Resumo: A presente pesquisa versa sobre a possibilidade de se relativizar a impenhorabilidade do bem de família, buscando meios de satisfação do crédito através do patrimônio do devedor protegido por lei, sem que, com isso, se atinja a dignidade da pessoa humana ou se afronte o direito à moradia. Integra o objeto do estudo o conceito de suntuosidade dos bens que guarnecem a residência, bem como as hipóteses de desmembramento do lar familiar e a possibilidade de invocar o princípio da razoabilidade para autorizar a penhora de imóveis de elevado valor. Para identificar as tendências atuais sobre o tema, utilizou-se o método de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, com uma análise sobre o projeto de lei que pretende limitar a proteção a um valor predeterminado.
Palavras-chave: Bem de família, dignidade, suntuosidade, razoabilidade, penhora.
Abstract: This research focuses on the possibility to relativize unseizability of family home, seeking means of satisfaction from the debtor's estate protected by law, without thereby it reaches the dignity of the human person or affront the right of housing. Integrates the object of the study the concept of sumptuousness goods which line the residence as well as the chance of dismemberment of the family home and the possibility of invoking the principle of reasonableness to permit the pawn of properties of high value. To identify the current trends on the subject, we used the survey method doctrine and jurisprudence, with an analysis of the bill that seeks to limit the protection to a predetermined value.
Keywords: Homestead, dignity, sumptuousness, reasonableness, pawn.
Áreas do Direito: Direito Civil; Direito Constitucional; Direito Processual Civil.
Sumário: Introdução 1. Breve resumo histórico. 2. O conceito e os requisitos do bem de família. 3. Bem de família legal e voluntário. 4. A dignidade da pessoa humana e o direito à moradia. 5. O conceito contemporâneo de suntuosidade. 6. Desmembramento do bem imóvel. 7. Vagas de garagem. 8. Reviravoltas legislativas. 9. Projeto de lei nº 8.046/2010. 10. Imóveis de elevado valor. 11. Considerações finais. Referências
INTRODUÇÃO
As relevantes mudanças da Lei 8.009/90, que veio para regular o bem de família, proporcionaram uma efetiva ampliação nas garantias dos direitos de moradia da entidade familiar, com amparo no princípio da dignidade da pessoa humana, já que teve como novidade principal a proteção do lar de forma impositiva, sem necessidade de indicação e registro por parte dos seus residentes, como exigia o ordenamento até então, o que hoje chamamos de bem de família legal ou obrigatório.
Se de um lado a aprovação da Lei 8.009/90 trouxe mais segurança aos devedores em execução judicial e extrajudicial, de outro criou obstáculos para a satisfação integral do crédito do credor, que mesmo saindo exitoso em demanda judicial poderá ver frustrada sua execução pela ausência de bens passíveis de serem penhorados, tendo em seu favor um mero reconhecimento de direitos, mas sem qualquer efeito no plano prático.
A discussão do projeto do novo Código de Processo Civil reacendeu o debate sobre a necessidade de se limitar a proteção do bem de família ao patamar máximo de 1.000 salários mínimos, quantia que seria entregue ao devedor sob cláusula de impenhorabilidade.
O levantamento do estudo indica que a jurisprudência já vem relativizando a impenhorabilidade do bem de família, como nos casos de constrição de bens móveis outrora considerados absolutamente impenhoráveis e o desmembramento de bens imóveis, situações em que o princípio da razoabilidade foi adotado pelo julgador no caso concreto.
Este é o escopo da presente pesquisa, almejando a análise de casos específicos, na via judicial, bem como de posicionamentos doutrinários e propostas legislativas que vem sendo constantemente debatidas, no intuito de relativizar a regra da impenhorabilidade do bem de família, atendendo ao princípio da satisfatividade integral da execução.
Algumas discussões já foram dirimidas pelo poder judiciário, como a possibilidade de penhora de vagas de garagem com matrícula própria, matéria sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça, e da parte do imóvel destinada a fins comerciais, abrindo caminho para novas interpretações aplicadas a outros casos similares, pela qual se busca uma solução razoável e equilibrada, celeuma que ainda está longe de gerar um consenso entre os operadores do direito, tudo a ser objeto de estudo deste trabalho.
1. UM BREVE RESUMO HISTÓRICO
A proteção ao bem de família, pela forma que hoje se conhece, não ingressou na legislação pátria de forma imediata, tampouco foi objeto de consenso entre os juristas da época da discussão de sua aprovação, vindo a ingressar no ordenamento jurídico brasileiro, efetivamente, após a vigência do Código Civil de 1916.
Importante esclarecer que o projeto original do código, de autoria de Clóvis Bevilacqua, não contemplava o bem de família, passando a integrá-lo, após inúmeros debates, com a proposta de emenda do Senador Fernando Mendes de Almeida perante o Senado Federal, cuja publicação no órgão oficial se deu em 05.12.1912.
