Resumo: Este artigo tem como norte analisar eventuais respostas com relação à função do sistema penal em um Estado Democrático, o qual é compreendido por sujeitos detentores de direitos, porém, imersos numa sociedade marcada pelo abandono social e por sistemas seletivos. Objetiva-se, precipuamente, conflitar em que sentido variados indivíduos de uma sociedade marcada pela pobreza, são levados a delinquir, gerando um círculo de vícios infinito, retratando o desejo de extremo consumo e suas consequências.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Crime. Igualdade.
Abstract: This article is north analyze any responses regarding the function of the criminal justice system in a democratic state, which is comprised of subject rights holders, however, immersed in a society marked by social neglect and selective systems. The purpose is, primarily, conflict in that sense various individuals of a society marked by poverty, are driven to commit a crime, creating a circle of infinite vices, depicting the desire for extreme consumption and its consequences.
Key-words: Democratic state right. Crime. Equality.
Sumário: 1. Introdução. 2. Estado de Direito, Estado Social, Estado Democrático de Direito e criminalidade. 3. Os “clientes” do sistema penal. 4. O cidadão brasileiro e o ethos neoliberal. 5. Considerações finais. Referências.
1. Introdução
A modernidade do final do século XIX para o início do século XX trouxe à realidade uma idealização de liberdade para homens e mulheres, ricos e pobres, de modo que qualquer um que trabalhasse conseguiria um “lugar ao sol” com independência financeira e, até mesmo, enriquecimento.
Efeitos contrários, contudo, se deram, gerando altos índices de desigualdade, empobrecimento físico, emocional e financeiro de uma grande massa, gerando, por outro lado, enriquecimento de uma classe “seleta”.
No horizonte brasileiro, na penúltima década do século XX, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, uma nova esperança para realizações das promessas da modernidade tornou-se real, por tratar-se de diploma normativo riquíssimo quanto à declaração de direitos fundamentais, gerando grandes aspirações relativamente à consecução dos ideais da pessoa humana digna, na interface igualdade e fraternidade, o que poderia, finalmente, propiciar a consecução daquelas aspirações.
Paradoxalmente, porém, aproximando-nos de três décadas da promulgação da supracitada Carta Política, não se vê tanta esperança nos cidadãos. Escuta-se, à grosso modo, o repercutir das “ondas” da crescente violência e a insatisfação com o sistema público e a postura privada.
Temos presenciado, em poucas palavras, uma falência estatal no sentido de organizar a vida em sociedade, afirmação que pode ser corroborada pelos grandes escândalos de corrupção, a altíssima carga tributária, bem como a falta de confiança dos indivíduos nas instituições estatais e neles próprios, por apresentarem-se, dia a dia, cada vez mais individualistas, egoístas, e, assim, propensos à manutenção desta triste realidade.
Neste artigo, procuraremos discutir o aumento da criminalidade face ao abandono de uma maioria no que toca a efetivação dos direitos fundamentais e a ética neoliberal.
Para sua realização, fomentaremos, a princípio, alguns conceitos envolvendo os Estados Liberal, Social e Democrático de Direito, procurando entrelaçar a problemática que envolve o tema e as premissas do sistema penal com o regime contemporâneo.
Num segundo momento, trabalharemos algumas questões envolvendo os “clientes” do sistema penal e exploraremos, posteriormente, algumas premissas que envolvem o cidadão brasileiro e o ethos neoliberal.
Em considerações finais, fomentaremos, em última instância, que para nós os problemas brasileiros atrelados ao aumento da criminalidade só serão resolvidos se uma nova ética social for implementada, e que isso só será possível se a Constituição for aplicada factualmente, principalmente, no que toca a parte concernente aos direitos fundamentais. Só assim, sobretudo, teremos a tão almejada igualdade substancial.
2. Estado de Direito, Estado Social, Estado Democrático de Direito e criminalidade
Embora seja possível encontrar dicotomias sobre o assunto, pode-se afirmar, na era moderna, quando do Estado Liberal, a Constituição foi encarada como um instrumento eminentemente político, que reunia normas de organização estatal, distribuição de competências e de direitos fundamentais a fim de proteger o indivíduo do Estado, enquanto aquelas de direito civil ocupavam o espaço de verdadeira “Lei Maior” entre os civis.
