Roselia Fagundes Pires – Acadêmica de Direito na Universidade de Gurupi UnirG. E-mail: rofagundes11@hotmail.com
André Henrique Oliveira Leite – Graduação em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG), 2003; Mestre em Prestação Jurisdicional em Direitos Humanos pela UFT, 2017. E-mail: prof.andrehenriqueleite@unirg.edu.br.
Resumo: O direito penal do inimigo é uma teoria de origem alemã pautada na ideia de que determinados criminosos, por serem contumazes descumpridores das leis penais e terem praticado de delitos de maior gravidade, são considerados inimigos do Estado e, consequentemente, perdem o status de cidadãos e os direitos e garantia dele decorrentes. Em contrapartida, aos infratores que não são inimigos é resguardado o direito penal do cidadão, no qual os direitos fundamentais permanecem resguardados. Por se tratar de teoria que flexibiliza os direitos dos acusados, a pesquisa tem como objetivo discutir o seu cabimento no direito brasileiro. Por meio de pesquisa bibliográfica, de análise qualitativa de textos e jurisprudências, a pesquisa apontará ao final a inaplicabilidade do direito penal do inimigo no ordenamento brasileiro em razão da sua afronta aos princípios norteadores do direito brasileiro, fundamentais para a garantia da dignidade humana que deve ser resguardada a todos os cidadãos, inclusive os que comentem delitos.
Palavras-chave: Direito Penal. Inimigo. Brasil. Inaplicabilidade. Princípios constitucionais.
Abstract: The enemy’s criminal law is a theory of German origin based on the idea that certain criminals, because they are noncompliant with criminal laws and have committed more serious crimes, are considered enemies of the State and, consequently, lose the status of citizens and the rights and warranty arising therefrom. On the other hand, offenders who are not enemies are protected by the citizen’s criminal law, in which fundamental rights remain protected. As it is a theory that makes the defendants’ rights more flexible, the research aims to discuss its (in) applicability in Brazilian law. Through bibliographic research, qualitative analysis of texts and jurisprudence, the research will point out in the end the inapplicability of the enemy’s criminal law in Brazilian law due to its affront to the guiding principles of Brazilian law, fundamental to guarantee the human dignity that should be protected for all citizens, including those who comment on crimes.
Keywords: Criminal Law. Enemy. Brazil. Inapplicability. Constitutional principles.
Sumário: Introdução. Materiais e Métodos. 1. Velocidades do direito penal. 2. O direito penal do inimigo. 2.1. Origem histórica. 2.2. Conceito. 2.3. Características. 3. Análise das críticas do direito penal do inimigo: argumentos contrários e favoráveis. 4. O direito penal do inimigo no Brasil. 4.1 Direito penal brasileiro. 4.2 Cabimento no direito brasileiro. Considerações finais. Referências.
Introdução
Compete ao direito penal a tipificação das condutas tidas como criminosas e a previsão da sanção penal a elas imposta. Assim como as demais normas, as leis penais estão submetidas a observância dos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, de modo que a pena somente é aplicada após a tramitação do processo penal, em que estão resguardados os direitos fundamentais dos acusados.
Contudo, em razão do sentimento de impunidade e das constantes ameaças a bens jurídicos essenciais como a vida e incolumidade física da sociedade, surgiram ideais de aplicação de um direito penal que fosse mais severo, a fim de resguardar e proteger a sociedade até então a mercê dos criminosos.
Foi a partir deste fato que surgiu a teoria do direito penal do inimigo, elaborada pelo Alemão Gunther Jakobs, cuja tese defende a existência de inimigos do Estado, que são os contumazes criminosos, que praticam delitos de alta gravidade e que, por não terem chances de recuperação, merecem tem seus direitos flexibilizados. Defende ainda, em contrapartida, a existência do direito penal do cidadão em que todas as garantias e direitos são resguardados por entender que o infrator pode ser ressocializado. Via de regra, a distinção se dá em razão da gravidade do delito.
A considerar os aspectos radicais de tal teoria, a pesquisa busca solucionar o questionamento acerca da sua aplicabilidade no direito penal brasileiro segundo a interpretação da doutrina, jurisprudências e das Leis.
