CRIMINAL LAW FROM A DEMOCRATIC STATE OF LAW: THE LEGACY OF THE BRAZILIAN PENAL REFORM OF 1984 TO THE FEDERAL CONSTITUTION OF 1988
Nome do Autor: Guilherme Lopes Felicio. Advogado em Presidente Prudente – SP. Mestrando em Direito Penal PUC-SP. Pós-graduando em Direito Empresarial UEL-PR. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal PUC-SP.
Resumo: A reforma penal brasileira de 1984 trouxe uma série de preceitos e princípios que mais tarde adotaria a Constituição Federal de 1988, representando um marco para o Direito Penal. A ideia inicial era modificar a Parte Especial do Código Penal de 1940, que, no entanto, permaneceu intacta. O Brasil se afasta da escola tradicional causalista italiana e assume a concepção finalista alemã de Hans Welzel, mantendo-se a estrutura do Código Penal com algumas alterações. A comissão de juristas responsável pela reforma penal parte de uma nova concepção: olhar o Direito Penal partindo da premissa de um Estado Democrático Direito. Não mais se aceitava a simples visão do Código Penal como um caderno de leis, sendo necessária a prescrição de garantias. Acolheu-se, então, uma linha filosófica e instituiu-se uma gama de princípios que estavam em construção com compromisso a um Estado Democrático de Direito. Posteriormente, as mesmas balizas e princípios da reforma penal de 1984 são encontrados na Constituição Federal de 1988 e, a partir daí, fez-se a leitura de que o Direito Penal deve se fundamentar na Constituição, respeitando seus princípios e uma pauta mínima de direitos humanos. Esta sintonia da reforma penal de 1984 com a Constituição Federal de 1988 ensinou, ainda, uma lição: a importância de se adotar uma linha filosófica e um Direito Penal que caminhe junto com sua Constituição.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Reforma Penal. Princípios Constitucionais Penais.
Abstract: The Brazilian penal reform of 1984 brought a series of precepts and principles that later adopted the Federal Constitution of 1988, representing a landmark for Criminal Law. The initial idea was to modify the Special Part of the Criminal Code of 1940, which, however, remained intact. Brazil departs from the traditional Italian causalist school and assumes the German finalist conception of Hans Welzel, maintaining the structure of the Penal Code with some changes. The commission of jurists responsible for the penal reform starts from a new conception: to look at the Criminal Law starting from the premise of a Democratic Right State. The simple view of the Criminal Penal Code was no longer accepted as a set of laws, requiring the prescription of guarantees. A philosophical line was then accepted, and a range of principles was established that were under construction with a commitment to a Democratic Rule of Law. Subsequently, the same goals and principles of the 1984 reform are found in the Federal Constitution of 1988 and, from there, it was read that Criminal Law must be based on the Constitution, respecting its principles and a minimum tariff of rights humans. This alignment of the penal reform of 1984 with the Federal Constitution of 1988 also taught a lesson: the importance of adopting a philosophical line and a Criminal Law that walks along with its Constitution.
Keywords: Democratic State of Law. Penal Reform. Criminal Constitutional Principles
Sumário: Introdução. 1 A reforma penal brasileira. 1.2 A comissão de juristas. Razões e propostas. 2 A influência da concepção alemã de Hans Welzel. 2.1 Teoria causal e finalista da ação. 2.2 O conceito analítico de crime. 2.3 Elementos integrantes da culpabilidade. 3 Os movimentos funcionalistas. 3.1 Funcionalismo moderado e a teoria da imputação objetiva. 3.2 Funcionalismo Extremado. 3.3 As propostas de Winfried Hassemer. 4 Missões do Direito Penal. 5 A importância de se definir e proteger bens jurídicos penais. 6 As finalidades da pena. 7 A Constituição Federal de 1988. 7.1 Princípio da dignidade da pessoa humana. 7.2 Princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos. 7.3 Princípio da legalidade. 7.4 Princípio da intervenção mínima / necessidade – fragmentariedade e subsidiariedade. 7.5 Princípio da lesividade ou ofensividade. 7.6 Princípio da responsabilidade pessoal e da culpabilidade. 7.7 Princípio da humanidade. 7.8 Princípio da Proporcionalidade. Conclusão. Referências.
Introdução
A reforma penal brasileira de 1984, como em outras épocas, decorreu de uma exigência histórica, em razão da transformação da sociedade e da mudança das regras de comportamento, já inadiável em razão fisionomia da sociedade que se apresentava diferente de 1940, época em que o Código Penal foi editado.
Houve uma reforma da parte geral do Código Penal com a Lei n.º 7.209/84. Foi constituída uma comissão com jovens juristas que tinham uma concepção diferente: olhar o Direito Penal como ultima ratio, partindo da premissa de um Estado Democrático de Direito em que a regra não é proibir, mas permitir, reprimindo apenas o necessário.
A mesma premissa se adotou com relação à função da pena, que não poderia ter caráter apenas retributivo, mas garantir a reinserção social. Daí criou-se os três regimes de prisão. Essa reforma de 1984 se afastou dos preceitos da Escola Clássica Tradicional-Causalista italiana de Francesco Carrara e passou a adotar a concepção finalista alemã de Hans Welzel.
Assim, o Código Penal Brasileiro vigente apresenta, hoje, uma divisão: a Parte Geral com a reforma de 1984 inspirada na Alemanha e a Parte Especial à base da Itália.
Por sua vez, posteriormente com a Constituição Federal de 1988 verificou-se uma série de princípios constitucionais penais e aplicáveis ao Direito Penal, realizando uma verdadeira filtragem e indicando a adoção das mesmas premissas da reforma penal de 1984.
Esta sintonia da reforma penal de 1984 com a Constituição Federal de 1988 ensinou, ainda, uma lição: a importância de se adotar uma linha filosófica e um Direito Penal que caminhe junto com sua Constituição.
1.1 A comissão de juristas
O Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, logo ao assumir o cargo, iniciou aos estudos para a reforma penal constituindo, pela Portaria n.º 359, de 22 de abril de 1980, uma Comissão integrada pelo Professor Manoel Pedro Pimentel, Dr. Hélio Fonseca e Francisco de Assis Toledo para examinar e emitir parecer sobre o Projeto do Código de Processo Penal, aprovado pela Câmara mas retirado do Governo, quando em tramitação pelo Senado Federal.[1]
Outra Comissão constituída por Francisco de Assis Toledo, pelo Dr. Hélio Fonseca e Rogério Lauria Tucci, pela Portaria n.º 859, de 1 de setembro de 1890, deveria incumbir-se da compatibilização do texto do estatuto processual com o Anteprojeto de Código de Execuções a ser elaborado pelo Antigo Conselho Nacional da Política Penitenciária – CNPP.
Com a evolução dos trabalhos, ambas Comissões entenderam que havia necessidade de estender a reforma do Código Penal. Constituiu, então, o Ministro da Justiça, em 27 de novembro de 1980, através Portaria n.º 1043, outra Comissão para elaborar o anteprojeto de reforma, integrada por Francisco de Assis Toledo, Francisco Serrano Neves, Ricardo Antunes Andreucci, Miguel Reale júnior, Rogério Lauria Tucci, René Ariel Dotti e Helio Fonseca.
Assim, em dezembro de 198l após debates no Instituto dos Advogados Brasileiros e no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil definiu-se o quadro de uma ampla reforma do sistema criminal brasileiro, a ser empreendida em duas etapas: na primeira, os Anteprojetos de Código Penal – Parte Geral, Código de Processo Penal e de Lei de Execução Penal; na segunda etapa, o Código Penal – Parte Especial e a Lei das Contravenções Penais.
Essa reforma se consubstanciava na reformulação do sistema penitenciário brasileiro e na atualização dos métodos e estrutura da Justiça Criminal de Primeira Instância.