Já no Estado Social, o Estado foi percebido como “amigo”, no sentido de que devesse fomentar a vida em sociedade, principalmente no que tange a efetivação dos direitos fundamentais sociais, os quais reivindicam uma ação afirmativa e não abstencionista como quando da forma organizacional anterior.
Contemporaneamente, vivenciamos o Estado Democrático de Direito, o qual deve contemplar os anseios das duas premissas anteriores, sem, contudo, “fechar os olhos” para as constantes mutações e reivindicações sociais, políticas, econômicas e culturais que o passar do tempo apresenta.
A Constituição da República brasileira de 1988 é conhecida por seu grandioso leque de direitos fundamentais previstos, os quais não podem ser encarados como marcas de um discurso demagogo e retórico, outrossim, como “lei” no sentido de obrigatoriedade.
As análises da realidade socioeconômica têm constatado, porém, que nem todos os grupos sociais gozam efetivamente deste generoso rol de direitos constitucionalmente consagrados, vivenciando o Brasil uma das maiores, senão a maior, proporcionalmente falando, desigualdades sociais de todo o mundo, em que inúmeras pessoas são reduzidas a uma condição subcidadã.
Pode-se considerar como um desdobramento nocivo da condição supracitada o fato do país assistir a um crescimento da criminalidade jamais visto. Contudo, deverá interessar à sociedade e ao poder público, principalmente, a investigação de outras causas, que se encontram na raiz desse problema, bem como a investigação sobre o perfil do sujeito criminoso.
Na procura por explicações para o aumento da violência e da criminalidade encontramos teses variadas, apontando como suas causas a pobreza, a miséria, a descrença na seriedade da polícia e do Judiciário, o enfraquecimento dos laços familiares, da força da igreja, a imensa desigualdade social aqui instalada e, até mesmo, de que o Brasil é um país de “malandros” e de bandidos.
Os argumentos são contundentes em todas as vertentes, mas procuraremos analisar aqui em que medida, levando-se em conta o momentâneo estágio do capitalismo, em que há uma intensificação no sentido de reduzir a vida (Misse, 2011) à economia, à competição, ao individualismo e ao materialismo, traduzindo a lógica das elites na subordinação, na massificação e na alienação, em detrimento de valores como honestidade, generosidade, solidariedade, respeito e tolerância, a exclusão social e a falta de perspectivas podem ser apontadas como uma das principais causa desta criminalidade que nos aflige.
Nesse sentido, pense-se, por exemplo, em como se encontra o jovem brasileiro que, não por acaso, figura, predominantemente, nas primeiras posições das estatísticas dos homicídios, latrocínios, estupros, roubos e outras formas de violência e criminalidade, por ser, talvez, a categoria social mais afetada pela situação acima descrita. Michel Misse (2011) aponta que muitos jovens das classes populares da cidade do Rio de Janeiro não têm nem ânimo, nem ambição que não esteja relacionada à busca inconsequente pelo gozo no consumo, na festa, no sexo e nas drogas.
Segundo Misse (2011), esta categoria social, extremamente vulnerável aos apelos do ethos do consumo e da orgia, como os jovens das classes média e alta, está tendo que optar entre de um lado um salário miserável, uma escola completamente desligada do mercado de trabalho, a precarização das estruturas e das relações de trabalho, o futuro incerto, a sobrevivência por meio do “biscate”, o fantasma da desempregabilidade e, de outro lado, pela sedução do tráfico de drogas, dos assaltos e da vida orgástica, que de uma forma passageira traduz, mais rapidamente, a realização dos seus desejos. Diante desse quadro, podemos nos interrogar se o perfil do nosso jovem fornece um “raio x” do contexto social, político, econômico e cultural aqui instalado?
Na busca por respostas, parece-nos plausível operar levando-se em consideração a nova epistemologia, pós-positivista, marcada pelo protagonismo da hermenêutica constitucional e pela busca da efetiva tutela dos direitos humanos fundamentais, a fim de investigar as causas da criminalidade e as características do “verdadeiro desviante”, pois, determinados comportamentos considerados “desvios” podem ser vistos como sintomas da necessidade de mudanças sociais, face aos reflexos de uma ideologia que não contempla os interesses de todos, mas, perversamente, subtrai os direitos de cidadania de variados grupos sociais.