Pode-se afirmar que o instituto que desencadeou a sua inclusão no ordenamento brasileiro foi a homestead act, surgida no direito americano, mais precisamente no Estado do Texas, muito embora lá a sua criação tenha sido motivada por situação peculiar própria da época e do local, no intuito de impossibilitar “aos credores, principalmente aos bancos, penhorar e leiloar os imóveis, as residências dos colonos texanos, evitando que eles voltassem aos seus locais de origem”.[1]
Em 1941, por meio do Decreto Lei nº 3.200, que versava sobre a organização e proteção da família, dedicou-se um capítulo ao tema, sedimentando a ideia que vigorava desde então.
Contudo, foi no ano de 1990 que o instituto do bem de família passou a ter regulação própria e específica, através da lei 8.009 que, embora apresente apenas oito artigos, tratou de resguardar e ampliar os direitos da entidade familiar, trazendo como principal novidade a desnecessidade de registro do imóvel, exigência prevista no artigo 73 do Código Civil de 1916, passando a ter proteção legal, não mais dependendo da vontade do chefe de família.
De qualquer sorte, mesmo a lei especial se submeteu a inúmeras discussões até a sua aprovação, pois o anteprojeto apresentado em 1972 somente foi aprovado 18 anos após, o que demonstra a complexidade e importância do instituto.
Azevedo lembra que logo após a edição da lei passou-se a discutir a sua constitucionalidade, trazendo a posição de Carlos Callege, de que “a impenhorabilidade geral de bens, por essa lei instituída, torna inócuo o princípio universal da sujeição ao patrimônio às dívidas, acolhido pela Constituição brasileira (art. 5º, incs. LXVII, LIV) e atinge o próprio regime econômico básico adotado pela carta, que pressupõe relações obrigacionais das mais diferentes espécies, suprimindo as garantias e a eficácia coativa do direito de crédito”.[2]
Atualmente, mesmo com a vigência do Código Civil de 2002, que reservou um capítulo próprio ao bem de família, permanecem válidas as normas da lei 8.009/90, por previsão expressa do artigo 1.711, servindo uma norma de complemento para a outra.
2. O CONCEITO E OS REQUISITOS DO BEM DE FAMÍLIA
O bem de família encontra-se atrelado ao direito de moradia e, como o próprio nome diz, busca preservar a instituição família, como célula essencial de todo o corpo social, resguardando a esta o direito de se proteger da indignidade e da miséria.
Trata-se de um instituto de proteção ao lar familiar, capaz de impedir procedimentos judiciais de expropriação para fins pecuniários, ou seja, blinda-se o patrimônio do devedor, ainda que permaneça a dívida.
Conforme afirma Credie [3]
“Se é induvidoso que o imóvel, sede do núcleo familiar, deve ficar ao resguardo das vicissitudes econômicas de quem o sustenta – e, portanto, excluído das execuções decorrentes de tais circunstâncias – , também está fora de dúvida que o bem de família atende mediatamente a um relevante interesse social.”
A proteção da lei 8.009/90, apesar de ampla, não se estende a todo e qualquer imóvel, já que o próprio regramento especial apresenta certos requisitos para que o instituto possa ser invocado, como preceitua o artigo 1º:
“Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”.
“O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.”
Em uma primeira análise, vemos que o imóvel sobre o qual incide a norma deve servir para fins residenciais, razão pela qual se excluem da proteção da lei os imóveis destinados ao comércio, ainda que integrem o terreno do próprio imóvel residencial, hipótese em que o Superior Tribunal de Justiça tem admitido o desmembramento, como se verá em capítulo específico.
Para Zeno Veloso, “o bem de família, então, tem de ser a residência, o lar doméstico, o abrigo, o teto seguro, com vista a proteger o núcleo familiar, cuja sede fica a salvo da execução por dívidas”[4].
Na mesma trilha, obtempera Álvaro Villaça Azevedo [5]
“o imóvel é residencial quando servir de local em que se estabeleça uma família, centralizando suas atividades. Ele é, propriamente, o domicílio familiar, em que existe a residência de seus integrantes, em um lugar (elemento objetivo), e o ânimo de permanecer (elemento subjetivo), de estar nesse local, em caráter definitivo.”
Não obstante, o Supremo Tribunal de Justiça aprovou a Súmula 486, entendendo ser impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família.
De outra banda, sempre que a lei se refere ao bem de família, podemos perceber as expressões, entidade familiar, chefe de família, núcleo familiar, casal, cônjuges ou pais e filhos, por exemplo, o que nos induziria ao erro de pensar que só estariam protegidas as famílias classicamente constituídas, com todos os seus membros, deixando em total desamparo aqueles que não se encontram nessa situação.
Como é cediço, o conceito de família vem sofrendo mutações, se adaptando aos novos rumos da sociedade, e com ele deve se atualizar a lei, entendendo o julgador que o direito à moradia é inerente à própria pessoa humana, motivo que levou o Superior Tribunal de Justiça a aprovar a Súmula nº 364, que estendeu a proteção do bem de família às pessoas viúvas, solteiras e separadas, restando superada a interpretação ipsis litteris da norma.
Em outro plano, a lei é clara ao proteger, também, as plantações, benfeitorias e os móveis que guarnecem a residência, desde que quitados, pois ao se permitir a permanência de uma entidade familiar em um lar vazio, desamparado de estrutura mínima para o seu bem estar, violada estaria também a dignidade da pessoa humana.