Após a pesquisa científica, os aspectos gerais do direito penal do inimigo, suas características, efeitos e apontamentos doutrinários estarão evidenciados a ponto de demonstrar que esta teoria não tem sido aplicada de forma irrestrita no direito brasileiro pois, se assim fosse, os direitos e garantias fundamentais seriam violadas em razão do conceito abstrato do inimigo criado por Jakobs.
Material e Métodos
A pesquisa irá discutir a aplicação da teoria do Direito Pena do Inimigo no ordenamento brasileiro, análise esta pautada nas legislações penais em vigor e nos fundamentos constitucionais. O método de pesquisa adotado é o dedutivo, com base em material bibliográfico publicado no Brasil tais como livros, dissertações, artigos, teses e jurisprudências disponíveis em arquivos físicos e digitais.
Inicialmente serão explanados os fundamentos já existentes sobre a matéria para em seguida discutir seus efeitos e aplicação prática no direito penal brasileiros, com análise qualitativa do textos e conteúdos sobre o direito penal do inimigo e exposição dos resultados através de transcrição de trechos.
Não houve prévia submissão da pesquisa jurídica à aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (Resolução CNS 466/2012) haja vista que as informações coletadas para o estudo foram obtidas por meio de materiais já publicados, sem haver qualquer abordagem direita ou intervenção junto a outros seres humanos.
1 Velocidades do direito penal
Jesús-Maria Silva Sanches desenvolveu a teoria de que o direito penal divide-se em três velocidades, cada qual com uma interpretação acerca das sanções aplicadas aos infratores e as garantias processuais do processo penal (SANCHES apud MASSON, 2014, p.145).
A primeira velocidade é “representada pelo Direito Penal “da prisão”, na qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais”(SANCHES apud MASSON, 2014, p.145).
Esta primeira velocidade consiste na percepção tradicional de que a finalidade do direito penal é a aplicação da pena privativa de liberdade e que para isso, as garantias penais e processuais penais devem ser observadas (GRECO, 2012)
Por sua vez, a segunda velocidade do direito penal é aquela voltada aos delitos em que não há previsão de aplicação de penas privativas de liberdade e sim de penas restritivas de direito, como é o caso dos delitos regulamentados pela Lei do Juizado Especial Criminal (GRECO, 2012).
Uma vez que não existe a privação da liberdade, seria possível flexibilizar as regras garantistas em razão da menor intensidade da sanção.
“quando a sanção penal possível de ser aplicada no caso concreto se limitar às restrições de direitos, ou à multa, a ação penal pode ser mais ágil, eis que a disputa entre o acusado e o Estado não envolve tão relevante bem jurídico: a liberdade do ser humano” (MASSON, 2014, p.134).
Além delas, existe ainda uma terceira velocidade, a qual seria uma junção entre as duas velocidades anteriores, ao passo que utiliza a pena privativa de liberdade como instrumento de sanção e, ao mesmo tempo, flexibiliza as garantias penais e processuais dos acusados.
Em outras palavras:
“Defende a punição do criminoso com pena privativa de liberdade dos crimes de mais gravidade, todavia, difere-se da primeira velocidade ao permitir que, para os cries considerados mais graves, haja a flexibilização ou eliminação de direitos e garantias fundamentais” (BYRON, 2017, p.1).
É nesta terceira velocidade do direito penal que está inserida a teoria do direito penal do Inimigo, matéria que é objeto deste estudo.
2.1 Origem histórica
O denominado direito penal do inimigo, no alemão “Feindstrafrecht”, tem sua origem na década de 1980, oriunda das ideias do alemão Gunther Jakobs e que foi apresentada pela primeira vez uma palestra realizada na Universidade de Bonn, no ano de 1985 (BRITO, 2015).
Seu criador a desenvolveu com base em grandes filósofos e pensadores, dos quais se destacam Jean-Jacques Rosseau, Thomas Hobbes, Immanuel Kant e Johann Gottlieb Fichte.