Além disso, visava o desenvolvimento da Parte Especial, sem pressa e sem perigosas improvisações que tanto comprometeram, como se viu, no primeiro Código Republicano.[2]
Em 1981, constituiu o Ministro da Justiça, pela Portaria n.º371, de 24 de junho de 1981, as seguintes Comissões Revisoras: ao Código Penal – Francisco de Assis Toledo, nomeado como coordenador, pertencente à Universidade de Brasília; Dínio de Santis Garcia, Jair Leonardo Lopes e Miguel Reale Júnior; ao Código de Processo Penal – Francisco de Assis Toledo, novamente coordenador, Jorge Alberto Romeiro, José Frederico Marques e Rogério Lauria Tucci; e à Lei de Execução Penal – Francisco Assis Toledo, mais uma vez coordenador, Jason Soares Albergaria. René Ariel Dotti e Ricardo Antunes Andreucci.[3]
Concluídos os trabalhos em 1982, remeteu o Presidente João Figueiredo ao Congresso Nacional, os três projetos de reforma penal – Código Penal (Parte Geral), Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal – em 29 de junho de 1983, o primeiro e o último promulgados pelas Leis n.º 7.209 e 7.210, ambas de 11 de julho de 1984. Os trabalhos de reforma da Parte Especial e das Leis das Contravenções foram atribuídos a outra Comissão, pela Portaria n.º 518, de 06 de setembro de 983, alterada pelas Portarias n.º 193 e 194 de 10 de abril de 1984.
A evolução social e o aumento da criminalidade reclamaram uma legislação penal que se adequasse às exigências brasileiras. A pressão dos índices de criminalidade e suas novas espécies, a constância da medida repressiva como resposta básica ao delito, a rejeição social dos apenados e seus reflexos no incremento da reincidência, a sofisticação tecnológica, que altera o quadro da criminalidade contemporânea, são fatores que exigiram o aprimoramento dos instrumentos jurídicos de contenção do crime, ainda os mesmos concebidos pelos juristas na primeira metade do século.[4]
Segundo Francisco de Assis Toledo[5], a mudança de comportamento explica um bom número de desvios de comportamento. Em sua visão, na maioria das vezes, a culpa do delinquente é o resultado do modo como ele convive com o seio social e o mundo aliado a seus fracassos pessoais e alheios. Isso justifica dizer que mesmo que a sociedade tenha o direito de castigar, deve exercê-lo, mas com vistas à uma ressocialização.
Nesse contexto, a pena justa seria a pena necessária e não apenas a pena-compensação do mal pelo mal. O conceito de pena necessária não envolveria mais somente a questão do tipo de pena, mas o modo de sua execução. Destarte, dentro de um rol de penas previstas, se uma certa pena apresentar-se como apta para os fins de prevenção e da preparação do infrator para o retorno ao convívio pacífico social, não se justificaria a aplicação de pena mais grave.
Da mesma forma se aplicou em relação à execução da pena. Se o cumprimento da pena em regime de semiliberdade fosse suficiente para aqueles fins de prevenção e reintegração social, o regime fechado seria um exagero e um ônus injustificado. E assim por diante. Portanto, sobre a reforma penal de 1984, conclui Francisco de Assis Toledo[6]que:
“Como é fácil perceber, para a aplicação desses novos princípios, seria imprescindível em um direito penal democrático apoiado no princípio da legalidade dos delitos e das penas, que a legislação penal reconstrua uma gama variada de penas criminais, dispostas em escala de crescente gravidade, a fim de que o juiz, segundo certos critérios, possam escolher a pena justa para o crime e seu agente. Igualmente, as formas de execução da pena privativa de liberdade, quando esta tiver de ser aplicada, deverá desdobrar-se em etapas progressivas e regressivas, para ensejar maior ou menor intensidade na sua aplicação, bem como maior ou menor velocidade na caminhada do condenado rumo à liberdade. E assim terá que ser para cumprirem-se as diretrizes de individualização. Nenhuma pena terá, pois, um período rígido de segregação social. Os limites da sentença condenatória passam a ser limites máximos, não mais limites certos. A pena passar a ser, pois, uma pena programática.”
Por fim, a mais grave das penas – a privação de liberdade em regime fechado – o ideal é que seja executada de modo adequado, enquanto durar, assegurando-se ao condenado o trabalho interno remunerado, higiene, educação e outras formas de assistência.
E assim, de modo geral, pensou-se no indivíduo livre das formas de opressão, não podendo ser privado de seus direitos e garantias fundamentais que, embora formalmente previstos em lei, deveriam ser criadas possibilidades para o seu pleno exercício. São as bases de um Estado Democrático de Direito, já se reconhecendo um Direito Penal Constitucional, baseado em normas e princípios constitucionais e respeito à dignidade da pessoa humana.
2 A influência da concepção alemã de Hans Welzel
2.1 Teoria causal e finalista da ação
Em 1975, o Código Penal Alemão (STGB) foi submetido a uma reforma, resultado de significativas alterações que ocorreram no Código Penal do Reich (RStGB) de 1871.
A reforma do Código Penal em 1984 recebeu influência da concepção finalista alemã de Hans Welzel, desenvolvida na década de 30. O finalismo de Hans Welzel se preocupou em explicar, no Direito Penal, as teorias da ação, entre elas, a teoria finalista e a teoria social.
Welzel[7] explica que a ação humana seria um exercício de atividade final, munida de um saber causal pelo sujeito e empregado para a consecução de um resultado. Parte de uma supervalorização da finalidade, que, somente mediante a referência de um determinado resultado é que se poderia estabelecer o que seria uma ação.
Antes da reforma de 1984, O Código Penal de 1940 adotava a concepção filosófica da teoria causal naturalista da ação, cujo conceito era definido por Franz Von Liszt e Ernst Von Beling. Para aquele, a ação é a conduta voluntária que causa modificação no mundo exterior.[8]
A conduta, portanto, consiste em uma movimentação corpórea, bastando a modificação no mundo exterior (relação causa e efeito). Essa teoria exclui o elemento subjetivo e não explica satisfatoriamente a tentativa porque o dolo é examinado na culpabilidade do agente.
Por sua vez, a teoria finalista desloca o dolo e a culpa para a conduta o fato típico, ou seja, a conduta já traz o elemento subjetivo.
Por essa teoria, o dolo já é analisado no exame da tipicidade da conduta, devendo ser considerado se o agente já pretendia ou não alcançar o resultado delitivo. Tal concepção foi adotada pela reforma da parte geral Código Penal em 1984. É o que conta Francisco de Assis Toledo[9]:
“Ação (ou conduta) compreende qualquer comportamento humano, comissivo ou omissivo, abrangendo, pois, a ação propriamente dita, isto é, a atividade, que intervém no mundo exterior, como também a omissão, ou seja, a pura inatividade. Todavia, para que um comportamento humano, comissivo ou omissivo, possa ter a aptidão para qualificar-se como crime, é necessário que se tenha desenvolvido sob o domínio da vontade. O comportamento puramente involuntário, resultante de caso fortuito ou de força maior, não constitui ação digna de castigo para o direito penal. A exigência de voluntariedade na conduta é imprescindível tanto para ação dolosa quanto a culposa. Em ambas a vontade domina a conduta, com a diferença de que, na primeira, a vo0luntariedade alcança até o resultado não querido. A voluntariedade é o que dá o conteúdo intencional – ou finalístico – de toda ação relevante para o direito penal distinguindo-a dos meros “fatos”, isto é, dos acontecimentos físicos ou daqueles produzidos pelas mãos do homem, mas sem a intervenção da vontade. Tais acontecimentos são puramente causais, derivados do fortuito ou da força maior. Quando operam através do homem, atuam com o mesmo fatalismo das leis da natureza. […] Por isso é que, para o direito penal, só interessam as condutas que tenham certo conteúdo finalístico, ou seja, toda a ação que possa ser reconduzida à vontade humana como razão de ser seu aparecimento no mundo exterior. Dentro de uma concepção jurídica, ação, é pois, o comportamento humano, dominado ou dominável pela vontade, dirigido para uma lesão ou para a exposição a perigo de lesão de um bem jurídico, ou, ainda, para a causação de uma possível lesão a um bem jurídico. Na concepção jurídica de ação, a orientação de Ânimo do agente, ou o objetivo por ele perseguido com sua conduta, é parte inseparável dessa mesma conduta, como seu elemento intencional ou finalístico. Isso traz como necessária o reconhecimento de que, como acentuou Welzel, o dolo e a negligência fazem parte da ação (não do juízo de culpabilidade), fato que, por si só, justifica a primeira grande divisão dos crimes em crimes dolosos e culposos, ou melhor, em crimes de ação dolosa e crimes de ação culposa.”
Assim, nesse contexto, o Código Penal se afasta de vez dos preceitos da escola clássica italiana de Francesco Carrara.
2.2 O conceito analítico de crime
A influência do finalismo gerou uma divergência na doutrina jurídica penal brasileira Brasil na reforma de 1984 com relação ao conceito analítico de crime. Há expressa divisão entre concepções bipartida, tripartida e quadripartida de delito.
