O Direito Fundamental à saúde e a obrigação de fazer do Estado no tratamento paliativo dos pacientes terminais

Resumo: O presente trabalho faz uma análise conjuntural, socioeconômica, jurídica e teleológica sobre os cuidados paliativos nos pacientes em estado terminal. Será abordada a jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, bem como a tendência dos tribunais pátrios em tornar eficaz o acesso à saúde aos cidadãos brasileiros. Sustenta-se ainda que os entes públicos são responsáveis solidariamente na políticas públicas de implementação da saúde. Nesse ínterim, destaca-se que o direito à saúde é direito social de segunda dimensão e que também é uma garantia fundamental positivada pelo constituinte originário. Com efeito, destaca-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é corolário dos demais princípios constitucionais constituindo vetor de interpretação para quaisquer demandas judiciais que versem sobre o conflito de garantias fundamentais. Por fim, o foco principal do trabalho é demonstrar que o paciente terminal e portador de qualquer doença grave ou incurável não devem ter sua dignidade aviltada pelos poderes públicos.[1]

Palavras-chave: Paciente terminal; Princípio da dignidade da pessoa humana; Garantias Fundamentais; Solidariedade dos entes públicos.

Sumário

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Introdução. 1. Direito fundamental à saúde: considerações iniciais. 1.1. O Direito fundamental à saúde e sua exigibilidade face aos entes públicos. 1.2. Os princípios constitucionais como axioma fundamental no conflito de garantias fundamentais. 1.3. A limitação do julgador no juízo de discricionariedade e na aplicabilidade dos princípios constitucionais. 2. A responsabilidade estatal no fornecimento da saúde pública. 2.1. A responsabilidade solidária dos entes públicos e a obrigação de fornecimento de saúde qualitativa e igualitária. 2.2. Considerações sobre o panorama do custeio da saúde pública brasileira. 2.3. A responsabilidade objetiva da Administração Pública em face dos danos causados aos particulares. 3. O direito à saúde e os cuidados paliativos aos pacientes terminais. 3.1. O Direito comparado entre as Constituições de outros países e a Constituição Brasileira em face da saúde pública. 3.2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em face dos pacientes terminais. 3.3. A proporcionalidade e a razoabilidade no conflito entre a reserva do possível e o mínimo existencial. 3.4. O direito fundamental aos cuidados paliativos e à obrigação de fazer do Estado. 4. Considerações Finais. Referências.

Introdução

O presente trabalho tem como escopo abordar a questão do direito fundamental à saúde no tratamento paliativo dos pacientes terminais, a partir da ótica dos princípios que regem o Direito Constitucional, Civil e Administrativo.

Dessa forma, os interesses por estudar a obrigação de fazer do Estado nos cuidados paliativos dos pacientes terminais resvalam não apenas na proteção à saúde dos mesmos, mas na problematização acerca da ineficiência, inércia e apatia dos entes públicos com o tema da saúde e a proposta de soluções concretas para esta causa.

 Destaca-se ainda que a jurisprudência e a nova tendência neo-constitucional de valorização dos princípios obtém extrema relevância no mérito deste trabalho.

Assim, o presente estudo se propõe a fomentar algumas perguntas: O Estado deve tutelar de forma concreta o tratamento paliativo dos pacientes terminais?

 São merecedores de especial atenção e dignidade pelos poderes públicos ou os cuidados paliativos aos mesmos deve ser restrito aos particulares? Se há uma proteção e valoração do Estado ao direito de viver, por que não deveria haver por parte dos entes públicos a proteção ao direito de quem deseja morrer com todos os devidos cuidados?

 O cuidado paliativo seria desnecessário e estaria o Estado deixando de se gastar ou de se prover pacientes em potencial de cura ou o grau de estado de saúde não deve ser critério seletivo, tendo o Estado à obrigação de zelar pela saúde de todos indiscriminadamente? Em suma, este gasto estatal seria necessário ou supérfluo?

Haveria violação do princípio da proporcionalidade ao se tutelar até o último suspiro a saúde do paciente terminal que deseje viver, ainda que seja custoso para o ente público, ou há efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana? Haveria uma garantia fundamental a ser cuidado com esmero pelos poderes públicos antes da morte?

Há ineficiência de recursos orçamentários ou há falta de gestão pública e de prioridades? Violaria-se o equilíbrio das finanças públicas ao se investir nesta demanda?

A partir das problematizações elencadas, definiu-se como objetivo geral deste trabalho, sustentar a ideia de que o Estado deve tutelar a saúde de todos de forma indiscriminada não importando o estado de saúde ou a situação de vida de seu jurisdicionado.

É cediço que, mesmo o direito à vida não ser considerado absoluto pelo Direito Constitucional brasileiro, assim como nenhuma outra garantia fundamental, prevalecendo à peculiaridade de cada caso concreto, o fato é que também é cediço que o direito de viver é extremamente resguardado pelo Direito brasileiro em todos os âmbitos, seja no âmbito penal, civil ou constitucional, portanto, este trabalho sustenta a concepção de que o Estado deve conciliar e fomentar todos os meios para que o direito de viver seja resguardado e tutelado, constituindo afronta dos Poderes Públicos qualquer ato omissivo ou comissivo que venha aviltar o direito de viver plenamente que se subjuga ao direito de morrer dignamente.

 Subdividido em dois objetivos específicos este trabalho atenta para o escopo de verificar através dos fundamentos constitucionais, doutrinários, legais e jurisprudenciais que o paciente em estado terminal não pode ter seu tratamento negado e sua dignidade aviltada pelo Estado; além de fomentar o debate sobre a ponderação e sopesamento no conflito de garantias fundamentais e, por último, sustentar que o princípio da dignidade da pessoa humana prevalece no conflito entre as previsões orçamentárias dos entes públicos, desde que, seja observada a proporcionalidade e razoabilidade de cada caso concreto.

Este trabalho pretende, sobretudo, ser uma defesa dos direitos e garantias fundamentais dos mais necessitados e dos pacientes em situações irreversíveis, além de buscar soluções para a problemática da saúde a partir de questionamentos, analogias e demais aportes teóricos.

A Constituição Federal, ao estipular em seu artigo 196 o direito a saúde, veio a positivar um direito público subjetivo inserido em uma norma programática assumindo a responsabilidade quanto à complementação legislativa e elaboração de normas infraconstitucionais e a executividade social de tais normas, portanto daí surge o direito de exigibilidade quanto à prestação de serviços de saúde pública.

Consideram-se como aportes teóricos desta pesquisa os estudos de renomados constitucionalistas, civilistas e administrativas sobre o tema, não se excluindo a opinião de outros autores e de outras áreas da academia, no entanto, o presente estudo terá um enfoque e abordagem jurisprudencial em sua primazia, portanto, para a construção metodológica, utilizou-se a doutrina e a jurisprudência como referenciais e principais aportes.

Para isso, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, que de acordo com Rodrigues (2007) limita-se à busca de informações em livros e outros periódicos. Nesse sentido, foi feito um estudo dos princípios que regem o Sistema Único de Saúde, além de outras normas e princípios referentes ao tema, foi feito uma análise qualitativa de casos concretos que versam sobre a obrigação de fazer do Estado no fornecimento de saúde pública de qualidade, assim como das argumentações convergentes e divergentes em relação ao tema e, principalmente, o entendimento dos principais doutrinadores constitucionalistas, assim como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e de outras jurisprudências como objeto de pesquisa o Direito comparado.

De acordo com Schwartz (2001), a saúde pode ser entendida como um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo em que visa à melhor qualidade de vida possível, tendo como instrumento de aferição a realidade de cada indivíduo.

Esse trabalho se encontra estruturado em dois capítulos. No primeiro capítulo, foi realizado um estudo teórico com abordagem axiomática sobre a função interpretativa e aplicativa de sopesamento que os princípios constitucionais possuem na jurisprudência pátria. No segundo capítulo, há uma abordagem comparativa entre a forma que outros Estados soberanos tutelam a saúde, bem como sua aplicação prática, além da legislação com a perspectiva da saúde pública brasileira, além de uma ampla discussão sobre o conflito jurisprudencial entre o princípio da reserva do possível e a garantia do mínimo existencial.

Não se tem a pretensão de esgotar o assunto proposto, mas a intenção primordial afirmar a relevância do direito à saúde como componente do direito à vida e à subsistência da pessoa humana, promovendo o princípio da dignidade da pessoa humana, além de ampliar o debate e a discussão com outros setores da sociedade e do meio acadêmico sobre o direito ontológico à saúde.

Considera-se que esse trabalho possui o escopo de ampliar o universo da pesquisa e proporcionar a interação e o diálogo com vários setores da sociedade, sejam estes médicos, juristas, professores e o meio acadêmico em geral, proporcionando assim um maior diálogo sobre a efetivação do direito à saúde.

E, conforme preceitua a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o direito à saúde não deve ser encarado como mera promessa inconsequente nem como mero devaneio, mas sim em uma ordem e imposição de cumprimento e obrigação solidária de todos os entes federativos.

 Assim, conclui-se que o Estado tem a obrigação de efetivar a saúde de todos indiscriminadamente e não apenas dos cidadãos que estão em gozo de seus direitos civis e políticos, ou apenas dos que possuem alto poder aquisitivo, ou ainda somente daqueles que possuem potencial de cura ou que sejam considerados úteis e economicamente ativos para a nossa cultura hodierna, mas o Estado tem a obrigação de efetivar a saúde de todos os seus jurisdicionados de forma abrangente não importando classe social ou qualquer estigma imposto pela sociedade, portanto, o foco principal deste projeto é sustentar que o acesso à saúde é universal, igualitário, exigível, e que deve ser efetivado pelo Estado, não importando a condição social ou estado de saúde do paciente uma vez que o mesmo é dotado de dignidade intrínseca ao seu ser, independente de quaisquer elucubrações ou paradigmas, discriminações e estigmas da sociedade.

A Constituição federal, em seu artigo 198, traçou princípios e balizas claras para que o legislador ordinário e as demais autoridades públicas seguissem os valores positivados nestes princípios que são a universalidade do acesso à saúde, à descentralização dos serviços de saúde, o assistencialismo, e a participação da comunidade, portanto, nenhum estado-membro ou município poderá desrespeitar, alterar ou omitir tais parâmetros sob pena de incorrer em grave vício de constitucionalidade.

A Constituição ainda faculta o serviço da saúde à iniciativa privada, no entanto, o constituinte originário deixou claro que é preferência ao poder público subvencionar e fomentar às instituições filantrópicas (art.199, §,1ª, CRFB/88), permanecendo inconteste a clara opção do constituinte originário ao fomentar o assistencialismo social.

Há ainda outros princípios constitucionais não insertos na parte que versam sobre a saúde, mas que corroboram para o tema, pois são inerentes aos demais serviços sociais como o princípio da vedação ao retrocesso social.

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Assim, sem maiores digressões, é salutar afirmar que na hermenêutica neo-constitucional os princípios constitucionais e a efetivação dos direitos sociais estão postas em primazia.

A falta de recursos nos hospitais, à morosidade do Judiciário, à morte de vários pacientes em condições sub-humanas, a proliferação de epidemias e mazelas, o desvio de verbas públicas, o gasto exacerbado dos entes públicos com eventos supérfluos em detrimento da alegação vazia e amorfa de que os recursos são ineficientes é um quadro deveras desalentador para o operador do Direito que pretenda militar na área da saúde.

1. Direito fundamental à saúde: considerações iniciais

Abordaremos no primeiro capítulo o Direito fundamental à saúde e sua exigibilidade face aos entes públicos. Em seguida, mostraremos os princípios constitucionais como axioma fundamental no conflito de garantias fundamentais. Finalmente, destacaremos a limitação do julgador no juízo de discricionariedade e na aplicabilidade dos princípios

1.1. O Direito fundamental à saúde e sua exigibilidade face aos entes públicos.

Os direitos fundamentais de primeira dimensão são aqueles que imperam um “non facere” do Estado perante os seus particulares, ou seja, são garantias que mitigam possíveis arbitrariedades dos poderes públicos em face dos particulares. À guisa exemplificativa, ressaltam-se os direitos à liberdade, à inviolabilidade do domicílio, à propriedade, dentre outros, que impõem obrigações negativas aos entes públicos.

Propulsionada pelas revoluções do século XX, principalmente pelos ideiais de igualdade da revolução francesa de 1789, surge à segunda dimensão dos direitos fundamentais, em que ao contrário dos direitos de primeira dimensão, compelem ao Estado a obrigação precípua de executar serviços sociais básicos.

 A partir desta premissa, o Estado deverá não apenas respeitar as liberdades individuais, mas deverá, sobretudo, atuar, agir e executar as contraprestações positivas dos serviços sociais básicos de saúde, segurança e educação para a coletividade.

 Desta forma, é salutar afirmar que os entes públicos prezem pela eficácia de suas ações aos seus jurisdicionados, não apenas por estes serem contribuintes ou por serem cidadãos com suas obrigações civis cumpridas com lisura, mas, sobretudo por serem seres humanos dotados de dignidade, portanto, é imperioso sustentar que a prestação positiva do Estado se deve a todos de forma indiscriminada e universal.

 Sendo assim, o Poder Público tem a basilar obrigação de propiciar um serviço social de qualidade, seja este saúde, educação ou mesmo segurança, tanto para os abastados, quanto para os hipossuficientes, pelo simples fato de que tais garantias fundamentais são indiscrimináveis e inalienáveis podendo ser exigida por todos os jurisdicionados independente de classe social, sexo, raça, cor ou religião.

Partindo destas premissas, cabe aos poderes públicos propagar, tutelar e garantir a eficácia de tais direitos sociais de segunda dimensão e, conforme dito alhures, o objeto genérico deste trabalho é o direito à saúde tendo sua especificidade resvalada na obrigação de fazer dos poderes públicos em face dos cuidados paliativos dos pacientes terminais, entretanto, não se deve olvidar que o acesso à saúde perpassa por outras questões sociais, como o acesso ao saneamento básico de qualidade, à moradia digna, à educação e a outras políticas sociais, e que a concretização de tais garantias depende de políticas públicas eficientes e de um correto manejo dos gastos públicos.

