Resumo: O presente estudo visa a analisar o direito à vida sob uma nova ótica, em que se realiza uma interpretação sistemática da Constituição Federal, atribuindo-lhe uma vinculação ao princípio da dignidade da pessoa humana, erigido como fundamento do Estado Democrático de Direito. Ademais, os avanços da tecnologia e da ciência causaram um grande impacto sobre as concepções de vida e de morte, causando uma evolução do direito à vida, no sentido de uma adequação com o contexto social contemporâneo.
Palavras-chave: Direito à vida – Princípio da Dignidade da Pessoa Humana – Aborto – Eutanásia.
Abstract: The present study it aims at to analyze the right to the life under a new optics, where if it carries through a systematic interpretation of the Federal Constitution, attributing to it to an entailing at the outset of the dignity of the person human being, erected as bedding of the Democratic State of Right. Moreover, the advances of the technology and science had caused a great impact on the conceptions of life and death, having caused an evolution of the right to the life, in the direction of an adequacy with the social context contemporary.
Keywords: Right to the life – Principle of the Dignity of the Person Human being – Abortion – Euthanasia.
Sumário: 1. Introdução; 2. Direito à Vida em face do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: 2.1. Direito à vida; 2.2. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; 2.3. Direito à Vida diante do princípio da Dignidade da pessoa humana; 3. Atuais Anseios Sociais: 3.1. Quanto ao início da vida humana; 3.2. Quanto ao Término da Vida Humana; 3.3. Nova concepção do Direito à Vida; 4. Conclusão; 5. Notas; 6. Referências.
Summary: 1. Introduction 2. Right to Life in the face of the Principle of Human Dignity of the Person: 2.1. Right to life; 2.2. Principle of Human Dignity of Person, 2.3. Right to Life and the principle of dignity of the human person, 3. Current Social Anseios: 3.1. The beginning of human life, 3.2. The Termination of Life; 3.3. New understanding of the Right to Life; 4. Conclusion; 5. Notes, 6. References.
1. Introdução
A evolução científica, sobretudo na área da biotecnologia, tem-nos possibilitado o beneplácito da cura de doenças e uma melhoria na qualidade de vida das pessoas em geral. Porém, paradoxalmente, os conceitos e concepções, inclusive acerca do início da vida e seu respectivo término, permanecem os mesmos de décadas atrás.
Palco de inúmeras controvérsias, a sacramentalização do direito à vida sempre trouxe à tona discussões como aborto e eutanásia, atualmente em evidência em função da distribuição pelo governo das chamadas pílulas do dia seguinte, da proibição de aborto anencefálico, da possibilidade ou não do uso de embriões congelados para pesquisas com células-tronco, do caso de eutanásia da Sra. Terri Schiavo, tão divulgado pela imprensa, dentre outras questões, típicas de sociedades desenvolvidas no âmbito da medicina e da biotecnologia.
Todas as questões mencionadas guardam um ponto em comum: o direito à vida, freqüentemente proclamado como um bem absoluto e intangível, apesar de ser relativizado pela própria Constituição Federal.
Resta-nos saber se a vida é um dogma sacramentalizado, irrefutável, ou se deve estar amoldado ao princípio da dignidade da pessoa humana, erigido pelo constituinte como fundamento de nosso Estado Democrático.
Ora, não é possível que concebamos o direito à vida, na atualidade, tal como se fez há séculos, sob pena de nosso desenvolvimento sócio-tecnológico em nada auxiliar em nossas concepções mais filosóficas. O direito à vida deve ser analisado sob um novo enfoque, trazido pelo princípio constitucional da dignidade humana e pelo próprio contexto social da atualidade.
2. Direito à Vida em face do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
2.1. Direito à vida
O direito à vida foi consagrado constitucionalmente, como direito fundamental, no caput do art. 5º da Constituição Federal, que garante a sua inviolabilidade.
Embora existissem correntes em nossa Assembléia Constituinte no sentido de que o direito à vida deveria ser assegurado desde a concepção ou desde o nascimento, o legislador constituinte simplesmente o garantiu sem traçar qualquer outra referência, delegando a demonstração do exato momento do surgimento da vida humana à doutrina e à jurisprudência, com a utilização dos conhecimentos científicos obtidos com os diversos ramos da ciência.
