Resumo: O presente trabalho pretende fazer algumas breves reflexões sobre as implicações da questão ambiental no direito brasileiro do consumidor. Nesse sentido, são abordadas, em primeiro momento, a origem e a finalidade do direito brasileiro do consumidor. Apresenta-se, na seqüência, o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990) e seu conceito jurídico fundamental, a relação de consumo, na qual emergem os direitos básicos do consumidor. A previsão normativa da questão ambiental em determinadas normas jurídicas do Código de Defesa do Consumidor é o tema analisado a seguir, dando-se ênfase aos dispositivos dos arts. 4º, inciso III, 37, § 2º e 51, inciso XIV. Por fim, o trabalho volta a atenção para o direito à educação para o consumo (CDC, art. 6º, inciso II) e chama a atenção para a necessidade de uma prática educativa dos consumidores voltada à preservação ambiental, o chamado ‘consumo sustentável’.
Palavras-chave: direito do consumidor – questão ambiental – consumo sustentável.
1. A origem e a finalidade do direito brasileiro do consumidor
O direito do consumidor surgiu da necessidade de corrigir os desequilíbrios existentes na sociedade de consumo de bens e serviços, a partir da segunda metade do século XX (Donato, 1994, p. 15-19). Esse modelo social, como se sabe, apresenta a característica marcante da massificação e impessoalidade da produção, da oferta e da contratação (Azevedo, 2002, p. 65-68), fatores de enfraquecimento dos consumidores em relação aos fornecedores que, além do poder econômico, detém ainda os dados técnicos (as informações) a respeito dos bens que produzem e comercializam (Rizzato Nunes, 2005, p. 04).
Nesse sentido, o direito do consumidor é ramo recente da ciência jurídica, tendo como marco mundial o movimento consumerista norte-americano nos anos 60, que impulsionou a adoção de normas de proteção ao consumidor nos Estados Unidos e a edição de normas internacionais, responsáveis pela difusão da proteção do consumidor nas legislações de vários países na Europa e nos chamados países em desenvolvimento, como o Brasil (Rizzatto Nunes, 2005, p. 02).
Para Noronha (2003, p. 337-338) a importância do direito do consumidor reside em dois pontos fundamentais, os quais denomina ponto de vista prático e ponto de vista dos princípios jurídicos. No primeiro caso, significa que o direito do consumidor é o “direito do cotidiano”, já que as relações de consumo são as relações do dia-a-dia das pessoas. No segundo caso, que o direito do consumidor é um instrumento para a efetivação de uma idéia de justiça cujo sentido passa pela interpretação e aplicação do princípio da igualdade material[1].
Segundo Sodré (2007, p.23-84) a sociedade de consumo no Brasil surge a partir de meados da década de 50, como resultado do processo tardio (se comparado ao dos países que passaram pelas transformações da Revolução Industrial no século XIX) de industrialização iniciado na década de 30. Contudo, como atesta Oliveira (2002, p. 99), até o advento da Constituição Federal de 1988 a defesa do consumidor no Brasil se dava apenas de forma indireta, por meio da interpretação de legislação extravagante que não tinha, como finalidade primeira, a proteção dos direitos e interesses dos consumidores.
Por esse motivo, pode-se afirmar que o direito brasileiro do consumidor, concebido como um sistema coerente de valores, princípios e regras jurídicas, surgiu no processo de redemocratização do país, traduzido, em termos jurídico-políticos, pela Constituição Federal de 1988.
Segundo Marques (2005, p. 372), foi a CF/88 que, de forma pioneira no constitucionalismo pátrio (CF, art. 5º, inciso XXXII), identificou o consumidor como sujeito a ser protegido pelo Estado em suas três funções basilares. No entender a renomada jurista, essa opção do constituinte brasileiro evidencia a tendência contemporânea da hermenêutica constitucional, de atribuir à Constituição a nova função de ser o eixo do sistema jurídico de direito privado (2005, p. 595-596), a partir do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, compreendidos, na esteira de Lorenzetti (1998, p. 253), como normas fundamentais do direito privado.
Para Farias (2002, p. 89) um dos aspectos marcantes do fenômeno da globalização é o da mundialização do capital e do consumo. Nesse contexto, cumpre assinalar a necessidade de fortalecer o sistema jurídico de proteção e defesa dos consumidores, compreendido como uma ferramenta necessária à proteção das mais legítimas necessidades da pessoa humana no âmbito da sociedade de consumo.