Ocorre que há direitos sociais que, quando são negligenciados, podem causar graves e irreversíveis danos à vida dos cidadãos e, por conseguinte, o cidadão não pode esperar às omissões públicas ou quaisquer pendências burocráticas quando o seu direito à vida estiver sendo ameaçado.

Neste diapasão, o fenômeno da judicialização dos direitos sociais tem se mostrado eficiente na atual conjuntura brasileira uma vez que tem concretizado as garantias fundamentais face às omissões legislativas e garantindo o acesso pleno e integral à saúde aos desfavorecidos e a todos que não devem suportar o ônus da falta de gestão dos recursos públicos, da corrupção e da apatia do Estado.

 Ressalte-se que, ainda que haja ferrenhas críticas doutrinárias ao fenômeno do ativismo judicial no Brasil, sendo as principais razões decorrentes da ingerência do Judiciário no Legislativo, e que o Judiciário estaria a exceder seus poderes e a usurpar a competência do legislador positivo, tal argumentação não merece prosperar uma vez que o próprio Direito constitucional brasileiro adota a “teoria dos freios e contrapesos” e permite que haja controle dos atos entre os três poderes, e não merece prosperar ainda porque o ativismo judicial no Brasil não é feito de forma exorbitante e indiscriminada uma vez que os julgadores se utilizam de vários parâmetros e balizas em cada caso concreto, algo que será abordado de forma mais detalhada posteriormente, e ainda há que se falar que, senão fosse o ativismo judicial na área da saúde, haveria graves danos e graves injustiças posto que o cidadão padeceria à mercê do Estado e teria seu direito de viver impedido por causa da morosidade e da ineficiência dos entes públicos, portanto, o entendimento que tem prevalecido é o de que o ativismo judicial, desde que utilizado com parâmetros e balizas constitucionais fulcrados nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, deve ser utilizado uma vez que o cidadão não pode ser vítima da apatia do legislador ou da inércia dos entes públicos na executividade de serviços essenciais.

Tendo em vista que a cultura brasileira é extremamente apregoada à norma escrita e que, infelizmente, o nosso judiciário ainda está arraigado a esta cultura da literalidade, apesar de tal tendência vir mudando hodiernamente com o fenômeno do ativismo judicial, foi deveras relevante o constituinte originário ter sido detalhista, prolixo e eficiente ao positivar os direitos sociais uma vez que no cenário atual mesmo com várias decisões do Supremo Tribunal Federal e mesmo com os dispositivos constitucionais, os entes públicos faltam com a prestação dos serviços sociais, imagine-se então na época da elaboração da Constituição Federal, assim, este foi o escopo da “mens legislatoris” uma vez que o constituinte originário salientou no artigo 3ª, inciso III, que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é o de “reduzir as desigualdades sociais”.

Os direitos sociais de segunda dimensão impõem balizas, imposições, compromissos e obrigações aos gestores públicos que estão compelidos a exercer o múnus de legislar, planejar e executar estas garantias, sob pena de torna-las ineficientes e de aviltar a dignidade da coletividade e do bem comum e de afrontar os fundamentos expostos na Constituição Federal.

Nesse ínterim, é oportuno citar a excelente explicação do culto professor, George Marmelstein:

“Os direitos de primeira geração tinham como finalidade, sobretudo, possibilitar a limitação do poder estatal e permitir a participação do povo nos negócios públicos. Já os direitos de segunda geração possuem um objetivo diferente. Eles impõem diretrizes, deveres e tarefas a serem realizadas pelo Estado, no intuito de possibilitar aos seres humanos melhor qualidade de vida e um nível de dignidade como pressuposto do próprio exercício da liberdade. Nessa acepção, os direitos fundamentais de segunda geração funciona como uma alavanca ou uma catapulta capaz de proporcionar o desenvolvimento do ser humano, fornecendo-lhe as condições básicas para gozar, de forma efetiva, a tão necessária liberdade”. (MARMELSTEIN, 2008, p51)

O douto jurista, Alexandre de Moraes, também traz a sua brilhante definição sobre os direitos sociais “in verbis”:

‘Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1.°, IV, da Constituição Federal”. (MORAES, 2003.p 201).

Sendo assim, os direitos sociais de segunda dimensão são considerados fundamentos do Estado democrático de Direito, uma vez que são direitos sociais e que cabem a todos a sua exigibilidade, pois são abalizados na universalidade que é corolário do princípio da isonomia, posto que tais garantias independem de classe social, cor, raça, sexo, religião e qualquer outro meio estigmatório presentes culturalmente na sociedade.

Havia ainda uma discussão doutrinária que se tornou obsoleta por restar superada, que discutia sobre a terminologia correta entre gerações de direitos fundamentais e dimensões dos direitos fundamentais, no entanto, tal discussão não será aprofundada por ser extremamente irrelevante com o escopo principal deste trabalho e por já estar assente que o termo dimensões é o mais adequado por afastar a ideia intrínseca de revogabilidade que o termo gerações traz para estas garantias.

Dessarte, o objeto de estudo deste trabalho será analisado sob dois primas, genérico e específico. Genérico porque irá se discutir de várias formas sobre o acesso à saúde e porque irá abordar temas correlatos e específicos paralelo ao tema principal que é a obrigação de fazer dos entes públicos nos cuidados paliativos dos pacientes terminais, será abordada de forma mais aprofundada e detalhada.

Convém ressaltar a relevância, o destaque e a magnitude que o constituinte originário traçou sobre o tema da saúde, inclusive, destacando um capítulo inteiro do texto maior com o escopo de positiva-lo de forma específica e detalhada e, neste quesito, logrou êxito o constituinte originário por sua evolução, que é totalmente aplaudida pela doutrina, pois as Constituições pretéritas eram extremamente concisas e lacônicas, algo que é inimaginável dada a relevância do tema.

Por conseguinte, o constituinte originário se distinguiu por positivar a universalidade da saúde e a responsabilidade do Estado em um mesmo capítulo, tratando-a como “direito de todos e dever do Estado”, conforme preceitua o ilustre professor José Afonso da Silva:

“A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem a rewqdução do risco de doença e de outros agravos.” (SILVA, 2002, p.807).

O acesso à saúde na era pré-constituição de 1988 era estritamente limitado a quem houvesse contribuído com a previdência social, o que denotava um caráter totalmente seletivo, pois só se conseguia atendimento público estatal a quem houvesse contribuído com a Assistência Médica da Previdência Social, doravante, INAMPS, que era uma espécie de autarquia criada pelo governo em 1974 similar ao INSS, e que atendia apenas os contribuintes da previdência social e seus dependentes.

A gratuidade e a universalidade da saúde eram completamente obstadas por critérios seletivos e arbitrários e o princípio da equidade era inexistente nesta época.

Desse modo, o que restava aos cidadãos era procurar as instituições filantrópicas ou os tratamentos particulares, algo que na época já era extremamente caro e inacessível, assim como ainda o é para grande parte da população carente, ou então se apelava aos “curandeiros”, no entanto, a Constituição de 1988, ao positivar de forma expressa a universalidade do acesso à saúde, garantiu o direito universal de todos os cidadãos ao acesso gratuito de qualidade a saúde.

 Ademais, a universalidade, a equidade e a integralidade são princípios básicos que regem o acesso à saúde em nosso Ordenamento Jurídico e o legislador infraconstitucional logrou êxito ao imitar o constituinte originário e positivar em 1990, dois anos após a entrada em vigor da Constituição, o princípio da universalidade da saúde na Lei Orgânica da Saúde.

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 Sobre as inovações e os ineditismos que ocorreram no tema da saúde com a promulgação da Constituição de 1988, é mister demonstrar a esplendorosa explanação do mestre José Afonso da Silva, que inclusive disserta de forma espantosa o fato de um direito social tão essencial ter sua universalidade positivada tão tardiamente no Brasil. Senão vejamos:

“É espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida humana só agora é levado à condição de direito fundamental do homem. E há de informar-se pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais. O tema não era de todo estranho ao nosso Direito Constitucional anterior, que dava competência à União para legislar sobre defesa e proteção da saúde, mas isso tinha sentido de organização administrativa de combate às endemias e epidemias. Agora é diferente, trata-se de um direito do homem”. (SILVA, 2002, p.308).

De fato, a inovação da Carta Magna de 1988, inovou na forma axiológica e principiológica de tratar o tema da saúde, pois nas constituições anteriores, o tema era tratado de forma secundária e subsidiária sem a devida importância que detém pois, conforme destacou o eminente doutrinador, o tema exauria apenas caráter programático, destituído de eficácia, porém a Constituição hodierna ampliou o rol de exigibilidade dos serviços à saúde ao tornar a responsabilidade dos entes solidária e a positivar o tema de forma ampla, detalhada e aprofundada, não obstante, apesar da enorme evolução do tema na seara legislativa, na seara executória houve inexpressivos e minguados avanços que tornaram ineficazes os dispositivos da Constituição.

1.2. Os princípios constitucionais como axioma fundamental no conflito de garantias fundamentais

Assim como as outras searas do Direito possuem seus princípios e alicerces, o Direito constitucional não foge a esta regra, portanto, neste tópico, tecer-se-á considerações acerca dos alicerces fundamentais do objeto da discussão que se propõe este trabalho, que são a nova primazia que os princípios constitucionais possuem no ordenamento jurídico. A doutrina neo-constitucional oferece maior primazia e suporte à aplicação principiológica que os doutrinadores do passado, mais arraigados ao positivismo clássico.

Em síntese, os princípios diferenciam-se das demais espécies normativas por serem vagos, abstratos, indeterminados e por terem aplicação indireta e se caracterizam por serem a “força motriz” e conteúdo norteador da norma, pois tratam-se da base abstrata e valorativa da norma por serem verdadeiros postulados éticos.

 Ao tratar desta temática, não se pode olvidar que a temática principiológica possui abordagem demasiadamente complexa uma vez que há vários julgados no Supremo Tribunal Federal sobre a colisão de princípios constitucionais e, alguns famosos julgados, merecem ainda maior destaque porque o mesmo princípio fora invocado por partes contrárias em casos concretos, por exemplo, a famosa ADPF 54 em que ambas as partes invocaram o princípio da dignidade da pessoa humana ao se discutir sobre o aborto em casos de anencefalia.

A doutrina é deveras abundante sobre a conceituação, estrutura e características principiológicas, entretanto, a posição dos doutrinadores são praticamente as mesmas uma vez que a doutrina utiliza expressões símiles ao reconhecer de forma uníssona que os princípios formam a base da norma, não havendo divergência doutrinária quanto a classificação e conceituação dos princípios constitucionais, incluindo-se neste ínterim, a famosa definição elaborada por Alexy, ao dispor que os mesmos consistem em “mandados de otimização” (Alexy,1997), dentre várias outras conceituações dadas pela doutrina.

A doutrina constitucionalista é vastíssima em definir os princípios, o que tornaria demasiadamente prolixa a demonstração de todos os doutrinadores acerca do tema, no entanto, à guisa exemplificativa, mostra-se os conceitos atribuídos por alguns doutrinadores, senão vejamos:

O jurista, Roque Carraza, assim os define:

“[…] princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula de modo inexorável, o entendimento e aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam”. (CARRAZA, 1980, p. 29).

Celso Antônio Bandeira de Melo, também traz a sua magistral definição:

“[…] Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. (MELO, 1980 p. 230.)

Importante mencionar a definição nas palavras da lavra da douta Ministra Carmem Lúcia:

“[…] Os princípios constitucionais são os conteúdos primários diretores do sistema jurídico- normativo fundamental de um Estado. Dotados de originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que formam o ordenamento constitucional, os valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito em princípios. Adotados pelo constituinte, sedimentam-se nas normas, tornando-se, então, pilares que informam e conformam o Direito que rege relações jurídicas do Estado”. (LÚCIA, 1994, p. 25).

Diante das definições apresentadas, é cediço asseverar o imensurável papel de interpretação na aplicação dos princípios nos conflitos de garantias fundamentais, pois se por um lado os princípios são vetores de interpretação das normas, por outro são vetores de ponderação e sopesamento no conflito de garantias fundamentais.

 Coaduna com este pensamento o ilustre jurista Ruy Samuel Espíndola:

“[…] além de servirem como parâmetro para a solução de problemas jurídicos que exijam a sua aplicação normativa, ainda funcionam como critérios interpretativos para solução de outros casos, que não lhe solicitem, diretamente, aplicação jurídica. Esses casos podem ter em mira tanto normas constitucionais quanto infraconstitucionais. Ou seja, os princípios constitucionais, além de desempenharem a função de normas com diferentes graus de concretização, ainda funcionam como critério para interpretação de outras normas, não importando o nível hierárquico- normativo destas.” (ESPÍNDOLA, 1999, p.294).

 No mesmo rumo, o respeitado jurista, Valmir Pontes Filho, preleciona de forma magistral sobre a primazia que os princípios possuem em nosso ordenamento jurídico, senão vejamos:

“Já é sabido que o ordenamento constitucional brasileiro elegeu como pedras angulares de sua estrutura sistemática, determinados princípios, como o democrático, o federativo, o republicano, o da legalidade, o da isonomia, o da moralidade, o da universalidade da jurisdição, o da segurança das relações jurídicas etc. Tais princípios (sejam explícitos, sejam implícitos), é forçoso reconhecer, se colocam em posição de primazia diante das demais normas (constitucionais ou subconstitucionais), funcionando como prescrições básicas, dotadas de enorme generalidade. Por isso, vinculam o entendimento e a aplicação de todas as demais normas jurídicas, inclusive das inseridas no Texto Supremo.” (PONTES, p.70-71).

