1) Introdução.
O presente artigo trata das férias[1] -direito fundamental de todos os trabalhadores, fruto de árduas lutas sociais- consagrado no âmbito internacional pela OIT nas Convenções n.º 52[2], n.º 101[3] e n.º 132[4], bem como, em distintas legislações nacionais (em nível constitucional[5] ou infra-constitucional) e/ou comunitárias, desde a perspectiva de uma decisão judicial particular.
Como é notório, o direito a Férias tem o objetivo de proporcionar ao trabalhador um tempo mais prolongado e necessário de repouso que aqueles previstos pelos descansos diários (entre e/ou intrajornadas de trabalho) e semanais estabelecidos em lei; todas estas pausas visam ao ajuste do tempo de trabalho a padrões adequados de esforço/repouso preservando, desta forma, a saúde do trabalhador e evitando, por conseguinte, eventuais enfermidades e acidentes de trabalho. O direito a férias e o seu efetivo desfrute ademais de permitir o repouso e a recuperação dos desgastes físicos e psicológicos produzido pelas atividades laborais busca, entre suas finalidades, disponibilizar um maior convívio do trabalhador com sua família e a comunidade na qual está inserido. Enfatiza-se também, que o direito a férias anuais remuneradas faz parte do rol das atuais exigências européias de conciliação da vida laboral e familiar que devem ser adotadas pelos Estados membros[6].
O objeto de estudo destas páginas se refere a recente sentença, datada de 6 de abril do corrente ano, emitida pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias – TJCE. Em dita decisão analisa-se o direito dos trabalhadores de usufruírem de um período anual mínimo de descanso continuado a título de férias. Justifica-se a escolha de apreciar a sentença do Tribunal Europeu com base nos seguintes argumentos: 1º) conhecer a legislação comunitária pertinente ao direito a férias; 2º) apreciar a opinião do mais alto Tribunal europeu acerca do direito a férias; 3º) questionar, desde o ponto de vista teórico, o uso -muitas vezes inadequado- de noções jurídicas que contenham um alto grau valorativo; 4º) evidenciar a importância de proteger os direitos fundamentais dos trabalhadores.
2) Comentários à sentença do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias – TJCE, sala primeira, processo C-124/05.
Para melhor compreensão do veredicto editado pelo TJCE cabe proceder com anterioridade a uma breve síntese dos fatos que motivaram esta contenda judicial[7]. Antes da decisão pelo TJCE o caso em tela percorreu uma longa trajetória processual. Primeiro, a Federação Sindical Holandesa- FNV[8] demandou judicialmente perante o Rechtbank te ´s-Gravenhage contra o Estado Neerlandês[9]. O Rechtbank te ´s-Gravenhage desestima a demanda e a FNV recorre, em última instancia, ao Gerechtshof ´s-Gravenhage. A Federação Sindical fundamenta sua apelação com base em dois dispositivos legais: primeiro, no âmbito interno, com respaldo no livro 7, título 10 (contrato de trabalho), capítulo 3 (férias) do Código Civil Neerlandês[10] e, segundo, no âmbito comunitário, com base na Diretiva 93/104/CE. De acordo com o Gerechtshof ´s-Gravenhage[11], a interpretação dada a Diretiva pelo Estado Neerlandês é ilegítima e, como tal, prejudica os interesses da FNV, enquanto defensora dos trabalhadores dos Países Baixos, motivos suficientes para que com base no do artigo 234 do Tratado da Comunidade Européia o TJCE aprecie a questão prejudicial em tela e decida o litígio em questão.
Como aludido anteriormente, são partes neste processo a FNV e o Estado Neerlandês. Segundo as alegações de fato, em fevereiro de 2001 o Ministério de Trabalho e Assuntos Sociais neerlandês publicou um folheto informativo com o título “Nova legislação sobre férias. Mais espaço para o trabalho a medida”[12]. Em seu bojo, dito folheto informava que o limite mínimo de férias anuais havia se mantido o mesmo depois das reformas legais (quatro vezes o período de trabalho semanal acordado ou, se o período de trabalho acordado fosse expresso em horas por ano, de, no mínimo, um período equivalente). Ressaltava, sem embargo, que era permitindo a acumulação de dias de férias durante vários anos para que o trabalhador pudesse concretizar o sonho de “uma longa viagem ao redor do mundo”. O folheto destacava também, a possibilidade de que qualquer trabalhador renunciasse aos seus dias de férias por uma contraprestação econômica com a finalidade, por exemplo, de “fazer obras na sua casa”, estipulando como únicos requisitos, o fato de que ditos dias excedessem o número mínimo obrigatório de dias de férias anuais ou que se tratassem de dias de férias de anos anteriores não gozados.