Partiu do pensamento de Rosseau, de que aqueles que atacam o direito social deixam de ser membros do Estado e entram em guerra contra ele (ROUSSEAU apud VEIGA JR., 2017), ideia que se assemelha ao pensamento de Fichte, que defende que “quem abandona o contrato cidadão em um ponto em que no contrato se contava com sua prudência, seja de modo voluntario ou por imprevisão, em sentido estrito perde todos os seus direitos como cidadão e como ser humano” (FICHTE apud VEIGA JR., 2017, p.1)
Na mesma linha de interpretação, Kant assevera que, ao indivíduo é dado uma escolha, ao passo que “eu posso obrigá-lo a entrar em um estado social-legal ou afastar-se do meu lado” (KANT apud PIM, 2006, p.65).
Nessa perspectiva, Hobbes entende que, aquele que quebra seus vínculos com a sociedade civil e passa a viver em estado de natureza, isto é, com liberdade de usufruir de seu poder da forma que quiser para preservar sua vida, passa a ser considerado um inimigo desta sociedade (HOBBES apud CARVALHO JR., 2012).
Apesar de desenvolver sua tese com base em grandes pensadores, o ideal de direito penal do inimigo inicialmente apresentado não foi aprovado de imediato.
“Frise-se que em 1985, a temática não ganhou muita repercussão. Somente a partir de 1999, é que a Teoria do Direito Penal do Inimigo ganhou força e adeptos, refletindo na legislação de vários países os seus principais contornos. Isso ocorreu devido à mudança de pensamento social, que passou a buscar meios de combate para os efeitos gerados desde a queda do comunismo (1989) até os recentes atentados terroristas ocorridos no plano internacional na presente década (JESUS, 2005, p. 01), mormente o de 11 de setembro de 2001 (Nova Iorque), sem dúvida, o mais marcante e decisivo” (BINATO JR et. al. 2012, p.2).
Foi com o passar dos anos que as ideias de Gunther Jakobs foram se desenvolvendo e se tornando presente nos ordenamentos jurídicos de vários países, dentre eles o Brasil, cuja interferência e aplicação serão discutidas no decorrer nesta pesquisa.
2.2. Conceito
O chamado direito penal do inimigo foi idealizado por Jakobs a partir da ideia de que existe uma divisão do infratores em duas classes distintas: os delinquentes, entendidos como aqueles que, apesar de terem cometido um crime, não perdem o seu status de cidadão e tem seus direitos e garantias fundamentais garantidos no processo penal; e os criminosos, que deixam de ser considerados cidadãos e tornam-se inimigos do Estado, sem garantias legais, com julgamento mais rígido, separação que se dá em razão da gravidade do delito cometido.
Jakobs explica que “não se trata de contrapor duas esferas isoladas do Direito penal, mas de descrever dois polos de um só contexto jurídico-penal”, de modo que o direito penal do inimigo se aplicaria a quem “se afastou, de maneira duradoura, ao menos de modo decidido, do Direito, isto é, que não proporciona a garantia cognitiva mínima necessária a um tratamento como pessoa” (JAKOBS apud BINATO JR. et. al., 2012, p.3)
Rogério Greco, ao interpretar a teoria de Jakobs, explica
“Jakobs, por meio dessa denominação, procura traçar uma distinção entre um Direito Penal do Cidadão e um Direito Penal do Inimigo. O primeiro, em uma visão tradicional, garantista, com observância de todos os princípios fundamentais que lhe são pertinentes; o segundo, intitulado Direito Penal do Inimigo, seria um Direito Penal despreocupado com seus princípios fundamentais, pois que não estaríamos diante de cidadãos, mas sim de inimigos do Estado” (GRECO, 2012, p. 1).
Portanto, segundo esta teoria existe uma separação dos transgressores da lei, entre aqueles que fazem jus ao direito penal do cidadão e o direito penal do inimigo.
2.3 Características
Manuel Cancio Meliá ao interpretar os ensinamentos de GuntherJakobs, aponta que são três as elementares que caracterizam o direito penal do inimigo:
“[…] em primeiro lugar, se constata um amplo adiantamento da punibilidade, quer dizer, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), em lugar de – como é habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionadamente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é tida em conta para reduzir em correspondência a pena ameaçada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou, inclusive, suprimidas[…]” (MELIÁ apud GRECO, 2012, p.1)
Esta teoria divide-se em duas vertentes contrapostas a serem observadas no mesmo processo penal: o direito penal do cidadão e o direito penal do inimigo.