Apesar de haver inúmeras classificações e inúmeros conceitos principológicos, em síntese, não se deve olvidar que a doutrina é unânime em colocar os princípios em proeminência e em conceituá-los como base fundamental da norma não restando dúvidas de que os princípios constitucionais exercem inegável influência e que são cotidianamente invocados para mitigar os mais diversos conflitos entre garantias fundamentais, porém não se deve afirmar que os princípios são superiores as outras espécies normativas, mas que podem ser invocados e utilizados quando as outras espécies normativas venham a falhar em seu caráter teleológico, pois a principal característica dos mesmos é o seu caráter dotado de relatividade, podendo ser ampliados ou mitigados a depender do conflito no caso concreto.

Há ainda vários outros autores que poderiam ser citados para a conceituação dos princípios, dentre os tais, podemos citar: José Joaquim Gomes Canotilho, Nelson Ronsevald, Rizzato Nunes, Humberto Ávila, dentre vários outros, no entanto, para não tornar a leitura deste trabalho deveras enfadonha e para não tornar a explicação do tema prolixa e maçante, limitar-se-á apenas aos autores supracitados, posto que a unanimidade na conceituação da tema dispensa quaisquer maiores digressões e explanações teóricas, posto que a doutrina é uníssona em conceituar os princípios como verdadeira base valorativa e coloca-los no atual patamar de destaque.

1.3. A limitação do julgador no juízo de discricionariedade e na aplicabilidade dos princípios

 Com efeito, deve se destacar que os princípios não devem servir de base para o arbítrio excessivo e para o juízo de valor subjetivo sem critérios plausíveis uma vez que que a própria cultura e doutrina nazista se utilizaram do princípio da legalidade para cometer o holocausto aos judeus e outras minorias, o uso irresponsável dos princípios pode causar enormes injustiças, portanto, os princípios constitucionais devem ser sopesados devido às peculiaridades de cada caso concreto, sendo vedada pela doutrina e pela jurisprudência, o seu uso indiscriminado, irresponsável e arbitrário, portanto, impende afirmar que a discricionariedade do julgador não é absoluta e que, apesar de os princípios serem a base nuclear da norma, nem sempre deverão ser utilizados, ou ainda poderão ter sua interpretação e aplicação restringida devido à peculiaridade do caso concreto.

O ilustre e respeitado doutrinador, e atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, que se tornou famoso em sua carreira advocatícia por atuar em várias causas polêmicas na Suprema Corte, e em várias destas se utilizou dos princípios constitucionais, também fez questão de asseverar que o uso irresponsável, absoluto e arbitrário dos mesmos pode causar um subjetivismo perigoso, defendendo que a discricionariedade do julgador deve ser sempre moderada e reduzida à cada peculiaridade.

Vejamos a explanação do respeitável jurista:

“[…] Mas são esses princípios que funcionam como limites interpretativos máximos, neutralizando o subjetivismo voluntarista dos sentimentos pessoais e das conveniências políticas, reduzindo a discricionariedade do aplicador da norma e impondo-lhe o dever de motivar seu convencimento”. (BARROSO, 1996, p.150).

 Neste esteio, é relevante demonstrar que o ativismo judicial não é absoluto, tendo o julgador a sua discricionariedade mitigada a fim de que se evitem injustiças e arbitrariedades na aplicação principiológica de cada caso concreto, portanto, a aplicação principiológica resvala nos princípios constitucionais implícitos da proporcionalidade e da razoabilidade, não podendo o julgador ser arbitrário em seu juízo de discricionariedade.

 Assim, os princípios da equidade, integralidade e universalidade, positivados no capítulo referente à saúde na Constituição devem ser sopesados em cada caso concreto, sendo consentâneo com os limites da razoabilidade e a proporcionalidade.

 Entretanto, ressalte-se que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade não devem servir de escusa para a má gestão dos entes públicos, mas pelo contrário, tais princípios devem servir de balizas interpretativas para evitar o custeio de políticas públicas de forma indiscriminada e proteger.

 Luís Roberto Barroso, Lênio Streck e outros juristas renomados vêm defendendo hodiernamente que os princípios possuem amplo papel de frear a arbitrariedade e a discricionariedade do livre convencimento do poder Judiciário, portanto, não importa se a pretensão autoral é contrária às opiniões subjetivas do magistrado, se estiver amparada pelas normas ou pelos princípios deve ser provida tal pretensão uma vez que o cidadão não deve padecer pelos subjetivismos autoritaristas dos magistrados.

 Ainda, ressalte-se que o papel limitador dos princípios é deveras eminente para a uniformização da jurisprudência, posto que cada juízo iria decidir conforme suas próprias convicções e opiniões se não houvesse princípios norteadores de interpretação das normas, pois os princípios constitucionais limitam sentenças discrepantes sobre fatos símiles e limitam a arbitrariedade e o autoritarismo que o subjetivismo excessivo causa.

 Neste diapasão, os princípios constitucionais estão positivados não apenas para obstar o arbítrio e a ingerência dos entes públicos, mas sobretudo, para solapar e impedir que os magistrados não cometam gravosas injustiças e tiranias, sob o equivocado e genérico argumento de que estão a decidir conforme a própria consciência, tornando assim um limbo jurídico onde cada magistrado decidiria da forma que lhe aprouvesse, o que tornaria a justiça um caos social, assim, os princípios têm a função precípua de limitar a discricionariedade do julgador.

Desta forma, o princípio da dignidade da pessoa humana, os princípios norteadores da legislação do SUS, doravante, Sistema Único de Saúde, que são a universalidade, equidade, integralidade e regionalização, os demais princípios constitucionais que estão interligados ao tema como o princípio da vedação ao retrocesso social, isonomia, dentre outros, são axiomas limitativos ao julgador.

2. A responsabilidade estatal no fornecimento da saúde pública

Abordaremos no segundo capítulo a responsabilidade solidária dos entes públicos e a obrigação de fornecimento de saúde pública qualitativa e igualitária. Em seguida, situaremos o panorama do custeio da saúde pública brasileira. Finalmente, descreveremos a responsabilidade civil objetiva da Administração Pública em face dos danos causados aos particulares.

2.1 A responsabilidade solidária dos entes públicos e a obrigação de fornecimento de saúde pública qualitativa e igualitária

 A obrigação da prestação positiva estatal do direito à saúde é solidária, isto é, cabe a todos os entes executá-la de forma plural e múltipla e cabe a todos os cidadãos exigir a prestação destes serviços de qualquer das esferas públicas (municipal, estadual e federal) ou mesmo de todas cumulativamente, uma vez que a reponsabilidade da prestação de serviço da saúde é solidária entre os entes federativos não podendo jamais ser segregaria, discriminativa ou seletiva, sob pena de violação ao princípio da universalidade da saúde.

Havia a alguns anos pretéritos, uma grande celeuma e discussão jurisprudencial sobre a solidariedade na prestação de serviços dos entes públicos quanto à saúde, pois mesmo com a previsão constitucional, os entes federativos se eximiam e se escusavam freqüentemente na prestação do serviço e ainda arguiam em matéria de defesa a ofensa a separação dos poderes na maioria das ações que versavam sobre o direito à saúde.

 Assim, de forma acertada, a jurisprudência vem ressaltando a solidariedade dos entes federados, pois a intenção do legislador originário foi justamente a de simplificar e facilitar o acesso e a exigibilidade da prestação de serviços da saúde pública.

Abaixo, transcreve-se, apenas a título exemplificativo, diante da vasta jurisprudência consolidada em torno do tema, trecho de julgado do Superior Tribunal de Justiça quanto a obrigação de todos os entes federativos a propiciar saúde pública de qualidade, senão vejamos:

“É obrigação do Estado (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação ou congênere necessário à cura, controle ou abrandamento de suas enfermidades, sobretudo, as mais graves. (RESP 656979/RS, Segunda Turma, relator o Senhor Ministro” CASTRO MEIRA, j. em 16.11.2004).

Sobre o tema, vale transcrever trecho da opinião doutrinária do festejado Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, in verbis:

“O fato de o sistema de saúde ter descentralizado os serviços e conjugados os recursos financeiros dos entes da federação, com o objetivo de aumentar a qualidade e o acesso aos serviços de saúde, apenas reforça a obrigação solidária e subsidiária entre eles”. (Mendes, 2010, p. 833. Negrito Acrescentado).

Assim, a obsoleta e ultrapassada tese de que a responsabilidade solidária entre os entes constitui ofensa ao princípio da separação dos poderes carece de fundamento uma vez que a responsabilidade solidária não se confunde com a ingerência na competência de um ente sobre outro, e as normas de funcionamento da “máquina estatal” devem facilitar o acesso aos serviços sociais e não dificultá-los uma vez que as garantias fundamentais são superiores às quaisquer burocracias estatais.

A doutrina neo-constitucional e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidaram o entendimento de que a solidariedade na execução da saúde pública não ofende o princípio da separação dos Poderes, mormente porque os princípios constitucionais, conforme dito alhures, não se revestem de caráter absoluto e assim a separação de Poderes não deve ser interpretada de forma absoluta a obstar o acesso a uma garantia fundamental de tamanha proporção, que é a garantia fundamental do acesso à saúde, e pelo fato de que a distribuição de competências não constitui ingerência de um ente federativo sobre outro, mas elo contrário a distribuição solidária de competências apenas organiza e delimita a competência de cada ente federativo, restando assim a responsabilidade de todos os entes federativos, protegendo desta forma o cidadão que poderá exigir de quaisquer dos entes federativos que seu direito fundamental à saúde.

Há vários julgados sobre o tema da solidariedade dos entes federativos na prestação do serviço da saúde pública no sítio do Supremo Tribunal Federal com excelentes explanações dos ministros sobre a matéria, no entanto, à guisa exemplificativa, transcreve-se brilhante voto da lavra do ministro, Luís Roberto Barroso, in verbis:

Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO PELO PODER PÚBLICO DOTRATAMENTO ADEQUADO. SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERATIVOS. OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. O fornecimento gratuito de tratamentos e medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes é obrigação solidária de todos os entes federativos, podendo ser pleiteado de qualquer deles, União, Estados, Distrito Federal ou Municípios. O Supremo Tribunal Federal assentou o entendimento de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas públicas nas questões relativas ao direito constitucional à saúde. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental a que se nega provimento.” {Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário com Agravo AREnª834566 RN (STF). Relator: Ministro. ROBERTO BARROSO. Data de publicação: 17/12/2014.}

Antes da matéria ser pacificada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, a celeuma perdurou por muito tempo na jurisprudência e, hodiernamente, mesmo com o entendimento pacificado de que a responsabilidade na prestação de saúde pública é solidária, os entes públicos, não raras às vezes, ainda alegam a tese de que a solidariedade ofende a separação dos poderes e o pacto federativo e, não raras às vezes, nas ações que versam sobre o tema da saúde, encontram-se “contestações padronizadas” ou “recursos padronizados” dos entes públicos com esta pífia alegação.

 Argumenta a doutrina contrária que os julgadores nas ações que versam sobre a saúde pública tenderiam a ser parciais e a decidir na maioria das vezes contrariamente ao Estado porque o tema da saúde, em regra, gera comoção social e porque os julgadores estariam apenas a repetir a jurisprudência padronizada dos tribunais superiores sem qualquer critério plausível e que em longo prazo, a judicialização da saúde geraria graves danos ao erário público.

Tais argumentações carecem totalmente de fundamento, pois a imparcialidade se difere da neutralidade, posto que nenhum julgador é neutro, porém todo julgador deve ser imparcial, portanto, comprovado que houve no processo o contraditório e a ampla defesa e que o ente público foi capaz de se manifestar devidamente, não há porque prosperar tal argumentação. Ainda há que se destacar que do fato da saúde gerar comoção social não se segue que todo e qualquer julgador julgará favorável ao particular, posto que o princípio da independência do juiz obsta tal comportamento e há vastos casos referentes à saúde no judiciário que geram comoção social e os magistrados negam tratamentos pelos mais variados motivos. Demonstrado é pacífico o entendimento quanto a solidariedade, passa-se ao próximo tópico.

2.2. Considerações sobre o panorama do custeio da saúde pública brasileira.

A par desta celeuma jurisprudencial, o governo atual discute freneticamente sobre o custeio da saúde pública e a volta do famigerado imposto sobre a contribuição de movimentações financeiras, doravante, CPMF, imposto este que, em tese, seria para o custeio da saúde para os entes federativos, permanecendo o impasse sobre o retorno deste imposto e demonstrando que o problema da saúde pública no país é precipuamente um problema de gestão.

 Nos Estados Unidos, instituiu-se polêmica semelhante, no entanto, hodiernamente os americanos criaram o programa “OBAMACARE” que, em suma, prever uma espécie de proporcionalidade no custeio da saúde ao dispor que as seguradoras de saúde concessionárias do governo não podem exceder os preços de seus planos, todavia, houve uma imposição com multa para que a classe média americana aderissem ao plano, sob a perspectiva de que todos os americanos, independentemente de seu estado de saúde, fossem alcançados, no entanto, o programa ainda suscita vários debates nos Estados Unidos. A guisa exemplificativa mostra-se o teor do programa norte americano:

“Os novos direitos dos americanos em termos de saúde entraram em vigor nesta quarta-feira em virtude da reforma da cobertura de saúde batizada de Obamacare, pedra angular da presidência do democrata Barack Obama e cujo êxito ainda está longe de ser assegurado.

A lei, votada em 2010, proíbe as seguradoras variar os valores dos planos com base no histórico clínico ou no sexo, se recusar a assegurar um paciente muito caro, ou limitar a quantidade de reembolsos anuais, práticas legais até terça-feira e que levaram alguns pacientes com doenças graves à ruína.

Em troca, a lei exige que qualquer pessoa localizada nos Estados Unidos, americana ou estrangeira, deve aderir um plano de saúde, sob pena de uma multa de US$ 95 em 2014, que subirá para US$ 695 em 2016.

O raciocínio econômico é simples: se todo mundo tiver uma cobertura da saúde, os prêmios pagos por pessoas saudáveis compensarão os custos adicionais associados aos cidadãos mais caros.

