O direito de manifestação no Brasil

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Resumo: O presente trabalho discorre acerca do cenário atual do país considerando a eclosão dos movimentos populares em junho de 2013 e promove uma análise do ordenamento jurídico sobre o tema. Tendo como pedra angular a função precípua do Estado, de alcançar o bem comum, assegurar a ordem e a convivência harmônica em sociedade, o trabalho pretende analisar o fenômeno de instauração das manifestações populares, seus benefícios, implicações e panorama jurídico atual da regulação deste direito constitucional.

Palavras chaves: Estado Democrático de Direito; Participação da Sociedade; Direitos Fundamentais; Movimentos Sociais; Manifestações Populares.

Abstract: This paper discusses about the current scenario of the country considering the outbreak of popular movements in June 2013 and promotes an analysis of the law on the subject. Having as a cornerstone primary function of the State to achieve the common good, maintain order and peaceful coexistence in society, the study aims to examine the phenomenon of popular manifestations, its benefits, implications and current legal landscape of regulation of this constitutional right.

Keywords: Democratic State; Society Participation; Fundamental Rights; Social Movements; Popular Manifestation.

Sumário: 1. A sociedade e o Estado; 2. O direito de manifestação na Constituição Federal; 3. As manifestações populares de 2013 no Brasil; 4. As tentativas de regulamentação do direito de manifestar no ordenamento jurídico brasileiro; 5. Terrorismo, Manifestação e Copa do Mundo; 6. Conclusão; Referências.

1. A SOCIEDADE E O ESTADO

A sociedade pode ser entendida como um todo orgânico, no qual a ordem entre as partes coordena o convívio social, prima pela harmonia e busca alcançar o bem comum, segundo o filósofo Aristóteles (VINI, 2006). Nesse sentido, o interesse público é o fator que viabiliza a conservação da vida em comunidade, uma vez que o bem comum pode ser traduzido na busca, por meio da ação estatal, de propiciar um convívio harmônico e organizado como forma de manutenção da vida social.

O Estado pode ser designado por coisa pública (res publica) que tem por liame o interesse de todos os indivíduos de viver em sociedade, assumindo o papel de ente soberano que, através de seus órgãos, administra uma comunidade humana organizada em determinado território. Portanto, pode-se dizer que o fim geral visado pelo Estado corresponde ao bem comum, devendo o governante almejar, por meio de suas ações e comandos, esse interesse. Nessa medida, considerando o processo dinâmico que envolve a formação e a organização da sociedade e tendo em vista a existência de interesses sociais distintos em cada conjuntura social vigente, compete ao Estado adequar sua atuação de forma a atender aos anseios e às necessidades públicas existentes em cada contexto. Por conseguinte, para analisar o processo de estruturação da Administração Pública atual, cabe examinar o desenvolvimento do Estado e do Direito Público ao longo dos séculos, partindo do Estado Liberal (BRESSER, 1995).

As Revoluções Francesa (1789) e Americana (1775 a1783) apresentam-se como acontecimentos históricos que marcaram a transformação quanto à regulação do poder público, na medida em que nesse período esse poder passou a ter o dever de obediência a certas normas jurídicas que limitavam sua própria atuação. Nessa fase, o Estado Absolutista se recolhe perante os direitos individuais e a Administração Pública torna-se submissa à lei, sendo incapaz de intervir no núcleo material da sociedade civil. Contudo, o colapso econômico decorrente dos ideais do liberalismo levou à descrença da auto-regulação do mercado, fazendo com que o Estado deixasse de ter uma atuação mínima, o que desencadeou a estruturação do Estado de Bem Estar Social e queda do Estado Liberal no mundo ocidental como um todo, no final do século XIX e início do século XX (DELLAGNEZZE, 2012). Como exemplo dessa transição, pode-se citar a edição das constituições que consagraram os direitos sociais: a Constituição Alemã de 1919 (de Weimar) e a Constituição do México, de 1917. Cumpre destacar a Constituição de 1934 do Brasil, editada no governo de Getúlio Vargas, que foi a primeira a contemplar os direitos sociais, introduzindo os direitos trabalhistas. A partir desse período o Estado passa a assumir o papel principal para concretização das finalidades sociais e promoção do bem-comum, na medida em que busca, através da intervenção na economia, a proteção da população e a oferta de serviços públicos (educação, saúde, lazer, transporte, previdência social, etc.) (LA BRADBURY, 2006).

Entretanto, a partir da década de 1970 foi evidenciada a crise do Estado de Bem Estar Social e o surgimento da teoria do Estado Neoliberal, em decorrência do aumento da carga tributária, crescimento da máquina estatal e ineficiência da intervenção do poder público na economia (DELLAGNEZZE, 2012). Essa conjuntura de crise deu ensejo ao início do Estado Democrático de Direito no Brasil com a Constituição de 1988, que favoreceu a atuação conjunta do poder público com a sociedade em diversos aspectos. No Estado Democrático de Direito brasileiro, a Administração Pública é pautada pelo princípio da legalidade – Estado de Direito – e pelo exercício da democracia, por meio do instituto da representação, com possibilidade de participação popular nas decisões estatais. Destaca-se que o Estado Democrático de Direito, diferente do Estado Liberal, garante proteção que vai além dos direitos de propriedade, protegendo, por meio da legislação, um elenco de garantias fundamentais embasadas no denominado "Princípio da Dignidade Humana", respeitando a hierarquia das normas e a separação dos poderes (LA BRADBURY, 2006).