2. O Código de Defesa do Consumidor e a relação jurídica de consumo
O Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990), concebido em decorrência da vontade constituinte (CF, art. 5º, XXXII c/c arts. 170, V e 48, ADCT), pode ser definido como um microssistema jurídico, isto é, como lei constituída por normas jurídicas (regras e princípios) próprias a um campo relativamente específico de relações sociais, as chamadas relações de consumo (Filomeno, 2001(b), p. 19-20; Rizzatto Nunes, 2005, p.66).
A relação de consumo é um vínculo jurídico de natureza complexa, pois o Código estabeleceu deveres para todos fornecedores de bens e serviços ao consumidor, dentro do que se pode chamar cadeia produtiva[2]. Nesse sentido, reconhece Noronha (1999, p. 149-151) a existência de três modalidades de relação de consumo.
Em primeiro lugar, a relação estritamente contratual, que abrange os contratos de consumo celebrados entre consumidores e fornecedores[3] (p. 149). Em segundo lugar, a relação obrigacional que, além dos vínculos contratuais, abrange também aqueles advindos da oferta contratual[4] e das responsabilidades dos fornecedores por acidentes de consumo e por vícios nos produtos e serviços[5] (p. 150).
Em terceiro lugar, a relação geral de consumo, que ultrapassa o vínculo obrigacional, de natureza econômica, abrangendo todos os interesses dos consumidores relacionados a sua atuação no mercado e na sociedade como um todo (p. 150). Nesse sentido, o consumidor é agente econômico e também político, já que seu comportamento pode contribuir para a melhoria ou piora das condições de vida social. Trata-se, dentre outros aspectos, do campo de análise sobre a relação entre o direito do consumidor e a questão ambiental[6].
3. A questão ambiental nas normas jurídicas do Código de Defesa do Consumidor
O Código de Defesa do Consumidor tratou timidamente da questão ambiental, não obstante os interesses dos consumidores e os do meio ambiente possuírem, em não raras situações, a mesma natureza difusa ou transindividual. Com efeito, explica-se o pouco tratamento da matéria ambiental no Código pelo fato de que a ratio legis desse diploma é, em cumprimento ao comando constitucional (CF, art. 5º, XXXII), dar a efetiva proteção ao consumidor como agente econômico no mercado, dotando-o de direitos indisponíveis frente aos fornecedores de produtos e serviços. A questão ambiental surge, assim, como reflexo desse tratamento protetivo.
Contudo, cabe destacar que o CDC se ocupa da matéria ambiental em, pelo menos, quatro momentos. No primeiro (art. 4º, inciso III), trata da questão ambiental ao determinar que a Política Nacional de Relações de Consumo – levada a cabo pelos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (CDC, art. 105) – seja exercida de modo a harmonizar os interesses dos participantes da relação de consumo segundo os princípios da ordem econômica (CF, art. 170 e incisos)[7].
Isso significa que a defesa do consumidor, como princípio geral da atividade econômica (CF, art. 170, V) deve harmonizar-se com a defesa do meio ambiente enquanto princípio de mesma função e natureza constitucionais (CF, art. 170, VI)[8], sendo esse, no dizer de Grau (1993, p. 189) um dos fins (ou objetivos) da política de proteção dos consumidores no direito brasileiro.
Em segundo momento, o CDC cuida da questão ambiental na matéria referente à coibição da publicidade abusiva (art. 37, § 2º), compreendida, dentre outros casos, como aquela que desrespeita valores ambientais[9]. Vale dizer que os consumidores, expostos às práticas publicitárias no mercado de consumo (CDC, art. 29), devem ser protegidos pelos órgãos públicos e privados, integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, contra mensagens publicitárias que, a pretexto de ofertarem seus produtos e serviços, estimulem a lesão, das mais variadas formas[10], ao bem ambiental.
No terceiro momento, o Código aborda a matéria ambiental no campo da proteção contratual do consumidor, mais especificamente, no tema do controle das cláusulas contratuais abusivas[11] (art. 51, XIV). Com efeito, a sociedade de consumo se caracteriza pela massificação da produção, oferta e contratação de bens e serviços (Azevedo, 2009, p. 36). Os contratos de adesão, não obstante assegurarem a dinâmica necessária para a economia capitalista contemporânea, permitem, por sua natureza[12], a estipulação de conteúdos abusivos, isto é, que estabelecem obrigações desproporcionais, iníquas, contrárias à boa-fé[13], e que subtraem do consumidor direitos de natureza indisponível.
