Resumo: Este artigo científico tem por objetivo apresentar os resultados provenientes da pesquisa científica desenvolvida sob o tema “O papel dos princípios jurídicos na sociedade contemporânea”. Sob o prisma da temática proposta, analisou-se a possibilidade de apreciação, por parte do Judiciário, do mérito do ato administrativo, por força imperativa dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública. Hoje, o controle jurisdicional do mérito administrativo se constitui em um paradigma que, pouco a pouco, vem sendo quebrado pelos pensadores do Direito e inseridos nos bancos escolares, para que, em um Estado Democrático de Direito, possa haver o fiel cumprimento dos objetivos constitucionais previstos à República.
Palavras-chaves: Ato Administrativo. Controle do Mérito Administrativo. Controle Jurisdicional do Ato Administrativo. O Ato Administrativo e os Princípios Constitucionais.
Abstract: This paper aims to present the results from scientific research developed under the theme “The role of legal principles” in contemporary society. The thematic proposal, it was examined whether the possibility of appreciation by the Judiciary, merit Act managerial imperative, by virtue of the constitutional principles that govern the public administration. Today, the judicial control of administrative merit is a paradigm that little by little has been broken by thinkers of law and entered in the school so that, in a democratic State of law, there may be the faithful observance of constitutional objectives provided for in the Republic.
Keywords: Administrative Act. Administrative Control of Merit. Judicial Control of Administrative Act. The Act Administrative and Constitutional Principles.
Sumário: 1. Introdução; 2. Princípios constitucionais que regem a administração pública; 2.1. Princípio da Legalidade; 2.2. Princípio da Impessoalidade; 2.3. Princípio da Moralidade; 2.4. Princípio da Publicidade; 2.5. Princípio da Eficiência; 3. O ato administrativo; 4. Ato administrativo vinculado e discricionário; 5. Mérito do ato administrativo; 6. A tutela jurisdicional; 7. O controle jurisdicional do ato administrativo e a análise do mérito; 8. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A presente pesquisa foi desenvolvida sob a temática “O papel dos princípios jurídicos na sociedade contemporânea” e tem por principal objetivo abordar o poder-dever do Judiciário em analisar o mérito dos atos administrativos frente aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública.
Há, no momento histórico atual, a necessidade de uma quebra de paradigmas no âmbito do Direito Administrativo, diante da transição de uma visão oriunda do Estado anteriori[1] a 1988 ao Estado posteriori[2], ou seja, o Estado Constitucional de Direito.
Diante da problemática posta, se abordará o tema, sob dois prismas, denominados, neste estudo, de visão clássica e visão contemporânea do Direito Administrativo.
A primeira, defendida por grande parte da doutrina e dominante na jurisprudência, defende que o judiciário não deve apreciar o mérito do ato administrativo sob pena, dentre outras, de quebra do princípio da separação dos poderes, cabendo, apenas, apreciação de legalidade.
A segunda, que, dia após dia, busca o espaço nos bancos escolares, na doutrina e na jurisprudência, é a vertente digna de um Estado de Direito, a qual defende a apreciação do mérito do ato administrativo sob diversos aspectos, dentre os quais, se destaca o objeto da pesquisa, os princípios constitucionais elencados no Art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988.
A abordagem proposta iniciará com a apresentação dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública, passando à análise do ato administrativo com as peculiaridades do ato vinculado e do ato discricionário, o mérito administrativo, a tutela jurisdicional e, por fim, ao controle jurisdicional do ato administrativo e a possibilidade de análise do mérito.
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS QUE REGEM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A Constituição Federal, em seu capítulo VII, destinado à Administração Pública, logo no Art. 37, caput, elenca o seguinte[3]:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […]”
É de fundamental importância destacar que, na Constituição Outorgada de 1967 e suas alterações, não havia alusão específica à Administração Pública, tampouco referência a seus princípios, o que, em um Estado de Polícia, não se torna perplexo.
Assim, se discutirá individualmente os cinco princípios constitucionais que tangem à Administração Pública como um todo, direta ou indireta, de qualquer dos poderes de todos os entes da federação.