O direito penal do cidadão é aplicado aqueles que cometeram um delito, mas que podem ser ressocializados e não voltar a delinquir e “ao cidadão que comete um crime são asseguradas as garantias penais, o devido processo legal” (PILATI, 2009, p.6)
Em se tratando o autor do delito um indivíduo dotado de direitos, a ele é aplicado “um direito penal do cidadão, amplo e dotado de todas as garantias constitucionais, processuais e penais, típico de um Estado Democrático de Direito” (MASSON, 2014, p.138).
Quando for considerado um inimigo, seus direitos deixam de ser observados, por não ter o criminoso o status de cidadão, por estar o Estado em um verdadeiro estado de guerra contra o infrator.
“O inimigo, assim, não pode gozar de direitos processuais, como o da ampla defesa e o de constituir defensor, haja vista que, sendo uma ameaça à ordem pública, desconsidera-se sua posição de sujeito na relação jurídico-processual. Possível, inclusive, a sua incomunicabilidade. Em uma guerra, o importante é vencer, ainda que para isso haja deslealdade com o adversário. Como representa grande perigo à sociedade, deixa-se de lado o juízo de culpabilidade para a fixação da reprimenda imposta ao inimigo, privilegiando-se sua periculosidade” (MASSON, 2014, p.136).
De acordo do Jakobs, os infratores que receberiam este tratamento do Estado seriam aqueles que praticaram delitos de alta gravidade, de maior potencialidade ofensiva.
Rogério Sanches, de modo didático e resumido aponta que as características do direito penal do inimigo são:
“1. Antecipação da punibilidade com a tipificação de atos preparatórios; 2. Criação de tipos de mera conduta; 3. Previsão de crimes de perigo abstrato; 4. Flexibilização do princípio da legalidade; 5. Inobservância do princípio da ofensividade e da exteriorização do fato; 6. Preponderância do Direito Penal do Autor; 7. Desproporcionalidade das penas; 8. Endurecimento da execução penal; 9. Restrição das garantias penais e processuais;” (SANCHES apud VEIGA JR, 2017, p.1)
Por se tratar de teoria que prevê consequências penais e processuais radicais a depender do delito praticado, sua aplicação divide opiniões no meio doutrinário.
3 Analise das críticas do direito penal do inimigo: argumentos contrários e favoráveis
A teoria do direito penal do inimigo, ao prever suas modalidades de direito penal, o do cidadão e o do inimigo, divide opiniões entre os penalistas quanto a possível ofensa aos princípios do Estado Democrático de Direito.
Rogério Greco está dentre aqueles que se posiciona contrário a aplicação do direito penal do inimigo por entender que não existe uma exata definição do “inimigo”, afirmando que sua admissão poderia causar graves consequências e colocar em risco a sociedade como um todo. Para ilustrar seu posicionamento, o autor tece uma comparação com a Alemanha Nazista, quando Hitler, ao buscar restabelecer o país conforme seus ideais, declarou inimigos os demais e com eles praticou atos monstruosos (GRECO, 2012).
Defensor do Direito penal Mínimo, Grego afirma que, ao tratar de forma distintas aqueles tidos como cidadãos ou inimigos seria voltar ao passado, a uma história que deveria em verdade ser esquecida (GRECO, 2012). Afirma o Autor que:
“Não podemos desistir do homem, sob o falso argumento de ser ele incorrigível, de possuir um defeito de caráter, que o impede de agir conforme os demais cidadãos. Tanto o projeto criado durante o regime absurdo do nacional-socialismo como o que agora se discute como uma das frentes mais radicais do Direito Penal Máximo, ou seja, o Direito Penal do Inimigo, devem ser repudiados pela nossa sociedade” (GRECO, 2012, p.1).