Vale ressalvar que “não se pode constituir como bem de família um terreno baldio, a terra nua. Há que existir a construção, a rigor, uma casa, uma vivenda, um apartamento, que consubstancie a residência, a morada, o lar da família, o prédio que vai abrigar o núcleo familiar”.[6]
As exceções à impenhorabilidade estão elencadas no artigo 3º da lei 8.009/90 e, polêmicas à parte, não poderá ser invocada a proteção do bem de família:
“I – em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;
II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III — pelo credor de pensão alimentícia;
IV – para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI – por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.”
De outra sorte, estão excluídos da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos, sendo que esta última hipótese será desbravada mais adiante, em espaço próprio, devido a sua maior complexidade.
Cabe ainda mencionar que a lei considera como bem de família apenas um imóvel familiar, não cabendo, em regra, qualquer proteção aos demais, salientando-se que a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente sobre a impossibilidade de se penhorar simultaneamente o imóvel que serve de residência para o devedor e seu cônjuge, bem como o imóvel aonde vivem as filhas nascidas de relação extraconjugal do devedor.[7]
Nesse viés, assenta-se cada vez mais na órbita jurisprudencial e doutrinária o resguardo à dignidade da pessoa humana, pela tutela do direito à moradia, expandindo-se as formas de proteção por um conceito amplo de entidade familiar, que se mostra de pleno acordo com os basilares Constitucionais.
3. BEM DE FAMÍLIA LEGAL E VOLUNTÁRIO
Até a publicação da lei 8.009/90, para se invocar a proteção do bem de família a designação do imóvel deveria constar de escritura pública transcrita no registro próprio, exigência essa expressamente prevista no artigo 73 do Código Civil de 1916.
A exigência de registro do imóvel foi motivo de críticas por boa parte da doutrina durante muito tempo, já que o instituto se mostrava ineficaz perante as famílias de pouca instrução, que restavam desprovidas de seu patrimônio por formalidades registrais, o que ia de encontro aos anseios da sociedade.
Nesse diapasão, adverte o ilustre Sílvio Rodrigues[8]:
“A despeito de se inspirar nas melhores intenções do legislador, o instituto do bem de família não alcançou maior sucesso entre nós. Tratava-se de regra, como disse, de caráter protetivo, mas que dependia de iniciativa do protegido. Com efeito, a lei apenas conferia a este um meio jurídico de assegurar o domicílio da família contra os azares futuros; mas a solução legislativa envolvia uma atitude de previdência do chefe de família. A este competia, antevendo os riscos futuros, previdentemente e numa fase de abastança, premunir-se contra tais riscos”.
Com a aprovação da lei especial, já sob a vigência da nova Carta Constitucional, a referida proteção se tornou impositiva, recaindo sobre o bem de família sem necessidade de qualquer registro ou indicação, bastando que a residência se enquadrasse nos requisitos próprios do bem de família (vide capítulo 3), sendo direito irrenunciável do protegido, o que alguns autores chamam de bem de família obrigatório ou legal.
De qualquer forma, a imposição da lei de forma alguma afastou a possibilidade de indicação do imóvel a ser protegido mediante registro, como ensina Ricardo Arcoverde Credie [9]
“Equívoco pensar que a existência do bem de família obrigatório tornou desnecessária a instituição daquele outro, o voluntário, pois quando o casal, entidade familiar ou um dos parentes for proprietário de outros imóveis que se possam prestar ao uso residencial, deverá – ainda na forma não revogada dos arts. 70 e ss. do Código Civil – destacar aquele que deseja se constitua no bem de família, caso contrário a inexcutibilidade recairá sobre o de menor valia.”
Com efeito, existindo mais de um imóvel servindo para residência da entidade familiar, recairá a proteção da lei sobre aquele que estiver devidamente registrado mediante escritura pública ou testamento no registro de imóveis, devendo apenas ser observado o limite de um terço do patrimônio líquido à época da instituição, caso contrário, a incidência da norma recairá sobre o imóvel de menor valor.
Ainda assim, o bem de família na forma atual não se encontra livre de críticas, pois, pelo que vimos, a lei possibilitou aos devedores que blindassem seus imóveis de valores extremamente elevados, deixando ao alcance do credor imóveis de valor irrisório, que não serviriam para satisfazer o crédito de forma integral, o que pode ser visto como uma forma de injustiça social, e que será lapidado no decorrer dos próximos capítulos.
4. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO À MORADIA
O direito à moradia, norma de caráter constitucional, insculpida no rol dos direitos sociais, nada mais é do que um reflexo da dignidade da pessoa humana, já que não há como se desvincular tais princípios, bem pelo contrário, pois, na verdade, ambos se complementam.
Para que se possa começar a falar em bem de família, deve se entender a importância do valor social que se visa proteger, muito mais do que qualquer valoração financeira, pois, na verdade, o que almeja a norma é a proteção da sociedade, por meio da entidade familiar, resguardando a esta uma das maiores necessidades do ser humano, que é o direito a uma moradia digna.