2.1. Princípio da Legalidade:
Sob a ótica deste trabalho, não se pode coroar o princípio da legalidade como o rei dos princípios, conforme faz a doutrina clássica. Não há dúvidas de que, em um Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade tem papel relevante, uma vez que limita o poder do Estado. Por outro lado, não há de se falar apenas neste princípio, tampouco adotar a visão retrógrada, primitiva e não mais vislumbrada, da legalidade absoluta, incontestável, inflexível.
Juarez Freitas, ao se referir ao princípio da Legalidade, aponta o seguinte[4]:
“Pois bem: a legalidade é valioso princípio, mas princípio entre outros de igual hierarquia alojados no texto constitucional. Daí se exige a “atuação conforme a lei e o Direito”. O princípio da legalidade só experimenta significado na interação com os demais princípios e direitos fundamentais. Quer dizer, pensar o Direito Administrativo exclusivamente como mero conjunto de regras legais seria subestimar, de forma ruidosa, a complexidade do fenômeno jurídico-administrativo”.
Por certo, o chavão “A administração só faz o que está previsto em lei”, conhecido por várias gerações do Direito, sob este novo prisma, do Direito Administrativo Contemporâneo, seria colocado em dúvida, uma vez que, nem sempre a Administração poderá fazer o que a lei, isoladamente, determinar, assim como, nem sempre, poderá deixar de fazer alguma coisa apenas por não existir previsão legal.
2.2. Princípio da Impessoalidade
O princípio da impessoalidade surge do dever da Administração nortear suas ações visando, sempre, o interesse público.
Celso Antônio Bandeira de Mello define, em poucas palavras, o princípio, sob o seguinte aspecto[5]:
“Nele se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismos nem perseguições são toleráveis. […] O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.”
Ao codificar este princípio, o constituinte buscou criar obstáculos às atuações geradas por interesses pessoais, sejam negativos, sejam positivos. A impessoalidade deve nortear a administração em todos seus atos.
2.3. Princípio da Moralidade
O princípio da moralidade vincula ao administrador aos valores de ética e honestidade. Hely Lopes Meirelles, além de apontar que a moralidade, hoje, é pressuposto de validade do ato administrativo, retrata a relevância do princípio frente à atuação administrativa[6]:
“[…] o agente administrativo, como ser humano dotado de capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. Por considerações de Direito e de Moral, o ato Administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto, confome já proclamavam os romanos: “non omne quod licet honestum est”.
Entende-se por moralidade, um conjunto de preceitos enquadrados dentro dos padrões de conduta subjetivamente aceitos pela coletividade. Dessa forma, é dever do administrador público, sempre, em suas ações, objetivar não apenas às legais, mas às que melhor seriam julgadas, pela sociedade, como probus[7], aplicadas aos determinados casos concretos.
2.4. Princípio da Publicidade
O princípio da publicidade está intimamente ligado ao dever administrativo em divulgar e dar transparência a todas suas ações, ou seja, nenhum ato administrativo se realiza às escuras, com ressalvas, claro, àquelas situações previstas na própria constituição e na legislação infraconstitucional. O princípio da publicidade dos atos administrativos vem sendo consolidado, principalmente, após a Constituição Cidadã, como natural ao trato da res publica[8], a informação de tudo o que é realizado em prol da sociedade. Odete Medauar sintetiza a função do princípio da publicidade no novo contexto histórico brasileiro[9]:
“A Constituição de 1988 alinha-se a essa tendência de publicidade ampla a reger as atividades da Administração, invertendo a regra do segredo e do oculto que predominava. O princípio da publicidade vigora para todos os setores e todos os âmbitos da atividade Administrativa.”
2.5. Princípio da Eficiência
O princípio da eficiência foi incluído entre os princípios constitucionais da Administração Pública por intermédio da E/C 19/98. Este princípio nada mais retrata se não o dever do administrador público visar à melhor opção, o melhor meio, para atingir o fim almejado. Não basta uma escolha legal e moral, se ela não for a mais eficiente, melhor adequada ao caso concreto. O ato administrativo deve ser legal, moral e eficiente. O princípio da eficiência jamais dispensaria a moralidade e a legalidade, sob pena de ressuscitar o fantasma “dos fins justificarem os meios”.