É bom lembrar, a popularidade do Direito Penal está associada à ideia de controle social e justiça.
Os jornais, por exemplo, destinam boa parte das suas páginas para a crônica dos delitos e dos processos. Quem as lê, como lembrara Carnelutti (1995) há algum tempo, tem a impressão de que tenhamos muito mais delitos que boas ações neste mundo.
Essa popularidade desmedida acaba por informar e inflamar o pensamento público, acarretando consequências geradoras de uma “crise civil”, podendo denegrir as imagens do sistema estatal, dos mais diversos grupos e do indivíduo. A título de exemplo, o descrito acarreta, por vezes, o lançamento do investigado a prejulgamentos depreciativos variados.
Nesse horizonte, aumento das penas, diminuição da maioridade penal, pena de morte, entre outras, são soluções rapidamente apontadas.
Vale analisar, contudo, se tratam-se essas das reais necessidades da sociedade brasileira deste tempo.
3. Os “clientes” do sistema penal
Segundo Alessandro Nepomuceno (2004), dados do Censo Penitenciário brasileiro de 1994 revelam que 95% dos presos são pobres; 87% não concluíram o primeiro grau; 85% não possuem condições de contratar um advogado; e 96,31% são homens, tendo cometido crimes como roubo (33%), furto (18%), homicídio (17%), tráfico de drogas (10%), lesão corporal (3%), estupro (3%), estelionato (2%) e extorsão (1%).
Parece ser possível afirmar que, quatorze anos depois, a realidade praticamente não se alterou, pois os registros do Censo de 2008, oferecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão ligado ao Ministério da Justiça, apresentam, conforme Tamara Melo (2010), que os detentos são em sua grande maioria jovens, negros ou pardos e muito pobres; 8,15% dos presos são analfabetos; 14,35% são alfabetizados; 44,76% possuem o ensino fundamental incompleto; 12,02 % possuem o ensino fundamental completo; 9,36% o ensino médio incompleto; 6,81% o ensino médio completo; 0,9% o ensino superior incompleto; 0,43% o ensino superior completo; menos de 0,1% nível acima do superior completo; 31,87% dos presos têm entre 18 e 24 anos; 26,10% entre 25 e 29 anos; 17,50% entre 30 e 34 anos; 15,45% entre 35 e 45 anos; 6,16% entre 46 e 60 anos; 0,96% mais de 60 anos.
Sendo o crime (Nepomuceno, 2004) uma construção sociocultural, visando à regulação daquelas condutas encaradas como criminosas, as informações ora anunciadas demonstram uma seletividade do sistema penal recaindo sobre setores vulneráveis da sociedade, geralmente, aqueles que se encontram alijados do acesso aos direitos sociais mais elementares à dignidade humana. Esse quadro pode levar-nos a interpretar, por vezes e erroneamente, que as classes mais abastadas não cometem delitos, enquanto o pobre, o miserável e aqueles desprovidos de educação e cultura estariam mais propensos ao comportamento social desviante. Trata-se, portanto, da criminalização da pobreza.
Apoiamos Alessandro Nepomuceno (2004) para quem a grande diferença para o fato reside também na natureza, bem como no tratamento dedicado às infrações e aos seus praticantes. Os crimes geralmente denunciados, processados e apenados são aqueles provenientes das classes mais vulneráveis da sociedade, enquanto os grandes delitos econômicos, políticos e ecológicos, com danos incomensuráveis à coletividade, não sofrem os mesmos rigores por parte do poder público.
Assim, conforme Alessandro Baratta (1997) pode-se afirmar que o cárcere tem representado a ponta do iceberg da ideologia dos grupos hegemônicos, ou seja, do sistema penal burguês, marcando o momento culminante de um processo de seleção que começa bem antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação social e escolar.
Postas essas premissas, uma questão ganha relevo. O sistema penal é visto tradicionalmente como um controle formal das condutas encaradas como negativas à sociedade, as quais ofendem os bens jurídicos mais relevantes das pessoas de bem, enquanto o desvio é considerado um dano pela maioria dos juristas, sendo os desviantes, nesse episódio, vistos como um elemento negativo, um mal que lesa a ordem, a tranquilidade e a justiça social.