Conforme a Federação Sindical Holandesa, o Ministério de Trabalho e Assuntos Sociais infringiu, com a divulgação pública do folheto informativo, o artigo 7:640 do Código Civil Neerlandês que estabelece que durante a vigência do contrato de trabalho o trabalhador não pode renunciar ao seu direito a férias em troca de uma compensação econômica. A exceção a esta regra geral, ou seja, a contrapartida econômica das férias não gozadas será permitida somente nos casos em que o direito a férias exceda ao mínimo legal e sempre que se efetue mediante acordo por escrito. Afirma a FNV em suas alegações que o Estado Neerlandês viola também a Diretiva 93/104/CE ao “entender e declarar, contrariamente ao artigo 7, apartado 2, da Diretiva, no âmbito da interpretação do conceito de «período mínimo de férias» a que se refere o artigo 7:634[13] do Código Civil Neerlandês, que os dias, tanto legais como extralegais, que foram acumulados a partir de anos anteriores e excedam o direito ao período mínimo de férias podem, em princípio, ser substituídos por retribuição econômica”.
Com base nos fatos e direitos expostos, pede a FNV que seja declarada ilegal a atuação do Estado Neerlandês e que o mesmo renuncie a divulgação do folheto informativo.
O TJCE da início a sua exposição, indagando-se sobre a legitimidade de transferir as férias mínimas anuais a anos posteriores. Conforme o Tribunal, para que as férias provoquem o efeito positivo esperado das mesmas –descanso eficaz que garanta a segurança e a saúde dos trabalhadores- necessariamente elas devem ser gozadas no ano a que lhes corresponda. Não obstante, o fato de que as férias não sejam desfrutadas no ano cabível, não é um óbice para que dito tempo de descanso não possa ser gozado em outro período posterior, pois o que importa é garantir que o direito a Férias se concretize. Neste particular, o TJCE se apóia em outra sentença do mesmo Tribunal datada de 4 de abril de 2005 (processo C-519/03[14]). Todavia, como esta hipótese é uma exceção, adverte o Tribunal: somente pode ser aceita a transferência das férias nos casos em que seja impossível (impossibilidade real e comprovada) o seu desfrute no ano em curso. Neste caso, seria ilegítimo o exemplo e a interpretação legal dada pelo Governo Neerlandês de que os trabalhadores dos Países Baixos possam escolher entre gozar as férias ou acumulá-las durante anos com o fito de realizar uma grande viagem.
Em segundo lugar, a atenção do TJCE se volta para a questão central deste processo, a saber: o caráter legal ou não da compensação econômica das férias anuais não desfrutadas. Para fundamentar a sua decisão o TJCE faz uso da Diretiva 93/104/CE em seu artigo 7, apartado 1 e 2.
Antes de prosseguir com os argumentos do Tribunal, cabe comentar, de forma sucinta, em que consiste a Diretiva européia arrolada na sentença em tela.
A Diretiva 93/104/CE, bem como a Diretiva 2003/88/CE[15] pretendem harmonizar os ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados membros da União Européia no que diz respeito à ordenação do tempo de trabalho. Ambas, em suas considerações de motivos, reconhecem que a melhora da segurança, higiene e saúde dos trabalhadores no trabalho representam objetivos que não podem subordinar-se a interesses de caráter puramente econômico. Portanto, a concretização de um mercado comum também deve contribuir à melhoria das condições de vida e de trabalho dos trabalhadores, mediante a distribuição de um tempo de trabalho razoável e que respeite os períodos mínimos de descanso, sejam eles diários, semanais ou anuais, adequados para tal fim. Observa-se que as Diretivas e suas finalidades estão relacionadas com todo o arcabouço jurídico comunitário, a saber:
1) o Tratado Constitutivo da Comunidade Européia – TCEE[16] (artigos 137 1. a. e b. e 186),
2) a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores de 1989 (§ 1º do apartado 7, apartado 8 e § 1º do apartado 19);
3) a Carta Social Européia[17] de 1961 revisada em 1996,
4) e a Carta Comunitária dos Direitos Fundamentais da União Européia[18] de 2000 (artigo 31. 1. e 2.)