A reforma também define os tratamentos que as seguradoras devem cobrir sistematicamente. Todo seguro deve incluir, por exemplo, internações, incluindo emergências. E os cuidados preventivos, como exames de diabetes ou câncer, vacinas ou métodos contraceptivos devem ser integralmente reembolsados”. {http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/01/nova-lei-de-saude-obamacare-entra-em-vigor-nos-eua.html.<Acesso em 27/09/2015. Negrito Acrescentado}

A realidade norte americana obviamente é outra e não deve ser comparada nos mesmos termos que a realidade brasileira, no entanto, percebe-se que houve uma nítida intenção do legislador norte americano de proporcionar o equilíbrio entre o acesso à saúde pleno e o custeio integral da mesma, algo que é considerado utópico no Brasil, porém é uma realidade em outros países.

A lógica do programa é parecida, mutatis mutandis, com o sistema bancário em que o dinheiro depositado serve de empréstimo e a economia segue equilibrada, no entanto, o “Obama Care” tem sua constitucionalidade questionada pelos próprios americanos, devido a imposição de multa a não aderência ao programa e devido a aplicabilidade do programa.

No Brasil, já há quem defenda que deve haver pagamento direto dos serviços de saúde pública ao Estado, o que felizmente é rejeitado pela doutrina majoritária dada altíssima carga tributária brasileira, o que tornaria inviável o acesso da saúde aos hipossuficientes, mitigando assim o princípio da universalidade positivado na legislação do SUS.

Deve-se deixar indubitável que não está a se sustentar que o sistema de saúde americano goza do status de perfeição, nem tampouco que o sistema de saúde brasileiro deve imitar o sistema americano, porém está a se sustentar que é possível um equilíbrio entre o custeio da saúde e o acesso integral e de qualidade da mesma, sem que haja distinções de classes sociais e ineficiência no serviço, portanto, a comparação feita ao sistema norte americano foi sobretudo o de se privilegiar a gestão, planejamento e prioridade dada ao tema da saúde em detrimento do que ocorre no Brasil.

 Entretanto, o Brasil segue melhorando no que concerne ao investimento e custeio de saúde pública, se comparado há algumas décadas atrás não se podendo olvidar que no ano 2000, as duas casas do Congresso Nacional aprovaram a emenda constitucional de nº 29, emenda esta que distribuía de forma proporcional os custeios para os recursos na área da saúde, transferindo alíquota maior aos Municípios.

 A emenda fora bastante elogiada pela doutrina por transferir maiores recursos aos Municípios, tendo em vista que esses entes estão mais próximos à população.

 O professor José Afonso da Silva, assim se manifestou:

“O sistema é financiado com recursos do orçamento da seguridade social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. A Emenda Constitucional nª 29 de 2000, dando nova redação ao artigo 198, previu que essas entidades apliquem, anualmente, em ações e serviços de saúde pública recursos do produto de suas arrecadações tributárias e de transferências em porcentagens e critérios estabelecidos em lei complementar, mas o artigo 77 do ADCT, acrescido pela mesma Emenda, já estabelece o percentual de 5% para a União,12% para os Estados e 15% para os Municípios e Distrito Federal, até a promulgação da referida lei complementar”. (SILVA, 2002, p.807).

 Dada a proximidade que o cidadão possui com o Município, e dada a facilidade de desvio de verbas existentes em nossa política hodierna, acertou o legislador derivado em aprovar tal emenda, pois os Municípios estão mais próximos da realidade e, por conseguinte, devem receber maior repasse de verbas para o custeio da saúde, ademais, no cenário tributário atual brasileiro, os municípios são os entes federativos mais desprestigiados em relação a arrecadação tributária, se comparados à União e aos Estados-membros, portanto, logrou êxito o constituinte derivado por inverter tal situação e atribuir mais recursos aos municípios neste tema de relevada importância.

 Ademais, pensar o contrário disto seria impossibilitar o acesso à saúde dos cidadãos, pois, à guisa exemplificativa, se um Município longínquo estivesse com verbas públicas escassas, situação que ocorre corriqueiramente no Brasil, o cidadão teria que esperar o envio de mais verbas da União para o Município, o que já ocorre rotineiramente, mas que diminuiu bastante com o aumento de verbas estipulados pela referida emenda constitucional.

A referida emenda ainda prevê a possibilidade de intervenção federal, caso tais repasses sejam desrespeitados, portanto, não se pode negar que a emenda 29, além de proporcionar uma distribuição equitativa ao custeio da saúde pública, promoveu e provocou várias mudanças significativas na melhoria de tratamentos e no atendimento do sistema único de saúde.

A par disso, não se pode negar que o SUS, apesar de suas gravosas falhas e apesar de todos os setores da sociedade civil reconhecerem que o serviço ainda necessita de melhoras em todas as áreas, também não se pode negar que a legislação do SUS é referência mundial reconhecida pelo banco mundial da ONU, conforme consta na pesquisa realizada pela ONU no processo do SUS em redução da mortalidade das por doenças, que está inserta na bibliografia deste trabalho.

Ademais, ainda não se deve olvidar que, não obstante as gravosas falhas na gestão e no financiamento dos gastos referentes à saúde, o Brasil é um dos poucos países no mundo que possui uma legislação tão complexa e avançada sobre o tratamento igualitário da saúde, posto que a própria Organização das Nações Unidas reconheceu o avanço da legislação brasileira frente a muitos países desenvolvidos, o que se pode concluir que o problema da saúde pública brasileira não é a legislação e sim a execução e a eficácia da gestão, planejamento e execução do que está posto na legislação.

 Conclui-se este tópico com a proposta de soluções para o repasse das verbas destinadas aos demais entes federativos, como o aumento da fiscalização dos Ministérios Públicos, o aumento da fiscalização pelos particulares e, sobretudo, o aumento da conscientização eleitoral fará com que este quadro pueril melhore, pois há legislação avançada, há verbas, mas há graves falhas na prestação de serviços essenciais.

2.3 A responsabilidade civil objetiva da Administração Pública em face dos danos causados aos particulares.

A responsabilidade civil será abordada de forma sintética, posto que a abordagem profunda deste tema, além de destoar do objetivo precípuo deste trabalho, tornaria o mesmo deveras prolixo e infindável, posto que o tema da responsabilidade civil da Administração Pública é deveras amplo, porém fascinante, no entanto, a temática será abordada em face dos danos causados aos pacientes em estado terminal

Em relação ao tema, hodierno e totalmente unânime é que a responsabilidade civil da Administração pública é objetiva, bastando comprovar apenas a conduta e o nexo de causalidade, afastando-se qualquer discussão de culpa, pois o escopo da norma é o de tutelar ao máximo a reparação civil da vítima.

Não se deve olvidar o fato de que a Constituição, de forma acertada, ampliou a responsabilidade civil objetiva não sendo apenas os entes públicos que respondam por tais danos, mas sim qualquer entidade concessionária ou permissionária de serviços públicos que os representem e que prestem tais serviços em nome da Administração Pública. Tal fato também é novidade na Constituição de 1988, pois as constituições pretéritas não traziam tal possibilidade, que veio trazer maior chance de reparabilidade às vítimas que fossem vítimas de tais danos.

Assim, a Constituição inovou ao positivar a famosa teoria do risco Administrativo, que isenta o particular da discussão da culpa por entender que tal discussão seria desproporcional entre o particular e o Estado e por ser irrelevante a discussão de culpa em alguns casos, portanto, com o escopo de evitar uma relação processual desigual, o risco administrativo é aceito em nosso ordenamento jurídico e em nossa jurisprudência.

Sobre a teoria do risco administrativo, assim disserta o festejado administrativista, Hely Lopes Meireles, in verbis:

“Não se cogitará da existência ou não de culpa ou dolo do agente para caracterizar o direito do prejudicado à composição do prejuízo, pois a obrigação de ressarci-lo por parte da Administração ou entidade equiparada fundamenta-se na teoria do risco administrativo”. (MEIRELES, 1977.p.559).

No entanto, José Afonso da Silva, faz ressalva de que a responsabilidade civil só é objetiva quando se trata de sérvio público gratuito e que, caso o serviço de saúde tenha perspectiva de lucro, não incidirá a aplicação da teoria do risco administrativo, e sim a teoria da culpa subjetiva do código civil pátrio.

O douto doutrinador ainda fez ressalva de que é vedada a destinação de recursos públicos aos particulares, tendo em vista que o dinheiro público não deve servir de amparo para o enriquecimento particular e, se a livre a iniciativa quer investir no sistema, que o faça com o próprio dinheiro, sob pena de violação ao princípio da indisponibilidade dos bens públicos.

Assim disserta o ilustre professor, José Afonso da Silva:

“Responsável, pois, pelas ações e serviços de saúde é o Poder Público, falando a Constituição, neste caso, em ações e serviços públicos de saúde, para distinguir da assistência de saúde pela iniciativa privada, que ela também admite, e cujas instituições poderão participar complementarmente do sistema único de saúde, sendo vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”. (SILVA, 2002, p.807-808).

Por fim, é relevante afirmar que à Administração Pública não está isenta de seus atos e que deve prestar um serviço público de qualidade, sobretudo, no serviço de saúde, por ser primordial à existência e à dignidade humana, portanto, os danos praticados por servidores públicos da área da saúde, sejam estes médicos, enfermeiros, ou mesmo o segurança do hospital ou o motorista da ambulância, quer estes sejam servidores ou terceirizados, deve à Administração responder, independente de dolo ou culpa. Sendo assim, pouco importa que o dano tenha ocorrido com um paciente terminal ou com outro em situação menos gravosa, havendo dano e nexo causal há a obrigação de reparar da Administração.

É salutar afirmar que não há divergência na doutrina atualmente em relação a modalidade culposa da responsabilidade civil do Estado, sendo tal discussão totalmente pacificada, uma vez que a doutrina hodierna é unânime em consagrar a teoria do risco administrativo na modalidade objetiva de responsabilidade civil em que a discussão da culpa é expurgada, assim deve-se perguntar: Caberia indenização da Administração Pública em face de um dano causado a um paciente em estado terminal em um hospital público? Felizmente, a doutrina e jurisprudência são unânimes em proteger os pacientes terminais de quaisquer danos causados por agentes do Estado e isto é promissor e alvissareiro para que o Estado puna regressivamente os agentes públicos e diminua seus erros ao cuidar daqueles que mais precisam serem cuidados.

3.O direito à saúde e os cuidados paliativos aos pacientes terminais

Abordaremos no terceiro capítulo o Direito comparado entre as constituições de outros países e a constituição brasileira em face da saúde da saúde pública. Em seguida, revelaremos a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em face dos pacientes terminais. Finalmente, trataremos sobre a proporcionalidade e razoabilidade no conflito entre a reserva do possível e o mínimo existencial e o direito fundamental aos cuidados paliativos e à obrigação de fazer do Estado.

3.1. O Direito comparado entre as constituições de outros países e a constituição brasileira em face da saúde da saúde pública

Inicialmente, mister é apresentar como o tema da saúde pública é tratado nas constituições de outros países, destacando-se, neste ínterim, que há várias semelhanças com a legislação brasileira, por exemplo, o princípio da eficiência é positivado com termos semelhantes em outras constituições, conforme explana o douto professor Alexandre de Moraes, in verbis:

“A Constituição Espanhola, promulgada em 27-12-1978, prevê expressamente, em seu art. 103, o princípio da eficácia, ao consagrar que "A administração pública serve com objetividade aos interesses gerais e atua de acordo com os princípios de eficácia, hierarquia, descentralização, desconcentração e coordenação, com obediência plena à lei e ao Direito." Igualmente, a Constituição da República das Filipinas, de 15-10-1986, prevê em seu art. IX, B, seção 3, que “A Comissão do Serviço Público, na qualidade de órgão central do Governo encarregado do funcionalismo público, estabelecerá um plano de carreira e adotará medidas destinadas a promover a disposição de ânimo, a eficiência, a integridade, a pronta colaboração, o dinamismo e a cortesia no serviço público", e em seu art. XI, Seção 1, que "O serviço público é um compromisso com a causa pública. Os servidores públicos deverão estar sempre prontos a prestar contas ao povo, servi-lo da forma mais responsável, integra, leal e eficiente possível." A Constituição da República do Suriname, de 31-10-1987, estabelece, em seu art. 122, competir ao Conselho de Ministros "preparar e executar uma política eficiente". Note-se que apesar da inexistência expressa do princípio da eficiência, dentre os princípios fundamentais da Administração Pública, a Constituição portuguesa (5) consagra em seu art. 267 ("A Administração Pública será estruturada de modo a evitar a burocratização, a aproximar os serviços das populações e a assegurar a participação dos interessados na sua gestão efectiva, designadamente por intermédio de associações públicas, organizações de moradores e outras formas de representação democrática”) a estrutura da Administração, cujos objetivos assemelham-se integralmente àqueles inerentes ao princípio da eficiência. Ao comentarem esse artigo da Constituição da República Portuguesa, Canotilho e Moreira salientam que "aqueles princípios devem ser conjugados com o princípio da boa administração (ou princípio do bom andamento da administração), que exige o exercício da função administrativa de forma eficiente e congruente". (MORAES, 2003.p. 315).

Percebe-se claramente que há verossimilhanças entre as constituições de outros países e a constituição brasileira, porém no tocante a eficácia e a executoriedade na gestão de recursos públicos, as realidades são totalmente díspares e contrastantes.

 No tocante as constituições dos países europeus, o ilustre e respeitado professor José Afonso da Silva também traz sua brilhante colaboração in verbis:

“Cremos que foi a Constituição italiana a primeira a reconhecer a saúde como fundamental direito do indivíduo e interesse da coletividade em seu artigo 32. Depois, a Constituição portuguesa lhe deu uma formulação universal mais precisa em seu artigo 64, melhor do que a espanhola em seu artigo 64 e a da Guatemala em seus artigos (93-100). O importante é que estas quatro constituições o relacionam com a seguridade social.” (SILVA, 2002, p.308).

Não está a se afirmar que a solução seria a imitação do modelo de saúde dos países europeus, nem tampouco que a saúde pública em outros países seja isenta de problemas, pois os países europeus enfrentam graves problemas contra o lobby da indústria farmacêutica, além da crise econômica de alguns países europeus contribuíram para que diminuísse a qualidade dos serviços públicos, no entanto, em vários aspectos de gestão pública, o Brasil precisa evoluir ainda mais para garantir um acesso à saúde avançado e de qualidade.

 Para mudar a realidade deste panorama no Brasil várias são as alternativas, por exemplo, maior integração e comunicação entre os hospitais de todo o país, o que já acontece há muito tempo na Europa e, por exemplo, um paciente da Irlanda do Norte recebe um órgão para transplante vindo de Portugal com muito mais rapidez e facilidade que dois municípios vizinhos no Brasil, maiores investimentos em estrutura e tecnologia, continuidade nas gestões que envolvessem políticas de saúde de longo prazo, dentre várias outras soluções que melhorariam a saúde pública brasileira e pensar desta forma não pode ser considerado utópico ou fictício, sob pena de a sociedade padecer ainda mais pelo descaso com a saúde pública brasileira.

 No cenário atual de estagnação econômica e de crise política, o custeio da saúde se tornou um verdadeiro desafio a ser implementado pelos entes federativos, entretanto, deve ser lembrado que o risco da ineficiência e da falta de gestão pública não deve ser transferido aos particulares, e que o Estado deve adquirir meios para prover a saúde pública, independentemente da situação econômica, pois “mutatis mutandis”, assim como o risco da atividade não deve ser repassado ao trabalhador no Direito do trabalho, o Estado não deve utilizar o argumento da conjuntura econômica, nem mesmo tampouco da crise política para se esquivar de suas obrigações sociais.

Alguns países europeus fazem como o Brasil, e transferem a maior parte do custeio e do orçamento da saúde para a previdência social; já outros contam com programas de apoio, e outros dividem o custeio entre empresas particulares, Estados e usuários, senão vejamos:

“Nos Estados Unidos, as políticas sociais voltadas para a Saúde são muito polêmicas, principalmente as voltadas para a parcela menos privilegiada da população. A competição entre as empresas prestadoras de assistência médica nos Estados Unidos da América, basicamente privadas, é muito acirrada, mas devido às questões de lucratividade que envolve a prestação dos serviços de saúde no país, este tem um dos sistemas mais ineficientes do mundo em termos de atendimento à população mais carente e seu custo é muito mais elevado do que em qualquer outra nação industrializada. Na Finlândia, os serviços de saúde são atualmente custeados, principalmente pelo Estado e pelas autoridades locais, porém, os usuários dos serviços também contribuem com uma pequena quantia para terem acesso a eles. Em 1993, conforme relatório do Parlamento Europeu assinado por Heath&Winter, o setor público suportava 77% dos custos, enquanto 19% deles eram mantidos pelos usuários e 4% eram suportados por fundos de apoio, empregadores e seguros privados. No país são oferecidos serviços médicos gratuitos para jovens com menos de 16 anos e cuidados preventivos sem custos financeiros para o restante de seus usuários. Quando doente e comprovadamente impossibilitado de prover sua subsistência, o usuário recebe um subsídio governamental em dinheiro, como forma de compensação. Quanto à Alemanha, o atual Sistema de Saúde é custeado por meio de contribuições à previdência social, feitas através do seguro compulsório, cujos fundos são oriundos dos trabalhadores, empregadores e Estado. O governo Alemão vem tentando promover uma reforma no sistema há mais de 25 anos, mas tal problema ainda não foi resolvido de forma definitiva, já que os grupos de interesses (classe médica e indústria farmacêutica) sempre acabam levando a melhor. O faturamento do setor é de 230 bilhões de euros por ano, uma arrecadação que aguça o interesse de todos aqueles que atuam no ramo e os leva a se declararem contra a reforma”. {Artigo científico: A indústria. Publicado em 12/05/ 2004. Disponível em <http:// www.dw-world.de/dw/article 0,1564,984270,00.html> Acesso em 15/05/2015.

Assim, há grandes semelhanças e diferenças entre o Brasil e os países europeus em relação ao custeio e assistência à saúde. O custeio através de recursos da previdência é uma semelhança com alguns países, mas a burocratização excessiva, o desvio de verbas e a má conservação de hospitais públicos são, talvez, as diferenças mais alarmantes.

O Estado social possui um custo e tal custo deveria ser arcado equitativamente por toda a sociedade que, por conseguinte, deve fiscalizar a gestão das verbas à saúde, pois é cômodo para os mais abastados criticar a judicialização da saúde e o custo do Estado social, quando não se usufrui dos serviços públicos.

3.2 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em face dos pacientes terminais

Conforme demonstrado em tópicos anteriores, a saúde pública no âmbito internacional possui semelhanças na esfera legislativa, porém na esfera prática há grandes contrastes entre os países desenvolvidos e o Brasil, no entanto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, vêm exibindo precedentes paradigmáticos que vem aproximando a teoria da eficácia na prática e, com a devida vênia aos doutrinadores que pensam no sentido contrário de que a jurisprudência estaria a usurpar o legislador positivo, ou ainda de que tais decisões de concessões de tratamentos de remédios a indivíduos terminais violaria a saúde da coletividade e outros argumentos congêneres, é alvissareiro perceber que a jurisprudência vem se mantido firme no sentido de se tutelar ao máximo, o direito ao acesso à saúde pública de qualidade em detrimento da falta de gestão dos entes públicos.

É oportuno afirmar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao contrário de alguns países, até agora tem se mantido uníssona em tutelar ao máximo à vida do paciente terminal.

O Ministro Celso de Melo proferiu louvável, magistral, brilhante e primoroso voto, em um agravo regimental de recurso extraordinário em que um paciente terminal portador do vírus HIV litigava contra o município de Porto Alegre. Vejamos:

“O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQUENTE – O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. – O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade”. {AgR no RE 271286.AgR/RS-RIO GRANDE DO SUL.AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Ministro CELSO DE MELLO. Julgamento: 12/09/2000.Órgão julgador: 2ª Turma. NEGRITO ACRESCENTADO}

Há ainda outros brilhantes votos dos Ministros Marco Aurélio, Maurício Correia em jurisprudência mais antiga em casos análogos de pacientes terminais que corrobora com o entendimento que a saúde é um bem jurídico fundamental e que não deve ser olvidada pelo Estado nem tampouco se transformar em “promessa constitucional inconsequente”, conforme salientou de forma brilhante o ministro Celso de Melo.

Posição acertada do Supremo Tribunal Federal, uma vez que o Estado deve garantir, dentro dos limites da razoabilidade e da proporcionalidade, o que ocorreu devidamente no acórdão citado, posto que a Suprema Corte apenas garantiu ao Estado do Rio Grande do Sul, ao Município de Porto Alegre e à União que todos em solidariedade estariam obrigados a fornecer os coquetéis aos pacientes que adquiriram a doença da AIDS.

O posicionamento do culto Ministro Celso de Melo está totalmente consentâneo com os ditames da razoabilidade e proporcionalidade uma vez que o paciente apenas requereu o direito de prolongamento de seus dias de vida de forma digna e cabe ao Estado propiciar tal direito. Ora, seria totalmente desabonador o jurisdicionado ser tratado apenas como mero contribuinte e, na hora que mais precisasse da contraprestação estatal tivesse seu direito negado, portanto, esta decisão histórica é louvável e alvissareira e foi aplaudida por toda a comunidade acadêmica.

 Seria desproporcional, por exemplo, se o Supremo Tribunal Federal concedesse tratamentos estritamente estéticos e congêneres, dada a não essencialidade e o caráter supérfluo da causa de pedir de tal pedido, que implicaria grave ofensa às previsões orçamentárias da Administração Pública, porém a concessão judicial de tratamento para um jurisdicionado com neoplasia maligna, doença incurável ou qualquer outra enfermidade similar, ou a concessão judicial de um tratamento a um paciente que clama pelo seu direito de viver é totalmente legítima, justa e proporcional, à luz da doutrina e da jurisprudência majoritária, posto que o direito à vida é inalienável e está resguardado pela Carta Magna.

 No entanto, para fomentar o debate, mostra-se o posicionamento contrário do douto promotor de justiça do Estado do Rio de Janeiro, Marcos Maselli Gouvêa, nestas palavras:

“A atividade burocrática que cerca a implementação do fornecimento estatal de medicamentos (notadamente aquela ligada à previsão e ao controle orçamentário), de fato, pode ceder espaço a outras normas sobranceiras (prioritárias por imperativo constitucional ou jusfundamental) quando de sua aplicação, mas nem por isso deve ser considerado um ‘problema secundário’ ou burocrático. O tom dos arestos coligidos pela Suprema Corte, porém, parecem olvidar que o orçamento público, ele também, é algo ‘previsto constitucionalmente’, correspondendo aos importantes imperativos de transparência e racionalização da gestão financeira”. {http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15709-15710-1-PB.pdf.. GOUVEA, Maselli Marcos. <Artigo: O direito ao fornecimento estatal de medicamentos>Acesso em: 16/05/2015.NEGRITO ACRESCENTADO}

De fato, a racionalização dos gastos públicos é deveras importante, posto que o gasto indiscriminado gera graves problemas para a sociedade, no entanto, tal crítica, com a devida vênia, é inaceitável, posto que o Estado pode racionalizar suas custas de outras maneiras sem se escusar de tutelar à saúde dos cidadãos de forma plena.

Há várias formas de suprir e equilibrar os gastos públicos sem transferir o ônus de padecer com a própria vida aos cidadãos, por exemplo, a redução da corrupção e o aumento da fiscalização para atingir tal escopo, a diminuição da gastança exacerbada em eventos que poderiam ser financiados pela iniciativa privada, dentre várias outras medidas que poderiam reduzir os custos do Estado para que o mesmo pudesse investir nas áreas essenciais, porém o Estado falha na gestão pública e pretende transferir o ônus da ineficiência e da má gestão justamente aqueles que mais precisam.

Não está a se sustentar que os entes públicos devam arcar com todas as demandas referentes à saúde, pois o conceito de saúde é subjetivo e tal pretensão levaria o Estado arcar com demandas estritamente supérfluas, por outro lado, é totalmente repugnante que o Estado se utilize diuturnamente nas demandas judiciais o equivocado argumento de que não há verbas suficientes em demandas em que os pacientes necessitam do custeio dos entes públicos, ademais é deveras lamentável ver os estados membros brasileiros arcarem verbas milionárias com pagamentos de artistas para festas de “réveillon” e outras congêneres, e se eximir de arcar com os custos e demandas judiciais, sob o incoerente argumento da ausência de verbas.

 Os gastos orçamentários são previstas constitucionalmente, conforme citado alhures, porém tal crítica não merece prosperar uma vez que o Estado pode reduzir seus custos sem aviltar tais serviços essenciais devendo simplesmente priorizar gastos e melhorar a sua gestão.

 Assim, diante da corrupção e da falta de gestão dos entes públicos, no cenário hodierno, quando houver conflito de princípios entre a dignidade da pessoa humana e as previsões orçamentárias, se respeitadas a razoabilidade e proporcionalidade, que são princípios constitucionais implícitos norteadores de qualquer conflito jurisdicional, deve prevalecer a dignidade da pessoa humana.

Finaliza-se este capítulo sustentando que o Estado tem a obrigação de prover integralmente o direito à saúde, direito este que é corolário do direito fundamental à existência e que jamais deve ser olvidado e aviltado pelos poderes públicos, posto que a o direito à vida é inalienável, devendo os entes públicos serem os primeiros a preservá-lo, sob pena de a sociedade voltar aos ditames do nazismo e de outras barbáries da história da humanidade, em que não se respeitava o direito de viver.

Consequentemente ainda há que se argumentar que, mutatis mutandis, que em uma relação de filiação, o genitor não pode se escusar da obrigação de custeio das pensões alimentícias dos seus filhos sob a invocação genérica de insuficiência financeira. Isto posto, por que, deveríamos então aceitar que os entes públicos se escusem de oferecer um serviço de saúde de qualidade, sob a invocação genérica de tal argumento?

 Desta forma, mutatis mutandis, o Estado é devedor ao seu jurisdicionado que é credor da contraprestação positiva, pois o cidadão não deve ser tratado pelos poderes públicos com indiferença ou com desdém, no entanto, é perceptível que na prática o jurisdicionado é visto apenas como mero contribuinte que deve arcar com o custeio da máquina burocrática, sob pena de receber várias sanções. Basta fazer uma simples observação empírica e perceber que o Estado brasileiro de forma geral investe muito mais na fonte arrecadatória do que nos serviços sociais. Assim, é injusto e desproporcional ver um contribuinte que honrou durante toda a sua vida com as devidas obrigações tributárias aos entes públicos e, no momento em que mais precisa da devida contra prestação estatal, não rara às vezes no leito de morte, o Estado nega ou quando não nega trata com desdém, o paciente que outrora era um mero contribuinte, em vista disto há ainda quem argumente que o custeio do tratamento paliativo do terminal deveria ser restrito ao particular, posto que o Estado, em virtude do interesse público e dos critérios capitalistas e midiáticos de atividade econômica e longevidade, deveria priorizar o tratamento para pessoas com potencial de cura e tratar de forma subsidiária o paciente tem estado terminal.

Tal concepção provém da escola jurídica utilitarista e tem suas concepções oriundas de diversos doutrinadores e estudiosos, em especial de Jeremy Bentham.

No entanto, com a devida vênia, tal argumentação não deveria se aplicar aos pacientes em estado terminal, sob pena de transforma a sociedade hodierna aos moldes da antiga sociedade militarista espartana em que somente os úteis serviriam para viver e teriam a dignidade de serem cuidados.

 Ainda se deve frisar que tal concepção ofende o princípio da universalidade do acesso a saúde, pois quem seria considerado prioridade? Quem seriam os úteis para viver?

Felizmente, o constituinte originário postulou a universalidade de forma plena e no âmbito da jurisprudência tal argumentação utilitarista, seletiva e espartana não tem prevalecido.

É alvissareiro ver que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se mantido independente de qualquer vinculação com a Administração Pública e tem priorizados os indivíduos nos eventuais conflitos com Administração Pública.

É ainda louvável e reconfortante ver que as decisões estão a tutelar os direitos daqueles que são mais desprezados pela sociedade, por exemplo, os portadores do vírus da AIDS, ou mesmo aqueles que são desassistidos por suas famílias com graves patologias, e o Supremo Tribunal Federal tem sido o guardião destes jurisdicionados esquecidos muitas vezes pela sociedade.

Um tribunal que aparentemente teria tudo para ser favorável à Administração, sem entrar no mérito mais profundo da discussão acerca da composição da Suprema Corte, e teria tudo para se prostrar a interesses escusos de grandes grupos econômicos que lucram com a ineficiência estatal, mas felizmente os Ministros da Suprema Corte tem feito seu papel de zelarem pela dignidade humana e pelo direito do acesso universal à saúde, sobretudo, tem se mostrado ser um Tribunal independente da Administração Pública e dos demais lobbys da indústria farmacêutica.

3.3. A proporcionalidade e razoabilidade no conflito entre a reserva do possível e o mínimo existencial

 A teoria da “reserva do possível” surgiu a partir do famoso “leading case” ocorrido na Alemanha no século XX, em que estudantes de medicina pleiteavam vagas no ensino superior e a Corte Constitucional Alemã negou o pedido sob o fundamento de que o Estado alemão deveria respeitar a reserva do possível de vagas nas universidades.

Tal decisão baseou-se nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade e se tornou famosa por inovar com esta teoria. O Estado brasileiro adota esta tese com fulcro no princípio da indisponibilidade dos bens públicos e nos princípios constitucionais implícitos da proporcionalidade e da razoabilidade uma vez que caberia ao Estado propiciar os recursos aos seus jurisdicionados em níveis proporcionais que não alterassem o bem comum, a coletividade e o erário público.

No entanto, na prática, tal teoria tem sido utilizada de forma a escusar os entes políticos de suas obrigações, uma vez que a mesma tem sido invocada genericamente para a maioria das demandas que versam sobre a judicialização dos direitos sociais.

Ora, é fato que o Estado deve ter racionalidade e proporcionalidade em seus gastos, no entanto, tal justificativa não deve servir de esquiva e escusa para que o ente público não ofereça serviços básicos e essenciais, como ocorre hodiernamente no país, assim, a desproporcionalidade contra a reserva do possível deve ser comprovada cabalmente e não genericamente alegada, como ocorre hodiernamente.

 O Supremo Tribunal Federal, ao analisar medida cautelar na ADPF nº 45, decidiu que a reserva do possível não deve ser invocada pelo Estado para exaurir-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais. Nesse sentido, louvável é o voto da lavra do Ministro Celso de Melo, in verbis:

“[…] É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente usando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. […]” {STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.04. Negrito Acrescentado}

Andreas Krell assim denomina tal fenômeno:

“[…] não basta, portanto, que o Estado invoque genericamente a reserva do possível para opor à concessão judicial de prestações sociais – como, infelizmente, tem ocorrido na maior parte das ações nesta matéria. É preciso que ele produza prova suficiente desta alegação.” (KRELL, 2008, p. 572).

 A jurisprudência pátria têm vários julgados nesse sentido. Traz-se, à guisa exemplificativa, apenas trecho de julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que corrobora totalmente com o entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:

“Ao invocar o Princípio da Reserva do Possível, incumbe ao Estado demonstrar concretamente que a postulação formulada em favor do cidadão conflita e inviabiliza a implementação de outros programas e ações governamentais mais prementes. Não basta, portanto, mera invocação ao princípio de forma teórica e genérica, sem se desincumbir do ônus de evidenciar por meio de dados concretos a sua aplicabilidade de modo a afastar o pedido inicial.”{TJ-PR-Conflito de jurisdição-CJ 992626-7. Acórdão. Data de Publicação:16/07/2013. 5ª Câmara Cível. Desembargador (a) Relator(a): Lilian Romero. Negrito Acrescentado}

Ainda deve ser explanado que parte da doutrina assevera que a reserva do possível deve ser utilizada com cautela, posto que a origem europeia desta tese possui realidade totalmente distinta da realidade brasileira e a reserva do possível na Alemanha ou na Holanda, por exemplo, não deve ser utilizada no mesmo teor em nosso país, pois, em regra, os serviços públicos nos países europeus são de altíssima qualidade e, excepcionalmente, a reserva do possível é utilizada nestes países para contrariar um gasto que seria exorbitante para o Estado, porém no âmbito jurisprudencial brasileiro os poderes públicos têm se utilizado corriqueiramente desta argumentação para se eximir da prestação de serviços básicos e, felizmente, a jurisprudência majoritária não tem aceito.

Já a teoria do “mínimo existencial”, também de origem alemã, aduz que o Estado deve garantir as condições mínimas e básicas para a população. Tal teoria foi adotada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e, apesar da expressão não está posta na Constituição Federal, a ideologia fora adotada pelo constituinte originário que dissertou no artigo 3º, inciso III, ao expor que um dos objetivos da república federativa era “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais”, portanto, há que se notar que o constituinte originário claramente destacou o caráter social do Estado brasileiro e homenageou indiretamente a teoria do mínimo existencial.

Basicamente, a teoria consiste em garantir que o Estado propicie aos cidadãos políticas públicas e prestações de serviços eficazes para que o indivíduo possa ter o direito de sobreviver dignamente em todas as searas de sua existência e sem maiores digressões constata-se que tal teoria está aquém da realidade brasileira.

A par de vários avanços sociais nas últimas décadas, importante é destacar que a teoria do mínimo existencial ainda é deveras utópica e quimérica, no entanto, houve vários avanços, quer seja no aumento do assistencialismo praticado pelo Estado, quer seja ainda na política de judicialização dos direitos sociais.

Ocorre que a reserva do possível tem sido utilizada nas matérias de defesa dos entes públicos de forma indevida e para contrariar direitos básicos da população brasileira e, sobretudo, para fomentar o descaso dos entes públicos e mitigar as prestações sociais adequadas aos cidadãos brasileiros, pois nas diversas ações que versam sobre o tema, os demandados tentam se eximir de serviços simples com fulcro nesta teoria.

Sobre o tema, Ana Paula Barcelos, assim aduz:

“[…] na ausência de um estudo mais aprofundado, a reserva do possível funcionou muitas vezes como o mote mágico, porque assustador e desconhecido, que impedia qualquer avanço na sindicabilidade dos direitos sociais”. (BARCELLOS, 2002, p. 37).

Ainda deve se ressaltar que a realidade da saúde pública dos países europeus, em regra, é totalmente diferente da realidade brasileira e invocar constantemente de forma padronizada tal teoria revela apenas a intenção dos entes públicos em se esquivarem de suas obrigações positivas.

Andreas Krell apud Daniel Sarmento (2008, p.570), declarou que esta teoria seria “fruto de um Direito Constitucional equivocado”, dado que em países subdesenvolvidos, a aplicação desta teoria deve ser restrita uma vez que o Estado brasileiro não fornece as mínimas condições e garantias de sobrevivência e o gasto com corrupção e desvio de verbas é bem menor em países desenvolvidos, portanto, é totalmente incoerente os entes públicos gastarem com corrupção e demais gastos supérfluos e congêneres e se utilizarem da reserva do possível como matéria de defesa com o escopo de se eximirem de prestar um serviço social de qualidade.

 A reserva do possível fora criada para coibir abusos e obrigações desproporcionais e arbitrárias ao erário público, evitando que se gaste dinheiro com objetivos desproporcionais ou supérfluos, no entanto, tal teoria não deve servir de justificativa e escusa para que o Estado se omita de seus deveres constitucionais e das prestações positivas básicas.

Nas ações de obrigação de fazer em desfavor dos poderes públicos é demasiadamente comum ver a teoria da reserva do possível em forma de “contestação padronizada” sem tampouco que a causa de pedir do jurisdicionado seja desproporcional ou supérflua, no entanto, cabe ao ente público provar que a demanda é desarrazoável e que fere a reserva do possível.

Assim, é salutar afirmar que o equilíbrio entre a reserva do possível e o mínimo existencial ainda é um desafio para as autoridades brasileiras e para todos os entes públicos, pois é fato que há vários pedidos desproporcionais e abusivos em face da Administração Pública e que a teoria da reserva do possível deve ser adotada para frear tais pedidos e garantir o equilíbrio das contas públicas, mas também é fato notório que o Estado brasileiro, além de gastar com corrupção e não racionalizar seus gastos se omite de prestar os serviços sociais básicos indispensáveis à sobrevivência dos cidadãos.

É extremamente desabonador para o cidadão brasileiro perceber que milhões de reais são gastos com desvio de verbas, eventos privados ou festas e datas comemorativas, por exemplo, carnaval, ano novo, em que os entes públicos sobre o argumento do “fomento ao turismo”, gasta exacerbadamente, e nas demandas essenciais como o direito à saúde, geralmente o Estado se omite sobre o argumento da reserva do possível, felizmente, a realidade vem mudando ainda que de forma mínima.

Neste prisma, é interessante transcrever trecho de julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região em que o Estado do Ceará e a União eram litisconsortes passivos necessários e o Excelentíssimo Senhor Desembargador, Emiliano Zapata Leitão, tratou corajosamente dos desnecessários gastos públicos e da forma pueril que o Poder Público procura se eximir de suas obrigações, senão vejamos:

“[…]11. A alegação genérica de limitações orçamentárias vinculadas à reserva do possível, além de não provada concretamente quanto à eventual indisponibilidade de fundos para o atendimento da pretensão inicial, não é suficiente para obstar a concretização do direito constitucional em exame, sobretudo quando notório o fato de que o Poder Público possui verbas de grande vulto destinadas a gastos vinculados a interesses bem menos importantes do que a saúde da população (por exemplo, publicidade, eventos festivos etc), os quais podem e devem ser, se for necessário, redirecionados para a satisfação de direitos essenciais da população”.{….Trecho do voto.TRF 5ª região. Apelação Cível. Reexame Necessário. APELREEX 5753 CE 0017205-06.2006.4.05.8100. Relator(a): Desembargador Federal Emiliano Zapata Leitão. Data do Julgamento:14/01/2010. Órgão Julgador: 1ª Turma. Negrito Acrescentado}

O trecho em negrito do citado voto proferido pelo Desembargador, condiz com a realidade de todos os outros entes estaduais brasileiro que gastam fortunas de elevada vultuosidade em eventos (réveillon, carnaval, festas regionais etc.) que poderiam ser financiadas por empresas e demais particulares.

 Há autores na doutrina que criticam o teor de tais decisões por supostamente violarem o direito à coletividade da saúde e por supostamente violarem a função social da macro justiça, entretanto, o ilustre doutrinador, Ingo Wolf Sarlet, é magistral ao discordar de tais doutrinadores, senão vejamos:

“{…} Em função disso, já há autores sustentando uma necessária prevalência das ações de caráter coletivo, muitas vezes sob a acepção de “políticas públicas”, em detrimento dos processos judiciais de cunho individual, com o argumento de que estes últimos não consistiram no meio adequado à postulação de prestações materiais relacionadas ao direito à saúde, pois inviabilizariam decisões da “macro-justiça”. Com todo o respeito à fundamentação que embasa tal posicionamento, não se pode deixar de relembrar que o direito à saúde é, antes de tudo e também, um direito de cada pessoa, visto que intimamente ligado à proteção da vida, da integridade física e corporal e da própria dignidade inerente a cada ser humano considerado como tal. Isso significa que, a despeito da dimensão coletiva e difusa de que se possa revestir, o direito à saúde, inclusive quando exigido como direito a prestações materiais, jamais poderá desconsiderar a tutela pessoal e individual que lhe é inafastável”. (SARLET, p. 374, 375).

Neste ínterim, concorda-se totalmente com o ilustre doutrinador, pois há que se destacar que outras atitudes do Poder Público violam e aviltam a “macro justiça” do que a simples concessão de medicamentes e, apesar da saúde ser um bem jurídico coletivo, jamais pode ser desconsiderada a individualidade do jurisdicionado, sob pena de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.

3.4. O direito fundamental aos cuidados paliativos e à obrigação de fazer do Estado

 Muito se discute sobre o direito fundamental à vida, à saúde, ao lazer, ao esporte e aos demais direitos sociais, no entanto, pouco se discute na seara acadêmica e jurídica sobre o direito fundamental aos cuidados paliativos dos pacientes terminais , mas apenas na seara médica e, infelizmente, não se entende a razão de tal motivo uma vez que a morte é fenômeno natural em que todos hão de passar, porém por razões culturais e filosóficas, pouco se disserta academicamente sobre o fenômeno da morte no cenário acadêmico brasileiro.

Neste rumo, é imprescindível começar a dissertação explicando o conceito dos cuidados paliativos, que se conceituam por consistirem na assistência, cuidado e terapia de uma equipe multifacetada e pluralizada de profissionais de várias áreas que possuem o escopo de aliviar os últimos dias do paciente em estado de saúde incurável.

A medicina hodierna superou a concepção obsoleta de que não se resta nada a fazer quando não há prognóstico de cura, pois há uma forte tendência acadêmica e mundial a tornar a medicina ainda mais humanizada.

A figura do profissional da saúde engraçado, amoroso, altruísta e que se preocupa com as dores, as angústias, os sofrimentos e os demais sintomas do paciente está deixando de ser uma tendência do cinema, conforme bem ilustra o filme do médico “Patch Adams”, interpretado pelo ator Robin Williams, que faz o papel de um médico engraçado e altruísta ao cuidar paliativamente de crianças com câncer, para se tornar uma realidade.

A Organização Mundial da Saúde definiu a concepção do que seriam os cuidados paliativos em 1991, e ampliou o conceito em 2002, que assim se conceituam:

“Trata-se de uma abordagem de cuidado diferenciada que visa melhorar a qualidade de vida do paciente e seus familiares, por meio da adequada avaliação e tratamento para alívio da dor e dos sintomas”. (WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO), 2015, p. 1).

Portanto, a estimativa da Organização Mundial da Saúde é que esta tendência de cuidado humanizado se torne realidade no mundo todo, ainda que não haja prognósticos favoráveis para esta tendência em alguns países.

No Brasil, a realidade não é diferente e ainda está totalmente aquém do esperado pela Organização Mundial da Saúde, pois só conserva o direito de morrer dignamente quem obtém uma condição financeira alta ou quem esteja assegurado pelos mais caros planos de saúde, que são extremamente falhos e o número de ações contra as operadoras da saúde corroboram para tal fato, no entanto, este não será o escopo deste trabalho, apesar de tal fato ser alarmante e contribuir para a acirrada discussão doutrinária sobre o ativismo judicial.

O fato incólume é que um indivíduo de classe social baixa já sabe que o seu direito fundamental de ser cuidado antes da morte está totalmente inapto e que a esperança é ínfima para que este quadro social mude, dado o quadro de crise econômica, de corrupção e desinvestimento em áreas sociais que se alastra por décadas no país e, talvez, o que reste para o simplório trabalhador brasileiro é ser um mero contribuinte do Estado a ser desassistido pelo mesmo na hora de sua morte.

O tema da eutanásia e suas derivações, tais como a distanásia, a ortotanásia, suicídio assistido, dentre outras derivações congêneres, não serão objeto de estudo neste trabalho, pois apesar de haver semelhanças entre as temáticas, principalmente no que concerne ao princípio da autonomia, os objetos de estudo são distintos, vez que a discussão da eutanásia gira em torno do direito fundamental à morte assistida e o presente estudo tem como objeto o direito fundamental de ser cuidado em estado incurável, portanto, apesar de serem temas correlatos, são totalmente distintos e que não se confundem.

Com efeito, sem maiores digressões sobre o tema da eutanásia, pois, conforme dito alhures, o foco é o cuidado paliativo, deve ser explanado que o rol dos direitos e garantias fundamentais é considerado exemplificativo pela doutrina e jurisprudência, o que implica dizer que outros direitos e garantias fundamentais não escritos de forma expressa no rol constitucional são considerados fundamentais, uma vez que a hermenêutica neoconstitucional consagrou a tese da implicitude e da não taxatividade das garantias fundamentais, assim, deve se considerar que o direito a um tratamento paliativo em estágio terminal é uma garantia fundamental, ainda que não expressa explicitamente, mas indiretamente com fulcro nas garantias fundamentais do acesso à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana uma vez que há doutrina constitucionalista majoritária entende que há várias outras garantias fundamentais são meramente exemplificativas e genéricas, uma vez que seria impossível o constituinte originário positivar garantias fundamentais que não se discutiam à sua época, portanto, o direito a uma morte digna, inclusive custeada pelo próprio Estado, é uma garantia fundamental.

 Segundo dados do Conselho Federal de Medicina, apenas uma em cada 10 pessoas no mundo tem acesso à assistência paliativa e o Brasil, infelizmente, não está distante desta realidade estando inclusive fora do rol de países que adotam os cuidados paliativos como política pública essencial, senão vejamos:

“Apenas uma em cada 10 pessoas tem acesso a este tipo de assistência no mundo, aponta Organização Mundial da Saúde (OMS)
O mundo ainda é deficitário na promoção ao acesso dos cuidados paliativos. Tratamento que busca dar suporte a pessoas com doenças incuráveis ameaçadoras da vida através do controle da dor e de qualquer sintoma que cause desconforto, os cuidados paliativos estão ao alcance de apenas uma em cada 10 pessoas, conforme constatou a Organização Mundial de Saúde (OMS), em mapeamento inédito apresentado no documento denominado “Atlas Global de Cuidados Paliativos no final da vida” (tradução do inglês “Global atlas of palliative care at the end of life”). O material tem parceria do Worldwide Palliative Care Alliance (WPCA). O relatório também revela haver 20 países somente que possuem sistema adequado. O Brasil, não faz parte desse grupo. “A essência dos cuidados paliativos consiste em permitir que a pessoa e seus familiares possam viver plenamente o tempo que lhe resta. A intenção não é dar anos a vida, mas sim, vida aos anos. Valorizar o tempo que resta”, relata o presidente da Comissão de Cuidados Paliativos da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), o geriatra Daniel Azevedo, ao traduzir em palavras a essência desta modalidade terapêutica.” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. 2014, p. 1; Negrito Acrescentado)

Assim impende destacar que no Brasil inexiste políticas públicas e programas sociais voltados para a obrigação de fazer do Estado nos cuidados paliativos e, na prática, a saúde pública brasileira tende a encurtar ainda mais a vida dos pacientes terminais, quando não o fazem padecer em condições sub-humanas, nazistas e atrozes.

É deveras árduo, laborioso e angustiante, postular na temática da saúde no Brasil se o Estado brasileiro falha na prestação de serviço de saúde básica, quiçá conseguirá efetivar um tratamento paliativo digno aos que estão nos hospitais públicos, todavia, do fato do Estado não cumprir com suas obrigações sociais não implica que tais obrigações não devam ser exigidas, portanto o usuário da saúde pública brasileira que estiver com doença em estado terminal, bem como a sua família, devem ter o mínimo de atenção e cuidado do Estado e, ainda que tal garantia fundamental seja considerada utópica e fictícia hodiernamente, quiçá em alguns anos ou algumas décadas poderá se ver o Estado brasileiro cuidando daqueles que mais precisam de cuidados.

Não se pode olvidar, o caráter sociológico desta temática, uma vez que os poderes públicos são formados por pessoas que vivem em uma cultura aonde prevalece a cultura eugênica, utilitarista e espartana em que os pacientes terminais são tratados de forma subumana, pois argumenta-se que os mesmos estariam a “ocupar as vagas” de pacientes com potenciais de cura e prevalece, portanto, não basta dissertar sobre a ineficiência e a corrupção estatal, senão houver um enfoque na cultura em que as pessoas que comandam o Estado estão envolvidas.

É salutar discorrer que a mercantilização, a maquinização e a coisificação do homem, visto apenas como pessoa economicamente ativa, é fruto da cultura e do contexto social atual e, conforme sustentava o famoso sociólogo polonês ,Zygmunt Bauman, em sua obra amor líquido, (Bauman,2003), que a “modernidade líquida” retirou a sensibilidade e o altruísmo do ser humano, sobretudo, na capacidade de olhar o ser humano como algo frágil, de se colocar no lugar do outro, tornou-se algo viralizado em nossa cultura em que o altruísmo é visto como um desvario e o egoísmo e a celeridade constantes das “relações líquidas” fazem com que as pessoas se tornem objetos descartáveis, portanto, antes de sustentar a obrigação de fazer do Estado, é interessante que haja uma conscientização e uma mudança na forma de visão da sociedade no tratamento paliativo dos pacientes terminais.

Neste diapasão, denota-se que há uma mudança significativa de pensamento e de cultura entre os operadores do Direito, principalmente, em relação ao tema da saúde, pois o judiciário brasileiro, em décadas passadas era extremamente elitista, inacessível e seletivo, e não se cogitava em ganhar um litígio contra o Estado, no entanto, percebe-se que a mudança de pensamento do Estado-Juiz vem se sensibilizando e se solidificando em conceder o tratamento de saúde adequado ao seu jurisdicionado.

A título exemplificativo, menciona-se jurisprudência que condenou o Sistema Único de Saúde a prestar serviços de cuidados paliativos a um jurisdicionado:

“Neste sentido, os documentos que instruem o presente feito provam de forma suficiente que a Autora é portadora de neoplasia maligna em fase terminal para qual somente são indicados cuidados paliativos, sendo certo que, consoante a Nota Técnica nº 1.667 juntada às fls.100/102, o Sistema Único de Saúde presta tais cuidados como forma de aliviar o “sofrimento físico, emocional, espiritual e psico-social de doentes com prognóstico reservado”, acometidos por neoplasias malignas em estágio irreversível, que se dão em forma de: a) assistência ambulatorial (incluindo fornecimento de opiáceos); b) internações por intercorrências (incluindo procedimentos de controle da dor); c) internações de longa permancência; e d) assistência domiciliar.” {APELACAO CIVEL 474961 2008.51.01.019704-4. Trecho do voto do DESEMBARGADOR FEDERAL GUILHERME DIEFENTHAELER. Data da Publicação: 23/07/2012. Quinta Turma Especializada. Negrito Acrescentado}

É promissor e alvissareiro perceber que o Estado-juiz está a se sensibilizar com o estado emocional de seu jurisdicionado e que gradativamente o judiciário está tornando eficazes as garantias sociais aos que mais necessitam.

Paulo Lopo Saraiva, notável jurista de Natal, assim transcreveu de forma pertinente:

“O juiz que não é humanista, que é apenas um legalista, que é apenas um homem que pelo método dedutivo aplica a lei e perde-se na lei, vai também perder-se no remorso das injustiças que vai cometer”. {Saraiva, Paulo Lopo Revista da OAB. Seccional da Paraíba nº 2. João Pessoa,TextoArte,1998,página 63,negrito acrescentado}

Percebe-se dessa forma que o judiciário está ultrapassando paradigmas e aplicando a interpretação teleológica, buscando atender as exigências sociais da norma que é efetivar o acesso pleno à saúde, e a fazer justiça no caso concreto de acordo com a equidade e com o bem comum.

Neste sentido, mister citar excelente decisão do Superior Tribunal de Justiça que, ao fazer a aplicação da interpretação teleológica, condenou o Estado do Paraná, em sede de recurso ordinário em face de Mandado de Segurança, a conceder medicamento a um paciente. O trecho da decisão merece destaque, devido ao seu brilhantismo, senão vejamos:

“[…] Nenhuma regra hermenêutica pode sobrepor-se ao princípio maior estabelecido, em 1988, na Constituição Brasileira, de que "a saúde é direito de todos e dever do Estado" (art. 196). 5 – Tendo em vista as particularidades do caso concreto, faz-se imprescindível interpretar a lei de forma mais humana, teleológica, em que princípios de ordem ético-jurídica conduzam ao único desfecho justo: decidir pela preservação da vida. 6 – Não se pode apegar, de forma rígida, à letra fria da lei, e sim, considerá-la com temperamentos, tendo-se em vista a intenção do legislador, mormente perante preceitos maiores insculpidos na Carta Magna garantidores do direito à saúde, à vida e à dignidade humana, devendo-se ressaltar o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos. 7 – Recurso ordinário provido para o fim de compelir o ente público (Estado do Paraná) a fornecer o medicamento Riluzol (Rilutek) indicado para o tratamento da enfermidade da recorrente.{RMS 11183/PR; RECURSO ORDINARIO EM MANDADO DE SEGURANÇA 1999/0083884-0 – Ministro JOSÉ DELGADO – T1 – PRIMEIRA TURMA j. 22/08/2000 DJ 04.09.2000 p. 121 RSTJ vol. 138 p. 52.Negrito.acrescentado}

Apesar de o Judiciário estar progredindo no que tange ao tema, o legislativo ainda resta obsoleto, pois não há legislação específica sobre o tema, existindo apenas um projeto de lei de autoria do Senador, Gerson Camata, e de relatoria do Senador, Augusto Botelho, que dispõe sobre a ortotanásia, que seria a interrupção ou os desligamentos de aparelhos em pacientes terminais, porém está tramitando no Congresso Nacional e não dispõe de maneira específica sobre os cuidados paliativos, portanto, a legislação sobre os cuidados aos pacientes terminais é praticamente inexistente no país, porém o código de ética, ainda que de forma concisa, disserta sobre o os procedimentos corretos do profissional da medicina em relação aos pacientes em estado incurável:

Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. {Parágrafo único. Artigo 41.Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1931 /2009}

O texto da resolução é clarividente no sentido de que o cuidados paliativos devem ser oferecidos aos pacientes terminais, desde que se respeite à sua autonomia, em uma clara menção implícita à liberdade e autonomia consagrada na Constituição, porém é silente em relação aos deveres estatais, assim como o médico irá oferecer os cuidados paliativos na realidade dos hospitais públicos? Como os profissionais da saúde podem cumprir tal determinação em detrimento do quadro geral da saúde brasileira? Assim percebe-se que tal norma possui mínima eficácia, visto que, na realidade apenas os mais abastados retém a possibilidade de serem cuidados antes da morte.

É delicado imaginar no quadro geral da saúde brasileira, que uma equipe multidisciplinar com psicólogos, assistentes sociais, médicos e enfermeiros estejam a cuidar de todos os pacientes terminais nos hospitais públicos, e que tal serviço seja custeado pelo Estado ao invés dos planos de saúde, e é difícil esperar prognósticos animadores no legislativo brasileiro e nas políticas públicas, no entanto, o Judiciário está conseguindo, ainda que de forma simplória e mínima, efetivar a obrigação de fazer do Estado não apenas nos cuidados paliativos, mas em toda a matéria da saúde e isto é alentador para a realidade social em que se vive no Brasil.

Felizmente, é alvissareiro ver que membros do Poder Judiciário estão se sensibilizando com esta temática. A seguir, transcreve-se notícia louvável de que o Ministério Público Federal do Estado da Paraíba ingressou na justiça contra a União, o estado-(membro) da Paraíba e contra a Universidade Federal da Paraíba:

“O Ministério Público Federal na Paraíba (MPF/PB) ajuizou, em 1º de julho, ação civil pública com pedido de liminar contra a União, estado da Paraíba, município de João Pessoa e Universidade Federal da Paraíba (UFPB). A ação visa garantir que a paciente C., de 3 anos e 11 meses de idade, portadora da síndrome de Werdnig-Hoffman, seja tratada por um serviço de atendimento de cuidados paliativos ou destinado a pacientes terminais. Há três anos e cinco meses, a criança ocupa um dos leitos da UTI Pediátrica do Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW), mantido pela UFPB. Segundo o hospital, a paciente encontra-se em condição de deixar a UTI e receber cuidados mais apropriados na residência dos familiares – ou mesmo em um leito específico para casos como este. A doença é uma síndrome de natureza hereditária, de fundo degenerativo, que costuma manifestar-se nos primeiros anos de vida, é incurável e produz um quadro de progressiva debilidade muscular que dificilmente permite uma longa sobrevida ao portador. Para o MPF, a única explicação para a longa internação da criança em unidade inadequada para este tipo de serviço é a total ausência, na Paraíba e em João Pessoa, de um serviço destinado a situações desse tipo. “Por pura ineficiência do Sistema Único de Saúde (SUS), no estado da Paraíba, um leito de UTI, cuja manutenção custa milhares de reais – e isso em meio a uma gravíssima crise de falta de leitos – é mantido ocupado por uma paciente que deveria receber atendimento domiciliar e de cuidados paliativos, de custo infinitamente inferior, bastando apenas equipamento de suporte ventilatório, medicamentos e material descartável, e visitas periódicas de pessoal médico especializado”, argumenta o procurador da República Duciran Farena, que assina a ação. Na ação, o MPF destaca ainda que a permanência da criança na UTI acarreta ampliação dos riscos de infecção hospitalar, para ela e para os demais pacientes, por conta da presença da mãe naquele ambiente. “Trata-se de uma situação absolutamente irregular, posto que uma UTI hospitalar não é ambiente para visitas ou permanência de familiares, mas no caso a paciente, que ali se encontra, não pode ser privada do contato de sua genitora”. Além disso, a mãe da paciente tem vontade e interesse que a filha retorne para casa (…)” (JUSBRASIL, 2011, p.1)

Na ação citada ação, o Ministério Público argumentou inclusive que os tratamentos paliativos seriam menos custosos para o Estado do que manter a criança internada utilizando o leito, que poderia padecer até de infecção hospitalar.

Neste sentido, frise-se novamente, é que a postura inovadora do judiciário de transcedentalizar os direitos sociais tornando-se mais próximo das carências da população, sobretudo, daqueles que já foram injustiçados pelas mazelas da sociedade revela uma postura totalmente coerente e totalmente diferente do legislativo, do executivo e das demais autoridades públicas e acertadamente esta deve ser a postura do judiciário brasileiro, pois o mesmo não deve se olvidar dos problemas sociais e estar à margem da população, sob pena de se tornar elitista, segregário e afrontar o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

É reconfortante e alvissareiro perceber que o Poder Judiciário brasileiro está mais atento às sensibilidades sociais, estar mais próximo do cidadão e está cotidianamente demonstrando sua independência da Administração Pública, dos segmentos da indústria médica e farmacêutica e dos demais lobbys pressionadores, é louvável a postura dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça em não deixar o cidadão a mercê do descaso dos entes públicos.

Obviamente, ainda há muito o que ser mudado no Poder Judiciário brasileiro, principalmente, em relação a celeridade processual e a acessibilidade ao Judiciário, entretanto, não se pode deixar de elogiar a mudança de postura que o Judiciário brasileiro veio apresentando nas últimas décadas em relação a saúde e, enquanto a Legislativo e o Executivo não realizarem suas funções precípuas, mormente em um tema desta gravidade, que é o direito à saúde, a atuação do Poder Judiciário será necessária.

Felizmente, pode se dizer que hodiernamente vive-se uma era na jurisprudência brasileira em que os direitos e garantias fundamentais estão sendo garantidos e respeitados pelo Poder Judiciário e isto é deveras animador para que o cenário social mude nas outras esferas do Estado brasileiro.

4. Considerações finais

Diante do exposto, deve-se concluir que a sociedade brasileira clama por melhoria de serviços sociais de qualidade, principalmente os serviços que conduzem aos direitos vitais mínimos.

Frise-se ainda que o principal escopo deste estudo é o de demonstrar que há uma garantia fundamental de morrer com dignidade, ou melhor, de morrer com toda a assistência de saúde pública, mesmo que tal desiderato ainda não ocorra na prática da esfera pública de nosso país, deve se buscar este ideal, pois várias garantias fundamentais hodiernas são cumpridas pelo Estado, foi porque houve pessoas que no passado não desistiram de lutar para que estas não fossem mitigadas, como por exemplo, a liberdade de expressão, de ir e vir, dentre outras congêneres, então por que deveríamos desistir da militância de lutar por uma saúde ideal de qualidade, acessível e justa? Os desafios são complexos, pois deve haver uma mudança de estrutura e de políticas públicas, mas não é impossível.

Hodiernamente, será que não se vive em uma “Esparta do mundo moderno”, posto que os pacientes terminais e todos os demais grupos sociais que, a priori, seriam considerados descartáveis não são tratados com desdém pelas pessoas e pelos poderes públicos?

A cultura que valoriza apenas o utilitarismo, o indivíduo que possui potencial economicamente ativo, a cultura que valoriza a beleza, e o ser humano saudável também não necessitaria de mudanças? Será que o Estado não nos trata de forma descartável e econômica por que nós assim nos tratamos?

Sem pretender aprofundar filosoficamente a discussão do tema, porém sem pretender esgotá-la, será que não deveria acontecer uma mudança na cultura brasileira?

Diante de tais devaneios, permite-se concluir que há uma garantia fundamental de ser cuidado pelos poderes públicos e que há um dever dos mesmos para com a população não importando o estado de saúde do jurisdicionado ou do indivíduo, pois ao longo deste trabalho procurou-se de todas as formas demonstrar que a dignidade do jurisdicionado é intrínseca ao seu ser não importando o seu estado de saúde, nem tampouco qualquer outro preconceito social, visto que muitas doentes terminais são vítimas do preconceito da sociedade, porém buscou-se demonstrar a universalidade do acesso à saúde, bem como seu caráter igualitário.

Ao longo desta monografia, sustentou-se o papel marcante da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no amparo dos pacientes terminais, além de se defender que a exigibilidade dos direitos sociais e da obrigação de fazer do Estado é benéfica para toda a sociedade.

Mostrou-se a incoerência e o desrespeito dos entes públicos em investir demasiadamente em outras áreas supérfluas e em áreas que podem esperar, mas que, todavia, negligenciam na área da saúde e mostrou-se ainda o quanto os poderes públicos são dinâmicos e extremamente eficientes em arrecadar impostos, mas inoperante em retribuir os benefícios sociais destas arrecadações.

 Demonstrou-se que há um vácuo legislativo sobre os pacientes em estado terminal e que o tema merece maior estudo com acuidade e profundidade por profissionais de todas as áreas, mormente das áreas da medicina e do Direito sendo, portanto, salutar esclarecer que o presente trabalho não tem a mínima pretensão de esgotar a discussão acadêmica do tema, mas sim de fomentá-la.

 Impende ainda afirmar que o paciente terminal que se encontra na saúde pública brasileira, não raras as vezes, é vítima metaforicamente de um “holocausto nazista” por estar exposto aos corredores e por padecer de forma atroz sem que ninguém o socorra e que a saúde pública brasileira, apesar de ter havido significativa melhora após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, após a entrada em vigor da legislação que instituiu o SUS, doravante, sistema único de saúde, ainda estar longe de ser o ideal e ainda necessita de uma melhora expressiva para proporcionar um mínimo de dignidade a quem necessita da saúde brasileira e a quem deseja morrer com tratamento adequado e digno.

 Dissertou-se ainda sobre temas subsidiários, mas que são deveras importantes para o estudo aprofundado do tema da saúde, como a reserva financeira do possível, o mínimo existencial, a solidariedade da responsabilidade dos entes públicos nas três esferas, e a atual conjuntura da saúde pública brasileira, bem como uma reflexão e uma a apresentação de soluções a curto e a longo prazo para a atual problemática da saúde público no cenário político hodierno brasileiro, além de problematizar sobre a execução dos direitos sociais de segunda dimensão.

Elencou-se vários princípios constitucionais em defesa da obrigação de fazer do Estado em cuidar dos pacientes terminais, principalmente, o princípio constitucional vetor de interpretação, considerado um meta princípio e amplamente estudado e debatido que é o princípio da dignidade da pessoa humana.

Asseverou-se que os cuidados paliativos necessitam de uma profissional equipe multidisciplinar e que deve ser feito um cuidado de forma ampla não apenas com a saúde do paciente, mas com sua espiritualidade e com a sua família demonstrando que o tratamento paliativo possui várias facetas e que é possível que o Estado arque com esse ônus sem que haja violação ao princípio da reserva do possível.

 Acrescentou-se ainda que corriqueiramente os entes federativos se utilizam da invocação genérica do princípio da reserva do possível para se omitirem de prestar os devidos serviços sócias e, apesar, de a reserva do possível ser adotada em nosso ordenamento jurídico interno, a utilização de tal teoria não deve ser banalizada e ao ser invocada deve ser prescindida das devidas provas de insuficiência financeira.

 Destacou-se ainda que o judiciário que é extremamente legalista e arraigado a literalidade da lei pode e que tal postura pode cometer graves injustiças, porém a postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal em suas últimas decisões sobre o tema revela que a Suprema Corte tem entendido que no conflito de garantias entre as previsões orçamentárias e entre o acesso à saúde, este último deve prevalecer.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal foi pioneira em tutelar os direitos dos pacientes terminais em vários casos que se tornaram “leading cases”, como foi o caso da concessão de coquetéis aos pacientes portadores do vírus da AIDS, dentre outros casos, fornecimento de remédios a portadores de neoplasias e outras doenças congêneres, bem como a condenação a compelir os entes públicos a determinados tratamentos mostra que o Supremo Tribunal Federal não cede à pressões políticas, nem tampouco coaduna com a ineficiência e o descumprimento das políticas públicas.

 Demonstrou-se que o acesso à saúde plena deve ser um fim precípuo a ser alcançado e que os pacientes terminais merecem ter sua dignidade protegida e que o estado de saúde de uma pessoa não deve ser critério de seletividade para decidir quem possui o direito de viver e que as autoridades devem lutar de forma árdua para mudar este quadro social inaceitável.

 Constatou-se que os cuidados paliativos devem ser feitos de forma ampla e abrangente englobando cuidados psicológicos, sociais, médicos, além de toda a promoção da assistência à família em relação ao luto.

 Avaliou-se ainda que o fenômeno da morte é deveras olvidado pelos poderes públicos e que o direito de morrer com a devida circunspecção e zelo está totalmente aquém do esperado na saúde pública brasileira, assim, percebe-se que na realidade brasileira, a falta de gestão é fomentada pelas autoridades públicas.

 Destacou-se ainda que a tendência da medicina hodierna é a de se tornar sensível e humanizada com as dores e sofrimentos do paciente e que espera-se tal tendência comportamental dos entes públicos e que o Brasil está totalmente atrasado e em descompasso com as políticas públicas voltadas aos pacientes terminais pelo mundo.

 Ainda que seja considerado utópico diante da realidade social da saúde brasileira, é possível exigir que o Estado arque com o custo do alento da dor de seu jurisdicionado, e que fomente a sensibilidade na relação médico-paciente e na própria relação Estado-cidadão.

 Considerando que o direito à vida é, indiscutivelmente, considerado uma garantia fundamental a ser tutelada e fomentada pelo Estado, o direito de morrer com o devido zelo dos entes públicos, também é uma garantia fundamental e que, assim como o direito à vida e outras garantias fundamentais não devem ser suprimidas, o direito de morrer com dignidade também não deve ser jamais aviltado pelo Estado.

 É pertinente concluir que à fiscalização da sociedade e dos Ministérios Públicos no combate à corrupção evita que o direito à saúde seja suprimido e que várias pessoas morram nas filas de hospitais, assim urge a necessidade de uma fiscalização plena por parte da sociedade e por parte dos demais órgãos jurisdicionados.

 Discorreu-se ainda que a invocação do princípio da reserva do possível por parte das autoridades públicas não deve servir de amparo para o fomento à ineficiência e que tal princípio não deve servir de escusa para prejudicar os que padecem em graves situações de vida e os menos afortunados e que a invocação de tal princípio pela Administração Pública deve ser utilizada de forma concreta e comprovada e não apenas como mera alegação genérica e que no caso concreto deve haver a ponderação e sopesamento para garantir a efetividade das garantias sociais.

 Discutiu-se e comparou-se sobre o modelo de repasse de verbas para o custeio da saúde de outros países em detrimento da realidade brasileira com o escopo de propor soluções em longo prazo para o grande problema do custeio do acesso à saúde no Brasil.

 Neste ínterim, sustentou-se que o Poder Judiciário jamais poderá substituir o legislador positivo, entretanto, o fenômeno da judicialização da saúde ainda é pertinente para garantir a eficácia do acesso aos direitos sociais e tal fenômeno só deve ser arrefecido quando os Poderes Legislativo e Executivo começarem a serem mais céleres e eficientes na prestação de serviços públicos, portanto, a judicialização da saúde é um meio temporário de garantir a eficácia do acesso aos direitos sociais, sob pena de que a literalidade da lei não condiga com a realidade e se torne mero devaneio do legislador constitucional.

 Constatou-se que o Sistema Único de Saúde, apesar de ter trazido significativa melhora em face do amparo à saúde da população, mormente quanto à legislação de princípios e balizas norteadoras para o funcionamento da mesma, ainda incorre em graves erros e deficiência e que necessita ser revisto quanto a sua aplicabilidade e eficácia.

 Ressaltou-se ainda que a saúde pública brasileira está em total descompasso e desarmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, com a Organização Mundial da Saúde e com os demais documentos internacionais e que deve haver uma união de forças entre os setores da sociedade civil e as autoridades públicas para que se planeje políticas públicas capaz de mudar esta realidade.

 Revelou-se que, os prognósticos para a mudança deste quadro social não são animadoras e que às discussões acerca das obrigações de fazer do Estado estão longe de se tornar unanimidade e, face ao que fora exposto, quiçá daqui há algumas décadas os pacientes terminais tenham o seu direito de morrer de forma digna respeitado.

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Nota:
[1] Monografia apresentada ao curso de Direito da Faculdade Farias Brito como critério parcial para a obtenção do grau no curso de bacharel em Direito. Orientador: Professor Ms. Fernando Negreiros


Informações Sobre o Autor

Álvaro Felipe Câmara da Silva Fernandes

Advogado


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