Resumo: O presente trabalho tem o objetivo reconhecer no Direito Penal Brasileiro a existência de normas penais que proporcionam um tratamento penal favorável aquele considerado amigo pela norma penal confrontando-as e amoldando-as com as reflexões teóricas do direito penal mínimo e fazendo um contraponto com o Direito Penal do Inimigo proposto por Gunther Jakobs.
O Direito Penal contemporâneo, com sua haste erguida sob o terreno regente dos princípios da dignidade da pessoa humana e da culpabilidade, levanta a bandeira da responsabilidade penal fundada no fato do agente. É o que se denomina de Direito Penal do Fato, de modo que a pena constitui a consequência daquilo que o indivíduo fez e não daquilo que ele é.
Essa perspectiva humanista é resultado de grande evolução filosófica e científica. Não obstante, se exibe de modo relativamente novo, encontrando, ainda, dificuldades de estruturação plena diante de reminiscências de um Direito Penal do Autor no universo jurídico nacional e alienígena.
De qualquer sorte, as conquistas humanitárias desnudaram quase que por completo o determinismo da Escola Positivista. A perspectiva lombrosiana, seguida pelas ideias deterministas de Enrique Ferri e Rafael Garófalo, de que as características pessoais/sociais do sujeito seriam um fator categórico de criminalidade (criminologia etiológica) foi, pouco a pouco, cedendo à lógica garantista do princípio da culpabilidade, corolário do princípio da dignidade.
Não obstante, há ainda um almanaque de institutos no Direito Penal brasileiro que consideram circunstâncias intimamente ligadas à pessoa do autor do fato como elemento determinante de sua situação jurídico penal. A lista é grande, mas é possível a citação dos principais: a) as circunstâncias judiciais incidentes na primeira fase da dosimetria da pena (CP, art. 59), donde são relevantes, por exemplo, antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente etc.; b) a reincidência, já abolida em países como Alemanha[1] e Colômbia[2], é ainda circunstância agravante prevista no art. 61, inciso I, do Código Penal brasileiro; c) a habitualidade, como causa que afasta a aplicação do princípio da insignificância[3], dentre outros.
A doutrina especializada afirma sem tremeluzir que “não se pode penalizar um homem por ser como escolheu ser, sem que isso violente a sua esfera de autoderminação.”[4] A imprecisão conceitual da “personalidade normal”, a ausência de sustentáculo normativo das teorias da “maior periculosidade” ou da “dupla lesão” como fundamento para o instituto da reincidência, que sucumbe diante do indiscutível bis in idem e dos nefastos efeitos anti-socializadores do processo de rotulação (criminologia da reação social ou do conflito – labelling approach) — tudo faz com que a doutrina de vanguarda, apesar da resistência dos tribunais superiores, considere tais institutos inconstitucionais, ou melhor dizendo, não recepcionados pela Constituição da República Federativa do Brasil, alicerçada no princípio da dignidade humana.
Nessa ceara, a culpabilidade deve sempre ser referida a um fato determinado, sujeitando-se ao juízo de censura o fato concretamente realizado, afastando qualquer influência dos elementos pessoais do autor da conduta desviante típica. Não se pode prejudicar a situação jurídico-penal do sujeito com base em seus elementos pessoais. Mas, por outro lado, seria possível utilizar elementos pessoais para beneficiar, para atenuar a reprimenda estatal ou mesmo estabelecer melhores garantias processuais?
Pois bem. Assim como fez Gunther Jakobs, na jornada de Direito Penal de Frankfurt, em 1.985, reconhecendo a existência de um “Direito Penal do Inimigo”, é preciso, antes de se abordar a legitimidade do instituto, reconhecer a existência de um Direito Penal do Cidadão ou Direito Penal do Amigo, com manifestações claras no Direito Penal brasileiro.
É incontestável a existências de normas que reconhecem, axiologicamente, bons valores na personalidade do agente, modo de vida, bons antecedentes etc., e assim criam um direito subjetivo de benefício em uma das dimensões da persecutio, atenuando, nesse passo, a punibilidade.