Difícil tarefa, porém, é a definição do direito à vida, em função do grave risco de ingressarmos no campo da metafísica, porém, deve-se considerar que a vida não se restringe apenas a seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, inerente às matérias orgânicas, mas é constituída por um processo vital instaurado com a concepção (ou germinação vegetal), sendo alvo de inúmeras transformações, até sucumbir-se com a morte.
Sob a ótica da bioética, pode-se afirmar que a vida humana, a pessoa, apresenta-se como uma unidade de espírito e corpo, sendo composta de elementos espirituais, intelectivos e morais, além dos meramente biológicos. O aspecto mais humano do homem está em sua essência, na “capacidade de se separar do determinismo do mundo e de estar na singularidade única por meio da consciência e da liberdade”. [1]
Incorre no delito de homicídio aquele que elimina vida extra-uterina, que efetivamente mata outrem e, ainda, aquele que pratica a eutanásia, o chamado homicídio piedoso.
Aborto é a eliminação da vida humana intra-uterina, a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção, em qualquer estágio, seja de ovo (até três semanas de gestação), de embrião (de três semanas a três meses) ou de feto (após três meses), desde que ocorra antes do início do parto, não sendo necessário sua expulsão do organismo da mulher, já que é possível sua reabsorção pelo organismo materno (por autólise) ou a ocorrência de um processo de mumificação ou maceração, continuando no útero.
Quanto ao aborto, interessa-nos saber a partir de que momento o embrião é objeto de tutela penal, bem como, quanto ao homicídio e à eutanásia, o momento da morte do ser humano, pois com o término da vida sucumbe sua proteção.
A Igreja Católica entende que o início da vida se dá com a fecundação, repudiando qualquer tipo de experimentação com embriões, bem como seu congelamento, e inclusive as técnicas de fecundação in vitro. Ainda, tradicionalmente doutrina que a mulher não tem o direito de abortar nem mesmo para salvar sua própria vida, sendo contra a interferência direta no feto[18], posicionamento às vezes mitigado na atualidade. [2]
Ao longo dos anos, especialistas em Medicina, Genética e ciências afins, passaram a sustentar o posicionamento de que a vida humana se iniciaria no instante da concepção, na “fusão dos gametas”, argumentando que o novo ser humano unicelular já teria o seu próprio código genético, imutável, que o identifica e individualiza.
Todavia, mesmo diante dos avanços conquistados, a medicina e as ciências biológicas têm dificuldades em estabelecer com clareza o momento no qual se inicia a real vida de um indivíduo.
2.2. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O Constituinte brasileiro de 1988 deixou claro que o Estado Democrático de Direito instituído tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), reconhecendo categoricamente, tal como na Alemanha, que o Estado existe em função da pessoa humana, caracterizada como a finalidade precípua e não o meio da atividade estatal.
Há dificuldades em se conceituar de maneira consensual, precisa e universalmente válida o princípio da dignidade da pessoa humana [3], cujo aspecto semântico se baseia num “conceito de pessoa, como categoria espiritual, como subjetividade, que possui valor em si mesmo”.[4]
Segundo José Joaquim Gomes CANOTILHO [5], o significado da dignidade da pessoa humana deve levar em consideração a idéia do indivíduo formador de si próprio e de sua vida segundo o seu projeto espiritual. Esta autonomia pode ser considerada como a capacidade potencial do ser humano de autodeterminar sua conduta.
Nesse sentido, Alexandre de MORAES assevera que a dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se “manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida”. [6]
Flávia PIOVESAN [7] sustenta ser o princípio da dignidade da pessoa humana um verdadeiro princípio fundamental, ao qual se deve conceder a “máxima eficiência”. José Afonso da SILVA [8] sustenta que a dignidade da pessoa humana atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, inclusive do direito à vida.
Nesse sentido, o Tribunal Constitucional da Espanha reconheceu a íntima vinculação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à vida, considerando ambos como essenciais para a existência e especificação dos demais direitos.[9]
2.3. Direito à Vida diante do princípio da Dignidade da pessoa humana
A Constituição é formada pela interação de suas normas jurídicas, que se dividem em princípios e regras, conforme a maior ou menor generalidade e concreção, e constituem a unidade material da Constituição.