Maria Sylvia Zanella di Pietro apresenta dois aspectos importantes para a convicção de o que seria eficiência[10]:
“O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.”
3. O ATO ADMINISTRATIVO
Vistos os princípios constitucionais, os quais devem estar presentes em todas as condutas administrativas, se passa ao estudo do ato administrativo. Não pode se pensar que seja fácil conceituar o ato administrativo, uma vez que, no decorrer de sua existência, seu conceito deve sofrer as mutações adequadas ao seu contexto histórico.
Não fosse assim, haveria o risco de se viver eternamente atrelado a um regime arbitrário, justificado apenas e tão somente pela letra crua da lei. Seu conceito deve e sofre adequações, justificadas pela necessidade inerente ao ser humano em não se tornar retrógrado.
Hely Lopes Meirelles aborda o ato administrativo como unilateral, já que, em contrário, o considera um contrato administrativo. Observa que seja ato administrativo apenas o praticado sob a imposição da supremacia do interesse público, característica autêntica da Administração Pública, quando age como tal, pois, se assim não for, iguala-se ao particular e o ato administrativo torna-se um mero ato jurídico privado. Deve conter manifestação de vontade, provir de agente competente, ter finalidade pública e forma legal[11]:
“Ato administrativo é toda a manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria.”
Maria Sylvia Zanella di Pietro apresenta o ato como uma declaração do Estado, abrangendo os três poderes ou quem lhe represente, inovando, ao justificar que se trata de uma declaração, pois, assim, o próprio silêncio, mesmo não sendo uma exteriorização de pensamento, é, por consequência, uma manifestação apta a produzir efeitos jurídicos imediatos (afastando de seu conceito o regulamento) e, principalmente, por afirmar que o ato está, sempre, passível de controle judicial[12]:
“[…] declaração do Estado ou quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário.”
Celso Antônio Bandeira de Mello trata o ato administrativo como uma declaração jurídica, pois produz efeitos de direito, complementar à lei e, em caráter excepcional, da própria constituição, provinda de qualquer elemento, no exercício da atividade pública, investido com prerrogativas estatais, tão somente sob a regência do Direito Público[13]:
“[…] declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”.
Odete Medauar, em uma perspectiva conceitual moderna, afirma que o ato não deve ser tratado como uma manifestação de vontade do Estado, pois poderia levar á idéia de “vontade” em sentido subjetivo, afrontando, assim, o princípio da impessoalidade. O ato administrativo, para ela, expressa às decisões, proferidas, sob a luz da legalidade, por agentes estatais, que geram efeitos jurídicos[14]:
“[…] um dos modos de expressão das decisões tomadas por órgãos e autoridades da Administração Pública, que produz efeitos jurídicos, em especial no sentido de reconhecer, modificar, extinguir direitos ou impor restrições e obrigações, com observância da legalidade”.
Sob a temática proposta à pesquisa, se apresenta um conceito ao ato administrativo, calcado nos princípios constitucionais da Administração Pública. Não há necessidade de destacar que todo o ato administrativo está suscetível à apreciação jurisdicional, pois, neste momento histórico, tal afirmação já se torna pleonástica.
Adota-se a visão contrária à “manifestação ou declaração de vontade”, justificada pelo princípio da impessoalidade muito bem destacado por Odete Medauar ao formular seu conceito, adotando-se, ainda, o termo “expressão”, seja silenciosa, escrita, oral ou gestual.
Deve ser praticado no exercício da função pública, sob pena de se vincular a bel prazeres e vontades pessoais do agente em momentos e situações inoportunas.
É praticado por qualquer dos Poderes de qualquer Ente quando do exercício administrativo, vinculando-se, por conseguinte, não apenas ao princípio da legalidade, mas também da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Produz efeitos jurídicos, e, aqui, não se afasta o regulamento, uma vez que o mesmo só deixaria de ter valor administrativo para normativo nos casos em que o legislador se utilizasse do princípio da deslegalização ou degradação do grau hierárquico. Neste caso, uma lei, sem entrar na regulamentação da matéria, rebaixa formalmente o seu grau normativo, permitindo que essa matéria possa vir a ser tratada por regulamentos, lembrando-se, ainda, que ambos os princípios encontram limites postumeiros nas matérias constitucionalmente reservadas à lei[15].