No entendimento de René Ariel Dotti[10], a concepção pela qual se divide o delito em fato típico, antijurídico e culpável decorria do conceito causal de crime, que separava a ação do seu conteúdo de vontade, pertencendo aos caracteres externos da ação, enquanto os elementos anímicos, a culpabilidade.
Para o autor, com a consolidação do finalismo e a adoção de uma culpabilidade puramente normativa, deixando os elementos subjetivos de pertencerem à culpabilidade, esta perdeu sua função inicial de garantidora de uma imputação subjetiva, uma vez que os caracteres necessários à adoção desta modalidade de imputação se deslocaram para ação e, por via de consequência, na tipicidade.
Logo, seria o crime uma ação típica e ilícita – a causa funcionando o juízo de reprovação como seu efeito. A constatação do delito gera a necessidade que sobre ele recaia o juízo de culpabilidade, sendo, portanto, fenômenos associados, mas distintos e separáveis conforme as circunstâncias.[11]
Portanto, na visão de René Ariel Dotti, o finalismo de Hans Welzel retirou a culpabilidade do conceito de crime, apresentando, ao final, um quadro comparativo da doutrina clássica com a doutrina finalista. Nesse quadro, a culpabilidade, para a teoria finalista, não integra o conceito analítico de crime, constituindo tão somente pressuposto da pena, ou seja, condição de aplicação da pena.
De outro lado, Francisco de Assis Toledo[12] adotou a concepção tripartida do delito, entendendo a culpabilidade como terceiro elemento do conceito jurídico de crime – Nullum crimen sine culpa.
Para este autor, a culpabilidade exige um juízo de reprovação jurídica de que se apoia a crença – com base na experiência da vida cotidiana – de modo que ao agente é dada a possibilidade de em certas circunstâncias agir de outro. A noção de culpabilidade estaria, portanto estreitamente ligada à evitabilidade da conduta ilícita. Dessa forma, não se poderia emitir um juízo de reprovação ao homem que não evitou a conduta incriminadora se era possível fazê-la de outra forma.
2.3 Elementos integrantes da culpabilidade
Conforme adiantado, a teoria finalista da ação esvazia a culpabilidade, deslocando o dolo para o tipo penal. A vontade assume relevância não enquanto tal, mas enquanto se traduz em realização. O conteúdo do dolo determina a direção lesiva da ação, contribuindo para traçar o perfil da culpabilidade.[13]
A potencial consciência da ilicitude permanece na culpabilidade, ao lado da imputabilidade e da exigibilidade da conduta conforme o dever.
Welzel apud Toledo[14] tratou de organizar o seguinte quadro:
“Dolo do tipo
-intencionalidade = finalidade da ação (elemento volitivo);
– previsão do resultado (elemento intelectual).
Culpabilidade
-imputabilidade;
Consciência potencial da ilicitude
– possibilidade e exigibilidade, nas circunstâncias, de um agir-de-outro-modo;
-juízo de censura ao autor por não ter exercido, quando podia, esse poder-agir-de-outro-modo.”
Com base na culpabilidade do finalismo, na reforma penal, o legislador de 1984 preferiu dar ao Título II do Código Penal denominação mais apropriada: “imputabilidade” e não mais responsabilidade, modificando igualmente a rubrica correspondente (inimputáveis).
Segundo Paulo José Costa Jr.[15], a imputabilidade seria um pressuposto, enquanto a responsabilidade uma consequência. Por ser o agente imputável, poderá ser responsável pelos seus atos, permanecendo a imputabilidade como pressuposto da culpabilidade. Nesta, está implícito o juízo de reprovação, mas não poderá ser objeto de reprovação quem não tenha capacidade para tanto.
Ressalte-se, ainda, que o legislador atual, como o anterior, preferiu não definir a culpabilidade. Conceituou-a negativamente, mercê de um critério biopsíquico, indicando as condições não possíveis de reconhecê-la: doença mental ou desenvolvimento mental ou incompleto, que tornem o agente incapaz de entender o caráter ilícito de fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Não bastaria o estado patológico, necessário ainda que, naquele estado, não entenda a ilicitude ou ir de acordo com esse entendimento.
Com influência também da Alemanha, surgiram duas teorias da culpabilidade: extremada e limitada. Claramente, o Código Penal Brasileiro, quanto ao erro de proibição, adotou a teoria limitada da culpabilidade, conforme o item 17 da Exposição de Motivos[16]:
“É, todavia, no tratamento do erro que o princípio nullum crimen sine culpa vai aflorar com todo o vigor no direito legislado brasileiro. Com efeito, acolhe o Projeto, nos arts. 20 e 21, as duas formas básicas de erro construídas pela dogmática alemã: erro sobre elementos do tipo (Tatbestandsirrtum) e erro sobre a ilicitude do fato (Verbotsirrtum). Definiu-se a evitabilidade do erro em função da consciência potencial da ilicitude (parágrafo único do art. 21), mantendo-se no tocante às descriminantes putativas a tradição brasileira, que admite a forma culposa, em sintonia com a denominada “teoria limitada da culpabilidade.””
3 Os movimentos funcionalistas
O funcionalismo nasceu do finalismo. As teorias da ação e a teoria finalista pretendiam transformar a dogmática penal de um ponto de partida ontológico que seria chave. Mais tarde, na década de 70, Claus Roxin viria a criticar o finalismo, utilizando a expressão “final” para explanar sobre o caráter teleológico do Direito Penal, que, para o autor, o Direito Penal tem uma finalidade que serve de guia para si mesmo.[17]
O funcionalismo preocupou-se com a operacionalização do Direito, partindo de um sistema de normas oferecidas por uma interpretação política. A partir de Claus Roxin, vários movimentos funcionalistas surgiram. Gunther Jakobs igualmente partiu da ideia de um funcionalismo, entendendo o Direito Penal como orientado a proteger a identidade normativa e garantir a Constituição.
O Direito Penal deve, então, ter uma função – a de construir política criminal. Política criminal é um conjunto de procedimentos que o Estado se organiza para responder ao fenômeno criminal. Aduzia Heleno Cláudio Fragoso[18]que a política criminal se aproxima das disciplinas políticas porque ambas são políticas de meios e fins.
A política criminal se consubstancia em uma relação de meio e fim, isto é, o Estado procura instrumentos para lutar contra o crime. A missão da política criminal, pela sua precípua finalidade, é a de definir os fins do Estado diante do problema do crime e formular os meios necessários para realizá-los.
Sobre o funcionalismo, em síntese, há três vertentes.
3.1 Funcionalismo moderado e a teoria da imputação objetiva
Em 1970, Claus Roxin, na obra “Reflexões sobre a Problemática da Imputação em Direito Penal”, desenvolveu a “Teoria da Imputação Objetiva.
Partindo do Finalismo de Welzel, Roxin[19]apregoou que o Direito Penal deve ser estudado em razão de sua função. Em sua perspectiva, o Direito Penal tem a finalidade subsidiária de proteger os bens jurídicos essenciais. Pela imputabilidade objetiva, o resultado delitivo é atribuído ao sujeito quando o autor cria um risco não juridicamente permitido e este risco se realiza no resultado do qual se encontra dentro do alcance do tipo. O que interessa é o nexo de causalidade e somente depois, o dolo e a culpa.
Foram quatro critérios utilizados: 1) diminuição do risco; 2) criação ou não criação de um risco juridicamente relevante; 3) incremento do risco; 4) âmbito de proteção da norma.
É de frisar que a reforma penal de 1984 não acolheu a Teoria da Imputação Objetiva. No Direito Penal brasileiro há inclusão de elementos subjetivos no tipo penal, consideração material da antijuridicidade e culpabilidade normativa que abarca o dolo e a culpa e a inexigibilidade da conduta diversa no critério da culpabilidade. O Direito Penal do Brasil leva em conta os elementos subjetivos no caminho do delito, logo, a teoria em questão era incompatível.
Por sua vez, o artigo 13, caput, do Código Penal em 1984 adotou a seguinte dicção: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.
No §2º, primeira parte, do mesmo artigo consta que “a omissão é penalmente relevante quando o emitente devia e podia agir para evitar o resultado”. O Anteprojeto, bem como, o Projeto de Reforma do Código Penal, apresentavam disposição fundamentalmente diversa, que foi modificada por emenda e aprovada pelo Legislativo. Dispunham o Anteprojeto e o Projeto de Código Penal que “o resultado, de que depende a existência de crime, somente é imputável a quem, por ação, o tenha causado, ou, por omissão, não o tenha impedido”. Sem dúvida, a locução normativa originária era rica em conteúdo e propriedade dogmática.[20]
Paulo José da Costa Jr.[21]revela que os dispositivos apresentaram-se antinômicos. Em verdade, enquanto a cabeça do artigo aceita a concepção naturalística da omissão, o § 2º do mesmo dispositivo abraça a concepção normativa.