No entanto, os dados estatísticos do sistema penal, apresentados acima como signos da representação social da criminalidade e do “sujeito do crime”, parecem sugerir que muitos desses “desviantes” tenham o condão de evidenciar a alegação de Alessandro Baratta outrora descrita e/ou a antecipação ou a necessidade de mudanças estruturais na sociedade, economia e sistema penal brasileiros, pois como sustenta Ana Lúcia Sabadell (2005), o crime tem um papel útil para a sociedade, seja quando contribui para o progresso social, criando impulsos para a mudança de algumas regras sociais, seja quando a sua ocorrência oferece a ocasião de afirmar (ou debater) a validade das regras a serem seguidas, mobilizando a sociedade em torno de valores coletivos.
A ponderação é das mais interessantes no sentido de ressignificar certos tipos de crimes cometidos demonstrando que nem sempre, os mesmos resultam de um ato do indivíduo mal, visando abalar a paz social e, logo, acabar com a tranquilidade e os ideais das pessoas de “bem”, mas que a sua causa pode estar associada a uma grande fraqueza do Estado no que diz respeito ao seu dever de cuidado da vida em coletividade, especialmente, na garantia da efetivação do mínimo existencial da pessoa humana.
Letícia Helena Veloso nos apresenta num de seus manuscritos, quando entrevistara jovens participantes de um projeto de inclusão social na cidade do Rio de Janeiro, um exemplo típico de que a ausência dos direitos de cidadania pode contribuir para o nascimento de desviantes.
Numa passagem, Veloso (2009) descreve o episódio de um jovem que, narrando a sua trajetória, apontava o apoio de sua família no sentido de participar do projeto em tela, propulsor de aulas de artes, dança e capoeira, explicando ainda:
“que “quando mais novo e zangado”, costumava cometer pequenos roubos: “nunca machuquei ninguém”, dizia, mas “roubava muito, sim, tênis, relógio, tudo. Era um marginal mesmo. Todo mundo me olhava atravessado”. Agora, dizia ele, “todo mundo estava feliz” porque ele tinha “virado cidadão”: entrara para o projeto e passava ali suas tardes, “jogando bola, tendo aula de arte, ouvindo essas coisas de cidadania”. “Continuo pobre, feio e preto”, refletiu, rindo às gargalhadas, “mas pelo menos sou cidadão. Só não sei ainda pra que isso serve”” (VELOSO, 2009, p. 20).
Note-se, enquanto o jovem não tinha acesso a programas dedicados à arte, ao esporte etc, que lhe ofereciam referenciais mais sólidos do que é ser homem, ser humano e da vida em sociedade, voltava-se à vida criminosa. É certo que a inserção nessas atividades propiciou um melhoramento da sua autoestima, proporcionando-lhe o reconhecimento de seus pares e, consequentemente, o abandono do crime. Numa perspectiva psicanalítica, pode-se dizer que a participação desse jovem naqueles projetos, contribuiu para redimensionar seu psiquismo, a dinâmica de seus desejos e a forma de lidar com eles subjetivamente e intersubjetivamente.
O ocorrido parece indicar que via de regra, se as crianças e adolescentes tiverem acesso, desde sempre, à educação, cultura, esporte, entre outros, e, na vida adulta, a um trabalho que lhes garanta viver de uma forma digna, terão mais chances de afastarem-se da vida criminosa.
Para isso, há que se ter o fomento de políticas públicas, devendo-se, por oportuno, e igualmente, desconstituir-se, ou ressignificar-se, o ethos capitalista, pois como lembrara Jurandir Freire Costa (2012), esse ethos, além de promover a exclusão dos idosos, obesos, sedentários e não sucedidos economicamente, os quais são vistos como fracos e taxados como desprovidos de cidadania, gera pobres, excluídos do consumo, mas que, convertidos ao consumismo, e seus objetos de desejos e faltas, são insuscetíveis de adquirir o que cobiçam e podem se tornar delinquentes, a fim de inserirem-se numa organização social cuja normatividade principal é a do possuir.
4. O cidadão brasileiro e o ethos neoliberal
O movimento de internacionalização dos direitos humanos fundamentais se preocupa em converter os direitos dessa natureza a um legítimo interesse da comunidade internacional, acarretando, conforme Flávia Piovesan (2012), a necessidade de se redefinir e reconstruir o conceito de cidadania no cenário brasileiro.