Cabe destacar que, no decorrer desse processo de desenvolvimento do Estado, verifica-se o surgimento de diversas camadas e grupos sociais distintos, ou seja, a sociedade, que no passado era formada por um número reduzido de grupos (nobreza, clero, burguesia, camponeses e operariado), agora é formada por vários grupos com interesses diferentes – Estado Pluralista. Como consequência, o conjunto de demandas existentes na sociedade atual agrava os desafios impostos ao Estado que, conforme ressaltado, deve buscar atender aos anseios sociais de forma eficiente e de maneira inclusiva, considerando os múltiplos interesses dos inúmeros grupos sociais, protegendo os direitos individuais e a dignidade da pessoa humana, visando o equilíbrio entre igualdade e liberdade (LA BRADBURY, 2006).

2. O DIREITO DE MANIFESTAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Diante do contexto de garantia dos direitos fundamentais e tendo em vista o vasto universo de interesses individuais existentes na sociedade pluralista atual, os movimentos sociais inauguram uma dinâmica política participativa capaz de reivindicar demandas sociais junto ao Estado, traduzindo as diferentes lutas e discursos da sociedade civil. Assim, segundo Soares (1997), os movimentos sociais constituem-se um meio de expressão das necessidades públicas, permitindo a aproximação do Estado e da sociedade e, conseqüentemente, o alcance de seu objetivo fim de assegurar o bem comum.

 A capacidade de mobilização e a participação política são referenciais importantes para o aprimoramento e reafirmação do Estado Democrático de Direito, na medida em que o Estado abre possibilidade para a atuação no sentido não só de representação popular, como é o caso de eleições, mas possibilidades que permitem a participação efetiva da sociedade civil, rompendo as fronteiras existentes entre o Estado e os cidadãos, aproximando-os.

Conforme tratado, as manifestações populares repousam no manto do exercício da democracia, alicerçada no art. 5º da Constituição Federal de 1988, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, com destaque para os incisos II, IV, XVI e XVII, in verbis:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; […] IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; […] XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente; […] XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”; (BRASIL, 1988)

Logo, conforme preceitua o artigo transcrito, é livre o exercício de manifestação independentemente de autorização, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente sobre a reunião pública. O mesmo artigo condiciona a liberdade de manifestação de pensamento à identificação do autor a ocorrência reunião pública a fins pacíficos, vedando o caráter paramilitar. Percebe-se, então, que os direitos fundamentais não são amplos e irrestritos, sendo que sua efetividade está diretamente vinculada à observação de condições, visando o equilíbrio com os demais direitos existentes no ordenamento jurídico.

 Conforme tratado, as manifestações populares são vistas como uma forma de comunicação e expressão coletiva, criando um espaço público de discussão. Ou seja, a sociedade civil institui com as manifestações populares uma esfera que transcende a hierarquia estatal, possibilitando a atualização das demandas sociais junto ao Estado, traduzindo os diferentes interesses, lutas e discursos sociais. Nessa medida, o sujeito de direito individual cede lugar a um sujeito social e coletivo responsável pelo exercício da cidadania ativa – sujeito coletivo de direito. Nesse sentido, Fernandes (2013) expõe que a defesa dos valores republicanos e democráticos é imprescindível para o alcance da convivência social madura e do bom funcionamento do Estado e da comunidade em geral.

“A defesa dos valores republicanos e democráticos é parte inalienável de uma agenda intocável de qualquer sociedade que tencione alcançar uma razoabilidade mínima de convivência social madura, garantindo o bom funcionamento do Estado, governo, sociedade civil e de todos os demais entes, incluindo nesse rol as pessoas físicas e jurídicas”. (FERNANDES, 2013)

Segundo Wolkmer (1996), os movimentos sociais confirmam a insuficiência da legislação dogmática, tendo em vista a pluralidade de interesses da sociedade moderna e a incapacidade para atendimento aos anseios da população através do sistema legal vigente. Portanto, o momento de questionamento acerca das diretrizes e estruturas estatais oferece à população a oportunidade de reafirmar a defesa da democracia participativa, na qual o Estado deve atender aos anseios da população. Todavia, a despeito dos progressos relacionados à participação democrática, cumpre ressaltar a existência de entraves e particularidades que obstam o alcance dos objetivos almejados pela sociedade. Portanto, embora as manifestações populares representem uma carga legítima de indignação e se constituam em uma caixa de ressonância das mais variadas demandas, trata-se de fenômeno social que carece maiores estudos e regulamentação.

3. AS MANIFESTAÇÕES POPULARES DE 2013 NO BRASIL

Segundo Boaventura de Sousa Santos (2013), renomado sociólogo português, as manifestações populares ocorridas no Brasil em junho de 2013 marcaram o cenário histórico do país, devido a sua originalidade quanto à diversidade ideológica e a multiplicidade de interesses antagônicos dos diversos grupos sociais participantes.

 As manifestações de 2013 tiveram início em São Paulo, em junho de 2013, em um movimento contra o aumento das tarifas de transporte público. O referido movimento foi se alastrando pelo Brasil impulsionado pela realização do evento da Copa das Confederações da Fédération Internationale de Football Association (FIFA) de 2013™, no qual os olhares de todo o mundo estavam voltados para a nação, trazendo mais manifestantes para as ruas que protestavam contra as mais diversas causas, tais como: as Propostas de Emenda à Constituição (PECs)  37 e 33, tratamento gay,  ato médico, gastos com a Copa das Confederações FIFA de 2013™ e com a Copa do Mundo FIFA de 2014™, fim da corrupção, etc. (PROTESTOS…, 2014).