Por outro lado, o Código vigente, no artigo 29, distingue a participação de cada um, no concurso de autores, segundo a culpabilidade, ao passo que no artigo 13, caput, equipara todos os partícipes que tiverem contribuído para o resultado com uma condição sem a qual ele não teria se verificado.
Por conseguinte, a cabeça do artigo 13 na sistemática do estatuto atual teve o seguinte resultado: aceitou a causalidade adequada no § 1º desse artigo e no artigo 29, abraçando a conditio sine qua non no mencionado caput.
A sistemática atual, como a anterior, não contemplou as concausas (as causas que agem concomitantemente com as causas), a menos que tenham sido elas as únicas causadoras do evento.
3.2 Funcionalismo Extremado
Günther Jakobs foi percussor do funcionalismo radical, estratégico e normativo e, nesse contexto, em 1985, desenvolveu a ideia de um Direito Penal do Inimigo. Jakobs, influenciado por Hobbes e Kant, interpreta que as pessoas têm um contrato social com o Estado.
A princípio, o Estado cria um modelo de ordenamento jurídico a qual devem se submeter tanto os cidadãos como os criminosos, entendidos estes como aqueles que, embora pratiquem crimes, não podem perder seu status de pessoa ou se despedir da sociedade por seu ato, devendo proceder à reparação e permanência de sua personalidade.[22]Ao delinquente que mantém sua função de cidadão se aplica o modelo do Estado imposto a ele, chamado de Direito Penal do Cidadão.
Entretanto, a situação é inversa quando se trata de rebelião, alta traição, de delinquente que não aceita o modelo do Estado, ameaçando sua existência, insistindo na prática de atos criminosos (exemplo: terrorista). Nesse caso, Jakobs[23]trata como “inimigo”, devendo aplicar a ele um modelo penal separado, radical, com regras e princípios distintos do ordenamento “delinquente-cidadão”, a que batiza de “Direito Penal do Inimigo”.
Dessa forma, Jakobs acaba por contrapor duas tendências opostas no Direito Penal que, embora no mesmo plano jurídico, não há uma discriminação pura entre Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo. Para ele, no primeiro, a função do Direito Penal é reafirmar a vigência da norma, enquanto no segundo, o intuito é eliminar perigos.
Resumidamente, as propostas de Jakobs[24]no Direito Penal do Inimigo são flexibilização de garantias e princípios penais, punição de atos preparatórios e aplicação de pena privativa de liberdade quando necessária. O penalista tenta aproximar um Direito Penal que atua antes de ocorrer o crime. No Brasil, bem se sabe, via de regra, não se pune atos preparatórios por própria disposição legal contida no artigo 14, inciso II do Código Penal.
3.3 As propostas de Winfried Hassemer
Winfried Hassemer, que foi membro do Tribunal Constitucional alemão, preferiu as propostas da Escola de Frankfurt, com ideias de limitar ao máximo o Direito Penal, cabendo sua incidência somente em condutas consideravelmente graves que violem bens jurídicos essenciais ao ser humano.
Constatou este jurista que para se alcançar um Direito Penal funcional, a intervenção punitiva deve ser a mais restrita possível, reduzindo cada vez mais seus tentáculos.
Destarte, defende Hassemer[25]um Direito Penal mínimo:
“- Por lo que respecta a la primera de ellas, la protección de bienes jurídicos se ha convertido en un criterio positivo para justificar decisiones criminalizadoras, perdiendo el carácter de criterio negativo que tuvo originariamente. Lo que clásicamente se formuló como un concepto crítico para que el legislador se limitara a la protección de bienes jurídicos, se ha convertido ahora en una exigencia para que penalice determinadas conductas, transformándose así completamente de forma subrepticia la función que orinariamente se le asignó.
Ejemplos de esta tendencia pueden observarse en las sentencias del Tribunal Constitucional alemán sobre el aborto, en las que se considera que una amplia liberalización del mismo va contra el mandato constitucional de protección de la vida del feto, en la que, según las tesis del Tribunal Constitucional, el derecho penal ocupa un lugar preeminente.
La protección de bienes jurídicos se transforma así en un mandato para penalizar, en lugar de ser una prohibición condicionada de penalización; en un factor positivo para conseguir una correcta criminalización, en vez de ser um criterio negativo para la misma. Este cambio limita, al mismo tiempo, el margen de decisión del legislador, favoreciendo las opniones criminalizadoras: ahora el principio da protección de bienes jurídicos obliga a recurrir a la amenaza penal, convirtiendo dolorosamente la “prohibición de exceso” en una !prohibición de defecto”, que algunnos jueces del Tribunal Constitucional han aprovechado para exigirle al legislador penal una más “efectiva protección penal de bienes jurídicos, sobre todo en relación con la vida del feto, llegando incluso en este punto el Tribunal Constitucional español en su sentencia de 11 abril 1985 a declarar la inconstitucionalidad del originario proyecto de ley de despenalización de algunos supuestos de aborto “por incumplir exigencias constitucionales derivadas del artículo 15 de la Constitución.
A base do Direito Penal mínimo é o princípio da intervenção mínima, em que o Direito Penal é ultima ratio, uma arma poderosa do Estado a ser utilizada somente quando não houver outro meio de controle social.
Alia-se a intervenção mínima a outros princípios constitucionais penais, valendo-se do Direito Penal como medida excepcional, a última de todas. Outros princípios estão ligados a intervenção mínima como os da fragmentariedade, da lesividade, da subsidiariedade e da necessidade.
Em um Estado Democrático de Direito, um dos modelos penais ideais é um direito penal mínimo – a posição de Winfried Hassemer. Mais tarde, em 1989 surgiria o garantismo de Luigi Ferrajoli, ou seja, garantir os direitos fundamentais e limitar o poder do Estado contra ataques a esses direitos.
O modelo de Direito Penal adotado dependerá do Estado. O Direito Penal deve ser encarado à luz da Constituição Federal, porque assim estaria reconhecendo a norma hipotética fundamental do princípio da dignidade da pessoa humana.
Essa vertente se destaca ao analisar a reforma penal de 1984 em sintonia à Constituição Federal de 1988 que, evidentemente, demonstrou a recepção do funcionalismo e prescreveu uma série de princípios norteadores do Direito Penal Brasileiro.
Não se pode negar a íntima relação do Direito Penal com a Constituição Federal de 1988 que dá autorização, legitimidade e fundamentação legal ao mesmo.
4 Missões do Direito Penal
O funcionalismo contribuiu para que o Direito Penal fosse estudado com propósitos.[26] Fala-se em função e missão do Direito Penal. Essas duas expressões são distintas por Hassemer e Muñoz Conde, sendo função os efeitos, as consequências reais do Direito Penal e, missão ou fim, a verdadeira finalidade, as consequências perseguidas pelo Direito Penal.
Em um primeiro viés, Direito Penal é um instrumento de controle social. Um sistema penal previsto na lei igualmente coíbe abuso de poder do estado e limita o ius puniendi estatal.
A despeito, Claus Roxin[27]:
“La protección de bienes jurídicos se transforma así en un mandato para penalizar, en lugar de ser una prohibición condicionada de penalización; en un factor positivo para conseguir una correcta criminalización, en vez de ser um criterio negativo para la misma. Este cambio limita, al mismo tiempo, el margen de decisión del legislador, favoreciendo las opniones criminalizadoras: ahora el principio da protección de bienes jurídicos obliga a recurrir a la amenaza penal, convirtiendo dolorosamente la “prohibición de exceso” en una !prohibición de defecto”, que algunnos jueces del Tribunal Constitucional han aprovechado para exigirle al legislador penal una más “efectiva protección penal de bienes jurídicos, sobre todo en relación con la vida del feto, llegando incluso en este punto el Tribunal Constitucional español en su sentencia de 11 abril 1985 a declarar la inconstitucionalidad del originario proyecto de ley de despenalización de algunos supuestos de aborto “por incumplir exigencias constitucionales derivadas del artículo 15 de la Constitución.”
Em um viés mais moderno, a que se muito depreendeu com o advento da Constituição Federal de 1988, o Direito Penal tem a missão de proteger efetivamente bens jurídicos.