A aparente colisão de princípios constitucionais trata de situação denominada pela doutrina como “antinomia jurídica imprópria”, uma vez que o intérprete fará a ponderação dos princípios conflitantes e, posteriormente, sua harmonização, quando cada um cederá até certo ponto, sem retirar qualquer deles do ordenamento. [10]
Pode-se considerar a existência de um aparente conflito entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à vida, quando, por exemplo, um doente em fase terminal é vítima de sofrimentos tão intensos que lhe retiram a dignidade, ou no caso de uma gestação de feto sem qualquer possibilidade de sobrevida, como os anencéfalos. Tais questões nos fazem indagar acerca da proeminência de um dos direitos, no caráter absoluto ou relativo destes.
O caráter relativo do direito à vida pode ser verificado na própria Constituição, que autoriza a pena de morte em caso de guerra (art. 5º, XLVII, a), e no Código Penal, que admite o homicídio em estado de necessidade (art. 24), em legítima defesa (art 25), e em alguns casos de aborto (art. 128, I e II).
O princípio da dignidade da pessoa humana tem sido reiteradamente considerado como aquele que detém maior hierarquia das ordens jurídicas que o reconheceram, todavia, também pode ser restringido em alguns casos, não obstante sua prevalência, como regra geral, no caso de colisão com os demais princípios, em função do seu significado constitucional.
Tem-se que a doutrina dos direitos humanos tem evoluído no sentido de relativizar as liberdades públicas, de acordo com as exigências sociais modernas, de modo a deixar da idéia de gozo absoluto dos direitos para sua utilização em conformidade com as finalidades sociais.
Nesse sentido, Alexandre de MORAES [11] dispõe que os direitos e garantias constitucionais não são ilimitados, pois encontram seus limites em normas da mesma natureza. Na atualidade, porém, entende-se que nenhuma restrição a direito fundamental pode ser desproporcional ou afetar seu núcleo essencial, ao mesmo tempo em que se sustenta ser o princípio da dignidade da pessoa humana uma diretriz para a harmonização dos princípios, exercendo uma função hermenêutica.
Resta-nos analisar alguns dos princípios específicos de interpretação constitucional. Segundo o princípio da unidade, o hermeneuta deve vislumbrar a Constituição em sua totalidade, levando em consideração a interdependência de todas as normas constitucionais e harmonizando as tensões porventura existentes.
O Princípio da concordância prática ou harmonização impõe uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada direito, buscando-se o verdadeiro significado da norma e a harmonia do texto constitucional.
Segundo Paulo BONAVIDES [12], as normas que constituem um ordenamento jurídico não podem ser analisadas isoladamente, mas como integrantes de um sistema onde os princípios gerais atuam como vínculos e, na presente fase do pós-positivismo, possuem total hegemonia e proeminência sobre as normas. É justamente a harmonia entre as diversas espécies de normas que confere a sistematicidade própria do ordenamento jurídico e o reconhecimento do princípio da unidade da Constituição.
Logo, o direito à vida não pode ser visto isoladamente dentro de nosso ordenamento jurídico, mas analisado à luz dos princípios de interpretação constitucional, considerando-se a existência de diversos direitos fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana, o direito à integridade física e psíquica e a proibição de tratamento desumano ou degradante.
Deve-se interpretar a Constituição em sua totalidade, buscando a “ideologia constitucional” através da ponderação dos princípios colidentes. Por conseguinte, a interpretação deve se fazer de modo sistemático, buscando o espírito da Constituição.
Flávia PIOVESAN [13] nos ensina que o princípio da dignidade da pessoa humana caracteriza-se como um superprincípio, uma norma destinada a orientar a interpretação dos demais. Logo, pelos motivos já explanados, chega-se à conclusão de que o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser utilizado como critério interpretativo do direito à vida, bem como dos demais direitos, concebendo-se a existência de um direito à vida digna.