Como leciona Augusto Tavares[10]
“Diversamente do que se observou em legislações passadas, em que disposições sobre a impenhorabilidade constituíam homenagens ou privilégios de pessoas já bem posicionadas na escala social, pode-se dizer a moderna lista dos bens impenhoráveis tem um outro significado político: representa os haveres mínimos para que o ser humano possa viver com dignidade em nossa sociedade, dos quais não poderá ser despossuído nem mesmo para o pagamento de suas dívidas”.
Ainda quanto à essência e importância do lar, Azevedo acrescenta que “o bem de família representa um meio de assegurar essa mais cara instituição, quanto ao mínimo necessário, quanto ao mínimo suficiente à sua existência, equilibrando os interesses particulares com os coletivos”. [11]
Não se discute que para uma vida digna é imprescindível a existência de um lar, não se considerando aqui a moradia por si só, mas atrelado a esta um ambiente digno, capaz de suportar as necessidades básicas de uma família comum, razão pela qual “as impenhorabilidades são erigidas como uma densificação infraconstitucional da dignidade da pessoa humana”. [12]
Credie[13] nos traz essa visão bastante protecionista, entendendo que a possibilidade de penhora da residência familiar seria uma afronta à própria sociedade, pois veja-se
“Ainda que se queira atribuir ao tratamento legal desta categoria jurídica, na sua atual feição, o vezo de intervenção ou de protecionismo exagerado do Estado nas atividades privadas, é irretorquível serem socialmente nefastas as consequências da penhorabilidade que, para satisfazer a interesses de dinheiro, põe ao desabrigo ou em situação de penúria a família, sendo certo que essa desintegração de uma célula ofende, como resultado, todo o cosmo social.”
E continua o renomado autor
“Do equilíbrio da família, ainda que por primeiro o econômico, depende a estabilidade do país.”
Dessa forma, resta evidente a intenção do legislador em proteger o lar residencial familiar de expropriações forçadas, cabendo, outrossim, indagarmos se através dessa proteção desmedida do imóvel, independentemente de seu valor, com poder de escolha pelo próprio devedor, não se estaria atingindo, por outro lado, a dignidade do credor.
Isso porque, quando falamos na dignidade do devedor, que, através de uma execução poderá se ver privado de seus bens, não podemos esquecer, por óbvio, da dignidade do próprio credor, que por muitas vezes encontra-se em condições financeiras muito inferiores à daquele que reconhecidamente lhe deve.
Esses e outros questionamentos, assim como as soluções encontradas pelo judiciário serão dignos de abordagem nos capítulos que se seguem.
5. O CONCEITO CONTEMPORÂNEO DE SUNTUOSIDADE
A questão da suntuosidade dos adornos que guarnecem a residência, caso de exceção ao princípio da impenhorabilidade do bem de família previsto no artigo 2º da lei 8.009/90, é matéria corriqueira em nossos Tribunais, tendo em vista que a lei deixou margens para interpretação, dependendo, em cada caso, da análise da matéria fática sub judice.
De fato, a lei especial protege o único imóvel que serve de residência para a família, assim como os móveis que a guarnecem, excetuando-se apenas as obras de arte, veículos de transporte e adornos suntuosos.
Quanto aos dois primeiros bens excluídos, maiores problemas não há, tendo em vista que o artigo de lei é claro e objetivo, contudo, se indaga o conceito de suntuosidade, já que a lei não é precisa, cabendo ao intérprete, na análise de cada caso, a ponderação e razoabilidade para se alcançar uma decisão mais justa possível.
Até certo tempo, a jurisprudência era pacífica no sentido de que terminais telefônicos, televisores, fogão, geladeira e computadores, por exemplo, seriam itens indispensáveis para uma vida digna, portanto, bens não passíveis de constrição.
Essa posição era defendida por Álvaro Villaça Azevedo, nos seguintes termos[14]
“Todavia, em face do texto da Lei 8.009/90, que ampliou, consideravelmente, a proteção ao bem de família, de que cuida, tornando impenhorável a residência da família e os móveis que a guarnecem, não me parece suscetível de penhora o televisor, por apresentar-se sem as características exigidas pelo caput do art. 2º ora analisado. Não se enquadra ele, portanto, como adorno suntuoso”.
Por óbvio que no caso do devedor possuir mais de um desses utensílios domésticos, autorizada estaria a penhora de ao menos um deles, pois o que a lei visa prestigiar é a dignidade do devedor, amparada em um padrão de vida médio comum, evitando-se o luxo, o enriquecimento ilícito.
Na contramão da realidade da época, utensílios domésticos que eram considerados absolutamente impenhoráveis, como no caso de aparelhos televisores e computadores, hoje já não merecem garantia absoluta, tendo em vista o grande avanço da tecnologia que disponibilizou à sociedade equipamentos de alto padrão e valor de mercado além das possibilidades financeiras de muitos brasileiros.
Nessa banda, o simples fato de se tratar de um televisor ou computador já não é mais o único critério a ser observado, cabendo aos magistrados, com amparo no princípio da razoabilidade, tomar a decisão mais adequada para que não se transforme o direito do devedor em um impedimento injustificado ao direito do credor.