E, por último, Welzel apud Busato[28], alerta que o Direito Penal tem duas missões: a de proteger bens jurídicos e os valores elementares da consciência, de caráter ético-social. Por seu turno, Jakobs afirma que a missão do Direito Penal é confirmar a vigência da norma e que a proteção de bens jurídicos é efeito secundário.
5 A importância de se definir e proteger bens jurídicos penais
Após a Segunda Guerra Mundial, Hans Welzel, em uma concepção de valores ético-sociais, refletiu que havia necessidade de se definir um bem jurídico, entendendo ser um bem vital da comunidade ou do indivíduo, que por sua significação social é protegido juridicamente.
Heleno Cláudio Fragoso[29]define que “bem jurídico é um bem protegido pelo direito: é, portanto, um valor da vida humana que o direito reconhece, e a cuja preservação é disposta a norma”.
A importância de se definir um bem jurídico se consubstancia em limitar a atuação do Estado, determinando ao legislador-criador da norma penal em não tipificar senão aquelas condutas realmente graves que causam lesão ou perigo de lesão aos bens valiosos.
Nesse contexto, deve-se atentar que somente interessa ao Direito Penal as condutas reprováveis e seus efeitos. Trata-se do princípio da utilidade penal, em que apenas se justificam as sanções e proibições às mais graves ações e os resultados danosos prevenidos pela norma penal.
A lei penal tem o dever proteger os bens jurídicos essenciais ou fundamentais que reclamem uma necessidade penal (princípio da necessidade). Isso porque, o Direito Penal utiliza de medidas severas como a restrição da liberdade para manter o controle social e, portanto, o Princípio da Necessidade ordena que se use dele apenas como remédio extremo.
Em uma concepção utilitarista de necessidade penal para tutelar bens jurídicos fundamentais alguns princípios aparecem, como a fragmentariedade e intervenção mínima, dado ao caráter subsidiário do Direito Penal e por ser chamado pelo Direito na condição de ultima ratio, em cuidar apenas daqueles bens realmente essenciais quando nenhum ramo do Direito for capaz de fazer.
Muito embora para o Direito Penal seja requerida uma “utilidade penal” para proteger determinados bens, interessa a ele também se ocorreu afetação ao bem jurídico (princípio da ofensividade).
É o que se determina como princípio da lesividade, onde não atrai à esfera do Direito Penal se certas condutas há má-fé ou imoralidade, mas a lesividade produzida aos bens jurídicos que justifiquem sua guarida.
Existem bens jurídicos que são bens, todavia, não são bens jurídicos-penais e o Direito Penal se ocupa e preocupa somente com bens jurídicos com dignidade penal.
Os bens jurídicos portadores de dignidade penal são identificados através do contexto histórico, ético, social e cultural. A evolução humana acaba por se encarregar de selecionar tais bens e o legislador, reconhecendo os valores, abriga-os na Constituição. É possível afirmar que a Constituição, senão a primeira, é fonte de bens jurídicos com dignidade penal, especialmente, nos direitos e garantias fundamentais, posto que foram elegidos pelo legislador como valores imprescindíveis à manutenção social.
A idoneidade do bem jurídico está ligada com o valor que a sociedade atribui. E o legislador se preocupa em considerar valores fundamentais sem ultrapassar as barreiras do sentido da proteção do bem jurídico.
Verifica-se que, a princípio, só é necessária a imposição de tutela penal àqueles bens que sofrem ataques socialmente intoleráveis, quer dizer, serão reprimidas condutas graves que ofereçam danos aos bens jurídicos.
6 As finalidades da pena
Por fim, referente à reforma penal de 1984, houve uma preocupação direcionada à pena e sua finalidade. Verifica-se na Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal, especificamente nos itens 26 e 28[30]:
“Uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa da liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere. Esta filosofia importa obviamente na busca de sanções outras para delinqüentes sem periculosidade ou crimes menos graves. Não se trata de combater ou condenar a pena privativa da liberdade como resposta penal básica ao delito. Tal como no Brasil, a pena de prisão se encontra no âmago dos sistemas penais de todo o mundo. O que por ora se discute é a sua limitação aos casos de reconhecida necessidade.
Com o ambivalente propósito de aperfeiçoar a pena de prisão, quando necessária, e de substituí-la, quando aconselhável, por formas diversas de sanção criminal, dotadas de eficiente poder corretivo, adotou o Projeto novo elenco de penas. Fê-lo, contudo, de maneira cautelosa, como convém a toda experiência pioneira nesta área.”
Rechaça Francisco de Assis Toledo[31]que o Direito Penal deve restringir a aplicação da pena a casos que exijam necessidade da comunidade (prevenção) e a necessidade de preparar o infrator para uma convivência pacífica no mundo social (ressocialização).
Pela redação do artigo 59, caput do Código Penal, a maior parte da doutrina entende que foi adotada a Teoria Eclética ou Unitária da Pena.
Analiticamente, a unificação da pena implica tanto uma retribuição da pena embasada em uma necessidade de reprovação da conduta realizada pelo agente, como a prevenção contra novas ações criminosas, corrigindo o indivíduo para reintegrá-lo na ordem social.
O escopo dessa teoria é aplicar uma pena justa e necessária para delituoso. A pena aqui deve se encaixar no sentindo de atingir os fins da prevenção geral e especial. De certo modo, a sanção deve ser uma reposta repressiva estatal, porém, observando a proporcionalidade, porque deve visar, conjugalmente, a prevenção do sujeito de praticar novos crimes e sua readaptação às boas maneiras sociais.
Portanto, uma pena justa seria aquela proporcional à gravidade do delito cometido conciliada à culpabilidade do agente. Pena necessária condiz como suficiente para atender a sociedade, sem agravar a situação do acusado de forma que esteja apto para retornar a um convívio normal em grupo.
Destaca-se, nesse momento, a palavra “necessidade”. A pena pode ser um instrumento adequado, porém nem sempre é a mais perfeita alternativa a ser escolhida para um criminoso. O que se busca é conservar a estabilidade da comunidade e reeducar o indivíduo desviado no delito. Assim, se uma pena preventiva for mais recomendável para alcançar esses propósitos, deve ser cominada, em prol da finalidade do Direito Penal.
Há de compreender que a pena é apenas um meio para que o Direito Penal desempenhe seu papel de proteção de bens jurídicos. Desta premissa, pode-se abster sua aplicação ou reduzi-la quando for preciso para alcançar essa funcionalidade.
7 A Constituição Federal de 1988
Em síntese, a Lei n.º 7.209/84 traz consigo a incumbência do Direito Penal de se modernizar de acordo com a atual sociedade.
Que o Estado não deixe de exercer seu jus puniendi, mas que proteja a sociedade e seus bens jurídicos fundamentais, conferindo ao Direito Penal a repressão às condutas lesivas realmente necessárias de ataque contra a esses bens e, ao mesmo tempo, coibindo arbitrariedades do Estado e respeitando os direitos fundamentais garantias do cidadão, sobretudo, os princípios jurídicos e a dignidade humana.
Que o Direito Penal exerça seu papel funcional, de construir políticas criminais, de perseguir seus propósitos, vinculado a um modelo de Estado.
Que a pena adequada seja aplicada, não necessariamente a prisão, fugindo da ideia de que pena significa prisão, de modo a manter o controle social, com recondução do infrator a sociedade.
E que nela se observe dignidade e humanidade, assim como sua execução, respeitando a individualização, a progressão, até a ressocialização e que o ser humano jamais seja um instrumento de uso para consecução das finalidades político-criminais do Direito Penal.
E, nas razões e propósitos da reforma penal da Parte Geral do Código Penal em 1984, com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 que traz uma série de princípios constitucionais penais e aplicáveis ao Direito Penal, extrai-se a ideia de que o Direito Penal deve ser legítimo, passando por uma filtragem constitucional.
As balizas e princípios da Reforma Penal de 1984 encontrados na Constituição Federal de 1988 remete a concluir que tudo caminhou para uma preparação e entrega do Direito Penal à Constituição. A partir daí, faz-se uma leitura de que o Direito Penal deve se fundamentar na Constituição, respeitando seus princípios e uma pauta mínima de direitos humanos.
Visto que o legislador de 1984 enxergou o Direito Penal não como prima ratio, mas como ultima ratio, partindo da premissa de um Estado Democrático de Direito em que a regra não é proibir, mas permitir, reprimindo apenas o necessário, a Constituição Federal de 1988, no seu advento, caminhou no mesmo sentido.
A Constituição Federal de 1988 trouxe uma gama de princípios especificamente penais. Alguns deles estão expressamente previstos e outros são extraídos do contexto das normas constitucionais por elas implícitos, dos quais embasam a ordem jurídica penal.