Todos estes documentos normativos têm como escopo promover a coesão social européia garantindo um nível suficiente de proteção social reconhecendo o caráter essencial do trabalho -dentro do conjunto de diretrizes sociais- que devem ser levadas a bom termo pela Comunidade Européia.
A Diretiva 93/104/CE no apartado 1 do artigo 7 exige a todos os Estados membros adotarem medidas necessárias para que todos os trabalhadores disponham de um período de, ao menos, 4 semanas de ferais anuais retribuídas. Ademais, o direito a férias retribuídas é considerado um princípio do Direito Social comunitário que não admite exceções e cuja aplicação pelos Estados membros -ainda que matizado pela legislação nacional pertinente-, deve respeitar os limites mínimos impostos expressamente pela própria Diretiva. Observar-se que a Diretiva sabedora de que os Estados membros possuem realidades distintas estabelece -com fundamento nas exigências do princípio protetor, máxima do Direito do Trabalho-, que: existindo, no âmbito interno dos Estados, disposições legais, regulamentos administrativos, convenções coletivas ou acordos celebrados entre interlocutores sociais mais favoráveis a proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores estes prevalecem sobre as normas da Diretiva[19].
Portanto, de acordo com o TJCE, a finalidade da citada Diretiva é a proteção da segurança e a saúde dos trabalhadores “fazendo com que eles desfrutem de períodos mínimos de descanso e, em concreto, de férias anuais retribuídas, assim como de períodos de pausas adequados” direito que deve ser respeitado e garantido no âmbito interno dos Estados membros da União.
O TJCE também reflexiona sobre a possibilidade de que a compensação econômica das férias mínimas anuais transferidas possa produzir o efeito –absolutamente contrário ao objetivo da normatização européia-, de que os trabalhadores renunciem ao tempo de descanso anual com a finalidade de obter uma compensação econômica em um ano posterior.
Segundo a sentença, o próprio Governo Neerlandês[20] reconheceu, durante a tramitação parlamentar do artigo 7:640 do Código Civil, que a alternativa de compensação econômica dos dias de férias podia oferecer o risco de que os trabalhadores deixassem de gozá-las conscientes de que dito período de descanso não desfrutado se convertesse em ganho econômico em anos posteriores. Mas, mesmo consciente desta possibilidade, o Governo Neerlandês preferiu conceder, conforme suas alegações, total autonomia às partes confiando em que “os interessados atuariam de forma responsável”.
Em debates sobre temas éticos, políticos ou de direitos freqüentemente se argüiu utilizando a expressão autonomia pessoal como um valor supremo a ser preservado. Apela-se a noção de autonomia, por exemplo, para justificar a conveniência de certas instituições ou de determinados preceitos jurídicos e, ao proceder desta forma, transforma-se a autonomia em um valor fundamental que serve de parâmetro para aceitar ou impugnar normas ou condutas. O Governo Neerlandês justificou a sua conduta política, apelando para o valor moral da autonomia das partes, que configuram o contrato de trabalho, deixando ao livre arbítrio dos trabalhadores a decisão de converter as férias em compensação econômica ou desfrute em forma de descanso. Não obstante, destaca-se que autonomia pessoal só possui um valor moral prima facie, pois este valor pode ser anulado pelo valor ignóbil de outros aspectos da ação considerada em sua integralidade.
O ponto de referência para qualquer definição de autonomia pessoal é a concepção kantiana que a define referindo-se às condições universais de racionalidade e independência que podem ser predicadas de qualquer pessoa em qualquer contexto. Sem embargo, a autonomia pessoal não pode ser definida com base em condições meramente subjetivas pois, como bem ressalta Raz[21], as condições objetivas também são cruciais quando se trata de averiguar o alcance real da autonomia pessoal. Portanto, pode-se dizer que uma pessoa é mais ou menos autônoma somente depois de apreciar a situação em que se encontra com relação às possibilidades que uma sociedade, em uma determinada época, lhe oferece. Em outras palavras, é mais provável que a pessoa atue com maior independência, sem ser objeto de coerção ou manipulação por parte de uma e/ou outras pessoas ou do contexto de eleição, se tem, perante si mesma, opções que sejam suficientes em número e adequadas quanto à sua diversidade e qualidade. Somente se conta com ditas opções, no sentido que sejam opções possíveis, a pessoa estará em condições de exercitar, de fato, a sua autonomia.