Desse modo, resta evidente que as manifestações populares instauradas em 2013 reuniram em um único movimento uma gama de interesses sociais heterogêneos. A heterogeneidade de grupos (sindicatos, agremiações partidárias, universitários etc.) e a falta de liderança centralizada, demonstraram a ausência de controle da ação pelos próprios manifestantes. Ademais, cumpre destacar os incidentes de violência evidenciados no movimento, no que se refere ao conflito entre policiais e participantes e a depredação do patrimônio público e particular. Esses acontecimentos demonstraram a presença, nas manifestações populares, de pessoas com a intenção de promover o vandalismo e a desordem social, como, por exemplo, o grupo radical conhecido como Black Bloc.

 O Black Bloc é um grupo formado por indivíduos com propósitos semelhantes de luta contra o sistema político e econômico vigente (anarquismo, anticapitalismo e antiglobalização) que surgiu na Alemanha nos anos 80 e nos Estados Unidos nos anos 90. O referido grupo busca protestar contra o sistema por meio da desobediência civil e ação direta (violência contra a ação policial e vandalismo contra o patrimônio de grandes organizações), sendo seus participantes identificados por sua vestimenta preta, capuzes, rostos cobertos e pelas armas que carregam como paus e pedras. Ou seja, não é um grupo centralizado e permanente, o bloco surge conforme o contexto e não tem participantes fixos que identifiquem uns aos outros, e são “por isso, incontroláveis” (LOCATELLI e VIEIRA, 2013). Sobre esse grupo e os embates ocorridos no Brasil, dispõe Erthal (2014):

“O Black Bloc apropriou-se de tal forma dos atos públicos que afastou das manifestações o cidadão comum, verdadeira força de um movimento popular. Atraiu uma antipatia que prejudica, hoje, as causas merecedoras da indignação dos cidadãos – entre elas, obviamente, a má qualidade dos transportes, da saúde, da polícia e da política. Do "milhão", as passeatas recuaram para os milhares e, finalmente, as centenas, como nas últimas duas ocasiões. (…)

O roteiro dos protestos passou a ser o mesmo, sempre: um movimento chamado de “pacífico” que, em um determinado momento, abria fileiras para um bando de mascarados armados com bombas, coquetéis molotov, pedras e paus. Vinham, é óbvio, as bombas de efeito moral da PM, e tinha-se a imagem de guerrilha urbana. Em segundos, ninguém se lembrava mais da causa do protesto, e o que se tinha é a mesma “narrativa”: pancadaria, vidros quebrados, lojas saqueadas e clara intenção golpista”. (ERTHAL, 2014)

Diante dos incidentes verificados, a “Mídia NINJA”, sigla que se refere às “narrativas independentes, jornalismo e ação”, correspondente ao grupo que transmitia em tempo real as manifestações por meio de celulares, câmeras e computadores de forma parcial, reviu seu posicionamento, quanto ao apoio que prestava às manifestações populares e atribuição da violência apenas aos policiais, após a morte do cinegrafista Santiago Andrade. Nesse momento os meios de comunicação passaram a diferenciar os manifestantes dos vândalos e alguns participantes de movimentos sociais se organizaram e começaram a anunciar o repúdio aos manifestantes violentos infiltrados no movimento (ERTHAL, 2014).

Cabe destacar, ainda, que a violência presente nas manifestações populares agravou a conjuntura de instabilidade no país, criando uma atmosfera de medo, insegurança e desordem pública. Essa atmosfera de medo impactou diretamente todos os cidadãos, impondo a presença das forças públicas policiais no sentido de assegurar o direito de ir e vir do restante da população que não participava do movimento, manter a ordem e viabilizar o convívio social, direitos esses também assegurados na Constituição de 1988, in verbis

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“PREÂMBULO

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (…)

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; (…)

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (BRASIL, 1988).

Nesse diapasão, grande parcela da população se tornou contrária às manifestações populares e aos movimentos sociais na forma como estavam sendo conduzidos, devido à mencionada violência. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos acredita que os grupos radicais como o “Black Bloc” afastam a população dos protestos, conforme posicionamento dado em entrevista à folha de São Paulo:

“Quando o capital financeiro será cada vez mais influentes, quando as Monsantos conseguem pôr no Congresso a [semente] Terminator, quando os evangélicos dominam a agenda política, quando os ruralistas dominam a agenda política, os governos, mesmo que tenham uma orientação de esquerda, precisam ser pressionados de baixo. A partir de baixo. E essa pressão tem de ser pacífica. E tem de ser inclusiva. E para ser inclusiva tem de trazer para a rua as pessoas que nunca foram para a rua, os chamados despolitizados, as avós, os netos.

Ora bem, se é esse o objetivo, o “black bloc” é uma força contraproducente. As pessoas querem ir para a manifestação, mas com medo que haja violência, com medo da brutalidade e violência policial, dizem ao final “não vamos”. Penso, portanto, que o “black bloc” deve analisar em que contexto nós estamos”. (SANTOS apud MENDONÇA, 2013).