Nessa direção, ainda que pese a definição tradicional e estrita de cidadania, resultante do direito de sufrágio, ou seja, participar da vida política de dado Estado (votar e ser votado) há que se considerá-la, na contemporaneidade, sob outra ótica, abarcando, além da consecução dos direitos políticos, os direitos individuais, os sociais e os econômicos.
A cidadania, não resta dúvidas, enquanto conceito decorrente do princípio do Estado Democrático de Direito, em que o Estado brasileiro se insere ou deve inserir-se, consiste (Novelino, 2012) na participação política do indivíduo nos negócios do Estado e até mesmo noutras áreas de interesse público. Porém, não há como se pensar na pessoa cidadã sem imaginá-la no gozo de direitos como igualdade, liberdade, segurança, saúde, educação, cultura, pleno emprego, meio-ambiente saudável, moradia, lazer, previdência, entre outros.
Sabe-se, contudo, que grande parte dos brasileiros conhece esses direitos (e olhe lá) em âmbito estritamente formal, sendo a evidência, ao que tudo indica, correlata aos interesses dos “senhores do capital”.
Noutros termos, os “donos do capital” transformaram o ethos consumerista numa verdadeira “religião”, como enfatiza Giorgio Agamben:
“o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gera a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo” (AGAMBEN, 2012, p. S.N.).
O mundo dos fatos demonstra, realmente, que o capitalismo prega a busca pela mansão, pelo carrão caro e potente, pelo telefone celular que faz de tudo, pela maior e mais fina televisão na versão 3D, pelos melhores ultrabooks, notebooks, ipod’s, iphone’s, ipad’s, tablet’s, pelas roupas de grife com preços astronômicos e inacreditáveis etc.
Por outro lado, a comuna do consumo em sua dimensão de culto ao corpo e busca pela aparência “perfeita” apregoa que o homem ideal deve ser alto, forte e bem vestido. O estereótipo feminino reivindica que a mulher tenha cabelos lisos, seja bem vestida, magérrima ou “sarada” e cheia de curvas voluptuosas, na melhor versão panicat[1]. Dessa forma, “o discurso “narcísico-consumista” da sociedade atual produz “ídolos fortemente sexualizados em imagens do dever ser homem e dever ser mulher”” (VAZ, 2004, p. 127).
O ideal atribui, sobretudo, ao perfil e à posse dos bens[2], acima delineados, o caminho para reconhecimento e sucesso; o pré-requisito por melhores empregos, muito dinheiro, glamour, grandes amigos, tratamento cordial e convites para os mais importantes, famosos e badalados eventos; a conquista de viagens inacreditáveis e momentos inesquecíveis, além de uma vida amorosa e sexual digna dos filmes de Hollywood. Enfim, que com esses atributos tudo se torna mais fácil, alcançando-se a felicidade plena por meio do possuir, o qual proporcionará tudo o que há de melhor.
Sem hipocrisia, a propaganda pode seduzir a qualquer um. Vale salientar, todavia, como trabalha Dalmo de Abreu Dallari (2011), na obra Direitos humanos e cidadania, a sociedade humana se perfaz por um conjunto de pessoas ligadas pela necessidade de se ajudarem umas às outras no plano material, bem como pela necessidade de comunicação intelectual, afetiva e espiritual, a fim de satisfazer seus interesses e desejos. Logo, é preciso considerar as necessidades de todos os membros de uma sociedade, não bastando que a vida social ofereça a satisfação das necessidades de algumas pessoas em detrimento das demais.
Mas no mundo dos fatos isso não tem ocorrido. O culto à forma “perfeita” e aos bens do consumo não visa à consecução da pessoa cidadã. Ao contrário, deixando de promover a realização dos direitos de cidadania de todos os grupos, privilegia as elites e macula o que se espera de um regime coletivo e solidário de convivência, pois poucos efetivam este ideal, enquanto a maioria luta dia a dia pela sobrevivência e para adequar-se ao “tipo ideal” propagado pela sociedade narcísica-consumista.
Sendo assim, acreditamos que o aumento da violência e da criminalidade, principalmente entre os jovens, tenha íntima relação com o ethos consumerista e com a inefetividade dos direitos humanos fundamentais. Com efeito, a divulgação dos bens de consumo e da promessa de gozo que oferecem, bem como a divulgação de um “corpo ideal”, poderão criar nos indivíduos uma falta, um desejo que deverá ser, a qualquer custo, satisfeito.