Conseqüentemente, pressupor que todos os trabalhadores neerlandeses estão em condições de exercer com plenitude a sua autonomia, a ponto de serem responsáveis na eleição que lhes propõe o Governo entre descansar o período de férias ou compensá-las economicamente, parece ser uma medida governamental, que poderia ser minimamente acusada de estar desconsiderando a realidade do mundo do trabalho[22], pois, mesmo nos Países Baixos, que é um dos Estados europeus com menor taxa de desemprego e que concede aos trabalhadores um rol significativo de garantias laborais e previdenciárias, os trabalhadores costumam ser a parte mais débil da relação contratual, e justamente por esta condição, seus direitos encontram-se protegidos de forma legal para que não sejam enfraquecidos por circunstancias sócio-econômicas.
Desta forma, procurando evitar que a conduta indesejada da troca das férias por pecúnia seja uma ação constante, o TJCE interpreta que o artigo 7 da Diretiva 93/104/CE (mantido pela Diretiva 2003/88/CE) se opõe, veementemente, a que as férias mínimas anuais possam ser substituídas por uma indenização econômica.
3) Conclusão.
Na introdução deste artigo mencionou-se que as férias são um direito fundamental de toda a pessoa trabalhadora. Incumbe, à guisa de conclusão, tentar demarcar esta noção.
Um dos critérios que se pode empregar para compreender a noção de direito fundamental é traçar a distinção, bastante elucidativa, entre “direitos humanos”[23] e “direitos fundamentais”[24]. Habitualmente, o termo “direitos humanos” é utilizado para designar aqueles direitos positivados em declarações e convenções internacionais, bem como aquelas exigências humanas básicas relacionadas com a dignidade, liberdade, igualdade que não foram formalizadas em um ordenamento jurídico específico.
Já a noção de “direitos fundamentais” é atribuída a todos aqueles direitos reconhecidos em uma norma jurídica interna e protegidos em seu exercício pelo aparato estatal. Em definitivo, os direitos fundamentais são aqueles direitos que, em um determinado momento histórico, uma comunidade de cidadãos livres estipula -no exercício do seu poder constituinte-, como parte das condições básicas da convivência cujo desenvolvimento compete aos poderes constituídos mas que nenhum deles, nem sequer o Poder Legislativo (através da maioria dos seus representantes) pode ignorar ou infringir.
Esta noção de direitos fundamentais reconhece não somente a sua dimensão subjetiva pública mas também, a sua dimensão objetiva como reforço constitutivo da primeira. Como mencionado no parágrafo anterior, os direitos fundamentais concretizam os valores basilares dos ordenamentos jurídicos democráticos, e seus efeitos condicionantes atuam de diversas formas, pois protegem toda e qualquer pessoa contra agressões e ameaças provindas de terceiros e limitam, impulsionam e norteiam os Poderes Públicos.
Com base nos argumentos apresentados nesta conclusão, pode-se dizer que o Governo Neerlandês ao divulgar o folheto informativo que permitia uma “leitura flexibilizada” do direito a Férias atuou na contramão do seu papel de garantidor dos direitos fundamentais dos trabalhadores neerlandeses e, neste sentido, foi correta a condenação estipulada pelo TJCE, pois, como bem lembra Dworkin[25], tão importante como o papel que exerce a lei em uma sociedade é o papel do Poder Judiciário, visto que em um juízo, não somente se ganha ou se perde a liberdade mas, também, se ganha ou se perde patrimônio e/ou a proteção a direitos entre tantos outros bens. Além do mais, os juízos judiciais são importantes desde um outro aspecto que não pode ser medido economicamente, ou seja, desde sua repercussão social. Um juiz/tribunal ao pronunciar uma sentença determina não somente quem é a parte merecedora de créditos ou que atuou corretamente cumprindo com suas responsabilidades de cidadão e/ou dirigente mas, também, quem, de forma intencional ou por insensibilidade, ignorou as suas próprias responsabilidades com respeito aos demais. Uma ação perante o Poder Judiciário que reafirme a existência de um direito fundamental lesionado promove justiça pública e, precisamente por isto, o papel que desempenha é de extrema relevância social.
2. O direito a férias deve efetivar-se de modo a possibilitar a recuperação física e psíquica dos trabalhadores e assegurar-lhes condições mínimas de disponibilidade pessoal, de integração na vida familiar e de participação social e cultural.
Informações Sobre o Autor
Sheila Stolz da Silveira
Professora da Fundação Universidade Federal do Rio Grande -FURG. Doutoranda em Direito pela Universitat Pompeu Fabra-UPF, Barcelona, Espanha. Mestre em Direito