Diante desse prisma, ato administrativo é o meio de expressão do Estado, quando no exercício de atividade administrava, que vise, sob o império da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, produzir efeitos jurídicos.
4. ATO ADMINISTRATIVO VINCULADO E DISCRICIONÁRIO.
O ato vinculado, assim como o conceito de ato administrativo, também sofreu mutações. A doutrina contemporânea afirma, cada vez mais, que, na praxis[16] administrativa, são poucas as situações de vinculação pura[17].
O ato vinculado é aquele que deixa, ao administrador público, pequena margem para a tomada de decisão, uma vez que esta já está, basicamente, pré-determinada na lei. Assim, primo intuitu[18], a essência do ato vinculado está no princípio da legalidade. Hoje, é salutar ressaltar que o administrador público deve observar a legalidade moderada, a temperada, como ilustra Juarez Freitas em frase oportuna[19]:
“No que tange ao princípio da legalidade e, mais que isso, do acatamento da Administração Pública ao Direito, é de assinalar que se evoluiu do legalismo primitivo e hipertrofiado para a posição – por assim dizer – balanceada e substancialista (superado, ao menos em boa medida, o automatismo imoderado no cumprimento das regras).”
É necessário ter em mente que a legalidade é um dos princípios constitucionais, não o único. Por essa razão, não se pode admitir, salvo os casos de vinculação total, mecânica, que deixem de ser considerados os demais princípios constitucionais que regem a administração pública, como no exemplo aludido por Juarez Freitas[20]:
“[…] Ocorre que até nos atos vinculados existe campo de liberdade residual. Está claro e indisputável que há atividades administrativas fortemente vinculadas – como sucede, expressamente, na cobrança de tributos (CTN, art. 3º) –, contudo a vinculação, no mundo concreto, está condicionada não só a legalidade, que afugenta juízos de conveniência, senão que à totalidade daquelas alavancas de Arquimedes do Direito, que são os princípios constitucionais fundamentais”.
Para ilustrar, nada melhor do que apresentar um exemplo fictício, a fim de problematizar a supervalorização do princípio da legalidade e a vinculação total do administrador.
Supõe-se que, durante a fase de aceitação de um pregão eletrônico, cujo critério de julgamento, obrigatoriamente, é o menor preço, em uma escola agrotécnica federal no interior do município de Cachoeira do Sul – RS, encontram-se empatadas duas propostas, ambas apresentadas por microempresas, para aquisição de um veículo de transporte coletivo em proveito dos estudantes do ensino fundamental. A proposta X refere-se a um ônibus de fabricação nacional, 45 lugares, sem ar-condicionado, sem direção hidráulica, com banheiro, capacidade do bagageiro interno de 20 m³, produção/consumo de combustível estimada em 7 Km/l de biodiesel, atendendo aos critérios ambientais. A proposta Y refere-se a um ônibus de fabricação nacional, 45 lugares, com ar-condicionado, com direção hidráulica, com banheiro, capacidade do bagageiro interno de 23 m³, produção/consumo de combustível estimada em 8 Km/l de biodiesel, atendendo aos critérios ambientais.
Sabe-se que o edital prevê a produção/consumo média do veículo de 45 passageiros entre 6 e 10 Km/l; prevê a existência de banheiro e, objetivando obter o menor preço, silencia quanto à necessidade de ar-condicionado e direção hidráulica. O princípio da legalidade impera que, neste caso, o critério de desempate seja sorteio público (Art. 45, §3º da lei 8.666/93). Neste caso hipotético, não seria conveniente deixar de perguntar: caso o pregoeiro adjudicasse para o fornecedor detentor da proposta Y, teria infringido o princípio da legalidade moderada? O princípio da impessoalidade? O princípio da moralidade? Qualquer um dos demais princípios que regem a administração pública? Para que não se desfoque do tema proposto à pesquisa, passar-se-á ao ato discricionário.
Nem sempre a lei amarra o administrador público a uma única solução explícita ou implícita em sua letra. Há casos em que a lei comporta a possibilidade de diferentes soluções, isso ocorre por que ela pretende que se dê uma certa solução para determinado caso concreto e outra solução para diferente caso, de modo que sempre seja adotada a decisão pertinente, adequada à fisionomia própria de cada situação, tendo em vista atender a finalidade que inspirou a regra de direito aplicada.