Vale lembrar que pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor, por força do artigo 391 do CPC.
Nessa seara, foi recentemente disponibilizado julgado do TRT da 1ª Região, autorizando a penhora de um televisor de 40 polegadas tela plana, por fugir a um padrão médio assecuratório do lazer familiar, invocando-se, na hipótese, o princípio da razoabilidade.[15]
Da mesma forma, a Vigésima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul permitiu a constrição de um televisor 42 polegadas, por ultrapassar as necessidades correspondentes a um médio padrão de vida, não se mostrando objeto essencial à sobrevivência digna de um cidadão e sua família.[16]
Bem explicita essa nova tendência, a passagem de Ricardo Arcoverde Credie[17], que alcançou o mérito da discussão de forma brilhante:
“A jurisprudência, neste ponto, decerto ainda vinculada à concepção rígida de que os bens do devedor constituem sempre a garantia do credor, tem encontrado dificuldade em estabelecer diferença entre os bens de utilidade e os exorbitantes ou supérfluos. Televisores, terminais telefônicos, refrigeradores, entre outros bens móveis que guarnecem as residências, vêm sofrendo tratamento diferente nos acórdãos, sensíveis, aí, os critérios subjetivos de cada juiz ou de cada turma julgadora, às vezes desatentos a que o princípio da igualdade jurídica é que deve nortear essa valoração, sempre consideradas as necessidades diferentes de pessoas diferentes, ou as transformações sócio-culturais e econômicas que ocorrem no tempo e no espaço”.
De fato, a intenção da lei nunca foi proteger o luxo, mas sim as necessidades básicas de uma família!
Do ponto de vista Constitucional, poderíamos afirmar que a penhora de livros, televisores, radio e computadores seria ilegal, tendo em vista a previsão de direito à cultura e acesso à informação, mas deve ser levado em conta o caso concreto, a consciência do julgador, aquele que mais se aproxima das partes e das peculiaridades do processo, até para não se valer da alienação forçosa de bens que pouco representam à título econômico.
Linhas telefônicas, por exemplo, já não podem mais ser consideradas adorno suntuoso, pois é cediço que “com a expansão das telecomunicações, o telefone, além de se tornar instrumento de utilidade doméstica e de fácil acesso, teve seu valor de mercado reduzido expressivamente, com o passar do tempo, nada representará para efeito de garantia da dívida executada”.[18]
Da mesma maneira, como bem leciona Zeno Veloso[19]
“quem atua no foro sabe que é praticamente inútil penhorar móveis e eletrodomésticos. Essas coisas, de segunda mão, e, ainda por cima, vendidas em leilão, num processo executivo, não rendem quase nada. Mal se consegue com o produto da venda forçada pagar as despesas judiciais. O que tais penhoras impõem, isto sim, é o vexame, a vergonha, o constrangimento para o executado e para sua família, ficando todos submetidos aos cochichos e insinuações da vizinhança”.
Conclui-se, desse modo, que a execução deve ser vista sob o olhar da efetividade, da razoabilidade, dos benefícios que a penhora de um determinado bem podem trazer para a execução e dos prejuízos que trará ao patrimônio do devedor, critérios que, ponderados, poderão autorizar a sua venda.
6. DESMEMBRAMENTO DE BEM IMÓVEL
Como regra geral, permanece vigorando a ideia de que a impenhorabilidade do imóvel residencial independe do seu valor, bastando que este sirva de lar para a família, matéria por ora pacificada pelos Tribunais Superiores, enquanto os bens que guarnecem a residência poderão ser penhorados, desde que enquadrados no conceito de suntuosos.
Ainda assim, podemos encontrar na jurisprudência decisões que não estão previstas em lei, ao menos de forma expressa, como a possibilidade de desmembramento de imóveis, quando o terreno no qual estão situados possuir áreas adjacentes à construção residencial, tais como jardins, praças e área de lazer, desde que observadas as circunstâncias de cada caso.
Mais uma vez aqui, cabe ao julgador valer-se do princípio da razoabilidade, sempre almejando a solução mais adequada ao caso sob análise, pois a simples autorização de penhora das áreas adjacentes ao imóvel, sem a devida cautela e precaução quanto à manutenção das características e peculiaridades do local, poderia ocorrer em afronta ao direito constitucional da moradia.
Nesse sentido, transcreve-se a íntegra do informativo de jurisprudência nº 26, do Superior Tribunal de Justiça, ao comentar o julgamento do REsp 188.706-MG, de Relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo, julgado em 05/08/1999 [20]
“A questão principal é decidir se seria impenhorável todo o imóvel residencial do casal, ou, sendo possível o seu desmembramento, apenas aquela parte sobre a qual erguida a edificação principal, excetuando-se os jardins e o pomar. Como residência do casal, não se deve levar em conta somente o espaço físico ocupado pelo prédio ou casa, mas, também, suas adjacências como jardins, hortas, pomar, instalações acessórias, etc., sob pena de descaracterização do imóvel. Evidente a finalidade social da Lei n.º 8.009/90, que procura defender da penhora o imóvel residencial do devedor como um todo, independentemente de seu tamanho. Não havendo parâmetros legais de metragem para efeito de incidência do benefício previsto na citada lei para os imóveis urbanos, é recomendável ao julgador, em sua função de intérprete e aplicador da lei, que se examine o possível desmembramento do bem diante das circunstâncias de cada caso, tais como o tamanho médio do terreno da vizinhança, possível descaracterização e desvalorização do imóvel remanescente, posição social do devedor, etc. Em conclusão, não se está negando a possibilidade de desmembramento do bem de família para fins de penhora, mas, apenas, que seja observada a sua possibilidade diante de cada caso concreto. Assim, a Turma conheceu do recurso e deu-lhe provimento para declarar impenhorável todo o imóvel residencial do casal.”