Apesar de o princípio da dignidade da pessoa humana ainda viver, no Brasil e no mundo, um momento de “elaboração doutrinária e de busca de sua maior densidade jurídica”, não se pode negar sua eficácia. [14] Da mesma forma, Luís Roberto BARROSO sustenta que, após ter manifestado certo ceticismo com relação à força normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, em evidente apego ao passado, hoje reconhece que a Constituição de 1988 deu-lhe uma potencialidade antes não imaginada. [15]
Insta salientar, ainda, que dentre os métodos de interpretação constitucional, pode-se destacar dois: o subjetivo, que busca a mens legislatoris, a intenção, a vontade do legislador; e o objetivo, a mens legis, pelo qual a norma é destacada de seu criador, adquirindo uma existência objetiva e podendo se atualizar em conformidade com as exigências sociais. [16]
Entende-se que a mens legis (vontade da lei) está acima da mens legislatoris (intenção do legislador), pois possui a capacidade de acompanhar as mudanças sociais, tornando possível a evolução da norma, enquanto a busca pela mens legislatoris não se mostra suficiente, já que levaria ao “engessamento do Direito”. [17]
Por conseguinte, faz-se necessário um enfoque constitucional do direito à vida, sua harmonização e sua análise segundo as exigências de nossa realidade social, em que a atividade normativa do Direito apenas tenta atualizar os velhos e retrógrados conceitos, em uma busca incessante pela “mens legis”.
A vida humana não pode ser definida apenas por seu aspecto fisiológico, tal como a vida dos demais seres vivos, mas se deve lhe acrescentar o conceito de dignidade da pessoa humana, o diferencial do ser humano. O só fato de haver respiração e funcionamento vegetativo de órgãos não é o suficiente para se afirmar que há vida.
Deve-se ter em vista tal premissa sobretudo na análise de situações concretas, como o paciente terminal que requer a eutanásia em função de seu insuportável sofrimento, ou a mãe que deseja o aborto de feto anencéfalo, sem possibilidades reais de sobrevivência, representando em ambos os casos uma verdadeira tortura em vida, que não pode ser fundamentada em uma obrigatoriedade estatal que desrespeite os demais princípios constitucionais.
A dignidade da pessoa humana está vinculada a todos os direitos fundamentais, servindo-lhes de alicerce e informando seu conteúdo, a fim de conferir unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. Portanto, o princípio da dignidade influencia todos os demais direitos, como vida, liberdade, igualdade, etc., de maneira que o direito à vida será o direito à vida digna, e assim sucessivamente.
A interpretação sistemática da Constituição nos leva a compreender que da mesma forma como o direito à vida foi assegurado, o legislador constituinte enunciou o direito à dignidade da pessoa humana e vedou o tratamento desumano e degradante, ficando claro que o direito à vida deve ser interpretado em consonância com os demais, e não de maneira isolada, em um evidente equívoco hermenêutico.
Estamos na era de um constitucionalismo aberto, em que as noções rígidas e fechadas não mais condizem com a realidade atual, em que a Constituição deve ter capacidade de se adaptar às realidades difusas e complexas da sociedade contemporânea, o que condiz com a busca pela “mens legis”.
Não deve haver lugar, na doutrina constitucional contemporânea, para uma dogmática presa ao Estado, “onde o cidadão é acessório, e os direitos fundamentais, concessão“. Exige-se, sim, uma dogmática constitucional emancipatória e principiológica, que vislumbra no Estado não uma realidade em si justificada, mas voltada à integral satisfação dos direitos fundamentais, só possuindo sentido quando à serviço da dignidade da pessoa humana. [18]
3. Atuais Anseios Sociais
Tendo em vista que a mens legis é capaz de acompanhar as mudanças sociais, tornando possível a evolução da norma, deve-se analisar o direito à vida em conformidade com o contexto social contemporâneo. Isso porque os avanços da tecnologia e da ciência causaram um grande impacto sobre as concepções de vida e de morte, exigindo da sociedade a adequação dos mesmos.
3.1. Quanto ao Início da vida humana
Os critérios para o início da vida merecem uma análise mais apurada, especialmente sob uma ótica biológica. Destarte, existem quatro correntes quanto ao início da vida humana, as quais serão mencionadas de forma sucinta:
a) Teoria da fecundação: defende que o início da vida começa com a concepção;
b) Teoria da nidação: defende que o início da vida começa com a implantação do embrião no útero;
c) Teoria encefálica: defende que o início da vida começa com o início da atividade cerebral;
d) Teoria do Nascimento: defende que o início da vida começa com o nascimento com vida do embrião. Esse critério não condiz com nosso ordenamento jurídico, que concedeu direitos e obrigações ao nascituro, nem com os avanços das ciências biológicas.