Essa é a razão pela qual as cláusulas contratuais abusivas são nulas de pleno direito (CDC, art. 51, caput), permitindo ao prejudicado ou aos legitimados às ações judiciais coletivas (CDC, art. 82) invocar, a qualquer tempo[14], a invalidade da cláusula ou, se não for possível a manutenção do contrato, a invalidade deste (CDC, art. 51, § 2º).
Nesse sentido, considera-se abusiva a cláusula contratual que infringir ou possibilitar a violação de normas ambientais (CDC, art. 51, XIV)[15]. Segundo Bonatto (2004, p. 107) “não há necessidade da efetiva agressão ao meio ambiente, bastando, para caracterizar a abusividade, que a cláusula contratual possibilite a ofensa ambiental”. Se, porém, a abusividade representar concreta lesão ao consumidor poderá ele buscar a invalidade do negócio, como no caso de uma promessa de compra e venda imobiliária[16] cuja obra será (ou está sendo) realizada em área de preservação ambiental[17].
Por fim, o quarto e último momento no qual o CDC trata da questão ambiental se dá na previsão expressa de um direito à educação para o consumo (art. 6º, II) que abrange, dentre outras situações, a necessidade de uma educação para o chamado consumo sustentável, assunto tratado na seqüência.
4. O consumo sustentável: educar o consumidor para a preservação ambiental
O Código de Defesa do Consumidor estabeleceu, dentre os muitos direitos fundamentais dos consumidores, o referente à educação e divulgação sobre o consumo adequado de produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações (CDC, art. 6º, inciso II). Trata-se de norma jurídica que revela a preocupação em assegurar uma proteção jurídica dos consumidores no aspecto preventivo, isto é, no intuito de evitar a ocorrência de lesões aos demais direitos dos consumidores, sejam estes de natureza patrimonial (lesão econômica) ou extrapatrimonial (lesão física ou psíquica)[18].
Segundo Filomeno (2001(b), p. 124) a efetividade do direito à educação para o consumo deve ocorrer duas formas: a) educação formal – aquela que se estabelece pelo ensino de temas relacionados aos direitos do consumidor no ensino fundamental, médio e superior e; b) educação informal – aquela que se estabelece pela utilização de espaços de comunicação social de massa (mídia), realizada pelos próprios fornecedores, pela sociedade civil organizada ou pelo aparato estatal[19].
Assim, se é verdadeira a idéia de que os consumidores precisam ser agentes educados para o exercício da cidadania – compreendida como valor e princípio fundamental da República (CF, art. 1º, II) – a educação parece ser, portanto, a condição essencial para o exercício dos demais direitos que o consumidor possui, para que ele não seja apenas um agente econômico, uma peça na engrenagem do mercado de consumo, mas um agente político, isto é, um cidadão consciente dos seus direitos e obrigações para com os fornecedores e a sociedade onde vive[20].
A emergência de uma cultura voltada para a maior efetividade da educação dos consumidores sugere a necessidade de um olhar mais atento para determinadas situações presentes na sociedade brasileira, dentre as quais está o chamado consumo sustentável[21].
Com efeito, é inegável que um dos aspectos dos tempos pós-modernos e globalizados é a questão ambiental, isto é, os problemas gerados pela devastação do meio ambiente e a necessidade de preservá-lo ultrapassam as fronteiras dos Estados e, a exemplo do aquecimento global, interessam a humanidade, pelo que se pode falar, como sugere Faraco de Azevedo (2005), na existência de uma ecocivilização, voltada para a questão ambiental como um problema central de sua própria sobrevivência[22].
Nesse sentido, as políticas estatais e internacionais de proteção ambiental devem, necessariamente, estar relacionadas às políticas estatais e internacionais de proteção dos consumidores[23], no intuito de estabelecer os limites ao exercício das liberdades (direitos) do consumidor no mercado de consumo para a preservação do bem ambiental.
Assim sendo – e a exemplo do que já vem sendo realizado no Brasil[24] – a tarefa maior da educação para o consumo sustentável consiste, no dizer de Nalini (2001), em formar uma ética ambiental capaz de conscientizar o cidadão de que seu papel de consumidor não se reduz a uma relação puramente econômica com os fornecedores, segundo uma lógica de mercado, mas vai além, contribuindo para o aumento ou a diminuição da degradação ambiental a partir das escolhas de consumo e comportamentos pós-consumo dos bens ofertados pelos fornecedores[25].
Informações Sobre o Autor
Fernando Costa de Azevedo
Mestre em Direito pela UFSC. Professor Assistente nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPel e UCPel. Palestrante convidado no Curso de Especialização em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais da UFRGS