Ademais, as manifestações obstam o direito de locomoção dos cidadãos na medida em que provocam o bloqueio de ruas, fechamento do comércio e a paralisação de diversas atividades econômicas, impactando o funcionamento da Cidade, conforme explicita o texto abaixo:

“Em meio às queixas de comunidades, durante seis horas de interdição da BR quem pagou pelos problemas foram os motoristas. Um dos primeiros da fila, o caminhoneiro Claudemir Aparecido Ferreira, 44, ia de Recife para São Paulo. “Estou há 13 dias fora de casa e com pouca água para beber. Não tem como sair do caminhão, porque a gente tem medo de acontecer alguma coisa”, disse. O motorista de ônibus Gilberto Monteiro, de 43, seguia com passageiros de Brasília para o Rio de Janeiro quando foi surpreendido pelo fechamento. “Eles chegaram a mandar as pessoas descerem, porque iam incendiar o ônibus. Por sorte, desistiram”, disse, assustado”. (PARANAIBA, 2014).

Cabe destacar que a violência presente nas manifestações populares de 2013 desencadeou a atuação policial no sentido de abordar os indivíduos mascarados e armados que se encontravam no movimento, conforme orientações emanadas pelo Poder Executivo e ordens judiciais. Como exemplo pode-se citar ocorrido no Rio de Janeiro, em que a Justiça autorizou a identificação criminal de pessoas com máscaras durante manifestações públicas e a condução dessas à delegacia, em deferimento ao requerimento formulado pela CEIV (Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas), criada via decreto pelo governador Sérgio Cabral (PMDB) no fim de julho de 2013. (MAIA, 2013). A mesma medida determinou, ainda, que a ação policial deverá ser filmada, com o objetivo de evitar excessos por parte dos policiais (GOMES, 2013).

É importante frisar que o cenário de embate causa apreensão e instabilidade no país, uma vez que a eventual necessidade de manutenção da ordem por meio da imposição pelas forças públicas de segurança, ou a possível restrição de direitos, relembra o período de regime militar vivido de 1964-1985, o que pode colocar em risco conquistas democráticas históricas. Nessa conjuntura de violência, a manifestação popular deixa de ser um canal de aproximação entre o Estado e cidadãos, tendo em vista a ausência de diálogo existente junto às instituições públicas.

Por conseguinte, a colaboração legítima dos manifestantes com as autoridades públicas, no que se refere às informações acerca dos locais, itinerários e horários das manifestações populares, possibilitaria o estabelecimento de uma interlocução entre a sociedade e as instituições, garantindo o exercício controlado desse direito constitucional, evitando a ocorrência de atos de vandalismo e condutas criminosas. Através desse processo, os vândalos, que se encontram infiltrados e deslegitimam o movimento, poderão ser devidamente identificados e punidos. Ademais, tal colaboração permitiria um planejamento prévio pelas autoridades no sentido de garantir, além do livre exercício das manifestações, os direitos de ir e vir, liberdade, segurança, vida, etc. do restante da população.

4. AS TENTATIVAS DE REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO DE MANIFESTAR NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Em razão das questões levantadas no tópico anterior, os movimentos de 2013 trouxeram à tona a premente necessidade de regulamentação e estabelecimento de limites acerca do direito de livre manifestação, com o intuito de garantir e proteger este e os demais direitos constitucionalmente garantidos. Na atualidade, não há legislação vigente no Brasil que regulamente o direito à livre manifestação e, dada a essa ausência, os manifestantes em 2013 foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional nº 7.170/1983 e na Lei de Organização Criminosa nº 12.850/2013, o que trouxe indignação dos partidários dos movimentos sociais, uma vez que não se mostra razoável enquadrar os militantes democráticos com base em lei que contém resquícios ditatoriais ou como criminosos, respectivamente (PROCESSAR…, 2013).

Diante desse contexto, segundo informações da ONG ARTICLE 19 (2013), quatorze projetos de lei propondo a regulamentação do direito de manifestar foram apresentados no Congresso Nacional, a maioria enviada após as manifestações de junho de 2013, sendo que dez desses projetos estão tramitando na Câmara de Deputados e quatro no Senado Federal. Os assuntos tratados nos projetos são diversos e envolvem o mesmo tema: regulação geral dos protestos, proibição o uso de máscaras, proibição do uso de armas de baixa letalidade e alteração ou criação de novos crimes.

No que tange aos projetos que tramitam na Câmara dos Deputados, pode-se destacar, por exemplo, o projeto de lei nº 6198/2013, que apresenta a seguinte ementa:

“Inclui o art. 40-A ao Decreto-lei 3.688, de 3 de outubro de 1941, que trata das Contravenções Penais para proibir o uso de máscaras e outros materiais usados para esconder o rosto durante manifestações populares definidas como a união de três ou mais pessoas que têm o intuito de perturbar a paz pública” (MUDALEN, 2013)

Na justificação do mencionado projeto de lei foi citado o fato de que diversos países como Canadá, EUA, França e Chile, possuem legislação que veda o uso de máscaras em manifestações públicas, frisando que a lei canadense o fez com o intuito de inibir manifestações violentas. Destaca-se que o referido projeto de lei não visa restringir a liberdade de expressão e sim garanti-la ao identificar os indivíduos que atentarem contra a ordem social. Nesse ínterim, cabe ressaltar que o texto constitucional relaciona o direito de manifestação de pensamento com a identificação do autor, uma vez que veda o anonimato. A legislação brasileira não proíbe o uso de máscaras, o que se busca atualmente é uma regulamentação no sentido da identificação daqueles indivíduos que estejam cobrindo o rosto em manifestações e, em caso de negativa da identificação, essas pessoas serão conduzidas à delegacia para serem identificados, sendo a atuação policial registrada. Por consequência, em caso de atos de violência durante as manifestações populares, será possível a identificação dos autores dos atos e a respectiva punição, evitando assim que o movimento social legítimo e pacífico seja corrompido, assegurando o exercício desse direito constitucional. (MUDALEN, 2013). Nesse sentido, dispõe o texto abaixo:

“O Projeto de Lei não fere direito à liberdade de expressão, e tem o propósito único de evitar que vândalos insiram nos movimentos para depredar, para furtar e mesmo manchar o espírito democrático da manifestação. O objetivo é impedir atos de violência e proteger os cidadãos (MUDALEN, 2013).