7.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, prevista no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal.
O princípio da dignidade da pessoa humana é reconhecido como norma hipotética fundamental, de forma que todos os princípios e leis abaixo dele devem obediência.
Destaca Antônio Carlos da Ponte[32]:
“Trabalhando com a ideia de sistema jurídico fechado, propugnada por Hans Kelsen, o princípio da dignidade da pessoa humana seria, como já adiantado, a norma hipotética fundamental – ápice da pirâmide -, sob a qual encontrar-se-ia a Constituição Federal, alicerçada em uma série de outros princípios. Abaixo, estariam as leis complementares, delegadas, ordinárias, os decretos, as portarias, etc. Na base da pirâmide, encontraríamos os conflitos envolvendo relações individuais e coletivas.”
Nessa concepção, o princípio em estudo apresenta duas faces: a dignidade básica, refratária a qualquer forma de discriminação e destinada a todo ser humano; a dignidade ontológica, referente àqueles dotados de inteligência e liberdade.
Tal valor é o que garante as condições mínimas de uma vida digna, reprimindo a miséria, a ausência de uma moradia, a escassez da educação e a saúde precária.
De igual forma, a dignidade da pessoa humana, em um viés de um Estado Democrático de Direito e da igualdade social, colabora para a edificação de uma cidadania, preenchida de democracia, destinada a honrar os fins perseguidos pelo dirigismo constitucional.
É o que ensina José Afonso da Silva apud Sarcedo[33]:
“A cidadania, assim considerada, consiste na consciência de pertinência à sociedade estatal, como titular de direitos fundamentais, da dignidade como pessoa humana, da integração participativa no processo do poder, com a igual consciência de que a situação subjetiva envolve também à dignidade do outro e de contribuir para o aperfeiçoamento de todos.”
A dignidade da pessoa humana abarca os maiores valores existentes no seio social. É o núcleo essencial de todos os direitos fundamentais dos indivíduos e a base de um Estado Democrático e Social de Direito.
A dignidade humana vem com a vida e a acompanha na liberdade, nos direitos individuais, sociais e coletivos, nos valores intrínsecos e, ao mesmo tempo, como freio às violações dos direitos.
Immanuel Kant na metafísica dos costumes já reconhecia a dignidade humana ao afirmar que o ser humano deve ser fim em si mesmo, jamais podendo ser utilizado como meio, porque a humanidade tem que ser sagrada.[34]
Isso porque entendia Kant que a dimensão moral é parte da natureza humana, sendo algo que já nasce com o ser. Logo, a razão é a condição a priori da vontade, impondo-se o ser moral, o dever. O dever é o princípio supremo de toda a moralidade (moral deontológica). É o que justifica o ser humano fazer uma escolha voluntária racional e praticar uma ação seria certa, pois, realizada por um sentimento de dever, com o fim em si mesmo, por finalidade e não causalidade.
Por essa linha de pensamento, a doutrina de Kant ensina que os seres humanos são dignos de felicidade, fazendo todo sentido, a razão da dignidade humana ser a base de todo o ordenamento.
7.2 Princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos
Na concepção de um Estado Democrático de Direito, o pensamento jurídico contemporâneo reconhece que a finalidade primordial do Direito Penal é de proteger, tutelar, os bens jurídicos dos indivíduos e da coletividade.
Além da proposição de uma política criminal em construir um Estado Democrático de Direito, a tarefa do Direito Penal de proteção de bens jurídicos se fundamenta também na dignidade da pessoa humana, aliada a outros princípios como a legalidade, ofensividade, intervenção mínima e culpabilidade.
Nem todos bens jurídicos se ocupa o Direito Penal, apenas os relevantes, devendo os demais serem entregues à proteção de outras esferas do Direito, porque o Direito Penal é o instrumento de controle social mais contundente do Estado e somente poderá ser chamado quando todos os ramos de Direito se mostrarem inócuos de salvaguardar os bens jurídicos-penais.[35]Daí decorre outros princípios como a proporcionalidade, a ofensividade, a fragmentariedade e a ultima ratio.
Para o Direito Penal só interessa se houve lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico (princípio da ofensividade/lesividade) e, portanto, sua tutela só se legitima quando realmente necessária (princípio da necessidade).
Segundo Antônio Carlos da Ponte[36], é muito mais útil um bem jurídico-penal ligado à Constituição. Adotar um conceito de bem jurídico-penal à luz da Constituição Federal gera segurança e caminha para um Direito Penal que valoriza acima de tudo o princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, detecta-se a necessidade de tutela penal por determinação constitucional, através dos mandados de criminalização e, por políticas criminais, através de opção legislativa. É importante registrar, em sua lição, segundo Ponte[37]que:
“Por fim, cabe observar que no Direito Penal cumpre o bem jurídico as funções axiológica, indicadora das valorações que nortearam a seleção do legislador; sistemático-classificatória, responsável pela criação de um sistema punitivo, contendo critérios para o agrupamento de delitos; exegética, atuando como instrumento metodológico na análise e interpretação das normas jurídicas; dogmática, oferecendo conceitos que serão utilizados pela teoria geral do crime; e crítica, permitindo a verificação dos verdadeiros objetivos do legislador.”
A Constituição Federal do Brasil, inspirada no modelo de algumas constituições europeias, estabelece mandados de criminalização, que consistem, nas palavras de Antonio Carlos da Ponte[38]:
“Os mandados de criminalização indicam matérias sobre as quais o legislador ordinário não tem a faculdade de legislar, mas a obrigatoriedade de tratar, protegendo determinados bens ou interesse de forma adequada e, dentro do possível, integral.”
Entende-se que há determinadas matérias na Constituição Federal em que o legislador ordinário não tem a discricionariedade, mas está obrigado a regulamentar em norma penal, criminalizando condutas contra determinados bens jurídicos.
Para Ponte[39], há mandados explícitos de criminalização em que a Constituição Federal expressamente faz indicações criminalizadoras que podem ser encontradas nos artigo 5º, incisos XLII (racismo), XLIII (tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e crimes hediondos), XLIV (ação de grupos armados, civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado democrático), artigo 227, §4º (abuso, violência e exploração sexual de criança ou adolescente), artigo 225, §3º (condutas consideradas lesivas ao meio ambiente).
Pelas teorias constitucionalistas, os mandados de criminalização são um limite da Constituição Federal e fundamenta o Direito Penal, ou seja, o Direito Penal poderá punir os bens jurídicos previstos e não previstos na Constituição Federal.
Em segundo lugar, não se pode perder de vista que em se tratando de necessidade de tutela penal, não se pode analisar bens jurídicos somente por um viés estritamente formal, ou seja, somente os previstos constitucionalmente. Na verdade, o legislador ordinário, valendo-se de uma concepção material, verificando a extrema necessidade de proteger um bem jurídico preponderante, poderá, discricionariamente, criminalizar condutas. Esse procedimento é adotado através de políticas criminais por opção legislativa, defende Santiago Mir Puig.
Por políticas criminais, o legislador tem a faculdade de tutelar bens jurídicos por intermédio do Direito Penal, desde que recaia um juízo de valor sobre a necessidade de criminalização e os princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e da lesividade.
7.3 Princípio da legalidade
O princípio da legalidade é desdobrado pela doutrina em três postulados: reserva legal, determinação taxativa e irretroatividade.[40]
O postulado da reserva legal está expressamente previsto no artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal de 1988, segundo o qual nenhum fato pode ser considerado crime sem lei anterior que o defina e nenhuma pena criminal será aplicada sem prévia cominação legal.
A reserva legal é anunciada pela expressão latina nullum crimen, nulla poena sine lege“, construída por Feuerbach no século XII, significando que a criação de normas incriminadores e suas penas são matérias reservadas à lei.
O postulado da reserva legal é um axioma destinado a garantir a liberdade do indivíduo contra as arbitrariedades do Estado e controle do poder punitivo. E por entregar à lei a função exclusiva de criar crimes e pena, concede ao Direito Penal uma função de garantia.
Sustenta Luiz Luisi[41]:
“Registre-se, ainda, que o postulado da Reserva Legal, além de arginar o poder punitivo do Estado nos limites da lei, dá ao direito penal uma função de garantia, posto que tornando certos o delito e a pena, asseguram ao cidadão que só por aqueles fatos previamente definidos como delituosos, e naquelas penas previamente fixadas pode ser processado o condenado.”
Assim, pelo princípio da legalidade, a lei deve definir o comportamento proibido e suas consequências jurídicas. Além disso, a tipificação legal exige precisão da norma na descrição hipotética da conduta proibida.