Outro doutrinador a se posicionar contrária a sua aplicabilidade é Eugênio R. Zaffaroni, o qual argumenta que a aplicação do direito penal do inimigo acaba por reduzir os direitos e garantias de todos os demais cidadãos, ao passo que “não será possível reduzir o tratamento diferenciado a um grupo de pessoas sem que se reduzam as garantias de todos os cidadãos diante do poder punitivo, dado que não sabemos ab initio quem são essas pessoas” (ZAFFARONI apud COSTA, 2017, p. 56)
Para Damásio Evangelista de Jesus, a melhor maneira de reagir contra um inimigo do ordenamento é garantir que as normas em vigência sejam obedecidas, que independente de qual a infração praticada pelo autor do crime, este deverá ser tido como cidadão (JESUS apud BINATO JR. et. al., 2012).
Em outra vertente, aqueles que se posicionam favoráveis ao direito penal do inimigo o fazem com base no argumento de que inexistem fundamentos que afastem a sua aplicabilidade. Luis Gracia Martín afirma que “não há nada que rebata o Direito Penal do Inimigo na mesma proporção da criação e Jakobs, nada que transpasse o emocional e o retórico, que está enraizado na sociedade, com apenas o sentimento de não poder e mais nada” (MARTIN, 2007).
No mesmo sentido é o entendimento de Fernando Capez, que defende ser possível a aplicação dessa teoria em respeito ao princípio da proporcionalidade, isto é, relativização de determinados princípios em respeito a outros. Para ele, deve sempre ser observada a maior relevância da matéria, sendo que a simples proibição a algo não deve sobrepor-se a verdadeira finalidade da norma, que é a garantia da segurança à coletividade e a punição dos infratores (CAPEZ, 2011).
Como se pode ver, o direito penal do inimigo divide opiniões entre os estudiosos do direito penal brasileiro.
4 O direito penal do inimigo no Brasil
4.1 Direito penal brasileiro
Ao direito penal compete a tipificação do crime e a previsão das respectivas sanções penais a serem aplicadas aos autores dos crimes, as quais somente podem ser aplicadas pelo Estado, único detentor do jus puniendi.
Assim como ocorre nos demais ramos, o direito penal está inserido dentro do ordenamento jurídico e, por consequência, deve observar os fundamentos contidos na Constituição Federal de 1988, que estabelece o Estado Democrático de Direito.
“Sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, por reflexo, seu direito penal há de ser legítimo, democrático e obediente aos princípios constitucionais que o informam, passando o tipo penal a ser uma categoria aberta, cujo conteúdo deve ser preenchido em consonância com os princípios derivados deste perfil político-constitucional. Não se admitem mais critérios absolutos na definição dos crimes, os quais passam a ter exigências de ordem formal (somente a lei pode descrevê-los e cominar-lhes uma pena correspondente) e material (o seu conteúdo deve ser questionado à luz dos princípios constitucionais derivados do Estado Democrático de Direito)” (CAPEZ, 2011, p.25).
Em outras palavras, as normas infraconstitucionais sempre devem ser interpretadas de acordo com os princípios formadores da Constituição de 1988, não sendo admitido que qualquer uma delas seja aplicada de forma a afrontar a Carta Magna, sob pena de serem declaradas inválidas (GRECO, 2017).
Assim sendo, o direito penal deve pautar-se nos princípios da legalidade, reserva legal, anterioridade da lei, irretroatividade, ofensividade, igualdade, individualização da pena, proporcionalidade, presunção de inocência, intervenção mínima e humanidade, os quais devem ser resguardado em todas as ações penais em tramite no judiciário brasileiro (JESUS, 2014).
4.2 Cabimento no direito brasileiro
Tendo em vista a sua radicalidade, a aplicabilidade do direito penal do inimigo no pais divide opiniões e não é totalmente aceita ou rechaçada pelos legisladores. Como ocorre em outros ordenamentos jurídicos, existem no Brasil legislações penais elaboradas sob a influência do direito penal do inimigo.
Para Ângelo Wermuth, são exemplos de Leis em vigor no ordenamento jurídico que possuem características da teoria do direito penal do inimigo, a Lei 7.492/1986 – que define crimes contra o sistema financeiro nacional; a Lei 8.072/1990 – Lei dos Crimes Hediondos; a Lei n. 9.613/1998, que dispõe sobre delitos de lavagem de bens ou valores; a Lei n. 9.613/1998 – Estatuto do Desarmamento; e a Lei n. 10.792/2003, que alterou a Lei de Execuções penais para inserir o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Aponta tais legislações por preverem, em determinados dispositivos, delitos com definição abstrata, punições mais rigorosas e com supressões de direitos dos autores dos crimes (WEMUTH apud BINATO JR. et. al., 2012).