A existência de uma variedade de soluções comportadas em lei outorgadora de discrição evidentemente não significa que esta considere que todas as soluções são iguais ou diferentemente adequadas a todos os casos de sua aplicação.
Dentre estas soluções, o administrador público, por força dos princípios constitucionais, tem o dever de aplicar aquela que, segundo seu julgamento, seja legal, impessoal, moral, transparente e eficiente. Para ilustrar esta afirmação, busca-se apresentar outro exemplo fictício que expusesse, na prática, essa aplicação:
Supõe-se que, em uma cidade gaúcha, o estatuto dos servidores públicos municipais prevê que o estatutário, completado 10 (dez) anos de serviço ativo, poderá solicitar licença para tratar de assuntos particulares, de até 02 anos, respeitado o limite máximo de 1/10 de servidores dispensados concomitantemente, ordenados em lista elaborada pelo prefeito municipal, respeitada a necessidade do serviço.
O prefeito, consuetudinariamente, organizara a lista por ordem de solicitação do pedido. Assim, o servidor, preenchendo os requisitos para gozar a licença, requer ao chefe do executivo, que o insere em uma lista de espera, respeitando o limite estabelecido na legislação.
Em janeiro de 2010, haviam, na lista do prefeito, 06 professores de matemática à espera da concessão da licença. Em fevereiro, a esposa do prefeito, professora de Matemática da rede municipal de ensino, completou 10 anos de efetivo serviço, requerendo, no mês de março, a licença, sabendo que a professora licenciada atualmente, retornará no mês de abril.
Para a surpresa de seus colegas, o prefeito, utilizando-se de seu poder discricionário, concede, às escuras, no mês de maio, a licença para sua esposa tratar de interesses particulares.
Com esse exemplo, um tanto dramático, pergunta-se: a decisão do prefeito municipal foi, dentre as opções possíveis, a mais adequada ao caso? Mesmo sendo legal (a lei lhe atribuía o poder de organizar a lista), foi respeitado o princípio da impessoalidade, da moralidade, publicidade e eficiência?
5. MÉRITO DO ATO ADMINISTRATIVO
O mérito do ato administrativo pode ser retratado como o juízo de conveniência e oportunidade de adequação, efetuado pelo agente a quem se conferiu o poder discricionário, no estrito atendimento do interesse público. Assim, se torna cristalino que somente haverá o chamado “mérito do ato administrativo” nos atos discricionários, ou seja, onde há campo de liberdade suposto na lei para que o administrador público, diante da impossibilidade objetiva de determinada ação aplicada ao caso concreto, opte, entre duas ou mais opções, para o atendimento do fim esperado.
A Administração pública tem o dever, por força imperativa dos princípios constitucionais, de não realizar esta “escolha” a bel prazer do agente capaz, mas norteada pela força constitucional. Grifa-se “escolha”, por ser o termo encontrado em grande parte da doutrina e, diante do tema proposto à pesquisa, não se julgar ser o mais conveniente, substituindo-se por “adequação”.
Durante muito tempo, em matéria de Direito Administrativo, jamais se admitiu um controle de mérito do ato administrativo. Os clássicos pensadores do Direito, a exemplo de José Cretella Júnior, eram categóricos no sentido de afirmar que a apreciação do mérito administrativo caberia apenas ao administrador, sob presunção de legitimidade da “melhor escolha”[21]:
“Aspecto algum do mérito admite revisão pelo Judiciário. Ao contrário, repele-a. o Judiciário tem campo próprio para locomover-se, não invadindo terreno privativo da Administração. Se alguma fração de mérito, por menor que fosse, se entrelaçasse, confundindo-se com a legalidade, estas duas entidades perderiam sua razão de ser, ou a noção de legalidade, nos setores comuns, sobrepujaria a noção de mérito. […]
Surpreende, por isso, que credenciado julgador tenha, embora dando ao mérito sentido exato, afirmado: “Não me convenço, porém, de que, na apreciação do ato administrativo, deva o juiz limitar-se a verificar a formalização, não entrando no mérito da decisão impugnada. Não entendo que deva o Poder Judiciário limitar-se a apreciar o ato administrativo do ângulo da legalidade extrínseca e não de seu mérito intrínseco, ou seja, de sua justiça ou injustiça”.