Da mesma forma, imóveis que servem parte para fins residenciais e parte para fins comerciais, como muito ocorre em cidades do interior dos Estados, aonde famílias destinam uma parte do imóvel para estabelecer uma padaria ou um salão de beleza, por exemplo, aproveitando-se dos fundos ou do andar superior do imóvel para sua residência, podem ser objeto de penhora na fração destinada ao comércio, desde que não descaracterize a área residencial, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça no REsp 1018102/MG, de relatoria do Ministro Sidnei Beneti.[21]
Isso posto, não se está negando ao imóvel a qualidade de bem de família, tampouco se está atingindo a dignidade do credor; trata-se de uma medida ponderada, razoável e necessária para que as normas protetivas não desvirtuem a essência do procedimento executivo, que é o da satisfatividade integral do crédito, pois se hoje está se erguendo um muro divisório dentro dos limites da residência do devedor, é porque este deixou de honrar suas dívidas, submetendo-se aos ditames da lei.
7. VAGAS DE GARAGEM
As vagas de garagem, por possuírem matrícula própria no registro de imóveis, poderão ser penhoradas em procedimento executivo manejado contra o proprietário, não sendo caso de desmembramento do bem de família, já que se trata de unidade autônoma.
Nesse enfoque, restou aprovada a Súmula 449 [22] pelo Superior Tribunal de Justiça, estabelecendo que “a vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis não constitui bem de família para efeito de penhora”.
Ora, muito estranho seria se a lei autorizasse a penhora de automóveis e, em contrapartida, protegesse as vagas aonde estacionam esses veículos.
Proteger esse tipo de imóvel iria de encontro aos basilares do instituto, pois o que se preserva é a dignidade da pessoa humana, razão pela qual a própria lei exige que o imóvel sirva de residência ao devedor.
8. REVIRAVOLTAS LEGISLATIVAS
Um dos temas mais complexos debatido desde a inclusão da proteção do bem de família no sistema brasileiro, e que até hoje segue vivo nos corredores do Congresso Nacional, é a necessidade de se limitar o valor do imóvel gravado pela regra da impenhorabilidade.
Tal limitação se daria para impedir que proprietários de imóveis de alto valor se valessem do instituto para deixar de cumprir com suas obrigações, deixando em total desamparo os seus credores, portadores de um título judicial ou extrajudicial, que não poderão se valer da alienação do mencionado imóvel, ainda que o seu valor seja suficiente para o pagamento da dívida.
Com o surgimento da proteção ao bem de família não havia qualquer limitação à sua impenhorabilidade, exigindo o Código Civil de 1916 tão somente o registro do imóvel mediante escritura pública.
Contudo, no ano de 1941, através do Decreto Lei nº 3200, o legislador inovou no sentido de limitar o bem de família a um valor de cem conto de réis, conforme previa o artigo 19, que veio a ser modificado por diversas vezes ao passar dos anos.
Em 1955, por exemplo, esse limite passou a ser de um milhão de cruzeiros, e, por extrema necessidade, em razão das constantes trocas da moeda corrente no país, se fixou o teto em 500 vezes o maior salário mínimo vigente, em 1971, até restar estabelecido, em 1979, que não haveria limite de valor para o bem de família, norma que permanece vigente até hoje.
Pelo esboço do anteprojeto da lei 8.099/90, apresentado em 1972, se previa, em um primeiro momento, a limitação da proteção do bem no patamar máximo de 50 salários mínimos à época da execução, vide artigo 3º. Se resguardaria a importância referida através de avaliação judicial dos bens, sendo que o direito de escolha caberia ao chefe de família, quando existissem mais bens a serem penhorados.
Com efeito, essa limitação não restou aprovada, razão pela qual não integrou o texto definitivo da lei.
Mais tarde, tentou-se limitar novamente a impenhorabilidade ao teto máximo de 1.000 salários mínimos, quando da discussão da lei 11.382/06, que alterou dispositivos do Código de Processo Civil, o que restou vetado pelo então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, pela seguinte justificativa[23]:
“O Projeto de Lei quebra o dogma da impenhorabilidade absoluta de todas as verbas de natureza alimentar, ao mesmo tempo em que corrige discriminação contra os trabalhadores não empregados ao instituir impenhorabilidade dos ganhos de autônomos e de profissionais liberais. Na sistemática do Projeto de Lei, a impenhorabilidade é absoluta apenas até vinte salários mínimos líquidos. Acima desse valor, quarenta por cento poderá ser penhorado.