No entanto, Anthony Giddens (1991) já nos alertara que a liturgia capitalista demonstra que o mundo é “um” em certo sentido, mas radicalmente cindido por desigualdades de poder em outro. É bom lembrar tratar-se o mercado, conforme Michael Walzer (2003), de um dos mais importantes mecanismos de distribuição de bens sociais, mas não é, e nunca foi em lugar nenhum, um sistema distributivo completo[3].
Por outro lado, a ausência dos direitos inerentes à cidadania a uma maioria esmagadora pode revelar muita coisa envolvendo as relações entre a “religião capital" e os discursos jurídicos, políticos e econômicos, nos quadros dos conceitos de cidadania ideal (aquela formalizada) e de cidadania de fato (substancial)[4].
José Luiz Quadros de Magalhães (2010) já havia lembrado que a representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais e que representar é significar. Nessa perspectiva, quem tem poder domina os processos de construção dos significados dos significantes, possuindo a capacidade de construir o senso comum.
Nesses termos, estariam os idealistas dos significantes do consumo construindo significados aptos a, adotando os dizeres de Bourdieu (2010), alocar na consciência coletiva símbolos a serviço da dominação, contribuindo para a integração real da classe dominante e uma integração fictícia da sociedade em seu conjunto, desmobilizando as classes dominadas.
5. Considerações finais
Não há dúvidas de que a Operação Lava Jato, possa ser apontada como a maior investigação sobre corrupção ocorrida em nosso Estado.
Suas investigações têm como sujeitos doleiros e um imenso esquema de corrupção na Petrobras, que envolve políticos variados e as maiores empreiteiras do país.
De acordo com dados ofertados pela Folha de São Paulo, nos processos em andamento na Justiça, o Ministério Público Federal estima que R$ 2,1 bilhões foram desviados dos cofres desta empresa de petróleo, mas é possível que o valor do prejuízo seja muito maior[5], tanto que outras fontes apontam que as cifras giram entre R$ 36,938 bilhões[6] e R$ 88,6 bilhões[7].
As ações provenientes desta, possibilitou que sujeitos de uma camada economicamente privilegiada da sociedade fosse investigada, processada e/ou presa. Trata-se de um avanço grandioso, não há dúvidas, já que a “clientela” do sistema penal (seria a verdadeira?), nesse contexto, advém de outra estirpe.
Fizemos a indagação (seria a verdadeira?) por reafirmamos ser crescente a necessidade de um questionamento investigativo, por parte da sociedade como um todo e, especialmente, do poder público, a respeito das causas da criminalidade e não somente da infração cometida, pois a apuração da prática de um delito bem como do sujeito que o comete é o mínimo que se espera por parte do sistema penal, devendo a vertente do Estado dotada desta finalidade fazê-lo.
Tais evidências confirmam as teorias elaboradas neste texto no sentido de que os grandes males e crimes da nossa sociedade decorrem de um reflexo das alianças, pode-se dizer, à lá Marx, dos “detentores dos meios de produção”.
Do nosso ponto de vista, os referenciais epistemológicos do pós-positivismo jurídico propiciaram a verdadeira compreensão da dinâmica da criminalidade e do seu sujeito, a qual envolve um conjunto de elementos, subjetivos, estruturais, intersubjetivos, que são, por suas naturezas, complexos e dialéticos na maneira de se correlacionarem.
Logo, a nova percepção da Constituição e da ciência jurídica proporcionada por essa alternativa de pensamento, possibilita o enlace da interface interdisplinaridade e transdisciplinaridade, oferecendo possibilidades reais de se desmantelar interesses obscuros encobertos nas mais diversas relações.
Asseveramos que para nós, em última instância, os problemas brasileiros atrelados ao aumento da criminalidade só serão resolvidos se uma nova ética social for implementada, e que isso só será possível se a Constituição for aplicada factualmente, principalmente, na parte concernente aos direitos fundamentais. Só assim, sobretudo, teremos a tão almejada igualdade substancial.
Informações Sobre os Autores
Hugo Garcez Duarte
Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE
Mariane Braga de Oliveira
Acadêmica de Direito