Entretanto, a doutrina majoritária aponta a sua inaplicabilidade no direito brasileiro, existindo inclusive discussões sobre a inconstitucionalidade das leis apontadas acima, isto porque afrontam os princípios constitucionais que norteiam o direito penal. Dentre os doutrinadores penalistas contrários a esta teoria estão, Luiz Flávio Gomes, Eugenio Raúl Zaffaroni, Fernando Capez, Rogério Greco e Damásio Evangelista de Jesus.
Conforme assevera Luiz Flávio Gomes, o direito penal do terceiro milênio deve desfazer os erros do passado e não retroagir as medidas que afrontam a dignidade humana (GOMES apud LEITE, 2012).
Em seus ensinamentos, Zaffaroni argumenta que:
“o sentimento de segurança jurídica não tolera que uma pessoa (isto é, um ser capaz de autodeterminar-se) seja privada de bens jurídicos, com finalidade puramente preventiva, numa medida imposta tão somente pela sua inclinação pessoal ao delito sem levar em conta a extensão do injusto cometido e o grau de autodeterminação que foi necessário atuar” (ZAFFARONI apud SOUSA, 2016, p.1).
Damásio Evangelista de Jesus afirma que esta teoria “ofende a Constituição, pois não admite que alguém seja trajado pelo Direito como mero objeto de coação, despido de sua condição de pessoa” (JESUS apud SOUSA, 2016, p.1)
Ou seja, o chamado direito penal do inimigo é inaplicável no ordenamento jurídico quando se analisa a contrariedade existente entre os fundamentos da teoria de Jakobs e os princípios fundamentais do direito penal brasileiro, haja vista que “essa descaracterização do indivíduo como cidadão vai de encontro ao conteúdo mínimo defendido pelo Estado Democrático de Direito (NEVES, 2010, p. 43)
Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que destaca em seus julgados a inaplicabilidade da teoria do direito penal do inimigo no Brasil.
“AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.608.256 – MG (2019/0318825-5) RELATOR: MINISTRO RIBEIRO DANTAS. AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. AGRAVADO: HELTON FELIPE OLIVEIRA DA SILVA. ADVOGADO: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. DECISÃO Trata-se de agravo interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS contra decisão que não admitiu recurso especial ofertado de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Sustenta o Parquet, nas razões do recurso especial, violação dos artigos 155, 201, 386, VII, do Código de Processo Penal, e 157, §2º, II, do Código Penal. Aduz, em síntese, que “resulta demonstrado portanto que as declarações da vítima constituem meio de prova legal e in casu legítimo, ademais, não se tratam de declarações isoladas conforme sustentado no voto condutor do acórdão, senão que amparadas pela prova examinada em seu conjunto, arcabouço suficiente a amparar o decreto condenatório; assim conforme pacífico entendimento doutrinário e jurisprudencial” (e-STJ, fl. 210). Requer a condenação do recorrido pelo delito de roubo majorado. […] . É o relatório. Decido. O recurso não merece prosperar. O Tribunal a quo decidiu pela absolvição do recorrido com a seguinte fundamentação: “Após a análise do acervo probatório, entendo que razão assiste à defesa. Veja-se que a única conexão entre o réu e o delito é o reconhecimento feito exclusivamente pela vítima, não havendo qualquer outro elemento ratificador. Insto salientar que, de modo algum, desabono a palavra do ofendido, todavia, essa prova isolada deve ser encarada de maneira mais cautelosa, visto que, em função da igualdade de tratamento que deve ser concedido às partes, uma versão não pode ter peso superior à da outra. A declaração da vítima pode e deve ser mais um elemento de convicção do julgador, mas nunca o exclusivo. E, ante o exposto, o que se infere dos autos é a fragilidade probatória da autoria, haja vista o amparo da sentença prolatada somente na palavra do ofendido, a qual não foi corroborada por nenhum outro elemento de prova, nem sequer pelo segundo e último depoimento dado pelo policial que afirmou, inclusive, que não teve qualquer contato com o réu. Ainda, no que concerne à alegação do policial acerca do conhecimento prévio que tinha do réu por intermédio de supostos outros delitos, é