Outro exemplo de projeto encaminhado à Câmara dos Deputados que merece destaque é o projeto de lei nº 6500/2013, que dispõe sobre a “aplicação do princípio da não violência e garantia dos direitos humanos no contexto de manifestações e eventos públicos, bem como na execução de mandados judiciais de manutenção e reintegração de posse” e visa regulamentar o uso da força pelos agentes do Poder Público durante manifestações e eventos públicos (ALENCAR, 2013).

Com base nos projetos de lei acima relatados, resta evidente a existência de tentativas de regulamentação desse direito constitucional, tanto no sentido de proteção dos manifestantes como no sentido de punição daqueles que praticarem atos criminosos. Nesse sentido, no início de 2014 o Governo anunciou que iria encaminhar ao Congresso um projeto de lei regulamentando o direito de manifestar e que o mesmo seria aprovado até a Copa do Mundo da FIFA de 2014™:

"Nos próximos dias vamos mandar para o Congresso um projeto lei, em caráter de urgência, que trata dessa questão, regulamentando o direito de manifestação como boa parte dos países democráticos faz. A ideia é garantir a segurança ao cidadão que participa, dos jornalistas e, ao mesmo tempo, fazendo que não se tolere atos de vandalismo inaceitáveis que acabam atingindo pessoas, causando lesões e até mesmo a morte de algumas, como nós vimos, lamentavelmente, no caso do jornalista", disse o ministro. Ele se referiu ao cinegrafista da TV Bandeirantes, Santiago Ilídio Andrade, 49 anos, atingindo por um rojão num protesto no Rio de Janeiro, no dia 6, uma quinta-feira (CARAM, 2014).

Entretanto, posteriormente, o Governo desistiu da proposição de novo projeto de lei e anunciou o apoio ao Projeto de Lei do Senado nº 508 de 2013, de autoria do senador Armando Monteiro (PTB-PE), que “tipifica como crime de vandalismo a promoção de atos coletivos de destruição, dano ou incêndio em imóveis públicos ou particulares, equipamentos urbanos, instalações de meios de transporte de passageiros, veículos e monumentos.” (MONTEIRO, 2013). O referido projeto apresenta em sua justificação o argumento de que a maioria da população brasileira condena os atos de vandalismo e que a proposição “tem por objetivo justamente suprir a grave omissão da legislação em relação aos freqüentes atos coletivos de vandalismo, mediante a sua tipificação como uma nova modalidade de crime, com o qual não convivíamos até os dias de hoje” (MONTEIRO, 2013). Contudo, em seguida o Governo abandonou a idéia de apoiar qualquer proposição que regulamente o direito de manifestar, conforme anunciado na mídia:

“16/05/2014 – O governo federal colocou uma pá de cal sobre o projeto de lei do Senado (PLS 508/2013) que aumenta penas para quem cometer crimes em manifestações. O ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da presidência da República, comunicou nesta quinta-feira (15.5) que o governo desistiu de apoiar projetos no Congresso para combater o vandalismo.

“Essa é a nossa posição, vamos caminhar nessa perspectiva e temos confiança de que sairemos bem lá no final”, disse Carvalho, que esclareceu que a posição do governo mudou após discussões internas e consultas à sociedade. As informações foram divulgadas pela Agência Brasil.(…)

O objetivo era fazer com que as regras já valessem para os jogos da Copa do Mundo, que começam no dia 12 de junho. A mudança de posição do governo ocorreu diante da reação de movimentos sociais”. (TAVARES, 2014)

O recuo do governo brasileiro no que se refere à regulamentação do direito de manifestar pode ser analisado como uma estratégia para enfraquecer as manifestações populares, uma vez que a restrição de tal direito constitucional se faz controversa e trata-se de medida impopular, como praticamente toda medida que vise restringir liberdades individuais. Dessa forma, a regulamentação do direito de manifestar não mais é uma opção do Poder Executivo e passa a ser questão de tramitação de projetos de lei do Poder Legislativo, ou seja, a Administração Pública não estaria se posicionando favoravelmente à regulamentação desse direito. O anúncio da mudança de posição no dia 15 de maio de 2014, dia denominado “Dia Internacional de Lutas contra a Copa” pelos Comitês Populares da Copa, no qual manifestantes de todo o mundo iriam às ruas para protestar contra o torneio, reforça o argumento da estratégia governamental de enfraquecimento dos movimentos. (ITRI, 2014).

Além disso, em oito de maio de 2014 teve início a campanha pela Anistia Internacional, que solicitava ao governo brasileiro que a assegurasse a liberdade de manifestação durante a Copa do Mundo, sob o lema Brasil, chega de bola fora!”, coordenada pela seção nacional da ONU e apoiada por 20 países (ITRI, 2014). A posição da ONU, assim como de militantes dos direitos humanos, é que os governos devem apoiar as manifestações e não criminalizá-las. Logo, a circunstância demonstrada pedia um posicionamento do governo no sentido de garantir o livre exercício desse direito. (MONTENEGRO, 2014).