Surpreende-se que, qualquer intenção de questionamento do mérito administrativo perante os clássicos, era desconsiderada. Felizmente, a visão pós-positivista vem se consolidando de forma mútua ao Estado Democrático de Direito, uma vez que entende a relação entre o Direito e a Justiça, insculpido em valores e princípios.
Odete Madauer aponta que o contraponto clássico entre legalidade-mérito encontra-se atenuado no momento presente.[22] Na mesma linha de raciocínio, Juarez Freitas aponta que inexiste discrição pura ou não-controlável principiologicamente pelo Judiciário, uma vez que o agente público é livre apenas para alcançar a tutela efetiva do direito fundamental à boa Administração Pública[23].
6. A TUTELA JURISDICIONAL
Atualmente, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, petrificado no Art. 5º, XXXV, da Constituição Cidadã, segundo o qual a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, já se tornou indiscutível. Isso quer dizer que cabe ao judiciário à res judicata[24]. Ou seja, decisão alguma, em âmbito administrativo, é afastada do controle jurisdicional. Como nem sempre se pensou assim, sucintamente, traremos, para ilustrar o pensamento clássico, as palavras de José Cretella Júnior[25]:
“Por fim, ato administrativo que envolva ordem de prisão disciplinar, que ocorre tão-somente no âmbito das Forças Armadas, é insuscetível de reexame jurisdicional, mesmo que eivado de patente ilegalidade.”
Este pensamento clássico emergia sob a luz da ordem constitucional anterior. O pensador clássico corroborava com os preceitos constitucionais e infraconstitucionais à época, como se percebe no Art. 51 da lei 6.880/80, atual Estatuto dos Militares, que, indubitavelmente, não fora recepcionado pela nova ordem constitucional[26]:
“Art. 51. O militar que se julgar prejudicado ou ofendido por qualquer ato administrativo ou disciplinar de superior hierárquico poderá recorrer ou interpor pedido de reconsideração, queixa ou representação, segundo regulamentação específica de cada Força Armada. […]
§ 3º O militar só poderá recorrer ao Judiciário após esgotados todos os recursos administrativos e deverá participar esta iniciativa, antecipadamente, à autoridade à qual estiver subordinado”.
Esta inafastabilidade do poder judiciário evoluiu ao longo do tempo e ainda se encontra em evolução. Prova disso é que se passará, agora, ao epicentro da problematização da pesquisa, apresentando-se um conceito lapidado no papel dos princípios jurídicos na sociedade contemporânea.
7. O CONTROLE JURISDICIONAL DO ATO ADMINISTRATIVO E A ANÁLISE DO MÉRITO.
Como visto acima, não há dúvidas de que os atos administrativos poderão sofrer controle pelo poder judiciário. Mas como será este controle? Como ocorre o controle dos atos vinculados? Como ocorre o controle dos atos discricionários?
Segundo Odete Medauar o controle jurisdicional da Administração pública abrange a apreciação, efetuada pelo Poder Judiciário, sobre atos, processos e contratos administrativos, atividades, operações materiais e mesmo a omissão ou inércia da Administração. Em regra é posteriori, sendo repressivo ou corretivo, desencadeado por provocação[27].
Não há nenhuma dúvida de que o Judiciário tem o poder-dever de apreciar o juízo de conveniência e oportunidade do ato administrativo frente aos princípios constitucionais. Ao apreciar o chamado mérito administrativo, não estará, de forma alguma, substituindo o administrador público e, consequentemente, afrontando o princípio da separação dos poderes.
Dessa forma, por ser o judiciário o guardião da constituição, o controle jurisdicional do ato administrativo é amplo, seja ele vinculado ou discricionário, ultrapassando as fronteiras da legalidade e, adentrando na decisão administrativa, deve analisar, sim, se a tomada de decisão da Administração seguiu os critérios de impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Se assim não for, deve, de ofício, ordenar a anulação do ato.
