que pode frear o desenvolvimento dessa atividade é a perspectiva, cada vez maior, de a engenharia genética alterar o processo de envelhecimento, fazendo com que as células se renovem como se integrassem um organismo jovem.

Uma coisa é certa: o homem anseia pela imortalidade. Da forma que for possível. Espiritual ou material. Atualmente,  apenas espiritual — mesmo porque não havia outra alternativa. Agora, com este  mero aceno de uma eternidade biológica, centenas ou milhares de pessoas tentarão embarcar nessa aventura, desde que economicamente viável. Assumirão o risco, pura e simplesmente. Inclusive o de “acordar” em um mundo totalmente diferente, o que para muitos é  algo excitante, não triste. Presumem que o “novo mundo” será menos hostil que o atual, porque mais civilizado. Algo assim como homens e mulheres da idade da pedra acordando em pleno centro refinado de Paris.

Sempre existiram e existirão os aventureiros. Os vikings arriscavam-se pelos mares sem grandes cautelas, até mesmo desconhecendo a bússola.

Para muitos, a vida é excessivamente curta. Mesmo agora, com uma expectativa média de setenta e cinco anos. Até os vinte anos o “cavalinho” galopa alegremente pelo mundo, relinchando e escoiceando de alegria — isso se tiver tido sorte na “escolha” dos pais. Depois, cai na dura luta pela sobrevivência. Luta para sustentar a família, raramente trabalhando no que realmente gosta. Entrando na aposentadoria, poderia fazer o que realmente sempre quis, mas aí  percebe que suas forças estão em clima de fim de festa, acenando adeusinho em despedida. E morre frustrado.

A criônica será essencial para a conquista do espaço. Para o homem atingir outros sistemas solares, mesmo da nossa galáxia, terá que tripular as naves espaciais com pessoas de extrema longevidade, tendo em vista as enormes distâncias. E nenhum cosmonauta espera viver, agora, trezentos ou quatrocentos anos.

“Ars longa, vita brevis”, foi sempre a queixa dos artistas. E não se argumente que nossos filhos e netos terminarão as obras por nós iniciadas. Não! Eles nascem com outros interesses. E têm direito a isso. O pai é, digamos, um grande cientista, com longo projeto de trabalho pela frente. O filho, porém, prefere passear de moto,  escrever versos, construir prédios, desenhar carros, chutar bola ou escrever obras jurídicas. Cada geração que vem ao mundo é uma nova invasão de bárbaros, já disse alguém. O trabalho do cientista será, talvez, terminado por uma estranho. E muito depois da sua morte, porque ele não vinha tão “embalado” quanto o falecido. Mesmo um médico, interessado apenas em sua profissão, dificilmente poderá abarcar todo o conhecimento médico de nossa época. E essa limitação, para alguns, “dói”. Se há quem repreenda essa excessiva curiosidade intelectual, outros a defendem, dizendo que tais curiosos são o sal da terra.  Outros gostariam de dominar várias línguas. Para gente tão curiosa nossa atual extensão de vida é insatisfatória. Há quem goste de viver, aprender e produzir coisas do mundo do espírito. Disposto a lutar por uma duração muito maior que a atual. Quem quiser, que morra logo; ele, não!

Até agora a “eternidade” estava restrita à alma, ou memória. Deixar um bom nome na face da terra. Escrever um grande livro, pintar um quadro famoso, compor música inigualável, ser indicado para um “Oscar”. Pelo menos uma placa de rua, ou um banco de cimento, com seu nome, na pracinha do interior. Ou, até mesmo, paradoxalmente — se não houver outra alternativa —, cometer um crime que lhe dê notoriedade, mesmo negativa. Uma forma de continuar “vivendo”, pelo menos a memória de alguém.

O homem não aceita é a idéia do nada. Principalmente do “seu” nada. Revira-se inquieto na tumba, meio descarnado, fedendo, rilhando os dentes, falsos ou verdadeiros, só em pensar que ninguém se lembrará dele como uma pessoa importante, pelo menos de algum modo.

Assim é a humanidade. E por isso não tenho dúvida de que, mais cedo ou mais tarde, aqui mesmo no Brasil, surgirão as entidades — honestas ou  desonestas, como em tudo o mais — que explorarão esse anseio jamais satisfeito por uma vida bem mais longa e certamente mais promissora, em tempos desconhecidos. Se o “cliente” vai acordar — se acordar — meio abobado, paciência. É o que possivelmente acontecerá nas primeiras tentativas. E as companhias seguradoras estarão de olho nesse novo mercado. Os próprios médicos, agora cautelosos quanto ao assunto — receiam se desmoralizar — examinarão melhor as possibilidades técnicas. Concluirão, certamente, que a tarefa de salvar a humanidade da doença e da morte não implica, necessariamente, em restringir sua missão apenas ao uso dos recursos técnicos atualmente disponíveis. Envolverão seus pacientes desiludidos, desistentes, em cápsulas geladas e os deixarão aos cuidados dos futuros médicos, hoje bebês.

 

*O ensaio foi publicado na Revista do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo, Ano 2, n.3, janeiro-junho de 1999, pág. 113 e seguintes, e deu origem a um romance de 370 páginas publicado pela EI – Editora Inteligente.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues

 

Advogado, Desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo

 


 

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