Note-se, por exemplo, o jovem e polêmico[5] instituto da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas[6]. Segundo esse dispositivo, fatos alheios à conduta delituosa, como a primariedade, os bons antecedentes e outras atividades a que se dedica o agente são valoradas não para prejudicar o réu, mas para beneficiá-lo (causa de diminuição de pena, um sexto a dois terços).
Portanto, ainda sem verificar a viabilidade de tal instituto sob o enfoque dogmático, é legítimo afirmar que no Brasil existe um tipo normativo de autor, ou melhor dizendo, um tipo normativo de cidadão (para diferenciar do indesejado Direito Penal do Autor). A norma penal benéfica somente se ajusta ao fato caso se amolde ao modelo de cidadão por ela exigido. É normativo, pois estabelece uma necessária visualização de uma escala de valores positivos da qual se vale o julgador para amoldar o benefício penal àquela determinada conduta. A norma afirma até mesmo uma possibilidade de constatação empírica da vida do criminoso, afinal, como saber se ele não se dedica a atividades delituosas nem integra organização criminosa, conforme a norma prevista no citado artigo da Lei 11.343/06?
Enfim, é preciso reconhecer a aparição, ainda tímida, de um Direito Penal do Cidadão no Direito Brasileiro. Após, deve-se abordar o tema para legitimá-lo, sob um enfoque protetivo, reconhecendo-se nele uma feição da “prudente não-intervenção”, ou de atuação político-criminal visando evitar o “etiquetamento criminológico” e suas consequências contrárias à ressocialização, de aceitação do movimento denominado de “fuga da pena”[7] e de premiação do Direito Penal Mínimo, conforme proposto por Alessandro Baratta[8]. Ou seria o Direito Penal do Cidadão apenas o outro lado da moeda do tão criticado Direito Penal do Autor? Afinal ao beneficiar alguém com base em características pessoais está-se, noutra ponta, prejudicando quem não as tem.
A norma penal que dá efeitos jurídicos positivos ao autor de uma conduta desviante típica e cria um tratamento diferenciado àquele cidadão considerado “amigo” pela própria lei penal é evidentemente uma norma com grande substrato político-criminal. É também uma norma que se utiliza da mesma e criticável abordagem do denominado Direito Penal do Autor, revivida no Direito Penal do Inimigo reconhecido e estruturado na década de 80 e 90 por Jakobs.
Sabe-se que os princípios fundamentais devem ser utilizados como forma de proteção do indivíduo e, portanto, não poderiam afetar uma situação jurídica favorável criada pela norma penal, mesmo que tal benefício se utilize e tenham como espeque elementos íntimos do autor do fato, onde, conforme a doutrina clássica, não é legítimo ao Estado regulamentar[9]. Entretanto, como esse tratamento diferenciado pode se legitimar diante de suas implicações com o princípio da igualdade, dignidade e culpabilidade?
Sabe-se que, como bem salienta Pimenta Bueno a “(…) lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania” [10]. Portanto, de que modo se pode afirmar a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no §4º do art. 33 da Lei de Drogas, que utiliza os elementos pessoais ali previstos para beneficiar a situação do agente, se para todos os demais crimes não há previsão para o mesmo tratamento?
A solução para a manutenção do Direito Penal do Cidadão no universo jurídico demanda, primeiramente, o seu reconhecimento. Somente após será possível estrutura-lo, catalogar suas características principais e, por fim, coloca-lo frente a frente com os princípios regentes do Direito Penal moderno de modo abraça-lo, como evolução benvinda do direito penal, ou repudiá-lo, como aparição dissimulada do Direito Penal do Autor.
É imprescindível abordar cientificamente um instituto penal, seja ele qual for, sob uma ótica criminológica, de modo a guiar a política criminal e, por conseguinte, a criação da dogmática penal. Assim deve ser feito com o Direito Penal do Cidadão que, entendido quando ainda é jovem, pode ser moldado e configurado conforme os anseios do Estado Democrático de Direito.
Informações Sobre o Autor
Lucas Sachsida Junqueira Carneiro
Promotor de Justiça do Estado de Alagoas; Pós-graduado em Direito Constitucional pela Unisul Pós-graduando em Gestão Jurídica da Empresa pela Unesp e Mestrando em Direitos Humanos pela Unesp.