7.4 Princípio da intervenção mínima / necessidade – fragmentariedade e subsidiariedade
Em um Estado Democrático de Direito, a intervenção penal e seu meio coercitivo através da sanção como resposta do Estado ao delito deve ser necessariamente mínima para a proteção efetiva dos bens jurídicos.
Não basta que um bem jurídico seja merecedor de tutela penal e sujeito a ataques ofensivos. É preciso que a intervenção penal seja extremamente necessária.
Por este princípio, o Direito Penal só pode ser invocado como a ultima ratio legis, o último Direito e remédio, em razão de sua missão em proteger bens jurídicos por meio de penas severas que implicam em restrição de determinados direitos fundamentais da pessoa como a liberdade.
Embora não explícito na Constituição Federal, o princípio da intervenção mínima ou da necessidade é um dos fundamentais para a construção de políticas criminais, limitando a atividade punitiva estatal.
Sobre a intervenção mínima do Direito Penal, comenta Luiz Luisi[42]:
“Tem se entendido, ainda, que o direito penal deve ser a ratio extrema, um remédio último, cuja presença só se legitima quando os demais ramos do direito se revelarem incapazes de dar a devida tutela a bens de relevância para a própria existência do homem e da sociedade. O direito penal, pois, teria uma fisionomia subsidiária, e sua intervenção só se justifica no dizer de F. Munhoz Conde, “quando fracassam as demais maneiras protetoras do bem jurídico e predispostas por outros ramos do direito.”
Da intervenção mínima decorre o princípio da subsidiariedade, revelando a invocação do Direito Penal somente quando nenhum outro ramo do Direito for capaz de tutelar determinado bem jurídico.
E o caráter fragmentário do Direito Penal, em que somente se justifica a intervenção penal diante de ataques intoleráveis a bens jurídicos que ostentem relevância social e dignos de sanção penal. A fragmentariedade considera a essencialidade do bem, a gravidade da ofensa e o merecimento de pena.
7.5 Princípio da lesividade ou ofensividade
O princípio da lesividade ou ofensividade caminha lado a lado ao princípio da intervenção mínima. Se a intervenção mínima permite a intervenção penal somente diante de ofensas a bens jurídicos relevantes quando nenhum outro ramo do Direito estiver apto a proteger, o princípio da lesividade impõe ao Direito Penal o poder de punir apenas nas condutas que sejam lesivas a bens de terceiros.
Sob a ótica material do crime, sua tipificação prescinde, ao menos, um perigo concreto, real e efetivo de dano ao bem jurídico penalmente protegido.[43]
A lei penal está obrigada a observar o princípio da utilidade penal e assim delimitar o campo de suas proibições. Para que isso ocorra, desata-se o direito da moral, afastando o Direito Penal do cuidado de condutas meramente imorais. É a lição que traz Luigi Ferrajoli[44]:
“É evidente o nexo deste princípio com o de reserva de lei, que deveria vetar ou, quando menos, obstaculizar a infração penal e, por outro lado, como a função, já descrita, do direito penal mínimo como ius necessitatis e da pena como mal menor para quem a sofre e para a comunidade. Se o direito penal responde somente ao objetivo de tutelar os cidadãos e de minimizar a violência, as únicas proibições penais justificadas por sua “absoluta necessidade” são, por sua vez, as proibições mínimas necessárias, isto é, as estabelecidas para impedir condutas lesivas que, acrescentadas à reação informal que comportam, suporiam uma maior violência e uma mais grave lesão de direitos do que as geradas institucionalmente pelo direito penal.”
Ainda, o princípio da lesividade opera como regulador do jus puniendi do Estado. Este princípio orienta o legislador na reflexão de condutas que mereçam realmente a repulsa penal.
O princípio da lesividade ou ofensividade ganha força na égide de um Estado de Direito sob um modelo de Direito Penal mínimo, pois, juridicamente orienta na tutela de direitos entendidos como necessários.
7.6 Princípio da responsabilidade pessoal e da culpabilidade
A regra contida no artigo 5º, inciso XLV da Constituição Federal estabelece que “a pena não passará da pessoa do delinquente”, assegurando que a responsabilidade penal é pessoal e em hipótese alguma transcenderá a pessoa do criminoso.
O intuito do legislador foi ignorar os males do passado do agente criminoso, não punindo igualmente seus familiares, parentes ou amigos, mas tão-somente a sua pessoa.
A responsabilidade pessoal está intimamente ligada ao princípio da culpabilidade, já que, se de um lado a pena é destinada ao delinquente, de outro é de exigir dele, uma ação com carga de dolo ou culpa, afastando-se a responsabilidade penal objetiva.
O princípio da culpabilidade está consagrado na Constituição no artigo 5º, inciso XVII, prevendo que “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória” fundamentado na dignidade da pessoa humana e vigendo o princípio nullum crimen sine culpa, isto é, não há crime sem culpabilidade.
A culpabilidade, preleciona Muñoz Conde[45], consiste em um fenômeno social avaliado por um conjunto de forças sociais de um determinado período histórico, que justifique por quê, e para quê, vale-se da pena e em que medida, como instrumento de defesa da sociedade, atribuir ao criminoso a responsabilidade de sua ação.
Parte da doutrina entende a culpabilidade como fundamento da pena e, outros, a inclui como elemento do delito. A culpabilidade se completa se preenchidos três requisitos: capacidade de ser culpável, potencial conhecimento da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. Sendo assim, na falta de um deles, na divisão doutrinária, não inexiste o delito ou persiste, mas como pressuposto de aplicação da pena. Na visão, ainda, de Gunther Jakobs[46]:
“Sem respeitar o princípio da culpabilidade, a pena é ilegítima; mas se o princípio da culpabilidade limita consideravelmente a utilização de meios socialmente funcionais, isto é, se tem um significado e não é um conceito vazio, então existe o perigo de que a pena seja inadequada para a consecução de seus fins e seja ilegítima por essa outra razão.”
Por derradeiro, como ressaltado, a culpabilidade não abre espaço à responsabilidade objetiva, que inclusive, foi atento o legislador brasileiro, porque ninguém poderá ser culpado por resultado imprevisível sem a presença de dolo ou culpa.
7.7 Princípio da humanidade
A prescrição de penas cruéis e infamantes, a proibição de tortura e maus-tratos nos interrogatórios policiais e a obrigação imposta ao Estado de dotar sua infra-estrutura carcerária de meios e recursos que impeçam a degradação e a dessocialização dos condenados são corolários do princípio de humanidade.
O princípio da humanidade se consagrou no Direito Penal através do iluminismo no século XVIII, preconizando total repúdio ao Estado que executa penas atentatórias a dignidade humana. O artigo 5º, inciso XLIX da Carta Magna dispõe que é “assegurado aos presos o respeito, à integridade, física e moral”, inciso XLVII que determina que não haverá penas de: a) morte salvo em caso de guerra declarada nos termos do artigo 84, inciso XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis.
É oportuno anotar que estas penas não são bem-vindas ao ordenamento jurídico, por não se coadunarem ao atual patamar de desenvolvimento de nossa sociedade – que valoriza acima de tudo a dignidade humana – e por afrontarem o princípio da humanidade e o próprio interesse social.
Na acepção de Bittencourt[47], a prisão serviu como resposta no século XIX e cumpriu sua função em reabilitar o criminoso, mas, na atual conjuntura, a prisão está em falência e se tornou objeto de crítica pelas correntes modernas que a julga como instrumento ineficiente na função ressocializadora do agente criminoso.
Ferrajoli lembra que o sangue derramado pelas penas é maior que o produzido pelos delitos e, anota Bitencourt, que a prisão, a princípio, funcionaria como um freio da criminalidade, quando na verdade, parece estimulá-la. Os dois autores, portanto, concluem haver desumanidade.
7.8 Princípio da proporcionalidade
O princípio em espeque, ainda que sua natureza advém do Direito Administrativo, é significativo ao Direito Penal porque, em essência, repele o intervencionismo estatal no exercício do jus puniendi.
A proporcionalidade veio para o Direito Penal através Montesquieu, que comparou os delitos frente as suas respectivas sanções. Posteriormente, a Alemanha foi o primeiro país a elevá-lo como um Princípio Geral do Direito. A partir daí, as Constituições trouxeram aos seus ordenamentos jurídicos a proporcionalidade sob a concepção de que todo meio empregado deve atender os critérios da necessidade e moderação.