A teoria da fecundação permaneceu por longos anos, sendo defendida veementemente até os dias de hoje por algumas facções sociais e religiosas, entretanto, demonstrar-se-á que este entendimento não mais corresponde ao contexto social atual.
Com a utilização de técnicas de reprodução assistida adveio a problemática dos pré-embriões excedentes, que muitas vezes precisam ser descartados pela sua inviabilidade e, por outro lado, podem ser utilizados na pesquisa com células-tronco embrionárias e na clonagem terapêutica para salvar muitas vidas, curando doenças as mais diversas.
Isso porque as células-tronco podem constituir diferentes tecidos do organismo, motivo pelo qual têm sido intensamente estudadas, uma vez que podem tratar infindáveis problemas, como câncer, mal de Parkinson, doenças degenerativas e cardíacas, e doenças neuromusculares em geral. As células-tronco embrionárias, por sua vez, vêm se mostrando mais eficazes que as células-tronco adultas para a cura de doenças cerebrais, a criação de órgãos para transplante e o tratamento de doenças genéticas. [19]
Simultaneamente ao desenvolvimento de tecnologias que necessitam da utilização de embriões, estima-se que existam apenas no Brasil vinte mil embriões congelados, dos quais 90% não possuem qualquer expectativa de vida e poderiam ser utilizados em pesquisas cujo objetivo é salvar vidas e curar doenças, enfim, melhorar a qualidade de vida da população.
A pesquisa com células-tronco embrionárias, portanto, surge como alternativa para a destinação dos embriões excedentes, contudo, as pesquisas sofrem um entrave: os questionamentos acerca do direito à vida, cujos limites, especialmente com relação ao início da tutela jurídica, ainda não estão definidos. Muito se prolatou acerca dessa questão, que agora surge como premente necessidade social.
Há um paradoxo, pois a “vida” de um embrião pode conceder vida, em seu significado atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana, a um enfermo.
Nesse sentido, nosso ordenamento jurídico já considera a vida humana como um bem jurídico superior à vida do embrião, pois permite o aborto quando existe risco de morte da gestante, ainda que futuro, e em caso de estupro da mãe, ao mesmo tempo em que essas justificativas não a eximem do crime de infanticídio, demonstrando implicitamente que a prevalência da vida humana após o nascimento sobre a intra-uterina.
Não poderia ser diferente, pois é evidente que ainda que o produto da concepção seja digno de respeito, pela sua potencialidade para se transformar em uma vida humana, não se pode equipará-lo totalmente aos seres humanos já nascidos.
Não seria razoável, sobretudo diante da concepção de vida digna, que em nome de uma dogmatização do direito à vida e de sua suposta prevalência sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, fosse retirada a oportunidade da ciência de encontrar a cura, seja através das células-tronco ou outras técnicas atuais, para milhares de crianças que possuem distrofia muscular, doença que leva à deterioração muscular e à morte precoce, ou de idosos com doenças degenerativas.
Concomitantemente à problemática dos embriões excedentes, há inúmeros questionamentos sobre a possibilidade de aborto em casos de anencefalia (ausência de cérebro) e síndrome de Patau (em que há problemas renais, gástricos e cerebrais gravíssimos), conquanto alguns tribunais entendam que nesses casos, de grave anomalia do feto, estaria incompatibilizada a própria vida, de modo definitivo. [20]
Verifica-se que, embora a legislação permita o aborto necessário, quando houver risco de vida para a gestante, e o sentimental, em caso de gravidez resultante de estupro, veda o aborto executado ante a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves. Apesar disso, entende-se que não há crime de aborto na interrupção da gravidez extra-uterina (como a tubárica e a ovárica), pois a gravidez não pode chegar ao seu termo. [21]
A legislação penal nos parece, no mínimo, incongruente, pois o aborto por ocasião de um estupro acaba por resguardar a dignidade e a integridade da gestante, em especial a psíquica. Tais direitos, porém, são totalmente desconsiderados quando se trata de um bebê anencéfalo ou com graves anomalias cromossômicas, identificáveis desde as primeiras semanas de gravidez, em que se compele a gestante a suportar a gravidez de um embrião com possibilidade diminuta de sobrevida, lesionando sua integridade psíquica.