Em recente decisão do STJ, de 09 de fevereiro de 2010, em que teve como relator o Min. Napoleão Nunes Maia Filho, em matéria administrativo disciplinar, pode-se verificar que a jurisprudência tende a se curvar no sentido de que o controle jurisdicional é amplo, não se limitando apenas aos aspectos legais, formais, como se observa no trecho da ementa, transcrito abaixo[28]:
“1. Por força dos princípios da proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e culpabilidade, aplicáveis ao Regime Jurídico Disciplinar de Servidor Público e mesmo a qualquer relação jurídica de Direito Sancionador, não há juízo de discricionariedade no ato administrativo que impõe sanção a Servidor Público em razão do cometimento de infração disciplinar, de sorte que o controle jurisdicional é amplo, não se limitando, portanto, somente aos aspectos formais. (grifo nosso). Precedente. […]
6. Recurso provido para anular a Portaria 135/06 – CONAE-2, da Assessora Técnica da Divisão de Recursos Humanos da Coordenadoria dos Núcleos de Ação Educativa da Secretaria de Educação do Município de São Paulo, de 20.04.2006, que demitiu a impetrante do cargo de Professora Adjunto do Ensino Fundamental I, promovendo-se sua imediata reintegração, com o pagamento dos vencimentos e cômputo de tempo para todos os efeitos legais”.
Dando continuidade à análise jurisprudencial que reflete a força imperativa do Art 37, caput, da Constituição Federal, observa-se no trecho da ementa do acórdão em que foi relator o Min. Jorge Scartezzini, a contemporânea tendência de que o ato administrativo para que seja válido deve observar, dentre outros princípios, o da impessoalidade e da publicidade, pois, mesmo se tratando de um ato discricionário, se não observados estes princípios, o ato poderá gerar uma arbitrariedade, sendo passível de controle jurisdicional[29]:
“1 – O ato administrativo, para que seja válido, deve observar, entre outros, o princípio da impessoalidade, licitude e publicidade. (grifo nosso) Estes três pilares do Direito Administrativo fundem-se na chamada motivação dos atos administrativos, que é o conjunto das razões fáticas ou jurídicas determinantes da expedição do ato. Tratando-se, na espécie, de ato do tipo discricionário e não vinculado – posto que visa a examinar a vida pregressa e investigar socialmente o candidato à admissão em concurso público -, uma vez delimitada a existência e feita a valoração, não há como o administrador furtar-se a tais fatos. Não se discute, no caso sub judice, se o ato que prevê a análise da conduta pessoal e social do indivíduo, através da apuração de toda sua vida anterior, é legal ou não, porquanto, notoriamente sabemos que o é. […]
4 – Recurso conhecido e provido para, reformando o v. acórdão recorrido, conceder a ordem, assegurando ao impetrante-recorrente, em virtude de sua aprovação no Concurso para o Cargo de Juiz Substituto do Estado de Pernambuco, sua nomeação neste, obedecida sua classificação no certame.”
Ao tratar de controle jurisdicional do ato administrativo, o STJ vem ampliando o campo de atuação do Judiciário, dando a relevante importância ao princípio da Moralidade, mesmo se tratando de ato discricionário, como se observa de forma cristalina na decisão em que foi relatora a Min. Eliana Calmon[30]:
“1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo. […]
3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade. (grifo nosso) […]
5. Recurso especial provido.”
O princípio da eficiência, embora seja o mais jovem dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública, já vem sendo utilizado pelo Judiciário, no controle jurisdicional, mesmo em casos onde se torna evidente a discricionariedade do Administrador, como se observa no trecho da decisão do STJ em que foi relatora a Min. Laurita Vaz[31]:
“2. Nada impede que o Ministro da Justiça venha a requerer novos esclarecimentos da própria Comissão de Anistia ou consultar outros órgãos de assessoramento que estejam ao seu alcance para solucionar questões que envolvam aspectos de oportunidade (grifo nosso) ou certificar-se a respeito de possíveis divergências jurídicas.