Pode-se dizer que o “Dia Internacional de Lutas contra a Copa” não teve tanto apoio como esperado. A população, com receio da violência, evita as ruas (MARTINS, 2014), principalmente a classe média. Nesse sentido, o Prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, declarou que as manifestações populares estão perdendo força com a proximidade da Copa, pois o povo brasileiro é contra manifestações populares violentas e apoiará o torneio pela sua importância no ambiente mundial e devido ao seu afeto pelo futebol (CLIMA…, 2014).

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5. TERRORISMO, MANIFESTAÇÃO E COPA DO MUNDO

Em 30 de outubro de 2007 a FIFA anunciou o Brasil como sede da Copa do Mundo 2014, sendo a escolha muito comemorada pela população do país à época. Nessa medida, a realização de um megaevento internacional no Brasil exigia a adoção de diversas medidas para atender às exigências FIFA no que se refere à realização do campeonato mundial. Nesse contexto, uma preocupação internacional comum era a possibilidade de ataque terrorista durante o evento, tendo em vista que após o atentado terrorista às Torres Gêmeas nos EUA, em 11 de setembro de 2001, o terrorismo tornou-se uma ameaça constante em grandes reuniões de alcance mundial (BRASIL…, 2012).

No que se refere ao tema, a Constituição brasileira (BRASIL, 1988) expressa repúdio ao terrorismo em seu artigo 4º, VII, tornando-o crime inafiançável insuscetível de graça ou anistia em seu artigo 5º, XLIII. Todavia, a matéria se faz um tanto controversa, uma vez que o terrorismo não tem uma definição consensual, pois seu conceito pode divergir de acordo com o tempo e espaço e, sendo assim, apresenta um caráter mais político do que jurídico. No que se refere ao terrorismo, o Código Penal brasileiro apenas dispõe sobre os requisitos de livramento condicional e a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, estabelece que esse é insuscetível de graça, anistia, indulto e fiança. Porém, a única tipificação do crime de terrorismo existente na legislação brasileira está contida no artigo 29 da Lei nº 7.170/1983, que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências (FONSECA, 2014).

“Art. 20 – Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.

Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.

Parágrafo único – Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo” (grifo nosso) (BRASIL, 1983).

Porém, a referida legislação apresenta resquícios ditatoriais, sendo que tal tipificação carece de ajustes, uma vez que não oferece o conceito de terrorismo, além de estar relacionada ao inconformismo político, critério demasiadamente subjetivo e perigoso em uma democracia. Assim, vários projetos de lei já foram submetidos ao Congresso Nacional para tratar da matéria, sendo a tentativa de tipificar o terrorismo na atualidade orientada por três projetos em tramitação no Senado (FONSECA, 2014). Nessa linha de raciocínio, o Projeto de Lei do Senado 728/ 2011 apresenta a seguinte ementa:

“Define crimes e infrações administrativas com vistas a incrementar a segurança da Copa das Confederações FIFA de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, além de prever o incidente de celeridade processual e medidas cautelares específicas, bem como disciplinar o direito de greve no período que antecede e durante a realização dos eventos, entre outras providências”.(AMÉLIA, CRIVELLA e PINHEIRO, 2011)

Portanto, percebe-se que a preocupação de tipificar o terrorismo estaria voltada para as Copas da FIFA que seriam realizadas no Brasil, assim como outros eventos internacionais, como as Olimpíadas de 2016 do Rio de Janeiro, justamente pelo caráter internacional do evento que atrai a atenção de todo o mundo. Alguns dias após a proposição do referido projeto, foi apresentada outra proposta bem similar tratando do mesmo tema, o PLS 762/11, com a ementa “Define crimes de terrorismo”. Os dois projetos foram anexados ao PL 236/12, o novo Código Penal Brasileiro. Ou seja, sua tramitação agora corre em conjunto, sendo pouco provável a tipificação do crime de terrorismo por meio desses projetos antes da Copa do Mundo de 2014 da FIFA™ (FONSECA, 2014).

Em 2013, o mais comentado projeto de lei sobre o terrorismo foi apresentado por comissão mista de senadores e deputados, com a estratégia de ser avaliado e votado pela própria comissão que propôs o projeto no Senado e na Câmara, sem a necessidade de ser submetido à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ): o Projeto de Lei nº 499/2013, que visa justamente à revogação do artigo da Lei de Segurança Nacional e propõe um conceito de terrorismo amplo. O mencionado projeto tem sido acusado pela mídia de ser uma maneira de se repreender às manifestações populares que estão acontecendo no Brasil. Parece haver uma confusão entre a regulamentação do direito de manifestar e a regulamentação do crime de terrorismo (FONSECA, 2014).

Nesse sentido, cabe esclarecer que a previsão legal do crime de terrorismo estava sendo debatida no Congresso Nacional muito antes da eclosão das manifestações de 2013, como se pode verificar pela data de propositura dos projetos de lei e pelo contexto internacional. A necessidade de regulamentação do direito de manifestar se tornou forte após a ocorrência de incidentes de violência e vandalismo nas manifestações populares de 2013. Como esses acontecimentos ocorreram concomitantemente ao período de realização das Copas da FIFA e em decorrência dos protestos contra o desembolso de recurso pelo Governo para realização do evento, muitos concluíram que o Estado estaria proibindo a população de exercer seu direito de manifestar devido à realização do mundial, no sentido de enquadrar os participantes de movimentos sociais como terroristas. Dessa forma, há um grande debate instaurado.