Não são novos os questionamentos acerca da legitimidade do aborto nesses casos, podendo-se sustentar que, se nem mesmo para a pessoa nascida existe a proteção absoluta da vida, tendo-se em vista os vários casos de justificação para matar, não se poderia proclamá-la para aqueles que ainda não nasceram.
Faz-se necessária uma reflexão profunda acerca do tema, o que afeta a existência de verdades absolutas secularmente consideradas. Pode-se mencionar que a Igreja Católica, que sempre proclamou o valor absoluto da vida humana, por solicitação do Papa, pedira ao biólogo italiano Daniele PETRUCCI a destruição de embriões in vitro, o que demonstra o quão restrito pode ser o pensamento advindo de dogmas irrefutáveis. [22]
Igualmente se faz necessário lembrar que quando foi introduzida a vacinação contra a varíola, os teólogos discutiram se tal prática deveria ser admitida ou se seria uma violência para com a natureza dos homens e as leis de Deus. [23]
A moral católica tradicional deve ser repensada à luz das conquistas científicas atuais e, como enfatiza Eduardo A. AZPITARTE: “Seria preferível que, se a moral católica chegasse a se enganar, alguma vez o fizesse por animar a um encontro apaixonado com a verdade e o bem e não que, por segurança, como sucedeu em outras situações históricas, ficasse para trás na marcha da ciência e do progresso”. [24]
Nessa esteira de entendimento, resta-nos analisar de uma forma mais minuciosa os critérios existentes para o início da vida.
Os defensores da teoria da fecundação normalmente sustentam que a partir da concepção tem-se um novo ser, dotado de patrimônio genético único, fato inverídico, pois existem formações patológicas naturais que, embora possuam um DNA diverso do corpo materno, não podem originar um ser humano, como a mola hidatídica e o teratoma. Estas consistem em conjuntos de células com o mesmo DNA do embrião, suscetíveis de crescimento e que jamais poderiam ser considerados como vida humana. [25]
Para fins de cometimento do aborto, a vida intra-uterina se inicia com a fecundação ou constituição do ovo ou zigoto, ou seja, a concepção. Entretanto, tendo-se em vista a ausência de proibição de comercialização, no país, do DIU e das pílulas anticoncepcionais do “dia seguinte”, que impedem a implantação do zigoto no útero, deve-se aceitar, para fins penais, sob pena de considerar tais práticas como abortivas, o posicionamento de que a vida se inicia com a implantação do ovo no útero materno (nidação).
Infere-se, pois, por meio de uma interpretação sistemática das normas penais, que não vedam o uso do DIU e de métodos contraceptivos que impedem a fixação do zigoto no útero, que penalmente o ser humano só é considerado a partir da nidação, da fixação do embrião no útero.
Um argumento científico que embasa a teoria da nidação é a segmentação do indivíduo, que consiste no fato de os gêmeos monozigóticos, que possuem o mesmo código genético, separarem-se no momento da implantação do zigoto no útero, ou ao menos, obrigatoriamente, antes que se finde a nidação. Desse modo, só se poderia cogitar de um ser humano quando presente a característica da unicidade e, até que se ultrapassasse essa fase de segmentação, não haveria como reconhecer ambos os seres como uma pessoa. [26]
Quanto ao pré-embrião, não há como atribuirmos a um conglomerado de células potencialmente capaz de gerar a vida, a denominação de vida humana, pela inexistência de um requisito primordial: a unicidade, a individualização. Desse modo, mostra-se insuficiente o DNA para a caracterização do início da vida, do mesmo modo que é irrelevante ter um cadáver a forma humana e a presença de DNA único.
