O direito ao lazer em confronto com o art. 62 da CLT

A nossa Constituição Federal, em seu art. 6º, caput, prevê expressamente o direito ao lazer como sendo um direito social. E ainda, no art. 7º, XIII existe também o direito à duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais. Há que se dizer, logo de início que, em ambos os casos, o legislador constitucional não fez qualquer forma de restrição à aquisição desses direitos pelos trabalhadores pátrios, sejam eles de qualquer atividade.


Partindo-se dessa premissa, passemos a analisar o art. 62 da CLT, que dispõe que a categoria de trabalhadores situados no rol dos seus incisos I (empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho) e II (gerentes) estão excluídos do amparo de toda a extensão do Capítulo II, que trata sobre a duração do trabalho.


Pois bem, como sabemos, uma Constituição Federal situa-se em posição hierarquicamente superior a uma legislação infraconstitucional, como é o caso da Consolidação das Leis do Trabalho (Dec. Lei n. 5.452/43). Tal definição de supremacia foi ideologicamente criada pelo jurista austríaco Hans Kelsen, e que é amplamente usada nos sistemas jurídicos de todo o mundo.


Ora, como poderia o legislador infraconstitucional retirar um direito tão sagrado, como é o caso do direito ao lazer, de certas categorias de trabalhadores?


Há de se reconhecer que isso é claramente inconcebível no nosso ordenamento jurídico, ainda mais quando vivemos numa sociedade em que cada vez mais vem se retirando os raros momentos que o obreiro tem para se dedicar a sua vida pessoal e as suas realizações em virtude do fato de a atividade laborativa retirar-lhe boa parte do seu cotidiano.


Em contrapartida, vários segmentos da sociedade vêm procurando conciliar o trabalho à qualidade de vida, pois sabem que para que o trabalhador renda durante o expediente é preciso que ele esteja com suas forças físicas constantemente renovadas. E isso, há que se ressaltar, é uma tendência mundial, sobretudo nos países mais desenvolvidos.


Mais a mais, o lazer é um direito fundamental. A sua negação, seja por políticas públicas, seja por atitudes abusivas por parte do empregador, fazem a nossa civilização regredir à barbárie.


A fruição do lazer por parte do trabalhador é essencial, tanto numa visão humana quanto econômica. Sob o ângulo da primeira, o lazer reflete-se numa necessidade biológica e até psíquica, além de dar um sentido existencial ao ser humano, levando-o à conclusão de que o trabalho não é tudo na vida e de que é através de atividades prazerosas e relaxantes que vão levá-lo a um crescimento espiritual e existencial, e às vezes, até mesmo no âmbito do local de trabalho. Já sob o prisma da visão econômica, temos de entender que o lazer é um meio para a busca do pleno emprego. Com a expansão do lazer, há a criação, a ampliação e a diversificação de outros setores da economia. Além do que, o lazer, como bem se sabe, restaura as forças do indivíduo enquanto “força de trabalho” que é, levando até mesmo a produzir mais a empresa.


Entendemos que a imposição de limite à jornada diária de trabalho é uma questão de respeito à dignidade da pessoa humana, assim como previsto no art. 1º, III da Constituição Federal, além de ser claramente necessária em razão de fatores sociais, psicológicos e biológicos do trabalhador, como já consignado nas palavras acima.


Assim sendo, apesar de a jurisprudência do Colendo Tribunal Superior do Trabalho vir entendendo pela recepção do art. 62 da CLT frente a nossa Carta Magna, é necessário que ao analisar tal questão, fique bem claro que tais categorias dispostas nos incisos I e II do referido artigo, podem até não serem passíveis de controle de sua jornada de trabalho, mas é bem verdade que assim como todas as outras categorias de trabalhadores, eles também possuem o direito fundamental ao lazer, como condição até mesmo para o seu desenvolvimento.


A par disso, atentemos-nos para o que dispõe o Enunciado 17, aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, em 23/11/2007[1]:


“LIMITAÇÃO DA JORNADA. REPOUSO SEMANAL REMUNERADO. DIREITO CONSTITUCIONALMENTE ASSEGURADO A TODOS OS TRABALHADORES. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 62 DA CLT. A proteção jurídica ao limite da jornada de trabalho, consagrada nos incisos XIII e XV do art. 7o da Constituição da República, confere, respectivamente, a todos os trabalhadores, indistintamente, os direitos ao repouso semanal remunerado e à limitação da jornada de trabalho, tendo-se por inconstitucional o art. 62 da CLT”.


É incompatível dizermos que pelo fato de as empresas não possuírem mecanismos que vão controlar a sua jornada de trabalho lhes dá o direito de utilizarem a mão-de-obra dos referidos trabalhadores em demasia, impondo-lhes jornadas suplementares e exaustivas, que acabarão por suprimir o seu direito ao lazer.


Há muito já se foram os tempos da Revolução Industrial do século XVIII em que os trabalhadores eram submetidos a jornadas extensas de trabalho, sem direito a qualquer tipo de lazer e descanso digno a sua condição de ser humano. Atento a isso, o legislador constituinte, e seguindo o que já há muito dispunha a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, optou por não excluir nenhum trabalhador da proteção das excessivas jornadas de trabalho.


Então, o art. 62 da CLT acaba criando uma situação injusta e discriminatória para duas categorias de trabalhadores especificamente, coisa que diplomas jurídicos de maior importância e abrangência não fizeram, de forma que tais obreiros acabam prestando serviço suplementar e não são remunerados por isso, o que acaba configurando, de certa forma, um enriquecimento sem causa do empregador, e até imoral e ilícito.


Estamos diante da necessidade de se reinterpretar essa norma legal, pois a simples exclusão dos empregados inseridos nos seus incisos da proteção à jornada de trabalho é inconstitucional e incompatível com a dignidade da pessoa humana. Quanto ao tema, são essas as palavras do prof. Otávio Calvet:


“Assim, a dimensão objetiva do lazer, atuando na reinterpretação dessa norma infraconstitucional, revela que também os altos empregados devem dispor desse direito social, que no mais das vezes é exercitado nos períodos de tempo livre, donde se conclui ser inconstitucional a simples exclusão da duração do trabalho para tais empregados”.[2]


Diante de todo o exposto, chegamos à conclusão de que o art. 62 da CLT acaba suprimindo o direito ao lazer ao trabalhador na medida em que ele é observado sob ângulo frio da lei. Entendemos que, de fato, as categorias de trabalhadores ali previstas não gozam necessariamente de um controle de jornada, o que na prática é realmente algo difícil de se conceber, mas nada impede que haja um limite ponderado e razoável sobre as horas trabalhadas em relação aos mesmos, de modo a contribuir para o seu necessário desenvolvimento como ser humano.


 


Referências bibliográficas:

MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo Paulo: Ltr, 2007.

CALVET, Otávio Amaral. Direito ao Lazer nas Relações de Trabalho, 1ª edição, Rio de Janeiro: LTR, 2006, pág 89 a 117. Material da 3ª aula da Disciplina Direitos Fundamentais e Tutela do Empregado, ministrada no Curso de Pós- Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.

Enunciados aprovados na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, 23/11/2007.

 

Notas:

[1]     Enunciados aprovados na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, 23/11/2007.

[2]     CALVET, Otávio Amaral. Direito ao Lazer nas Relações de Trabalho, 1ª edição, Rio de Janeiro: LTR, 2006, pág 89 a 117. Material da 3ª aula da Disciplina Direitos Fundamentais e Tutela do Empregado, ministrada no Curso de Pós- Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.


Informações Sobre o Autor

Vinicius de Freitas Escobar

Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP-Anhanguera


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