A proposta parece razoável porque é difícil defender que um rendimento líquido de vinte vezes o salário mínimo vigente no País seja considerado como integralmente de natureza alimentar. Contudo, pode ser contraposto que a tradição jurídica brasileira é no sentido da impenhorabilidade, absoluta e ilimitada, de remuneração. Dentro desse quadro, entendeu-se pela conveniência de opor veto ao dispositivo para que a questão volte a ser debatida pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral.
Na mesma linha, o Projeto de Lei quebrou o dogma da impenhorabilidade absoluta do bem de família, ao permitir que seja alienado o de valor superior a mil salários mínimos, ‘caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade’. Apesar de razoável, a proposta quebra a tradição surgida com a Lei no 8.009, de 1990, que ‘dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família’, no sentido da impenhorabilidade do bem de família independentemente do valor. Novamente, avaliou-se que o vulto da controvérsia em torno da matéria torna conveniente a reabertura do debate a respeito mediante o veto ao dispositivo.”
Notícias da época sugeriram que o veto presidencial haveria se dado por pressão do então Senador José Sarney, em favor de Edemar Cid Ferreira, ex-dono do falido Banco Santos, que via sua mansão avaliada em 50 milhões ameaçada por execução judicial, após deixar um rombo de 2,3 bilhões aos seus clientes e credores.[24]
Esse quadro nos mostra a importância do debate, já que se possibilitou ao devedor a manutenção da sua situação financeira extremamente elevada, deixando os credores em total desamparo, o que não pode ocorrer.
Ainda assim, a matéria segue viva, e ocupou mais uma vez posição de destaque no Congresso Nacional, dessa vez em razão da discussão da aprovação do projeto de lei que visa alterações no Código de Processo Civil.
9. PROJETO DE LEI Nº 8.046/2010
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 8.046/2010, de iniciativa do Senado Federal, que pretende instituir mudanças no Código de Processo Civil.
Entre as diversas alterações possíveis, merece maior relevo ao estudo a proposta de inclusão do inciso XII ao artigo 649 do Código Atual, que passaria a estrelar no novo Código com a seguinte redação:
“São absolutamente impenhoráveis: (…)
XII – o bem imóvel de residência do devedor e sua família até o limite de 1.000 salários mínimos”.
A inclusão do referido inciso surgiu por iniciativa do Deputado Feral Júnior Coimbra, e, ainda que o texto final já tenha sido levado a aprovação sem a inclusão do referido dispositivo, percebe-se que a matéria foi posta novamente sob destaque, já que sempre houve uma preocupação do legislador quanto aos limites da impenhorabilidade do bem de família, no intuito de coibir a proteção indevida de devedores solventes em face de seus credores.
Pela proposta, se resguardaria o valor equivalente a mil salários mínimos para o devedor, sob cláusula de impenhorabilidade, se valendo do excedente para cobrir todas as dívidas contraídas com os seus credores.
10. IMÓVEIS DE ELEVADO VALOR
Malgrado os argumentos que se opõe a proposta de limitação do bem de família, parece de bom cunho a discussão posta em tela, até para que se busquem novas alternativas à expropriação forçada do bem, já que também estão em jogo os direitos fundamentais do credor.
Imaginemos um cidadão, independentemente de sua condição social, que obteve o reconhecimento de seu direito à indenização por algum dano sofrido pelo judiciário ou até pela própria parte devedora, criando para si uma expectativa reparatória que não poderá ser alcançada.
Quando falamos em débitos de baixo valor, torna-se irrelevante a discussão, pois a execução poderá se concretizar através da constrição de automóveis, adornos suntuosos, penhora ‘on line’ na conta do devedor e outros meios de satisfação de crédito.
De outra banda, ao tratarmos de dívidas de alto valor, geralmente envolvendo empresários, torna-se tormentosa a vida do credor, pois mesmo após o esgotamento de todos os bens passíveis de penhora, que somados, representam quase nada diante do monte-mor, não poderá se socorrer do imóvel do devedor, cujo valor supera em muito o padrão de vida brasileiro.
O fato é que os Tribunais Superiores vêm decidindo pela impossibilidade de penhora de imóveis de alto valor sem analisar o caso concreto, fundamentando suas decisões única e simplesmente na ausência de previsão legal, fechando os olhos para as próprias causas que deram origem à demanda.
O que se deve observar é que, na realidade, em muitos casos há um choque entre preceitos constitucionais, já que, se por um lado se quer proteger o direito à moradia, do outro, devemos observar a dignidade e a honra do credor, o direito social ao trabalho, nos casos de dívidas trabalhistas, a reparação integral de danos ambientais e ao consumidor, entre outros.
É nessa trilha que, “havendo dúvida, deve prevalecer a interpretação que, conforme o caso, restrinja menos o direito fundamental, dê-lhe maior proteção, amplie mais o seu âmbito, satisfaça-o em maior grau”.[25]
No mesmo sentido, nos ensina Daniel Sarmento que [26]
“O caráter principiológico das normas constitucionais protetivas dos direitos fundamentais permite ao legislador que, através de uma ponderação constitucional dos interesses em jogo, estabeleça restrições àqueles direitos”.