3.2. Quanto ao Término da vida humana
As primeiras definições de morte levavam em consideração a cessação dos batimentos cardíacos, a ausência dos movimentos respiratórios e a destruição traumática do sistema nervoso central. Tal critério, todavia, não era adequado, pois eram freqüentes os casos de enterramento em vida na Europa durante o século XVIII; assim, no século seguinte, fixou-se como critério para a morte o desaparecimento das funções circulatória e respiratória, conceito clássico que permaneceu inquestionável até meados da década de 60. [27]
Posteriormente, com o desenvolvimento de aparelhos que faziam a função cardíaca (como marcapassos) e respiratória (pela ventilação mecânica), demonstrando a possibilidade de se manter artificialmente tais processos, a definição clássica foi substituída pela morte encefálica, critério resultante da evolução da medicina, que tornou possível o prolongamento indefinido de uma vida por meios artificiais.
Percebe-se que o critério encefálico, ainda que mais condizente com a realidade atual do que os demais critérios, não é infalível, pois é possível encontrar-se alguma atividade cerebral em pessoas com morte encefálica, assim como é comum que crianças anencéfalas registrem certa atividade bioelétrica. [28] Da mesma maneira, não abrange hipóteses de comas induzidos por intoxicações metabólicas, por drogas e os casos de hipotermia, e as lesões cerebrais gravíssimas, em que não há total falência encefálica. [29]
Logo, percebe-se que o próprio conceito legal de morte é dependente de critérios valorativos, dada a insuficiência dos seus critérios definidores. Assim, é viável a adoção de um conceito de morte atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana, algo maior do que um processo puramente biológico, e que está relacionado ao direito à vida digna.
Recentemente, o caso da americana Terri Schiavo, que sofreu danos cerebrais e esteve em coma por cerca de quinze anos, gerou muita polêmica, decidindo-se a favor do desligamento dos aparelhos.
Na realidade, a questão hoje consiste na interrupção de uma vida humana quando esta não mais apresenta sentido, isso porque o direito à vida não pode ser analisado isoladamente, mas em consonância com o princípio da dignidade, o que gera a indagação sobre até que ponto haveria vida digna com relação a um paciente em estado vegetativo ou em coma irreversível.
O critério encefálico não é o ideal, mas é o único passível de utilização, diante das descobertas científicas atuais, e pode ser usado concomitantemente com o conceito de dignidade da vida, ou da morte, a fim de se corrigir certos casos-limite, como na anencefalia ou lesões cerebrais gravíssimas e irreversíveis.
Resta lembrar que de certo modo busca-se verdadeiramente a Ortotanásia (a morte em seu tempo certo, sem prolongamentos desnecessários), que está implícita na Eutanásia, e atender à dignidade da pessoa humana, assegurando sua existência no processo de morrer e poupando o indivíduo de sofrimento quando diante de uma morte inevitável.
3.3. Nova concepção do Direito à Vida
É preciso vislumbrar que mudanças na interpretação do Direito estão ocorrendo, de modo que concepções que perduraram por muitos séculos apresentam-se maleáveis, sobretudo em função do avanço das Ciências Biomédicas, alterando conceitos de vida e morte.
O aspecto mais importante da vida humana está em sua essência, na capacidade de se separar do determinismo do mundo e de estar na singularidade única por meio da consciência e da liberdade. No mesmo sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana enuncia que se deve levar em consideração a idéia do indivíduo formador de si próprio e de sua vida segundo o seu projeto espiritual, a capacidade de autodeterminação de sua conduta.
Quaisquer que sejam os critérios escolhidos para início e término da vida, o fundamental é o reconhecimento da dignidade como fator essencial à vida, sobretudo na análise de casos concretos, como no conflito entre a vida de um anencéfalo, cujo diagnóstico de sua doença ocorre após a nidação, e a dignidade da gestante.
Ora, se a legislação brasileira já aceita o aborto de feto com potencialidade de vida, resguardando a dignidade da mãe, no caso de estupro, deve permitir os procedimentos médicos para a interrupção das gestações de seres sem possibilidade de vida extra-uterina.
Da mesma forma, se o aborto é permitido em alguns casos, sob o argumento de preservar a dignidade da vida, não haveria razão para não permitir a eutanásia, em que se vislumbra também a dignidade da vida, além de impedir que o enfermo seja submetido a tratamento degradante ou desumano, nos termos do art. 5º, III, da Constituição.