imperioso salientar minha oposição quanto à aplicação de um direito penal do autor. Não existe punição que se sustente na suposta personalidade do agente, não interessando ao Direito Penal a imagem que o policial construiu de sua pessoa. O direito penal do autor revela a face de um direito penal do inimigo, o qual contraria todas as garantias fundamentais trazidas pela Constituição da República de 1988. Afinal, o relevante para o meio jurídico, conforme os princípios constitucionais, principalmente, e devido processo legal, é o produzido em contraditório e provado pela acusação. Por tais considerações, para além da palavra da vítima, não há qualquer outra prova suficiente a atestar a contundência do alegado, fato que obsta um posicionamento desfavorável ao réu. À luz da Constituição da República de 1988, a presunção de inocência é o princípio norteador do Direito Processual Penal, o qual tem significativa incidência no ônus probatório. Nessa lógica, a premissa básica e indispensável é a inocência do réu, cabendo ao acusador, no caso, o Ministério Público, o rompimento desse estado de inocência por meio da comprovação da ocorrência do fato delitivo e, in casu, de seu cometimento pelo acusado. A partir disso, quando a dúvida circunda o juízo valorativo dos fatos a serem julgados, é imperiosa a prevalência da inocência do réu e, por conseguinte, a sua absolvição” […] Ante o exposto, com fundamento no art. 932, III, do CPC c/c art. 253, parágrafo único, II, a, do RISTJ, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial. Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 06 de fevereiro de 2020. Ministro RIBEIRO DANTAS Relator.” (STJ – AREsp: 1608256 MG 2019/0318825-5. Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: DJ 10/02/2020)
Portanto, a teoria do direito penal do inimigo não deve ser aplicada no Brasil por afrontar diretamente os princípios da isonomia e da reserva legal. A sua aplicação seria uma afronta ao estado democrático posto, que veda a aplicação de privilégios ou de perseguições (MELO, 2000). Ainda que tenha praticado algum delito, ao acusado deve ser assegurado sempre os seus direitos, essenciais à sua dignidade como pessoa humana.
Considerações Finais
A teoria idealizada por Gunther Jakobs na década de 1980 é pautada na separação do direito penal em dois polos, para duas classes distintas, o direito penal do cidadão, destinada aqueles delinquentes que, apesar de cometer um crime, não perde seu status de cidadão; e o direito penal do inimigo, aplicado aqueles que deixam de ser cidadão se tornam-se verdadeiros inimigos do Estado.
De acordo com esta teoria, o inimigo é aquele que, por ter praticado delitos de alta reprovabilidade social, não pode ser recuperado e, por isto, não merece um tratamento garantista da lei e devem ser julgados com maior rigidez como se estivesse em estado de guerra, com supressão de direitos básicos.
Esta teoria, apesar ter sido aprimorada ao longo dos anos, ainda é alvo de constantes críticas, entre aqueles que defendem a sua não inaplicabilidade e aqueles que a consideram necessária para diminuir a criminalidade com a punição mais severa das condutas ilícitas praticadas no Brasil.
Como resultado dos fundamentos da Constituição Federal de 1988, o direito penal pátrio também deve obediência aos ideais do Estado Democrático de Direito em vigor, que pauta-se nos princípios da legalidade, reserva legal, isonomia, contraditório, ampla defesa e presunção de inocência. Estas garantias devem ser resguardadas no processo penal, sob pena de ser considerada nula.
Em virtude destes fundamentos, prevalece na doutrina e na jurisprudência brasileira a inaplicabilidade da teoria do direito penal do inimigo em razão de ser uma tese pautada em um processo penal que pune o autor, enquanto que as normas pátrias punem o fato. Destarte, não se pode considerar o infrator um inimigo em razão de sua vida pregressa, sendo vedada a restrição ou supressão de seus direitos fundamentais, fundamental para a sua dignidade humana. Cidadãos de “bem” ou “delinquentes”, todos devem receber o tratamento isonômico do Estado.
Referências
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