A respeito do tema, Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais de Universidade de São Paulo (USP), defende a existência de legislação que trate da matéria de terrorismo pelo contexto internacional e não acredita que a norma será aplicada contra manifestantes políticos, conforme disposto abaixo:

“Fica claro que atos como os que os black blocs organizam são um ato de violência política – que deveriam ser assunto do legislativo – mas não terrorismo. Não vejo aonde essas coisas poderiam ser confundidas. Quem não gosta da legislação antiterror criou essa falsa confusão, uma coisa é voltada para proteger Estado e sociedade de um tipo de ameaça muito específica, que é absurdamente necessária, versus uma onda de violência política praticada por organizações novas que não são terroristas. São conversas paralelas” (FONSECA, 2014).

Do outro lado do debate, representantes de alguns movimentos sociais, como Juliana Machado, membro do Comitê Popular da Copa de São Paulo e da articulação nacional, teme o enquadramento de manifestantes políticos como terroristas devido à amplitude da legislação.  

“A pergunta que nós, dos Comitês Populares da Copa, e os movimentos populares tem feito é: como você vai separar o joio do trigo se o projeto é absolutamente genérico? A legislação não pode ser uma previsão genérica que busque abarcar todos os casos. Quando o Projeto de Lei coloca uma tipificação tão genérica e aberta, é impossível para nós termos a ilusão [de] que não há a intenção do Estado de criminalizar os movimentos populares – e isso não apenas pela legislação do terrorismo, mas por conta de outras iniciativas que temos observado, como o Decreto de Lei e Ordem, que diz, com todas as letras, que movimentos sociais são forças oponentes do Estado” (FONSECA, 2014)

O Decreto de Lei e Ordem, citado acima pela representante, na realidade é a publicação “Garantia da Lei e da Ordem”, o anexo da Portaria Normativa nº 3.461, de 19 de dezembro de 2013 e também tem sido referenciado como norma que inibe a realização das manifestações populares durante a Copa do Mundo da FIFA de 2014™. O documento anexo teve uma segunda edição em 2014, por meio da Portaria Normativa nº 186, de 31 de janeiro de 2014.

O Decreto nº 3.897/2001 fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem e dá outras providências, mas não dispõe sobre forças oponentes, apenas regulamenta a Lei Complementar nº 97/ 1999, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. O único documento que cita força oponente é a primeira edição do anexo “Garantia da Lei e da Ordem”, apresentando o seguinte conceito:

“Forças Oponentes (F Opn) são pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio.

4.3 Forças Oponentes

4.3.1 Em Op GLO não existe a caracterização de “inimigo” na forma clássica das operações militares, porém torna-se importante o conhecimento e a correta caracterização das forças que deverão ser objeto de atenção e acompanhamento e, possivelmente, enfrentamento durante a condução das operações.

4.3.2 Dentro desse espectro, pode-se encontrar, dentre outros, os seguintes agentes como F Opn:

a) movimentos ou organizações;

b) organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e munições, grupos armados etc;

c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações ou em OSP, provocando ou instigando ações radicais e violentas; e

d) indivíduos ou grupo que se utilizam de métodos violentos para a imposição da vontade própria em função da ausência das forças de segurança pública policial”. (grifo nosso) (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2013)

     Pode-se constatar pela publicação das referidas portarias, a finalidade de orientar os agentes públicos quanto ao planejamento e emprego das forças armadas em caso de possível conflito, no sentido de evitar os embates entre policiais e manifestantes nos mesmos moldes daqueles ocorridos em junho de 2013. Trata-se de documentos técnicos de operação policial que guiam a conduta dos agentes públicos, pautada na legalidade, no respeito à hierarquia e na busca por soluções pacíficas. Percebe-se que a divulgação do documento de 2013 causou polêmica entre os manifestantes sociais que, talvez por desconhecimento, distorceram a finalidade do trabalho e seu conteúdo. (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2013 e 2014).

Além disso, a notícia de limitação do direito de manifestação durante as Copas ainda se baseia no fato de existir uma área de segurança do evento. O documento da FIFA que oferece esclarecimentos sobre a “Área de restrição comercial” durante as Copas traz o conceito do perímetro de segurança, conforme trecho abaixo:

“O perímetro de segurança é parte do “estádio” e inclui todas as áreas oficiais do evento (centros de mídia, hospitalidade, etc.) e, por isso, precisam ser não apenas seguros, como também livres de qualquer tipo de comércio, por questões operacionais. Qualquer tipo de estabelecimento eventualmente localizado dentro do perímetro de segurança precisará ser fechado durante as Competições. Como o acesso ao perímetro de segurança dependerá de ingresso ou credencial, freqüentadores usuais de estabelecimentos localizados no interior de tal perímetro não terão acesso aos mesmos.” (FIFA)

 A Lei Geral da Copa (Lei nº 12.663/2012) é anterior às manifestações populares de 2013 e dispõe sobre áreas de restrição comercial e vias de acesso, restringindo esse espaço ao perímetro máximo de 2 km (dois quilômetros) ao redor dos Locais Oficiais de Competição, conforme determinação da autoridade competente. A referida lei não trata sobre direito de manifestação ou crimes decorrentes desse, ela apresenta o aspecto administrativo do evento, como regras sobre a proteção e exploração dos direitos comerciais, vistos de entrada e permissões de trabalho, venda de ingressos, condições de acesso e permanência nos locais oficiais de competição, etc. (BRASIL, 2012). Cumpre destacar que houve inclusive o pedido de estabelecimentos comerciais, localizados fora da área de segurança, para inclusão no espaço devido aos prejuízos sofridos em 2013 com as manifestações (FERREIRA, 2014). Logo, cumpre reforçar que tais áreas são comuns em qualquer evento que exija a apresentação de ingresso e são delimitadas conforme o acordado previamente com o Estado.