3. Entretanto, em face do princípio da eficiência (art. 37, caput, da Constituição Federal), não se pode permitir que a Administração Pública postergue, indefinidamente, a conclusão de procedimento administrativo, (grifo nosso) sendo necessário resgatar a devida celeridade, característica de processos urgentes, ajuizados com a finalidade de reparar injustiça outrora perpetrada. Na hipótese, já decorrido tempo suficiente para o cumprimento das providências pertinentes – quase dois anos do parecer da Comissão de Anistia –, tem-se como razoável a fixação do prazo de 60 (sessenta) dias para que o Ministro de Estado da Justiça profira decisão final no Processo Administrativo, como entender de direito. Precedente desta Corte.
4. Ordem parcialmente concedida.”
Por fim, apresentam-se as considerações finais de Odete Medauar sobre o alcance do controle jurisdicional sobre o ato administrativo[32]:
“Há um posicionamento favorável ao controle restrito, para que se circunscreva à legalidade entendida também de modo restrito. Em geral, os argumentos dessa linha são os seguintes: impossibilidade da ingerência do Judiciário em atividades típicas do Executivo, ante o princípio da separação de poderes, daí o âmbito do Judiciário ser a legalidade em sentido estrito – os integrantes do Judiciário são desprovidos de mandato eletivo, não tendo legitimidade para apreciar aspectos relativos ao interesse público. De acordo com essa linha, no controle do ato administrativo o Judiciário apreciaria somente matéria relativa à competência, forma e licitude do objeto.
Outro entendimento inclina-se por um controle amplo, ante os seguintes fundamentos: pelo princípio da separação dos poderes, o poder detém o poder, cabendo ao Judiciário a jurisdição e, portanto, o controle jurisdicional da Administração, sem que se possa cogitar de ingerência indevida; por outro lado, onde existe controle de constitucionalidade da lei, a invocação da separação dos poderes para limitar a apreciação jurisdicional perde grande parte de sua força. […]
A tendência de ampliação do controle jurisdicional da Administração se acentuou a partir da Constituição Federal de 1988. O texto de 1988 está impregnado de um espírito geral de priorização dos direitos e garantias ante o poder público. Uma das decorrências desse espírito vislumbra-se na indicação de mais parâmetros da atuação, mesmo discricionária, da Administração, tais como o princípio da moralidade e o princípio da impessoalidade. O princípio da publicidade, por sua vez, impõe transparência na atuação administrativa, o que enseja maior controle. E a ação popular pode ter como um dos seus fulcros a anulação do ato lesivo da moralidade administrativa, independentemente de considerações de estrita legalidade.
8. CONCLUSÃO
Assim, após a análise dos pontos previstos para a consecução dos objetivos propostos à pesquisa, conclui-se que, contemporaneamente, a possibilidade de análise jurisdicional do mérito do ato administrativo vem se tornando frequente, seja na doutrina, seja na jurisprudência. Isso tudo, haja vista a hermenêutica sistemática dada aos princípios constitucionais que guiam a Administração Pública. Ao adentrar no mérito das decisões administrativas, analisando o juízo de “adequação ao caso concreto”, não está o juiz tomando o papel do administrador, mas cumprindo o dever, de ofício, de resguardar os preceitos constitucionais.
É necessário que, diante da nova ordem constitucional, os pensadores do Direito passem a vislumbrar que as decisões administrativas devem, necessariamente, respeitar os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Não pode o administrador público, quando a lei lhe permitir, dentre as possíveis decisões, tomar, às escuras, àquela que lhe beneficie ou, ainda, que não seja vista pela sociedade como moral ou a mais eficiente para que se atinja o fim da melhor forma possível.
A quebra de paradigmas, a que se propôs este trabalho, inicia nos bancos escolares, com a formação de currículos e ensinamentos hodiernos. É indubitável que não se deve esquecer a visão clássica do Direito Administrativo, mas a adequação ao momento histórico vivido pela sociedade brasileira é indispensável sob pena de convivermos, diariamente, com arbitrariedades de um poder público à margem da Constituição, regido a bel prazeres, às vontades daqueles que detêm a soberania, cedida pelo povo.
Informações Sobre o Autor
Felipe Dalenogare Alves
Graduado em Direito pela Universidade Luterana do Brasil, campus Cachoeira do Sul – RS; Pós-Graduando lato sensu (Especialização) em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes e em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal de Santa Maria; Pós-Graduando stricto sensu (Mestrado) em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul