Resumo: O presente artigo tem o escopo de estabelecer considerações acerca dos conflitos armados decorrentes das disputas por água, especialmente no que tange aos recentes disputas bélicas envolvendo palestinos, árabes e israelenses na Bacia do Rio Jordão, através da relação entre Direito Internacional e a Antropologia Estrutural, os quais delimitam os elementos estruturais jurídico-filosóficos e normativos do referido conflito.
Palavras-chave – Estruturalismo, Água, Guerra Árabe-Israelense, Doutrina da Guerra Justa.
Abstract: The present article intents to establish some considerations about wars arising from disputes over water, especially in regard to the recent armed conflict involving Palestinians, Arabs and Israelis in the Jordan River Basin, through the relationship between International Law and Structural Anthroplogy, which create the limits of legal and structural elements of that conflict.
Keywords – Structuralism, Water, Arab-Israeli War, Just War Doctrine.
Sumário: 1. Considerações prévias. 2. Aspecto geopolítico da água. 3. A contribuição do estruturalismo. 4. Os elementos estruturantes. 5. Contexto da guerra hídrica no oriente médio. 5.1 Bacia do Rio Jordão. 5.2 Visão das partes envolvidas. 6. Ampliação da visão sobre as guerras hídricas. 7. Papel da onu em face das guerras hídricas. 8. Conclusão. Referências.
1. CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS
O presente artigo se propõe estudar a estrutura jus-filosófica e normativa do conflito árabe-israelense no âmbito do Direito Internacional e seu intrínseco respaldo legal na Carta da Organização das Nações Unidas – ONU e na Declaração Universal dos Direitos do Homem – DUDH. Esta questão envolve a real sobrevivência de um povo, o qual em passado próximo estava fadado ao extermínio étnico completo durante a Segunda Guerra Mundial, em episódio conhecido como Holocausto Judeu, perpetrado pela Alemanha Nazista. A sua luta se dá em um espaço geográfico ocupado historicamente, após a diáspora judaica, por povos adeptos à religião muçulmana, perpassando, portanto, pelo direito à vida do povo judeu que por muito tempo foi apátrida e que sempre reivindicou seu território no mundo. Este cenário se relaciona com a Geopolítica das Águas no Oriente Médio e concentra profundas necessidades em relação o povo de Israel, na medida em que a complexa situação tem raízes não tão evidentes do que o choque étnico-religioso entre judeus, árabes e palestinos muçulmanos.
Contextualizando o objeto de estudo, o conflito árabe-israelense por água faz parte de um novo paradigma violento que possui repercussão tanto no âmbito nacional, quanto na seara internacional e que, quando visto de modo mais amplo percebe-se que há potencial para afetar no presente ou em futuro próximo diversas regiões do globo. No referido trabalho este paradigma violento chamar-se-á de “Guerras Hídricas” ou “Hidroguerras”, sendo estas uma espécie inserida no gênero “Ecoguerras”, as quais podem ser definidas como sendo os conflitos armados decorrentes da insuficiência de recursos naturais em atender as necessidades vitais do homem.
Em termos mais precisos, as guerras hídricas ou hidroguerras são ou serão motivadas, sobejamente, pela escassez de água potável em regiões onde há um grande número de pessoas dependentes de um limitado manancial aqüífero, sendo a disputa por este recurso natural foco de constantes tensões entre os indivíduos. A água nestes locais não supre sequer a sede do contingente populacional, quanto mais o uso na agricultura ou nas atividades pastoris. Assim, justifica-se a escolha do estudo do conflito árabe-israelense por água pelo fato de ser região onde tal recurso natural sempre foi escasso e o convívio pacífico tênue de grandes aglomerações populacionais dependerem do suprimento adequado de água, além do espaço geográfico onde se dá as disputas por água ser berço do Cristianismo, Judaísmo e Islamismo.
2. ASPECTO GEOPOLÍTICO DA ÁGUA
É preciso neste momento realizar uma diferenciação importante. A proposta do trabalho está centrada na questão da água potável, sendo esta, portanto, a água doce e limpa, encontrada em rios e lagos espalhados pelo planeta, além de outras quantidades significativas represadas no gelo das calotas polares e no topo de cadeias de montanhas. Isto se deve ao fato de que apesar de grande parte da composição do planeta Terra ser formada de água, um expressivo percentual está presente em mares e oceanos na forma salgada que é imprópria para o consumo humano imediato. Afinal só se pode utilizar em larga escala a água dos mares após o processo de dessalinização[1], com vistas ao atendimento das necessidades da população. Somente a água doce e limpa é passível de ser consumida diretamente pelos seres humanos e pela maior parte da fauna e flora planetária, que corresponde a componentes importantes da cadeia alimentar.
A água está presente como elemento essencial em todas as cadeias alimentares, inclusive naquelas que tem o ser humano com um de seus participantes. Dessa maneira, os alimentos consumidos pela sociedade contemporânea, sejam de origem animal ou vegetal dependem de água doce para se desenvolverem e passarem a compor, efetivamente, a extensa cadeia de alimentação. É uma questão natural que acompanha a Humanidade em toda a sua existência. As atividades agropastoris desde a diminuta escala de subsistência até os extensivos padrões de agronegócio dependem do fornecimento de água constante para prosperarem e atingirem a finalidade para a qual foi organizado todo o estabelecimento empresarial. Ou seja, somente é possível o exercício da empresa voltada ao fornecimento de alimento ao Homem, se houver fonte de água doce.
As diversas cadeias alimentares formam uma teia dependente do ciclo hidrológico da água no planeta. Inicia-se com a evapotranspiração da água, presente em mares, oceanos, rios e lagos, bem como das florestas e demais seres vivos. O vapor ao chegar a camadas altas da atmosfera esfria, formando as nuvens, as quais atingindo nível de saturação hídrica máxima se precipitam em forma de água líquida, chuva. Parte desta cai em terra e será absorvida pelo solo, compondo reservatórios subterrâneos e outros mais superficiais que darão origem a rios que formarão lagos, ou correrão para os oceanos, reiniciando o ciclo. Daí a importância da flora planetária, especialmente das florestas neste ciclo, na medida em que elas contribuem para o ciclo da água e protegem as nascentes dos rios.
O solo também é importante para a formação de reservatórios aqüíferos, pois por ser permeável permite a formação de reservatórios subterrâneos de água. Contudo, a impermeabilização dos solos decorrente do avanço do padrão humano de vida também é fator agravante para a escassez de recursos hídricos em terra, na medida em que não há infiltração das águas das chuvas, a tendência deste volume de água é escorrer para rios e lagos, e posteriormente, aos mares e oceanos, tornando a água imprópria para consumo, e também contribui para a redução do acesso à água, principalmente no meio urbano, na proporção em que as populações ficam reféns do fornecimento de água pelas redes subterrâneas de água encanada, eis que os recursos hídricos estão cada vez mais canalizados devido o fato do ambiente urbano exigir a maximização do espaço das cidades, que concentram grande parte da população do planeta.
A água é elemento primordial para a existência e manutenção da vida. Não existe ser humano que consiga viver sem algum tipo de suprimento de água potável. Devido a este fato, as antigas civilizações desenvolveram-se às margens dos rios, mesmo aquelas que possuíam acesso ao mar. Assim, a água doce é bem indispensável para a sobrevivência de todo e qualquer ser vivo. Todavia, em se tratando de utilização da água para a manutenção da vida, a Geografia Política por desenhar as fronteiras políticas dos Estados, tem sido favorável a uns em detrimento de outros e, consequentemente, os territórios estatais se encontram consolidados em grande parte do planeta, estes podem variar aspectos internos dos Estados, mas dificilmente, ampliação ou redução de fronteiras interestatais serão alteradas sem grandes crises. Assim, João Eduardo Alves Pereira entende que a Geografia Política está unida ao Direito Internacional através do “Estado nação, essa criação européia ocidental da Era Moderna, que exerce poder soberano sobre extensões do espaço terrestre, isto é, sobre territórios delimitados por fronteiras fixas.”[2]
Diz-se que a Geografia Política traçou os limites territoriais dos Estados, pois, no passado, as coletividades ao povoarem a paisagem terrestre possuíam hábitos nômades. Quando a fixação humana se deu com o advento do domínio das técnicas da agricultura e a criação de animais domésticos, os limites de ação iniciaram seu processo de consolidação do âmbito privado, e, posteriormente para dimensões maiores, formando as cidades. Então deste modo, os contornos dos Estados expressam a evolução decorrente daquele conjunto de territórios privados. Contudo, neste processo houve não só apropriação da terra, mas também dos recursos naturais contidos naquele espaço, inclusive no tocante a água. Em outras palavras, há características antropológicas nítidas neste processo evolutivo de fixação do Homem a determinado espaço geográfico.
A sobrevivência dos seres humanos depende da alimentação através dos frutos da terra, da proteína animal e, sobretudo, da água. Porém, desde as mais remotas sociedades humanas, a volume de água potável é o mesmo, ou seja, as nascentes de água que formam os mananciais hídricos não aumentaram em termos quantitativos desde os tempos imemoriais, mas, o contingente populacional que habita o planeta atingiu elevado índice de crescimento e, ainda, tem perspectivas de elevação acentuada. O crescimento demográfico não é um processo tão recente, porém, a velocidade deste crescimento é que tem sido o grande fator de preocupação dos governos. O aprimoramento da medicina e o domínio de técnicas agropecuárias que aumentaram a produtividade e expandiu a quantidade de seres humanos viventes em praticamente todas as partes do planeta, fato que foi incrementado, ainda, pelo processo de urbanização das concentrações humanas.
Assim, outrora a água era abundante a ponto de ser considerado um recurso infinito pelas gerações passadas, atualmente, a disputa por água se tornou uma necessidade de sobrevivência, e, os núcleos populacionais têm entrado em atrito, devido a suas ações objetivarem o controle dos escassos recursos hídricos, ameaçados, inclusive pela nociva prática humana de poluir os mananciais aqüíferos.
A mudança no modo de vida da sociedade mundial agregado ao incremento do contingente populacional tem pressionado os recursos naturais de forma significativa, na medida em que mais alimentos de origem vegetal ou animal devem ser produzidos em maior escala; os produtos consumidos nos grandes centros muitas vezes têm suas cadeias produtivas originadas em elementos naturais, e a prática da reciclagem ainda não é uma realidade plena em diversos países; os dejetos domésticos e industriais ainda são problemas constantes para os governos dos países. Enfim, são alguns exemplos de como os hábitos da sociedade atual impacta no meio ambiente do planeta.
Diante dos níveis atuais de integração econômica/globalização, a sociedade de consumo e os efeitos deletérios relacionados ao meio ambiente é possível traçar uma linha paralela conceitual com as palavras homicídio e genocídio. O Dicionário Aurélio Eletrônico indica que Homicídio é “a morte de uma pessoa praticada por outrem”[3]; Genocídio é conceituado como “crime contra a humanidade, que consiste em, com o intuito de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”[4]. Assim, pode-se inferir que as práticas humanas face ao meio ambiente estão provocando um “Ecocídio”, o qual pode ser conceituado como ato humano deliberado de extermínio sistemático de flora e fauna terrestres e aquáticas, bem como do esgotamento de mananciais aqüíferos através da contaminação pelo uso indiscriminado de agentes poluentes e ainda, através do desperdício.
O que antes possuía ares de disputas individuais restritas a uma coletividade pequena e desorganizada, no contexto atual, no qual Estados são sujeitos de direitos e, portanto, pessoas jurídicas de direito público internacional, os contornos dos embates tomam proporções maiores, chegando a patamar de conflitos armados entre Estados, com a utilização de forças armadas regulares. De outro lado, é antigo o fato da guerra como fenômeno social ser objeto de estudo por parte do Direito, tendo inclusive de acordo com a evolução do estudo da guerra, o fato de que esta e suas práticas são precursoras do que, no futuro, viria a dar sustentação teórica do Direito Internacional. Tal fato se deu com a elaboração da Doutrina da Guerra Justa, a qual forneceu alicerces concretos para o Direito Internacional, como afirma Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo.[5] Não se intenciona neste trabalho afirmar que a Doutrina da Guerra Justa, a qual teve como grande ícone Hugo Grotius, explica o atual conflito árabe-israelense, contudo, os ensinamentos desta doutrina servem de premissas para compreender o estágio atual dos embates armados.
Diante desta questão sobre a disputa da água e a Doutrina da Guerra Justa, há que se destacar o contexto do Oriente Médio. O conflito árabe-israelense na Bacia do Rio Jordão é formado de partes bem distintas que contribuem para a formação da totalidade da situação em questão. Eis que naquela região há um conflito que afeta a Ordem Internacional, tendo em vista que a luta pela água não é o único motivo deflagrador das guerras árabe-israelenses, mas é um dos fatores desta lide histórica, que, inclusive, não ganha tanto enfoque da Academia.
Sendo assim, o objeto de análise proposto tem uma parte jurídico-filosófica e normativa de um lado, correspondente à Doutrina da Guerra Justa, a Carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de outro lado a parte geopolítica relacionada aos Estados e povos envolvidos em relação à questão da água, a qual ajuda na visualização deste fenômeno humano violento sob a ótica das partes, sobretudo, daquela “recém” chegada na região, o Estado de Israel, em 1948. Assim, as partes formam uma estrutura que merece ser analisada partindo da análise do processo de inserção do território israelense e como ele buscou a manutenção do bem estar dos seus cidadãos através do acesso aos recursos hídricos da Região do Rio Jordão. Esta guerra possui estrutura jus-filosófica que merece ser estudada pelo Direito Internacional, a fim de ser possível traçar parâmetros de controle de legalidade por parte dos organismos internacionais, mais precisamente, da Organização das Nações Unidas – ONU, afinal esta entidade de Direito Internacional foi fundada na esteira conseqüencial dos horrores da Segunda Guerra Mundial e tem com propósito a manutenção da paz e estabelece a guerra como exceção à solução dos conflitos, desde que sejam preenchidas certas condições específicas.
A estrutura do conflito árabe-israelense por água fornece uma das motivações de um choque armado, afastada de parcialidades. Em outros termos, estudar a guerra em si, mas sobejamente, dentro do contexto geopolítico da escassez de água é procurar encontrar a estrutura jurídico-filosófica que fornece legitimação para a eclosão da guerra na contemporaneidade, com base em questões objetivas, ou seja, fazendo, portanto, uma apreciação que vai além do debate relativo ao conflito religioso.
O conflito árabe-israelense não foge à regra. Atrás das motivações étnico-religiosas há uma complexa estrutura que ocasionou os embates anteriores e continua mantendo o atual estado de tensão. Não se quer aqui uma mera observação superficial indicar qual lado está certo ou errado, mas sim, efetivar apenas a constatação de existência de um fenômeno humano violento que possui suas motivações tanto superficiais como profundas, formando uma estrutura construtora do macro, da guerra entre árabes, palestinos e judeus. A esta estrutura a observação do Direito deve voltar sua atenção para permitir uma análise jurídica deste fenômeno, como modo de compreensão racional de um evento irracional, o qual tem um viés jurídico importante, isto é, a estrutura da guerra árabe-israelense tem fundamentação jurídica e filosófica para a sua legitimação de conflito armado pelo controle de fontes de água potável.
A análise da estrutura do conflito árabe-israelense perpassa por fatores geopolíticos, os quais não podem ser esquecidos sob o risco da referida análise se tornar incompleta em sua essência. A Geopolítica por ser um campo multidisciplinar do conhecimento humano, englobando a Teoria Política e a Geografia, principalmente, auxilia a Ciência do Direito, principalmente o ramo específico como é o Direito Internacional Público, em entender o objeto que se pretende estudar. Em outras palavras, não basta pesquisar a estrutura jurídico-filosófica legitimadora do conflito armado árabe-israelense, mas também os efeitos de tal conflito na região onde ele se encontra, no caso a Bacia do Rio Jordão, cujo manancial é o responsável pelo o abastecimento de água potável aos povos da região.
Desse modo, o objeto de estudo sobre o qual se pretende debruçar uma análise crítica se inicia pela consideração de que o conflito árabe-israelense sob o ponto de vista israelense da Bacia do Rio Jordão tem partes bem distintas; uma jurídico-filosófica e normativa e outra geopolítica, as quais formam a estrutura do cenário complexo e violento evidenciado na contemporaneidade e motivo de preocupação da comunidade internacional, pois as partes estruturais observadas não são exclusivas do referido conflito, mas pode ser visualizado em outras regiões do planeta onde há escassez de água e enorme população necessitada deste recurso natural.
3. A CONTRIBUIÇÃO DO ESTRUTURALISMO
O método de pesquisa científica a ser utilizado neste trabalho consiste em estabelecer as partes distintas formadoras da estrutura do objeto de estudo, no caso a visão do conflito árabe-israelense sob a ótica dos recursos hídricos. Assim, o marco teórico do referido método encontra respaldo em Claude Lévi-Strauss, que lançou as bases metodológicas do Estruturalismo.
Originariamente, o Estruturalismo foi aplicado na Antropologia, ciência que busca estudar o Homem e a Humanidade em todas as suas dimensões. Tradicionalmente, a Antropologia se divide em Antropologia Cultural e Antropologia Biológica[6]. Foi em relação a primeira que Claude Lévi-Strauss deu sua mais expressiva contribuição ao elaborar um método de pesquisa que analisa as partes do objeto de estudo para facilitar a compreensão da totalidade deste. Para o autor, havia elementos universais na essência do ser humano compreendidos como partes permanentes, as quais não sofreriam influência do tempo e do espaço, e poderiam ser encontradas em todo o modo de pensar dos seres humanos[7].
Em sua obra clássica denominada de Antropologia Estrutural[8], Claude Lévi-Strauss entendeu que independente do tempo e espaço, uma coletividade humana primitiva terá como elementos essenciais, portanto, partes da estrutura do existir humano, a linguagem e o parentesco, a organização social, a magia e religião e a arte. Assim todas estas partes formariam o feixe total da existência humana, sendo que cada uma das referidas partes também possuem sua própria estrutura interna, ou seja, ganham ramificações específicas à medida que se detém atenções para cada uma das partes componentes da estrutura social. O estudioso se depara com características próprias em cada um dos componentes estruturais, na medida em que pode-se analisar diferentes sociedades primitivas que existem na contemporaneidade.
Ao transplantar este método de pesquisa para o Direito, especificamente para o objeto de análise do presente trabalho, é possível entender que a guerra hídrica se refere ao gênero, no qual o conflito árabe-israelense é espécie. Tanto um como outro possuem estruturas que podem ser estudadas, todavia no presente texto ao se analisar a espécie, automaticamente se mencionará a estrutura do gênero. Com isso temos que as Guerras Hídricas ou “Hidroguerras” tem como elementos: a) a escassez de recursos naturais, principalmente água; b) grandes contingentes populacionais e c) espaço territorial reduzido.
Em relação ao conflito árabe-israelense na região da Bacia Hidrográfica do Rio Jordão é possível identificar partes distintas e complexas que formarão a totalidade do evento, através do método estruturalista que sustentará a análise por partes do objeto de estudo do presente trabalho, proporcionando uma visão compartimentada dos principais elementos formadores do conflito em questão que são: a) a Doutrina da Guerra Justa de Hugo Grotius; b) a Carta da Organização das Nações Unidas; c) a Declaração Universal dos Direitos do Homem e d) a Geopolítica das Águas.
Desse modo, busca-se a visão dos elementos como partes de um sistema, de uma estrutura, sem desconsiderar que tal estrutura está inserida em uma realidade que a todo tempo gera perturbações, reconhecendo, portanto, a complexidade crescente que é própria das sociedades pós-modernas.
4. OS ELEMENTOS ESTRUTURANTES
O ponto de partida normativo não pode ser outro que não a Carta da Organização das Nações Unidas. Quando tal documento internacional é posto como baliza, não se está tratando somente ao Capítulo VII (Ação Relativa a Ameaças à Paz, Rupturas da Paz e Atos de Agressão). A perspectiva abrange a Declaração Universal dos Direitos do Homem, também. Desta forma, a Carta da ONU prevê apenas a possibilidade de conflito bélico em situação de legítima defesa ou intervenção humanitária após aprovação do Conselho de Segurança da ONU (arts. 45, 46 e 51).
Pela leitura do referido documento internacional, tanto a solução pacífica de controvérsias, quanto às ações relativas a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão devem ser levadas a cabo pelo Conselho de Segurança da ONU, órgão historicamente constituído em ambiente pós-guerra. Desse modo, há um direito de ação armada diferenciado e explícito às cinco grandes potências (Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China) que legitima suas ações protetivas em outros Estados, inclusive no que se refere ao emprego de força militar.
Em paralelo à proteção do Conselho de Segurança para a hipótese de ataque armado contra membro das Nações Unidas, é assegurado a qualquer Estado o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva. Isto ficou patente em todos os quatro grandes conflitos envolvendo o Estado de Israel e países árabes, ocorridos nos anos de 1948, 1956, 1967, 1973. Em todos, Israel afirmou sua legitimação em se proteger de qualquer agressão armada perpetrada por Egito, Síria, Jordânia, Líbano, Arábia Saudita, Iraque e Iêmen, sendo estes três últimos por enviar contingentes militares para reforçar as forças agressoras. Afinal, nestes quatro principais embates ou tais países realizaram ataques deliberados ou havia a iminência de um ataque dos países árabes em função do forte deslocamento de tropas para as fronteiras. Dessa maneira, as guerras perpetradas por Israel estavam totalmente dentro da legalidade e os territórios ocupados foram conseqüências dos combates, sendo que um deles possui um grande valor estratégico para Israel, no que tange à geopolítica das águas: a Região da Bacia do Rio Jordão.
Levando estes acontecimentos para a doutrina de Direito Internacional, depara-se com importante marco teórico assentado na Doutrina da Guerra Justa. As ações drásticas em caso de situações extremas na seara internacional são sinônimas de guerras, conflito armado entre povos e, desta forma, sempre haverá um caráter axiológico a ser analisado. A primeira ideia a se pensar desta análise valorativa reside em atribuir justiça ou injustiça à guerra, ou seja, adjetiva-se a guerra em justa ou injusta sob certos parâmetros. Esta adjetivação do conceito jurídico guerra não é recente. Durante séculos a guerra foi fonte de estudos e o desenvolvimento e a evolução daqueles permitiram a existência de uma Doutrina da Guerra Justa, a qual se confunde com o próprio nascimento do Direito Internacional, representada em ponto culminante pela a obra “O Direito da Guerra e da Paz”, de Hugo Grotius.
A Doutrina da Guerra Justa é uma doutrina fortemente baseada na filosofia cristã que contribuiu, em grande parte, para a formação do que hoje conhecemos como Direito Internacional. Hugo Grotius é o ponto mais alto de uma tradição proveniente da Escolástica, passando por Roma e, em tempos medievos perpassou por Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Alberico Gentilli, Francisco Suárez, Francisco de Vitoria, culminando com Hugo Grotius. Realizando um contraponto entre a Carta das Nações Unidas e a Doutrina da Guerra Justa percebe-se, claramente, que são consideradas como justas as ações militares perpetradas em legítima defesa ou às que são praticadas após deliberação do Conselho de Segurança. Todavia, a dinâmica dos acontecimentos globais está proporcionando a emersão de situações-limites não previstas naquele texto legal internacional, as quais merecem ser seriamente consideradas.
Atribuir qualificação à guerra requer um procedimento lógico pautado sob o primado da justiça. Portanto, sob paradigmas morais, a priori, e legais, a posteriori, a guerra será considera justa ou injusta. Ademais, se tem a certeza de que toda guerra será julgada em duas vertentes: a) em relação às motivações e, b) os meios pelos quais a guerra é praticada. Os estudiosos supracitados convergem no que se refere a denominação das vertentes em jus ad bellum e jus in bello. O primeiro corresponde na justiça da ação bélica e o segundo está relacionado à justiça no modo de se praticar a ação bélica. Dessa maneira, a Legítima Defesa se inclui no jus ad bellum, logo deverá ser considerada modalidade de exclusão de sanções possíveis de serem efetivadas pela ONU, através de seu Conselho de Segurança. Assim, intrinsecamente ligado ao jus ad bellum está a questão da legitimação para a prática de atos de agressão militar.
Melhor elucidando, considerando que as guerras praticadas pelo Estado de Israel foram em legítima defesa, a posse de Israel sob parte dos territórios invadidos não pode ser considerada ilegal, pois dela depende a existência de um povo inteiro que merece ser protegido pela Comunidade Internacional, sobretudo pela ONU. Está-se falando das Colinas de Golã, anteriormente território sírio, mas que atualmente está sob o controle de Israel. Tal território é o ponto fulcral de toda a geopolítica das águas, pois concentra as nascentes do Rio Jordão. Este manancial d’água é praticamente a única fonte aqüífera de todo o Estado de Israel. Assim, ao lado do advento da Legítima Defesa se pode encontrar a Flagrante Necessidade em âmbito internacional, o qual não tem respaldo legal na Carta das Nações Unidas, mas como está relacionada ao direito à vida, encontra guarida na Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo III), logo, por um raciocínio lógico, Israel estaria legitimado a usar de força para manter este território.
Grotius afirma que diante de premente necessidade, o homem pode servir das coisas como se fossem comuns. Ele exemplifica dizendo que “numa viagem por mar, se os alimentos vierem a faltar, cada indivíduo deve colocar à disposição de todos as comidas que possui. Num caso de incêndio se pode destruir o prédio de vizinho para proteger o de sua propriedade[9]”. Nota-se que todos estes exemplos demonstram situações drásticas. É o mesmo o que está ocorrendo com relação ao Rio Jordão, pois israelenses e palestinos dependem deste reservatório de água para sobreviverem, contudo, Israel detém seu controle de fato. Aparentemente é uma contradição, pois ambos os povos estariam legitimados para pleitear o acesso à água, consequentemente, a proteção à vida. Todavia, os palestinos não constituem nenhum Estado em sentido formal e, com isso, não tem como, tecnicamente, reivindicar tal direito, apesar de que o pleito dos direitos humanos se encontrarem em patamar mais destacado do que as formalidades jurídica. Por seu turno, Israel que é Estado, reconhecido pela Comunidade Internacional; pode gozar de respaldo legal e técnico da Carta da ONU, sendo que qualquer agressão armada contra Israel a legitima para usar a força. É uma questão extremamente delicada que não possui proteção específica na Carta da ONU, pois de um lado se encontra a proteção dos direitos humanos de ambos os povos e o tecnicismo e força das normativas internacional, imprescindíveis para se manter controle das ações dos Estados.
5. CONTEXTO DA GUERRA HÍDRICA NO ORIENTE MÉDIO
O atual estágio civilizatório mundial tem proporcionando uma miríade de situações dramáticas que ameaçam a existência do Homem, as quais têm colocado a Ciência do Direito em xeque, sobretudo no que se refere à proteção internacional dos Direitos Humanos. A escassez de recursos naturais, especialmente a água, devido as práticas deletérias do meio ambiente congregadas com a densidade demográfica em certas regiões do planeta ocasionaram o surgimento de conflitos armados graves, envolvendo milhões de seres humanos.
Assim, diante deste quadro é possível visualizar a seguinte questão: O contemporâneo conflito árabe-israelense por água possui estrutura jus-filosófica e normativa no âmbito do Direito Internacional?
Tal questionamento está inserido na esfera protetiva oferecida pelo ordenamento jurídico internacional relacionado à tutela dos direitos humanos fundamentais. Esta tutela internacional dos direitos humanos foi afirmada historicamente e, portanto, reconhecida universalmente.[10] Esta problemática emerge com grande impacto no Direito Internacional, pois as proteções jurídicas dos direitos humanos geralmente têm base na violação individual ou coletiva perpetrada por homens ou Estados por motivações diferentes da questão ambiental, ou seja, elas ocorrem fundadas, por exemplo em questões étnicas, religiosas, econômicas ou sociais. Todavia, como o meio ambiente é comum a todo e qualquer ser humano e dele depende a vida de cada um, o arcabouço normativo internacional não está devidamente paramentado para atender esta nova exigência.
Não é suficiente elaborar documentos que resguardem o meio ambiente. Para uma efetiva tutela do direito fundamental é indispensável a elaboração de normas que regulem o direito da guerra, mas especificamente no caso proposto, a forma como se deve se promover a solução pacífica dos conflitos quando a ameaça provém do embate armados motivado pela insuficiência de recursos hídricos. Institutos jurídicos como a Legítima Defesa não são suficientes para atender os novos contornos geopolíticos hidrológicos do mundo. Por outro lado, não parece razoável estabelecer a Flagrante Necessidade como legitimadora de iniciativas bélicas agressivas, apesar de ser um entendimento plausível, pois se estaria liberando, em termos jurídicos, um conceito jurídico extremamente aberto e que poderia ser deturpado de forma perigosa sob o rótulo de tentativa de manutenção da paz mundial. Por outro lado, taxar de ilegal a conquista de territórios decorrentes de guerra em legítima defesa e exigir sua devolução quando estes condicionam a vida de milhões de seres humanos também não é razoável, pois o fato já está consolidado e teve respaldo jurídico para tal. É o caso da região da Bacia Hídrica do Rio Jordão, onde a pretensão de certas correntes de pensamento solucionaria um problema, e ao mesmo tempo criaria outro, onde o direito à vida de uma ou outra coletividade estaria em confronto direto.
Mesmo se deparando com tamanho problema, é possível extrair elementos, partes que compõem o corpo, a estrutura do conflito armado árabe-israelense. Esta referida estrutura é primordial para entender os espaços em branco causados pela falta de normas específicas existentes no mosaico normativo internacional referente à proteção dos direitos humanos, as possíveis formas de solução pacífica dos conflitos em decorrência do papel da ONU e o uso legal da força, a base jurídica, filosófica e normativa do conflito armado por água envolvendo o Estado de Israel e a relativização da soberania estatal quando se trata de recursos hídricos. Todos estes pontos se inserem na discussão das guerras hídricas ou hidroguerras atuais e futuras, na medida em que a questão da falta de água devido às agressões ao meio ambiente se impõe de forma bem evidente.
Os conceitos de ecocídio ou ecoguerra que abrangem as guerras hídricas ou hidroguerras devem ser a tônica das futuras discussões globais lideradas pela ONU. São definições que sintetizam a temática multifacetada das regiões com grande população, espaço reduzido e insuficiência de recursos naturais que, fatalmente, provocam disputas sangrentas pela sobrevivência. O presente trabalho tem a intenção de lançar reflexões sobre estes novos acontecimentos, representados por estes novos conceitos na esfera do Direito Internacional, como forma de colaborar para a formulação de documentos internacionais que se adéqüem às recentes situações, a fim de melhor proteger os direitos fundamentais.
Vale lembrar que para os fins deste trabalho a presente conjuntura do conflito árabe-israelense é considerada uma guerra hídrica, contida no gênero ecoguerra. Este gênero possui também uma estrutura fixa independente de que região ocorra a eclosão do levante armado e as diferentes guerras hídricas possuem igualmente estrutura, variando certas peculiaridades de acordo com a localização geográfica no planeta, conforme demonstrado em passagem anterior, quando da sucinta apresentação do método de pesquisa estruturalista proposta.
O problema levantado está ligado diretamente aos hábitos contemporâneos da sociedade mundial face ao meio ambiente e passa por diversos fatores correlacionados. Um dos fatores se refere à matriz energética atual baseada em petróleo e gás, produto de poderosas corporações industriais que atuam em diversas partes do globo e ponto importante da agenda governamental dos países. Ao lado do carvão, o petróleo e o gás são as principais fontes de energia responsáveis pela emissão de gases causadores do efeito estufa constituindo cerne do aquecimento global. Isto se deve ao fato de que os países centrais ou não buscam alcançar a Segurança Energética, a qual está vinculada à Soberania Estatal em um contexto de relações internacionais baseadas no Realismo Moderno.
É inconcebível imaginar a economia mundial sem ser movida por algum tipo de fonte de energia. Do acendimento da lâmpada de um abajur até o funcionamento dos fornos metalúrgicos e siderúrgicos, passando pelos combustíveis usados nos meios de transportes e da atividade dos main frames como também são chamados os servidores de Internet, tudo depende de estar conectado a uma fonte energética “alimentadora” destes objetos. A Humanidade não vive mais sem alguma fonte de energia, ainda mais nos padrões atuais de urbanização e incremento das inovações tecnológicas. A questão energética é tema recorrente nas decisões governamentais, pois algumas das principais matrizes energéticas são bens públicos de um Estado soberano, além de constituírem setores estratégicos da economia, logo, de relevante cunho nacional. Sendo bens públicos, o Estado tem o direito de utilizá-los em prol do seu desenvolvimento social e econômico.[11]
Ademais, Marilda Rosado expõe:
“O direito dos povos à autodeterminação e a soberania permanente sobre seus recursos naturais é um dos fundamentos do novo Direito Internacional. O direito dos Estados de escolher seu sistema econômico livremente é a emanação mais direta e não controvertida do princípio de igualdade soberana dos Estados. […]
A gênese da doutrina da soberania permanente sobre os recursos naturais é encontrada nas discussões preliminares sobre os direitos humanos no início da década de 1950. Isso porque, como bem esclarece Bernard Taverne, foi somente após a Segunda Guerra Mundial que as operações de produção de petróleo em áreas offshore ultrapassaram os limites do mar territorial e da jurisdição do Estado costeiro. A partir deste momento, deixou de haver consenso internacional quanto à extensão do mar territorial e, em consequência, quanto à extensão da soberania do Estado costeiro, questões que tinham de ser resolvidas antes da indústria poder se dirigir com confiança em direção ao alto mar. O conceito de soberania permanente sobre os recursos naturais foi bastante questionado pelos países industrializados, até se conseguir um consenso básico, após o fundamento obtido das grandes decisões arbitrais envolvendo petróleo.
Na sua 13ª sessão, a ONU resolveu, entre outras medidas, criar uma comissão sobre o assunto, que convergiu, após intensos estudos, para a Declaração sobre a Soberania Permanente em Relação aos Recursos Naturais, que foi adotada na Assembléia Geral com a Resolução 1.803, de 14 de dezembro de 1962.”[12]
O vínculo entre a soberania e a segurança energética encontra raízes profundas na rota econômica que o Estado pretende adotar, devendo ser tomada pelos líderes nacionais de forma independente. Para isso é necessário que haja fartura de fornecimento de energia, ou seja, a geração de energia deve estar completamente sob o domínio direto ou indireto do Estado, livre de qualquer ingerência estrangeira, ou caso isto seja impossível, que o nível de ingerência seja reduzido. O país deve ser livre para desenvolver qualquer matriz energética, já que esta liberdade pressupõe a confirmação da soberania, elemento inerente a todo e qualquer Estado.
Com efeito, os recursos naturais energéticos são de propriedade do Estado, assim como as fontes de água doce. Energia e Água se conectam quando as matrizes de energia usadas pelo homem interferem de forma acentuada nos mananciais de água potável, quando através do aquecimento global modificam os locais das precipitações pluviométricas. O aquecimento global modifica os índices pluviométricos, para mais ou para menos, em todas as regiões do planeta. Rotineiramente são noticiados eventos naturais catastróficos em diversos países, contudo, um fenômeno que aumenta de forma silenciosa é o processo de desertificação de grandes áreas, outro fato que influencia na eclosão de guerras hídricas, pois aliada às alterações pluviométricas que podem provocar extensos períodos de estiagem, estão as práticas de devastação das florestas, com intuito de abrigar cultivos agrícolas e pecuários, os quais afetam os mananciais hídricos, comprometendo todo do ciclo da água[13]. Ademais, também atingem as fontes hídricas tanto o processo de impermeabilização do solo, principalmente nos grandes conglomerados urbanos, como a interferência humana sobre os cursos d’água, seja canalizando-os, seja deteriorando as suas faixas marginais ou mesmo poluindo com dejetos domésticos e/ou industriais. Tem-se ainda a falta de saneamento básico em vários países comprometendo a qualidade de água nas poucas fontes existentes, agravando ainda mais o problema da escassez dos recursos hídricos.
Dessa forma, a eclosão de guerras hídricas está vinculada a questões climáticas, práticas humanas poluidoras dos cursos d’água e desmatamento das florestas, principalmente, das matas que circundam as nascentes aquíferas. Tais fatores também devem ser levados em consideração quando da análise do conflito árabe-israelense na conformação geopolítica atual. Na medida em que se mantém como matéria essencial e se torna mais escassa, a água está se tornando um bem econômico tão importante quanto petróleo e gás, todavia, apesar de ser bem público dos Estados, a água não pode ser unilateralmente apropriada através da proteção jurídica de bem público. Em situações de crise a soberania de um país irá ser relativizada em prol do atendimento ao direito fundamental à vida de certas coletividades carentes de recursos hídricos, pois sopesando soberania e vida, é claramente perceptível a prevalência da tutela de um instituto jurídico vida sobre o outro, a fim de se tentar minimizar os conflitos armados por água, priorizando-se os ideais de dignidade da pessoa humana e a supremacia dos Direitos Humanos.
5.1 Bacia do Rio Jordão
A Bacia do Rio Jordão se estende pelos territórios do Líbano, Síria, Israel, Jordânia e Palestina, composta pela Cisjordânia (West Bank) e Faixa de Gaza, e compreende reservatórios de água superficiais e subterrâneos.[14]
Em relação as águas superficiais, o Rio Jordão inicia a sua formação a partir das nascentes de três pequenos córregos de água denominados de Hasbani, Dan e Banias, os quais correm a partir dos territórios do Líbano, Síria e de Israel. Estes córregos formam um pequeno reservatório chamado de Lago Hulah, o qual por questões geográficas origina um braço d’água que formará um outro lago, de maiores proporções, chamado de Tiberias, que no passado já foi conhecido como Mar da Galiléia ou Kinneret. A partir do Lago Tiberias é que o Rio Jordão ganha maior volume e flui em direção ao Mar Morto. O Rio Jordão constitui a fronteira natural e política entre Israel, Síria, Jordânia e banha toda a fronteira leste da Cisjordânia, a qual juntamente com a Faixa de Gaza, fazem parte da Palestina.[15]
Importante ressaltar que no território da Cisjordânia existem aproximadamente três milhões de palestinos e quinhentos mil colonos judeus, conforme dados do Palestinian Census Bureau of Statistics[16] e do Central Bureau of Statistics[17], de Israel. Judeu e palestinos estão disputando o mesmo espaço e a mesma água, sofrendo das mesmas agruras da escassez de recursos hídricos. Na região em questão, Israel detém controle de grande parte do território, assim, a conformação das concentrações populacionais não permite, de forma pacífica, levar água aos assentamentos judeus, sem passar por áreas povoadas por palestinos. Os grandes embates se dão na Cisjordânia, na medida em que tem grande densidade demográfica de ambas as etnias, as quais devem ser atendidas em suas necessidades de água, seja pela Autoridade Palestina, seja pelo Estado de Israel. Qualquer obra de infra-estrutura no sentido de levar água potável às pessoas, necessariamente terá de ter uma saída negociada e aceita por ambas as partes.
Em termos de reservatórios de água subterrâneos, tem-se o Aquífero Costeiro (Coastal Aquifer Bacin), os Aquíferos Oriental (Eastern Aquifer Basin) , Ocidental (Western Aquifer Bacin) e Setentrional (Northeastern Aquiver Bacin), os quais se espraiam pelos territórios de Israel e Cisjordânia, apenas. Uma observação sem critério pode levar a impressões errôneas no que se refere ao abastecimento das áreas povoadas por água potável, pois diante do contingente populacional localizado na região e considerando que as águas in natura do Aquífero Costeiro, localizado totalmente no Estado de Israel, e do Aquífero Oriental, localizado quase completamente na Cisjordânia, são impróprias para o uso humano devido o seu alto grau de salinidade, o primeiro pela proximidade com o Mar Mediterrâneo e o segundo pela influência do Mar Morto, só restam as águas superficiais e os Aquíferos Ocidental e Setentrional para abastecer Israel e ainda assim, as águas destes reservatórios precisam ser tratadas para retirada de outros minerais que estão diluídos, para, após este processo, poderem ser consumidas. Assim, diante destas dificuldades Israel realizou gigantesca obra de canalização, conhecida como Rede Nacional Transportadora de Água – Israeli National Water Carrier[18], que percorre todo o seu território, a partir do Lago Tiberias, o mesmo utilizado pela Jordânia para suprimento das demandas da população jordaniana.
O fato é que o Lago Tiberias está em território israelense, bem como as nascentes do Rio Jordão, restando aos palestinos a utilização de uma pequena parte do mencionado rio, pois quando mais ao sul, em direção ao Mar Morto, mais salgado estes reservatórios subterrâneos se tornam, dificultando o consumo pelo população palestina. Acrescentado a isto, os palestinos buscam contornar esta situação dramática através da perfuração de poços para buscar água no Aquífero Setentrional, situado no norte da Cisjordânia, iniciativa de relativo sucesso, mas que ainda não supre de modo satisfatório às necessidades palestinas. Para tentar dirimir esta problemática, a ONU propõe a construção de duas redes de abastecimento de água, por canais, partindo do Lago Tiberias, situado em território judeu, intituladas de West Ghor Main Canal, que atenderia parte da Cisjordânia, e East Ghor Main Canal, o qual se direcionaria para a Jordânia. Parte das autoridades palestinas refutam este plano argumentando que ainda continuam reféns de Israel em relação ao Lago Tiberias e o Rio Jordão.
5.2 Visão das Partes Envolvidas
Em 2001, Erika Weinthal, membro do Departamento de Ciência Política da Universidade de Tel Aviv – Israel, e Amer Marei, professor da Faculdade de Ciência e Tecnologida da Universidade Al Quds, Jerusalém Oriental/Cisjordânia, participaram de evento internacional realizado na Universidade de Dundee, Inglaterra, onde apresentaram importante trabalho, o qual evidencia os pontos de vista das partes envolvidas na disputa pelo controle da água na Bacia do Rio Jordão[19].
Afirmam que a posição de Israel está assentada em soluções técnicas e de gestão das águas do Rio Jordão. Para Israel, a água é instituição central na construção e manutenção do Estado Judeu, por ser elemento essencial à sobrevivência dos seus cidadãos, além de fazer parte da ideologia sionista e do nacionalismo israelense. Ademais, há um significativo receio de que caso o status quo seja alterado de modo abrupto, a falta de água poderá ser usada como arma geopolítica contra o próprio povo judeu, por parte dos países árabes vizinhos, deixando Israel em posição extremamente delicada frente ao atendimento das demandas populacionais e inclusive a sua existência como pessoa jurídica de direito público internacional. Além disso, as autoridades israelenses intencionam negociar a distribuição equitativa de água, contudo, nem sequer mencionam a perda de controle das nascentes do Rio Jordão. Desta forma, Israel deixa a cabo da Comunidade Internacional intermediar a solução deste conflito e está disposto a realizar negociações desde que os palestinos amenizem suas posições em relação a água e ao próprio Estado de Israel.
De outro lado, os palestinos insistem em visualizar o litígio sobre a água como um processo histórico de ocupação militar israelense. Weinthal e Marei[20] indicam que os Palestinos consideram completamente injusta e ilegal a ocupação nas nascentes do Rio Jordão nas Colinas de Golã, na Síria, a partir de 1967, com a Guerra dos Seis Dias, ignorando a inexistência de outra posição do Estado Judeu frente as ameaças dos vizinhos árabes naquela época. Os Palestinos consideram que Israel criou um status quo artificial sobre as águas da região através da força militar e que mesmo aceitando esta dominação, Israel não cumpriu com os compromissos assumidos em construir infra-estrutura de distribuição de água na Cisjordânia, território palestino e local de diversos assentamentos de colonos judeus. Os Palestinos reivindicam a devolução dos territórios ocupados, principalmente, no que tange as nascentes sírias, para depois aceitar a negociação com os israelenses. Inclusive ignoram o Tratado de Paz celebrado entre Israel e Jordânia, no qual foi estabelecido o uso comum das águas do Rio Jordão, estabelecendo um impasse tenso entre os envolvidos na questão das águas da Bacia Jordaniana.
6. AMPLIAÇÃO DA VISÃO SOBRE AS GUERRAS HÍDRICAS
O contemporâneo conflito árabe-israelense por água é exemplo emblemático dos possíveis atritos armados que estão acontecendo ou que podem vir a ocorrer em diversas regiões geográficas do mundo. Entender a estrutura deste conflito permite formular meios alternativos de disputas por água, seja na esfera nacional ou internacional, na medida em que o caso envolve risco sobre o direito à vida de milhões de pessoas e o dever estatal e supra-estatal de proteger este direito fundamental. A escolha do caso se deve pela drasticidade da problemática da água nos territórios judeu, sírio, jordaniano e palestino foco de conflitos armados, a sua respectiva estrutura e os modos como estão sendo dirimidos tais conflitos nesta parte do Oriente Médio. E no presente caso se refere à colisão de direitos fundamentais em sentido estrito, de acordo com Robert Alexy.[21]
Ademais, importante salientar que as guerras hídricas compõem modalidade da última parte da cadeia de acontecimentos e práticas humanas de destruição do meio ambiente. É uma guerra puramente ambiental e de abrangência internacional a qual coloca em risco à vida de povos inteiros, bem como afeta a viabilidade de toda a biodiversidade da região. O discurso de proteção ambiental e, por conseguinte dos direitos humanos fundamentais tem de estar coadunados para evitar este tipo de guerra, pois uma vez esgotados os recursos hídricos, não há direito que impeça um povo de buscar sua sobrevivência, independentemente dos meios empregados. Para isso, o uso daqueles que possuem tal riqueza deve ser totalmente responsável e eficiente, pois é humano ser solidário e desumano ser egoísta diante das catástrofes climáticas.
A problemática da água serve de alerta para países como o Brasil que gozam de imensos reservatórios de água potável e os utilizam de forma irresponsável, seja através da poluição dos mananciais hídricos, seja no tocante ao desmatamento de áreas importantes por guardarem nascentes e as margens de rios. O mundo vai buscar água onde ela estiver, primeiramente nas proximidades e depois em regiões mais distantes e o Brasil é e continuará sendo ponto de convergência destas atenções. Pode ocorrer em futuro próximo a disponibilidade de parte destas reservas para atendimento das demandas mundiais, relativizando-se a soberania das nações que detém controle sobre estas riquezas. Para evitar este fato, a responsabilidade no uso sustentável da água no Brasil deve estar entre os mais importantes tópicos da agenda governamental. Não se pode esperar a situação se instalar para depois tomar as providências. Agir agora é garantir a soberania estatal sobre estes recursos naturais no futuro. Afinal, considerada a água como um bem de extremo valor jurídico e econômico e zelar por este bem com eficiência é o mínimo que pode ser feito para refutar interesses de outras nações sobre os recursos hídricos brasileiros.
Na América do Sul existe importante reserva estratégica de água doce, denominada de Aqüífero Guarani. Este reservatório de água potável se estende pelas fronteiras do MERCOSUL, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Tal reservatório não deve ser considerado inesgotável, pelo contrário, depende da preservação do Pantanal Mato-grossense e da Amazônia para que sua capacidade de renovação seja mantida para atendimento das demandas destes países. Assim, o setor agropecuário do Centro-Oeste do Brasil deve ter consciência do seu papel na preservação desta importante fonte de vida.
Apesar de comportar algumas das principais bacias hidrográficas mundiais e de uma das maiores reservas de água doce subterrânea do planeta, os documentos instituidores do MERCOSUL pouco dispõem sobre uma política gerencial integrada entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai em relação à água. Tanto o Tratado de Assunção como o Protocolo de Ouro Preto não reservam sequer algumas linhas para dispor sobre a proteção ou conservação das águas doces superficiais e subterrâneas em comum, no caso o gigantesco Aquífero Guarani. Isto reflete o completo descaso em relação a elemento indispensável para todos os países envolvidos, talvez, fruto da fartura de água que possuem os países mercosulinos quando se refere a água, na medida em que rios caudalosos cortam os territórios dos países acima mencionados. Este recurso em abundância gera uma “cegueira” política e social, a qual prejudica o desenvolvimento de políticas de gerenciamento dos recursos hídricos comuns aos países do MERCOSUL.
O estudo da guerra por questões hídricas entre árabes e israelenses se justifica ainda pelo que esta luta representa na história da Humanidade, pois a Bacia do Rio Jordão é local sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos. Os profetas de cada uma dessas religiões pregaram ensinamentos e realizaram milagres espirituais nesta região. Há um componente religioso de cunho simbólico e extremamente inflamável a ser levado em consideração ao se realizar a análise estrutural da guerra. As bases religiosas do Cristianismo, Judaísmo e Islamismo se concentram na paz e na solidariedade. Nesta parte do Oriente Médio, paz e solidariedade podem e precisam ser o caminho de entendimento entre os povos acerca da questão da água, o qual pode se materializar em diplomas internacionais que tracem preceitos normativos de uso adequado e compartilhado dos mananciais d’água.
Além disso, a questão da água entre Israel, Síria, Palestina e Jordânia não está circunscrita a apenas estes povos. Há uma enorme influência, principalmente, dos Estados Unidos, mas também de outras nações na mediação deste conflito. A parcialidade do mediador estadunidense é visível para o lado do Estado de Israel, que em decorrência disto aparentemente pode ser visualizado como o “qüinquagésimo primeiro estado norteamericano”. Os laços que unem ambos os países sofreram enorme reforço após a Segunda Guerra Mundial e pela própria fundação do Estado Judeu, apoiada pelas potências ocidentais vencedoras da guerra e impulsionada pela descoberta do genocídio étnico nos campos de concentração nazistas. A União Europeia também expressa considerável apoio ao Estado de Israel por motivações de cunho mais religioso, pois, até o presente o momento, a maioria dos europeus são católicos/cristãos, as bases históricas e culturais desta religião têm origem no judaísmo e sofrem com a imigração acentuada de muçulmanos em suas fronteiras, causando um enorme choque cultural e religioso devido ao conservadorismo islâmico não condizente com as liberdades culturais europeias.
Outro aspecto factível das guerras hídricas está afeto ao processo migratório, no qual o conflito árabe-israelense se encontra também imerso nos tempos hodiernos. Quando a escassez de água atinge níveis críticos, a tendência dos seres humanos é buscarem sua sobrevivência. Esta busca é interrompida pelas fronteiras políticas dos Estados em decorrência dos aspectos burocráticos inerentes à entrada de qualquer estrangeiro em território nacional. Em face deste obstáculo, os possíveis migrantes procuram o ingresso em outros Estados de forma ilegal e/ou clandestino, já que é indubitável que cada um objetiva a sua auto-preservação. Este impedimento, muitas vezes violento, provoca revolta individual, a qual ganha proporções maiores quando milhares de pessoas são barradas em um cenário de migração forçada pela falta de água. Assim, todos os ingredientes de um choque sangrento estão estabelecidos. Um Estado tentando defender seus cidadãos e seus recursos naturais para si, contra uma massa de pessoas buscando assegurar o mínimo de condição de existência, ou seja, as vidas das pessoas de um lado ou de outro se encontram ameaçadas. Um está legitimado a se defender, o outro está também legitimado, ainda que de modo ilegal para a visão da soberania estatal, porém válida pelo aspecto moral, a lutar pela sua vida, sua sobrevivência.
Quando o processo de migração ocorre dentro das fronteiras nacionais de um dado Estado, a violência perpetrada nas grandes cidades devido ao processo de favelização por conta da ineficiência das municipalidades em concretizar um efetivo planejamento urbano é caso de segurança pública. Serviços públicos básicos de saúde, saneamento e educação são, sistematicamente, ignorados pelos governantes redundando em diversos conflitos que acabam recaindo na via judicial. Contudo, quando esta violência ocorre entre países, o choque de interesses se torna guerra, conflito armado, acarretando desnecessária mortandade populacional, sobejamente, quando envolve Estados esfacelados ou nações sem território definido, como é o caso de muitos países africanos e a Palestina, sujeito importante do presente estudo.
A questão da água no Oriente Médio ou em outra região do planeta tem suscitado preocupações de governos, organizações internacionais e organismos não-governamentais. Porém, não se tem um arcabouço jurídico internacional adequado que atenda aos desafios políticos e ecológicos acerca dos conflitos por água. Apesar de certos Estados terem iniciativas legislativas de proteção da água e do meio ambiente, a eficácia de tais normas encontra ferrenho obstáculo no poder econômico das grandes corporações empresarias dos diversos setores da economia, uma vez que em muitos casos estas corporações empresariais adotam práticas nocivas ao meio ambiente, as quais agregadas à corrupção de agentes estatais em alguns países, sequer sofrem punições por tais práticas, gerando um ciclo vicioso contributivo para o aumento da falta de água para a população.
Vandana Shiva[22] afirma que existem quatro teorias internacionais acerca da questão dos direitos sobre a água. Para ela, tais teorias fazem parte das regras internacionais sobre água conhecidas pela Comunidade Internacional e que de alguma forma tentam dar ordem no que se refere aos direitos relacionados à água. Tais teorias não passam de tentativas racionais de permitir que o consumo da água potável, encontrada em rios, lagos e lagoas seja racionalizado e planejado, objetivando promover o bem-estar daqueles que a usufruem.
“Existem quatro teorias sobre os direitos sobre a água – a teoria da soberania territorial, a teoria do curso d’água natural, teoria do parcelamento equitativo e a teoria da comunidade de interesses – tem guiado as práticas de distribuição de água em todo o mundo. A teoria da soberania territorial de 1896, também conhecida como Doutrina Harmon, prega que estados ribeirinhos tem exclusivo ou direito soberano sobre o curso d’água que flui por seu território. […] A teoria do curso d’água natural, também conhecida como teoria da integridade territorial indica que todos os proprietários ribeirinhos à jusante (abaixo) tem o direito de fluxo natural do rio, sem entraves por parte dos proprietários ribeirinhos à montante (acima). O proprietário ribeirinho à montante deve permitir que a água flua no seu curso natural para o proprietário ribeirinho à jusante. […] As teorias do utilização equitativa e da comunidade de interesses são quase correlatas. Utilização equitativa afirma que os rios internacionais poderão ser usados por diferentes Estados em bases equitativas.”[23]
Cada uma a sua época, estas teorias tentaram indicar um direcionamento da forma do exercício do direito sobre as águas, pois ao mesmo tempo em que os Estados consideram os rios ou mesmo parte de rios que passam por seus territórios como bens públicos devido a sua legislação interna, o uso da água tem de ser equilibrado a fim de não prejudicar os outros Estados que são dependentes deste mesmo curso d’água. O particularismo sobre certo bens são relativizados pelo fato do bem em questão, a água, ser necessária para a sobrevivência dos cidadãos dos Estados banhados por rios, os quais, em muitos casos, desconhecem fronteiras políticas, apenas seguem seu caminho natural, proporcionando vida a quem delas se utilizarem. O Direito Internacional é que deve se adequar às peculiaridades naturais dos cursos d’água, fundamentais para a sobrevivência dos seres humanos.
7. PAPEL DA ONU EM FACE DAS GUERRAS HÍDRICAS
Todos os seres humanos guardam em comum a forma de nascimento. Todos passaram pelo processo de gestação no ventre materno. As vidas humanas no planeta tiveram esta mesma origem natural. Isto coloca a totalidade dos seres humanos em patamar de igualdade e liberdade. As diferenciações entre eles ocorrem pós-nascimento em decorrência de fatores externos a sua natureza original. Fatores como família e sua estrutura, situação econômica e social, nacionalidade, etnia e religião irão de alguma forma influenciar o modo de vida deste ser humano. Contudo, o que mais influencia na vida de qualquer ser humano se situa no acesso à alimentação e água potável, sem estes a vida não tem condição de existir.
Dentre todos os direitos humanos afirmados e consolidados ao longo dos tempos, a vida é o principal deles. Este direito à vida, inerente a todo e qualquer ser humano, precisou ser sufragado em um documento escrito para que pudesse, posteriormente, ter respaldo universal e ser aceito pelo próprio homem. Historicamente, a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 foi o primeiro diploma escrito que reconheceu isto, quando afirmou na seção II que:
“Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direito inatos, dos quais, ao entrarem no estado de sociedade, ao podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e segurança.”[24]
Quase dois séculos depois, em 10 de dezembro de 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH foi proclamada pela Assembléia Geral. Baseada nos preceitos da Declaração de Direitos da Virgínia, em seu artigo 3º se encontra: “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”[25]. Nestes documentos fica clara a garantia de se assegurar a fruição da vida e a busca para obter a felicidade e segurança. Para o povo de Israel a busca pela felicidade e segurança residia na fundação de um Estado próprio, localizado na região de onde foram expulsos há séculos. Na atualidade, o direito à vida, à felicidade e à segurança reside na questão da água presente na Bacia do Rio Jordão, fato que não pode ser negado.
Países árabes tentaram por pelo menos quatro vezes retirar este direito e observando o presente contexto, é impraticável devolver um território que guarda as reservas de água que abastecem todo Estado de Israel. É certo que Israel e Jordânia assinaram tratado de paz, onde ambos usam os recursos naturais, mas mesmo assim, restou o povo palestino que também necessita desta mesma água para sobreviver e ficou de fora das tratativas entre os dois países. Todavia, devolver o território onde nasce o Rio Jordão é negar o acesso à água doce ao povo de Israel, uma vez que se sabe das inimizades entre Israel e a Síria, já que mesmo após as guerras, não há um tratado de paz assinado entre os dois países.
Por outro lado, deixar a situação como se apresenta é temerário. A Comunidade Internacional e todo o mosaico normativo internacional de proteção dos direitos humanos estariam abandonando o povo palestino à própria sorte. O compartilhamento das águas do Rio Jordão entre Israel, Jordânia e Palestina é o melhor caminho para se tentar minimizar a dramaticidade da escassez de água a estes povos. O acordo de cooperação pela água pode ser um caminho para paz assim como o acordo internacional que criou a Comunidade Econômica do Carvão e do Aço serviu para congregar Alemanha e França, anteriormente inimigas, em torno de um propósito comum de benefícios mútuos entre ambos.
A água doce do Rio Jordão representa a manutenção da vida dos povos judeu, jordaniano e palestino. A proteção desta importante bacia hidrográfica é de responsabilidade de todos os envolvidos, inclusive, com a assunção obrigatória do dever de não poluir este imprescindível curso d’água. Este compartilhamento ao mesmo tempo atende à proteção internacional dos direitos humanos, bem como as premissas do Direito Internacional Ambiental. De maneira mais sucinta, os diplomas legais internacionais que tutelam os direitos humanos guardam relação estreita com os princípios de Direito Internacional Ambiental. Na conjuntura das disputas por água na região do Rio Jordão, o conjunto dos princípios destes importantes ramos do direito internacional público está conectado e deverá ser seguido pelos sujeitos envolvidos.
O equilíbrio da região passa pelo uso sustentável dos recursos hídricos na Bacia do Rio Jordão por judeus, sírios, jordanianos e palestinos. Qualquer tentativa violenta e unilateral de retirar de Israel o controle das nascentes daquele curso d’água esbarra na legítima defesa do Estado, sufragado pela Carta da ONU. Este impasse técnico-legal que gira em torno da legítima defesa estatal e a proteção ao direito à vida só será suspenso quando o uso compartilhado, sob a fiscalização da ONU, ganhar corpo e for selado na forma de tratado multilateral e não apenas bilateral, como está concretizado, atualmente, entre e o Estado de Israel e o Estado da Jordânia.
Ademais, antes mesmo da DUDH, em 1945 foi assinada a Carta das Nações Unidas fundadora da ONU. Em seu dispositivo inicial tem-se bem evidente o propósito de manter a paz e a segurança internacionais através de medidas coletivas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz, utilizando meios pacíficos e em conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução de controvérsias ou situação que possam levar a uma perturbação da paz. Agregado a isto o mesmo dispositivo expressa que a ONU procurar conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
Desta forma, o conflito árabe-israelense por água se enquadra perfeitamente nas competências da ONU, no tocante ao propósito de manutenção da paz e a cooperação internacional humanitária. Como foi afirmado anteriormente, a água doce em sendo escassa é fator desencadeante de conflitos armados entre povos, pois é importante e imprescindível insumo para a vida humana em geral. A ONU tem de trabalhar em parceria com os envolvidos deste conflito na Bacia do Rio Jordão, a fim de estabelecer laços de amizade e cooperação quanto à utilização do uso dos recursos hídricos desta essencial bacia hidrográfica. Os interesses das partes e suas peculiaridades terão que ser levadas em consideração no momento da elaboração de um futuro acordo de cooperação e compartilhamento das águas.
Regem a Carta da ONU, no art. 2º, o princípio da igualdade soberana de todos os Estados, bem como o da solução pacífica dos conflitos e do não-uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado ou qualquer outra ação incompatível com os propósitos da ONU. Os ditames deste artigo prevêem o primado da não-agressão armada sob condições que não estejam previstas na Carta da ONU. Qualquer forma de agressão armada a Estados tem de possuir o respaldo do direito internacional e da própria Carta. Isto estabelece base doutrinária e legal do conflito armado, a qual deve ser respeitada pelos países componentes da Assembléia Geral da ONU, como forma de assegurar o mínimo de convivência pacífica no mundo com intensas situações turbulentas e disputas acirradas entre os Estados.
Apesar disto, não se pode esquecer que esta mesma Carta da ONU destaca capítulo inteiro a respeito do uso da força em caso de situações extremas. O referido capítulo está intitulado “Ação relativa a ameaças de paz, ruptura da paz e atos de agressão”. Em seus dizeres, o referido documento internacional estabelece que antes de qualquer intervenção armada, as partes conflitantes serão convidadas a estabelecerem diálogos com o intuito de aceitar as medidas provisórias ou recomendações da ONU acerca do conflito em questão. A ONU tem o papel de perseguir ao máximo a conciliação entre as partes, pois assim ficou estabelecido entre os seus propósitos. Este modo de solução pacífica das disputas entre os Estados ou entre coletividades populacionais é buscado com muita seriedade pelos agentes da ONU.
O uso da força é permitido para a ONU quando a tentativa de conciliação for frustrada e após as medidas de interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou de outra qualquer espécie, e o rompimento das relações diplomáticas não surtirem os efeitos desejados de manutenção ou restabelecimento da paz e a segurança internacional, de acordo com o art. 42 da Carta da ONU. Este uso da força deve estar autorizado pelo Conselho de Segurança da ONU, composto dos Estados Unidos, Reino Unido, Rússia, China e França, conforme o dispositivo supracitado.
Acrescentado a essas possibilidades de uso da força, é emblemática a proteção legal feita a qualquer Estado para emprego de suas forças armadas, presente no art. 51. Nenhum dispositivo da Carta do ONU prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, quando da ocorrência de ataque armado contra um membro das Nações Unidas. O Estado de Israel em todas as suas grandes guerras usou este direito legítimo de se defender, na medida em que até os dias atuais, países vizinhos a Israel não o reconhecem como Estado e ainda pretendem “riscá-lo do mapa” pela força. O resultado destes combates foi a ampliação do território judeu que não pode ser considerado ilegal, pois foi conquistado de forma legítima, dentro das normas internacionais, portanto, através de uma guerra justa.
Dentro destes territórios, parte primordial da bacia hidrográfica do Rio Jordão está sob questão e, é elemento-chave nas negociações de paz entre árabes e israelenses, uma vez que a água é o ponto unificador e, simultaneamente, desagregador de ambos os povos, os quais tendem a reivindicarem o seu controle, pois as vidas de judeus e palestinos estão dependendo do uso sustentável dos recursos hídricos presentes naquela região altamente populosa e carente de riquezas naturais que satisfaçam, minimamente, as necessidades básicas de sobrevivência dos envolvidos.
A proteção jurídica internacional da água potável é o estágio atual da evolução normativa relacionada à água. Em termos históricos, as águas fluviais tiveram preocupação da Ciência do Direito devido aos aspectos comercias e econômicos, na medida em que rios e lagos eram e são utilizados para transporte de mercadorias. Estas atividades comerciais originaram o Direito Internacional Fluvial, o qual visava regular, juridicamente, o uso dos volumes d’água continentais para a realização de trocas de mercadorias entre os países ou mesmo no interior de um mesmo Estado. Todavia, ao se tomar consciência da importância da utilização racional da água para abastecimento humano doméstico ou industrial, o foco das atenções passa da figura do rio ou do lago para o elemento comum destas formações naturais, a água em si, emergindo outro ramo específico denominado de Direito Internacional das Águas Doces que objetiva proteger as águas superficiais e subterrâneas existentes em um dado território.
João Alberto Alves Amorim identifica o período da mudança de paradigma em relação a água:
“A partir do final dos anos 70, a água doce passa a receber um tratamento jurídico voltado para a água doce em si e para a sua importância vital e ecossistêmica, em função principalmente das constatações estarrecedoras da situação da poluição e da degradação dos mananciais de fontes de água doce mundo afora, em especial na Europa, onde muitos dos seus rios históricos foram dados como mortos àquela época, como o Tâmisa, o Danúbio, o Reno e o Volga. Esta situação fez nascer, a partir do direito comunitário europeu, um verdadeiro direito internacional das águas, que, gradativamente, foi firmando não só uma estrutura jurídica, mas principalmente a consciência de que as reservas hidrológicas da humanidade, além de finitas, estavam em processo de extinção”[26]
Na esteira desta mudança de visão, a então Comunidade Européia elaborou a Carta Européia da Água, considerada o primeiro documento internacional público a se preocupar com a urgência de proteção das fontes de abastecimento de água, bem como traça os marcos principiológicos para as políticas dos países europeus relativas à proteção dos reservatórios de água. Este importante documento tem como premissa a primazia dos aspectos qualitativos e quantitativos das águas doces no território europeu, estabelece sanções aos eventuais agentes poluidores e, ainda, cria mecanismos e instrumentos econômicos que permitem o maior controle do uso racional da água presente nos rios europeus. A referida Carta vincula todos os países pertencentes a então Comunidade Européia e, submetia o ingresso de novos membros ao bloco econômico a aceitação dos ditames normativos da tutela da água doce em âmbito europeu.
O direito de acesso a água potável foi positivado na Declaração Universal dos Direitos sobre a Água, no caminho aberto pela Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, a qual ficou conhecida como ECO-92. Este documento internacional expõe, dentre outros preceitos, que a água faz parte do patrimônio do planeta e cada ser humano é responsável pelo zelo deste bem de todos. Desta maneira, considera a água como condição essencial para a vida de qualquer ser vivo, logo, o direito à água é um dos direitos fundamentais do Homem, por estar relacionada à vida dos seres vivos, especialmente da raça humana. Reconhece que os recursos hídricos são escassos, finitos e frágeis às práticas humanas, devendo ser utilizados com racionalidade, precaução e parcimônia. Indica ainda, que a água não é uma doação gratuita da natureza, pois ela tem um valor econômico e em muitos casos a sua obtenção é altamente dispendiosa, por conseguinte, o planejamento da gestão da água deve levar em conta a solidariedade e o consenso em razão de sua distribuição desigual sobre a Terra.
Durante a ECO-92 foi elaborado outro importante documento de abrangência mundial, denominada Agenda 21. Nesta agenda a questão do abastecimento de água aos seres humanos ganhou importante espaço no texto final, ao se reservar capítulo próprio sob o título de “Proteção da Qualidade e Suprimento dos Recursos Hídricos”, o qual traz as bases para a aplicação das iniciativas integradas de desenvolvimento, gestão e uso dos recursos hídricos.
Os dizeres desta parte da Agenda 21 reforçam o entendimento de que os recursos hídricos são componentes essenciais da hidrosfera terrestre e parte indispensável dos ecossistemas terrestres e, a água é caracterizada pelo ciclo hidrológico que inclui as cheias e as secas dos volumes d’água presentes no planeta. A periodicidade e os efeitos destas cheias e secas tem sido alteradas pelo aquecimento global devido à poluição atmosférica. Ademais, reafirma o fato de que a água é necessária em todos os aspectos da vida terrena e, os objetivos deste acordo internacional é assegurar o suprimento adequado de água potável a toda população do planeta, através da preservação das funções hidrológicas, biológicas e químicas dos ecossistemas ocasionada pela adaptação das práticas humanas face ao meio ambiente em prol de um desenvolvimento sustentável.
Agregado a isto, a gestão e o planejamento prévio do uso dos recursos hídricos devem estar voltados para a diminuição dos efeitos da escassez de água, bem como para a erradicação da destruição gradual dos mananciais de água em todas as regiões do planeta. As iniciativas de gestão e planejamento perpetradas por Estados e organismos internacionais devem abranger os corpos d’água interrelacionados, incluindo águas superficiais (rios, lagos e lagoas) e subterrâneas. Deste modo, no caso de cursos d’água transfronteiriços, as práticas gestoras devem partir dos Estados envolvidos a fim de realizarem conexões, cooperações interestatais por intermédio de tratados ou outras formas de arranjo cooperativo que visem preservar os corpos d’água.
Em suma, a Agenda 21 pretende criar uma força de trabalho integrada que objetiva racionalizar a gestão dos recursos hídricos, promover o acesso a água potável, proteger as fontes de água, a qualidade da água e os ecossistemas aquáticos, incrementar o suprimento de água encanada e saneamento básico nos conglomerados urbanos com práticas que evitem o desperdício, organizar os processos de irrigação de culturas agrícolas e, minimizar os efeitos deletérios das mudanças climáticas nos mananciais aqüíferos.
8. CONCLUSÃO
O contemporâneo conflito árabe-israelense por recursos hídricos guarda, de acordo com o Estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, estrutura jurídico-filosófica fundamentada na Doutrina da Guerra Justa de Hugo Grotius, nos princípios jurídicos internacionais da legítima defesa, da auto-determinação dos povos e à vida digna constantes nos diplomas legais internacionais da Carta da Organização das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
O quadro de tensão que se apresenta na região do Rio Jordão gera uma escalada de violência interminável e extremamente nociva para as populações judias e palestinas. O ponto fulcral é a água e o seu acesso como base da manutenção da vida humana como foi demonstrado. Contudo, as particularidades de cada povo, relacionadas ao fanatismo religioso, soberania estatal, interesses e ingerências estrangeiras, irredutibilidade de posições políticas de ambos os lados, densidade demográfica, questões territoriais, passado de conflitos bélicos são ingredientes de uma região em ebulição violenta constante, acarretando a eclosão de guerras que podem ser analisadas do ponto de vista da justiça ao se perpetrar este tipo de violência.
A estrutura jus-filosófica do conflito árabe-israelense por água agrega todos estes fatores, pois, ao tratar da Doutrina da Guerra Justa busca-se visualizar, do ponto de vista jurídico, a justiça da guerra, a legitimação para a prática da guerra; a Geopolítica das Águas apresenta as relações das partes conflitantes face a este importante elemento natural, elaborando considerações a partir da história dos povos judeu e palestino, bem como as diferentes conformações geográficas da região ao longo tempo, identificando grande parte dos elementos formadores do atual estágio conflitante entre os habitantes das margens do Rio Jordão; a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos trazem o arcabouço jurídico de proteção ao direito humano da vida em qualquer situação de embate, incumbindo todos os signatários destes documentos internacionais de zelar pela tutela da vida
Cada processo conflituoso bélico se inicia em um ponto onde ninguém pensa em se digladiar, ou seja, o morticínio de pessoas tem começo num momento em que as próprias pessoas não intencionam se matar. Ocorre apenas um fenômeno de auto-catalisação do referido conflito sem que ninguém perceba o começo de tal embate. Após iniciado a disputa bélica, primeiramente se indaga o “porquê”, para depois se querer saber do “como”, do “onde”, de “quem” e do “quando” se deu tal disputa. Assim, as peças do quebra-cabeça vão se encaixando de tal forma que a situação em estudo ganha contornos cognitivos. Assim, o “porquê” do atual rixa armada árabe-israelense se deve pela escassez de água na Bacia do Rio Jordão, o “como” se refere à estrutura levi-straussiana de tal embate armado, por sua vez, o “quem”, o “quando” e o “onde” são complementares imprescindíveis para o entendimento do tema levantado, pois se refere a história dos povos árabe e judeu na região da Bacia do Rio Jordão, localizada no Oriente Médio.
Os aqüíferos subterrâneos pertencentes à Bacia Hidrográfica do Rio Jordão estão localizados em terreno montanhoso e muito árido, ou seja, além da região não contar com grandes fluxos d’água na superfície, o volume líquido que se encontra no subsolo requer dispendioso esforço para ser alcançado devido o solo ser irregular e formado por rochas. Mesmo que estes mananciais sejam atingidos pela ação humana ao perfurar poços artesianos, a qualidade da água encontrada é outro problema, pois alguns destas reservas hídricas apresentam elevado grau de sal, devido à proximidade com o Mar Mediterrâneo de um lado e o Mar Morto, na outra extremidade, numa visão Leste-Oeste do mapa da região. A faixa que sobra para consumo humano, principalmente para os palestinos, é insuficiente para o atendimento das necessidades de consumo d’água em região que abriga cerca de três milhões de palestinos.
O atual estágio da guerra árabe-israelense agrega em si diversas situações complexas, as quais podem sem consideradas características das futuras guerras hídricas, este tipo de conflito pode gerar a desestabilização de governos nacionais, já que cada modificação danosa nos mananciais de água propicia a eclosão de violência desenfreada entre as partes, incrementando o mercado legal e ilegal de armas, tomando rumos mais abrangentes dos que envolvam apenas os povos da Bacia do Rio Jordão. Ademais, estas mudanças negativas no abastecimento de água provocam a redução do espaço habitável, reduzindo, drasticamente, a sobrevivência dos habitantes, estes por sua vez, se encontram confinados em pequeno espaço não podendo migrar para outras localidades devido às fronteiras políticas, e quando conseguem esta migração se tornam refugiados em terras estrangeiras, gerando grandes problemas humanitários.
Quando este fluxo migratório de refugiados atinge Europa Ocidental e os Estados Unidos, a habilidade dos governos destas regiões em lidar com tal realidade é a pior possível, pois, com receio da fragilização da estabilidade econômica e política, europeus ocidentais e norte-americanos tendem a reforçar as medidas de segurança na entrada de pessoas em seus territórios, bem como fortalecer suas próprias forças de defesa, logo, a conseqüência de tais medidas é a adoção de estratégia de protecionismo acentuado das suas fronteiras externas com o objetivo de identificar os conflitos o mais distante possível de seus territórios. O sentimento de exclusão destes migrantes desemboca em práticas terroristas, provocando novo incremento das medidas de segurança, num interminável ciclo vicioso.
Uma das estratégias usadas tanto por países europeus quanto pelos Estados Unidos reside na construção de grandes acampamentos de entrada e saída localizados tanto no interior como no exterior dos próprios territórios. Em outras palavras, certos países preferem estabelecer áreas no próprio território conflagrado, ficando incumbidos de fornecer o mínimo de segurança e alimentação através de ajuda humanitária, mas se evita ao máximo o cruzamento das fronteiras destes países, como o que está ocorrendo com a Itália em relação aos refugiados líbios em decorrência dos choques armados para a deposição de Muammar Kadhafi. A Ilha da Sicília foi escolhida para abrigar estes refugiados e tão logo os combates cessem, estas pessoas serão repatriadas à Líbia. Estas práticas servem para evitar o aumento do número de imigrantes clandestinos nos países centrais, ocasionada pela não-concessão de asilo político ou por não intencionarem naturalizar tais pessoas.
O litígio armado árabe-israelense por água serve de paradigma para se ter noção do cenário catastrófico que a escassez de recursos hídricos pode trazer para a Humanidade. A falta de água potável originará cenário de crise que pressionará toda a configuração global dos países e, consequentemente, a sociedade humana em sua totalidade. Em muitos casos, este cenário que antes parecia estar em futuro longínquo, ou seja, hipotéticos, agora passa a ser realidade cotidiana de diversos povos. De forma mais precisa, pessoas estão morrendo, fugindo ou sendo brutalmente assassinadas por conta da insuficiência de recursos hídricos em determinadas regiões do planeta e, aqueles países que detém água em abundância e a utilizam de forma irresponsável podem vir a ser compelidos a ceder parte da sua soberania sobre estes recursos para diminuir as tensões armadas em outras regiões do mundo.
Além disso, a falta de qualquer recurso natural gera relações de poder entre os detentores e os despossuídos A escassez de água para uns e o acesso para outros, mesmo que não seja em abundância, proporciona desequilíbrio nas relações sociais que deixam de ser amistosas e passam a ser de confronto. Vale lembrar que a falta de água potável também se relaciona com a saúde pública, pois o saneamento básico é fundamental para o controle ou mesmo a erradicação de diversas doenças endêmicas que podem acometer grandes massas populacionais. Isto também é foco de tensão entre árabes e judeus, pois melhores condições de vida passam pela existência de um razoável padrão de saneamento básico, capaz de fornecer água à população e evitar a contaminação das escassas fontes de água.
O fato é que quando não se tem um ponto de negociação entre as partes litigantes no que se refere ao acesso aos recursos hídricos, estas mesmas partes se colocam em um caminho sem volta rumo ao choque armado. Os que detêm o acesso à água intenciona defender de todas as formas possíveis esta fonte natural, na outra extremidade, aqueles que tem sua demanda por água insatisfatoriamente atendida busca melhorar suas condições de vida e de sobrevivência, utilizando todos os meios violentos de que dispõe. Ambos os agentes esquecem o direito em si e partem para a violência extremada, a qual seque tem condições de ser entendida pelos litigantes, apenas uma visão exterior pode lançar luzes a fim de proporcionar o entendimento do conflito. A violência extremada não enxerga qualquer tipo de norma jurídica existente, na medida em que a ação humana é movida pelo puro instinto de sobrevivência, cabendo a quem esta observando de fora interromper este processo de autodestruição e estabelecer as bases para negociações complexas, com o objetivo de dirimir as divergências.
Assim, esta visão externa pode ser dada pela identificação da estrutura jus-filosófica do conflito armado em questão, abrangendo, sobejamente, judeus e árabes em torno das águas do Rio Jordão. É uma forma de analisar a problemática de modo compartimentado, possibilitando separar cada elemento formador da questão, bem como realizar interrelações entre estes mesmos componentes, com a finalidade de entender, dentro de um ponto de vista científico, os contornos dos embates violentos por água, independente de onde estejam situados, pois a base é fixa, alterando apenas certas particularidades em relação aos agentes litigantes e as suas respectivas histórias em um dado espaço geográfico.
Informações Sobre o Autor
Marcos Aurélio dos Santos Borges
Advogado atuante no Estado do Pará e Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho – RJ. Especialista em Direito Tributário e Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – RJ. Especialista em Direito Internacional Público por título conferido pelo Comitê Jurídico Interamericano da Organização dos Estados Americanos – OEA. Graduação em Direito pela Universidade Federal do Pará. Parecerista-Avaliador ad hoc da Universidade Federal de Uberlândia.