Logo, o direito à vida tutelado pelo nosso ordenamento jurídico e, em especial, pelas normas penais, só pode ser entendido em conformidade com o direito à dignidade da pessoa humana, constituindo-se em um direito à vida digna.
A evolução social via de regra promove o bem-estar das pessoas, influi no processo “natural” da vida, pois é possível que uma pessoa, inicialmente predisposta a morrer ou sofrer em função de uma doença, simplesmente seja curada, ou receba uma transfusão de sangue ou um transplante de órgãos. Portanto, o homem já interfere na suposta “natureza” das coisas, sendo uma grande hipocrisia considerar a vida como intangível a fim de impedir, seja o emprego de novos tratamentos ou a possibilidade de eutanásia.
A tecnologia e os avanços sociais estão aí, basta regulamentá-los e deixar de lado os preconceitos moralistas e as profecias insanas.
Enfim, resta-nos mencionar que, como conseqüência de um direito à vida em consonância com o princípio da dignidade, o aborto de feto sem expectativa de vida extra-uterina e a eutanásia de enfermo em situação degradante ou desumana seriam condutas desprovidas de antijuridicidade, porque a antijuridicidade não se esgota em seu conteúdo formal, de contrariedade com o ordenamento jurídico-penal, mas possui uma dimensão material, que consiste na exigência de danosidade social, ou seja, que a conduta ilícita efetivamente fira o interesse social. [30]
Ainda que se entendesse não ser esse o argumento adequado para a não incriminação de tais condutas, bem como para a permissão quanto ao uso de células-tronco embrionárias, a Teoria da Tipicidade Conglobante, do professor Raúl Zaffaroni, serviria igualmente para nos ensinar que a tipicidade material deve somar-se ao conceito de antinormatividade. Desse modo, um fato, para ser típico, deve ser contrário às normas, àquilo que o ordenamento jurídico busca e fomenta, de modo que se uma norma permitir determinada conduta, esta não pode ser proibida por outra. Não basta, pois, que a conduta do agente se amolde ao tipo legal, exigindo-se que efetivamente lesione ou coloque em risco bens jurídicos penalmente relevantes. [31]
4. Conclusão
É passível de constatação o fato de a sociedade nitidamente clamar por uma evolução do conceito de vida, através de uma análise apurada dos problemas outrora inexistentes, como as milhares de pessoas em situação vegetativa, suplicando pela eutanásia; o número alto de pré-embriões congelados no país; a permissão governamental quanto ao uso de meios anticontraceptivos que impedem a fixação do zigoto no útero, dentre outros.
Tem-se ainda a aprovação da lei de Biossegurança e a atual decisão do STF pela sua constitucionalidade, permitindo a pesquisa com células-tronco embrionárias e beneficiando milhares de portadores de doenças degenerativas e hereditárias, fatos que igualmente demonstram o caminho que está sendo trilhado rumo a uma mudança no conceito de direito à vida.
O direito à vida surge da interpretação sistemática da Constituição, que também previu o direito à dignidade e a proibição de tratamento desumano e degradante. Portanto, obrigatoriamente deve estar atrelado ao conceito de dignidade humana, pois do contrário estaríamos levando em consideração apenas o aspecto fisiológico do ser humano, em nada o diferenciando da vida animal em si.
Enfim, resta-nos conceber o direito à vida não como um dogma intangível, mas admitir a sua relativização, prevista até mesmo constitucionalmente, em conformidade com a moderna doutrina de relativização dos direitos fundamentais e os próprios métodos de interpretação constitucional, que tratam da exigência de uma interpretação sistemática e da harmonização dos princípios constitucionais.
A busca pela “mens legis”, ou a vontade da lei, deve nortear os juristas, possibilitando o vislumbre de que a norma possui uma existência objetiva distinta de seu criador, o que lhe permite sua atualização em conformidade com as exigências sociais, refletindo mais fielmente a sociedade a que se destina e evitando um inadequado “engessamento do Direito”.
Graduação em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná; Especialização em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná, Núcleo de Ponta Grossa;
Especialização em Direito Civil pela Universidade Cândido Mendes – Rio de Janeiro.
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