No Brasil, em 1988, a Constituição Federal de 1988 acolheu o princípio da proporcionalidade na forma implícita, pela leitura do artigo 5º, incisos XLII, XLIV e XLVI.
A proporcionalidade remete a ideia de justo, equidade, razoabilidade e moderação. Atua como instrumento ao legislador na construção da norma, constituindo um estado de equilíbrio entre o meio a ser empregado e o fim proposto.
A proporcionalidade é observada em uma fase abstrata pelo legislador que diante da elaboração de normas, avaliando quais seus objetivos, a finalidade do Estado e os direitos e garantias, selecionará os meios pertinentes de acordo com a consecução do fim almejado. Portanto, a proporcionalidade aqui opera como proibição de excesso de atos legislativos.
Na lição de Paulo Bonavides[48]:
“O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e necessário para alcançar o objetivo procurado. O meio é adequado quando seu auxílio se pode alcançar o resultado desejado; é necessário, quando o legislador não poderia ter escolhido outro meio, igualmente eficaz, mas que não limitasse ou limitasse de maneira menos sensível o direito fundamental.”
Em um segundo momento, a proporcionalidade é examinada no caso concreto pelo aplicador da lei que optará pela medida mais justa possível. Nesse momento, a proporcionalidade atua como mecanismo de controle de arbitrariedade do Poder Público.
Anota Luís Roberto Barroso[49]:
“O apego excessivo a certos dogmas da separação de Poderes impôs ao princípio da razoabilidade uma trajetória relativamente acanhada. Há uma renitente resistência ao controle judicial do mérito dos atos do Poder Público, aos quais se reserva um amplo espaço de atuação autônoma, discricionária, onde as decisões do órgão ou do agente público são insindicáveis quanto à sua conveniência e oportunidade.”
O princípio da proporcionalidade se desdobra em três subprincípios: adequação ou idoneidade, necessidade ou exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito. Há correntes doutrinas que acrescenta ainda a proibição de excesso e a proteção do hipossuficiente.
É imperioso destacar que no Direito Penal este princípio é manejado com muita cautela em duas oportunidades: na tutela efetiva de bens jurídicos, quando na criação de tipos penais, prescrevendo delitos seguidos de suas sanções, e no jus puniendi, ocasião em que a pena é aplicada ao caso concreto de forma que se adeque a resposta estatal.
7.9 Princípio da individualização da pena
A Carta Magna no inciso XLVI do artigo 5º prevê que a “lei regulará a individualização da pena”. O processo de individualização da pena percorre três etapas.
A primeira é a individualização legislativa – o legislador penal, na elaboração da norma, atentando ao bem jurídico tutelado e a gravidade da ofensa, fixará as penas mínimas e máximas, justas e necessárias à reprovação do delito.
A segunda etapa é a individualização judiciária – na condenação de um criminoso pela prática de um delito, o juiz aplicará a pena prevista em lei ao caso concreto, observando o artigo 59 do Código Penal e critérios pertinentes para repressão e prevenção do crime.
E por fim, a última etapa da individualização executória – o juiz da execução criminal determinará o cumprimento individualizado da pena aplicada, a execução da pena de cada réu correrá de forma distinta, posto que, o objetivo principal é a sua ressocialização.
O princípio da individualização da pena é princípio constitucional penal que se firma como importante garantia na cominação, aplicação e execução das penas e na limitação do poder punitivo do Estado, concretizando, assim, um Estado de justiça social, que se assenta na dignidade da pessoa humana.
Conclusão
Uma mudança de ótica para o Direito pela comissão de juristas da reforma penal de 1984 alterou todo o seu manuseio e destino perante o ordenamento jurídico penal brasileiro.
Por vezes o Direito Penal através dos Códigos Penais esteve separado da Constituição vigente e a partir de 1988, aderindo a Constituição Federal às premissas anteriormente adotadas pela grande reforma, permitiu o surgimento de novas teorias e uma concepção ganhou destaque: o Direito Penal fundamentado na Constituição.
A forma como se comportou o legislador de 1988, qual seja, em sintonia com o legislador 1984 demonstra que o Direito Penal deve ser encarado à luz da Constituição e de suma importância que, se quisermos adotar uma linha filosófica-sistêmica de como se fez naquela oportunidade, esse é o primeiro ponto de partida.
O Direito Penal partindo da premissa de um Estado Democrático de Direito fortaleceu a obrigação e necessidade de se respeitar os direitos e garantias fundamentais, lutados às duras penas ao longo dos séculos. Os princípios constitucionais penais são a prova verdadeira dessa conquista.
Espera-se, assim, que o Direito Penal continue cada vez mais se aperfeiçoando, tornando-se um efetivo instrumento de controle social que proteja à sociedade e, ao mesmo tempo, opere de forma humana, sempre observando os direitos e garantias dos cidadãos. E que, na mesma linha, a Constituição caminhe no mesmo sentido, a fim de se evitar falhas, abusos ou descompassos.
A grande lição, portanto, e de inspiração para o futuro é a importância de se adotar uma linha filosófica sistêmica e harmônica das legislações que regem o país, sem nunca fugir de vista a dignidade da pessoa humana.
Referências
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1999.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. Causas e Alternativas. São Paulo: Saraiva, 2011.
_____________. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
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[1]Toledo, Francisco de Assis. Princípios Básicos do Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 66-67.
[2]Toledo, Francisco de Assis, op.cit., p. 68.
[3]Costa Jr., Paulo José. Costa, Fernando José da. Curso de Direito Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 66.
[4]Brasil, Lei Federal nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal.
[5]Op. cit., p.70.
[6]Op. cit., p.70-71.
[7]O novo sistema jurídico-penal: uma introdução a doutrina da ação finalista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.2.
[8]ROXIN, Claus. Derecho Penal – parte general: fundamentos de la estrutura de la teoria del delito – volume 1. Tradução Diego Manoel Luzón Pena, Miguel Dias, Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Editorial Civistas, 1997, p. 236-237.
[9]Op. cit., p.82-83.
[10]Curso de Direito Penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.338.
[11]Op. cit., 335/338
[12]Op. cit., p.86.
[13]Costa Jr., Paulo José. Costa, Fernando José da, op. cit., p. 164.
[14]Op. cit., p. 229.
[15]Op. cit., p. 164.
[16]Brasil, Lei Federal nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal.
[17]Chamon Junior, Lúcio Antônio. Do Giro Finalista ao Funcionalismo Penal. Embates de perspectivas dogmáticas decadentes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p.16 e ss.
[18]Lições de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p.18.
[19]Problemas Fundamentais de Direito Penal. Tradução: Ana Paula dos Santos Luis Natscheradetz. Lisboa: Vega, 2001, p.59 e ss.
[20]Costa Jr., Paulo José. Costa, Fernando José da, op. cit., p. 125.
[21]Op. cit., p.125.
[22]Direito Penal do Inimigo. Noções e Críticas. Tradução: André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.26-27.
[23]Idem, ibidem.
[24]Op. cit., p.69.
[25]Persona, mundo y responsabilidad: bases para uma teoía de la imputación en derecho penal. Tradução de Francisco Muñoz Conde e Maria del Mar Diaz Pita Tirant lo Blanch Alternativa, 1999, p.20-21.
[26]Toledo, Francisco de Assis, op. cit., p. 6.
[27]Op. cit.,p.76.
[28]Fundamentos para um Direito Penal Democrático. São Paulo: Atlas, 2013, p.36.
[29]Op. cit., p.277-278.
[30]Brasil, Lei Federal nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal.
[31]Op. cit., p.72.
[32]Crime Eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2008, p.66.
[33]Política Criminal e Crimes Econômicos. Uma crítica constitucional. São Paulo: Alameda, 2012, p.56.
[34]In Giacoia Junior, Oswaldo. Nietzche x Kant. São Paulo: Casa do saber, 2012, p.78 e ss.
[35]Ponte, Antônio Carlos da. Inimputabilidade e processo penal. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.79.
[36]Op. cit., p.151.
[37]Idem, ibidem.
[38]Op. cit., p.152.
[39]Idem, ibidem.
[40]Luisi, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p.17-18.
[41]Op. cit., p.43.
[42]Op. cit., p.40.
[43]Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.52.
[44]Direito e Razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.427
[45]Teoria Geral do Delito. Tradução Juarez Tavares e Luiz Régis Prado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p.129.
[46]Fundamentos do Direito Penal. Tradução: André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.12-13.
[47]Op. cit., p.162.
[48]Curso de direito constitucional. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.372.
[49] Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1999, p.224.
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