6. CONCLUSÃO

A complexidade atual da sociedade pluralista e, principalmente, a dicotomia existente entre o que foi idealizado como Estado Democrático de Direito e o que é verificado na prática demonstra que o processo de construção do modelo de Estado participativo é constante e carece de avanços. Nesse sentido, as manifestações populares evidenciadas no Brasil em 2013 iniciaram um debate acerca da participação política efetiva da sociedade e promoveram a aproximação e conhecimento pelas instituições públicas dos anseios e demandas da população.

Portanto, as manifestações populares de junho de 2013 constituíram um marco na história brasileira, em meio a um período de exposição mundial do país devido à realização da Copa das Confederações da FIFA de 2013™. Entretanto, a falta de organização e a ausência de liderança no movimento permitiram o envolvimento e a infiltração de grupos violentos não legítimos, que praticaram atos de vandalismo e cobriram seus rostos com máscaras para não serem identificados e punidos (Black Bloc). Tal ocorrência agravou a sensação de medo e insegurança da sociedade, exigindo o uso de força policial para manutenção da ordem e garantia do convívio social harmônico. Ademais, as referidas manifestações, realizadas sem qualquer regulamentação, inviabilizaram o exercício de outros direitos constitucionais, como o direito de ir e vir do restante da população. As cidades, tomadas pelos manifestantes, ficavam totalmente paralisadas e o comércio fechava as portas com receio da violência e depredação.

Essa situação fez nascer o debate sobre a necessidade de regulamentação do direito de manifestar. Por consequência, o Estado propôs uma série de projetos de lei e a criação de normas orientadoras do emprego das Forças Armadas. Porém, com a reação negativa da sociedade e a proximidade da realização da Copa do Mundo de 2014 da FIFA, o Executivo decidiu não propor projeto de lei que restringisse o direito de manifestação e deixou o papel de protagonista na regulamentação, ou não, desse direito para o Legislativo. Atualmente, a discussão permanece no Congresso Nacional. Contudo, no decorrer desse processo de regulação, a desinformação da sociedade em geral ensejou a associação de relações desconexas, como as entre o terrorismo e os atos de violência e vandalismo em movimentos políticos, entre a proibição do direito de manifestar na Copas do Mundo e a área de segurança da FIFA e etc., gerando uma grande polêmica.

Cabe destacar que a Constituição garante os direitos fundamentais, mas sua forma de interpretação, o seu balanceamento e sua aplicação ainda não foi sistematizada. Nessa linha de raciocínio, é fundamental balizar o direito de manifestação com outros direitos fundamentais assegurados, como a vida e a liberdade. Logo, embora represente uma carga legítima de indignação e se constitua em uma caixa de ressonância das mais variadas demandas, a manifestação popular é um fenômeno social que carece de regulamentação. A situação atual praticamente clama por um acordo entre a sociedade e o Estado, daí a enxurrada de projetos de lei em tramitação e a confusão estabelecida sobre o direito de manifestação pública durante a Copa do Mundo da FIFA de 2014™.

Resta claro o fato de que a sociedade brasileira está amadurecendo e acordando quanto à importância de sua participação política, afinal o governo no Estado Democrático de Direito é do povo.  Desse modo, mostra-se premente a necessidade de regulamentação do direito de reunião pública e do direito de manifestação para, ao mesmo tempo, garantir o exercício desse direito constitucional e dos demais direitos do restante da população, tais como: direito de ir e vir, o direito à vida, o direito à liberdade, direito à segurança e etc. Cumpre ressaltar que no passado o país já fez uso da desobediência civil, violência e luta armada em movimentos da esquerda, para lutar contra o regime militar e conquistar a democracia. Nesse momento é hora de consolidar os mecanismos democráticos que foram institucionalizados e pressionar o Estado pacificamente, com a participação de todos, de forma inclusiva, pela efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Nesse ínterim, é interessante finalizar o presente trabalho com um pensamento do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos:

“Eu penso que, acima de tudo, temos que entender por que surgem esses movimentos. E encontrarmos, através do diálogo, formas de ver se estas são as melhores formas de luta. No meu entendimento, como já disse, estamos num momento político daquilo que chamo de guerra civil de baixa intensidade. Numa guerra assim, queremos que cada vez mais gente venha para a rua. No meu entender, para fazer pressão pacífica sobre os Estados”. (SANTOS apud MENDONÇA, 2013).

 

Referências
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Informações Sobre os Autores

Gabriela Costa Xavier

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro. Pós-graduação em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica PUC/MG em curso. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental lotada na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais. Atualmente ocupa este cargo na Secretaria Extraordinária da Copa do Mundo do Estado de Minas Gerais

Thaísa Ferreira Amaral Gomes Espínola

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro. Pós-graduação em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica PUC/MG (em curso). Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, lotada na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais, em exercício na Coordenação Especial da Copa do Mundo na Secretaria de Estado de Turismo e Esportes.

Camila Costa Xavier

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Direito Administrativo e Direito de Família. Advogada civilista


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