De qualquer sorte, os casos em que a lei autoriza a penhora do bem de família não podem ser vistos de forma taxativa, absoluta, imutável, ou, como muito bem fundamentam Marcos Andrade e Diego Garcia[27]:
“Nenhum princípio no ordenamento jurídico brasileiro é absoluto, nem mesmo a vida, como, por exemplo, o que se verifica nas hipóteses de aborto necessário, legítima defesa e estado de necessidade, desde que preenchidos os requisitos legais para tanto.
O Direito não é somente aquilo que está positivado nas leis e nos códigos, devendo o magistrado se valer de princípios maiores, mediante a utilização do juízo de proporcionalidade, para verificar no caso concreto qual a solução razoável prestigia a dignidade da pessoa humana. Somente assim estará contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária tanto para credores como para devedores.”
Nessa banda, já podemos encontrar alguns julgados autorizando a penhora do bem de família de elevado valor, principalmente na justiça do trabalho, como no caso do agravo de petição nº 00699001420095020442, da 1ª Turma do TRT da 2ª Região[28].
No caso, declarou-se subsistente a penhora de 50% de imóvel avaliado em R$ 1.500.000,00 para quitação de dívida trabalhista de R$ 51.000,00, resguardando-se ao devedor a outra metade para aquisição de uma nova moradia.
No mesmo sentido, a 2ª turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região decidiu, por maioria de votos, manter a penhora sobre 30% de um apartamento, entendendo, na ocasião, pela possibilidade de alienação do bem, retendo em favor dos executados o valor de 70% do valor da avaliação, ou até mais, percentual suficiente para a aquisição de outro bem imóvel para a sua residência, obviamente mais modesto, que não inclua a situação em apartamento duplex ou com cobertura em bairro de alto poder aquisitivo[29].
Assim, retomando os efeitos práticos da possibilidade de aprovação do projeto de lei, havendo equilíbrio e ponderação por parte do julgador, com base no princípio da razoabilidade, não haveria óbice para a penhora do bem familiar, desde que desse ato resulte crédito suficiente para a aquisição de um novo imóvel pelo credor.
Ora, é notório que pela forma em que a proposta foi apresentada, estabelecendo o limite de 1.000 salários mínimos para o bem de família, que hoje importaria em R$ 724.000,00, haveria saldo suficiente para a aquisição de um novo móvel, não havendo afronta ao princípio do patrimônio mínimo.
E não há falar em detrimento do direito de moradia em razão do direito de crédito, já que só se aceitaria essa conduta pelo judiciário quando o crédito remanescente fosse significativo para a execução, caso contrário se estaria impondo ao devedor uma mudança de endereço tão somente para cobrir parte irrisória da dívida, o que não pode ocorrer.
Humberto Theodoro Júnior nos lembra que [30]
“A ideia de que toda execução tem por finalidade apenas a satisfação do direito do credor corresponde à limitação que se impõe à atividade jurisdicional executiva, cuja incidência sobre o patrimônio do devedor há de se fazer, em princípio, parcialmente, isto é, não atingindo todos os seus bens, mas apenas a porção indispensável para a realização do direito do credor.”
Se a proposta um dia será aceita, só o tempo nos dirá, o que se mostra válido, no entanto, é que acenderam-se novamente as chamas do debate sobre a matéria, já que a aplicação fria da lei poderá favorecer àqueles de alto poder aquisitivo, que se locupletam da proteção legal para frustrar as pretensões do credor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há margens para dúvidas da importância e da necessidade da proteção da moradia familiar, garantindo-se a cada indivíduo uma moradia digna, meio essencial para a sua existência em sociedade.
O princípio da razoabilidade, aplicado em várias ramificações de direito, e que caminha junto com as normas garantidoras do bem de família, ganha espaço de vultosa indispensabilidade nos dias atuais.
Invoca-se o referido princípio como meio de buscar formas criativas de se aproximar o máximo possível da satisfação do crédito, sem, com isso, afrontar o direito à moradia e a dignidade da pessoa do devedor, até para que não ocorram fraudes e enriquecimento ilícito.
Assim sendo, atrelando-se ao caso concreto, consideradas as peculiaridades de cada processo, não haveria óbice, em face do princípio da razoabilidade, de se possibilitar a penhora de imóveis de elevado valor, assim como já ocorre com os adornos suntuosos que guarnecem a residência e nos casos em que se aceita o desmembramento de edificações residenciais.
Essa realidade em nada afetaria a dignidade da pessoa do devedor, já que somente estaria autorizada a venda do bem de família com a reserva da quota parte previamente definida em lei, que deverá ser suficiente para a aquisição de um novo imóvel que se aproxime ao máximo das condições de vida dignas de uma pessoa comum.
Paulo: Editora Malheiros, 2000. Pag. 13.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Giacomassa Pereira
Advogado. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS e pós-graduando em Direito Civil pela Universidade Anhanguera UNIDERP