O duplo grau de jurisdição consiste num princípio que garante à parte integrante do processo o direito à revisão do julgado que lhe foi desfavorável, sendo também instrumento de controle da justiça e da legalidade da decisão. Por não tratar-se de princípio de previsão expressa na Constituição Federal, o legislador ordinário pode mitigá-lo para determinadas situações. A partir dessa noção, surgem algumas exceções disciplinadas na lei processual, tendo em vista as peculiaridades de cada situação específica. Pode o legislador deixar de prever, por exemplo, a interposição de um recurso para o órgão imediatamente superior, estabelecendo que a insurgência deverá ser interposta perante o mesmo juízo prolator da decisão, como ocorre com os embargos de declaração. Em outras situações, pode haver previsão recursal não como regra, mas como exceção, como é o caso de algumas sentenças proferidas em execução fiscal, reguladas pela Lei 6.830/80.
É preciso, porém, que a mitigação à garantia do duplo grau não seja intensa a ponto de inviabilizar o próprio direito da parte de acesso ao recurso. Há de se fazer, portanto, uma ponderação entre os direitos fundamentais ao recurso e a celeridade do processo, uma vez que qualquer reformulação desmedida e desarrazoada pode levar a resultados contrários às expectativas das reformas. Se de um lado é necessária a revisão e modernização do sistema processual, de outro lado também é necessário que se controle o volume e o conteúdo dessas transformações, pois estas podem acabar desvirtuando a intenção do constituinte, ao estabelecer as garantias do processo.
A grande virtude ao se analisar essas questões não está tão somente na ampla proteção aos princípios constitucionais ou na estrita busca da celeridade e da efetividade. Está sim no meio termo, para que se evite ofensa ao núcleo essencial de cada um dos direitos em jogo. O questionamento central consiste em saber até que ponto a restrição a recursos na lei processual ou mesmo aos seus procedimentos não gera vício de inconstitucionalidade ou, se padece de falta de efetividade. O art. 5º, LXXVIII da CF introduzido pela Emenda Constitucional 45 de 2004 busca trazer uma nova maneira de trabalhar nos processos judiciais e administrativos, agora com a preocupação relativa à duração dos processos, embora essa já fosse, há mais tempo, uma preocupação dos legisladores e dos operadores do direito. Entretanto, os avanços até agora levados a cabo foram insuficientes para agilizar o trâmite processual, o que é facilmente comprovado na prática forense.
A Lei 11.276/06, com extensão no art. 557 do CPC, traz a previsão da súmula impeditiva de recursos. A referida lei introduziu os §§ 1º e 2º ao art. 518 do CPC, artigo esse inserido no capítulo que trata do recurso de apelação, regulando medidas a serem adotadas pelo juízo a quo em matéria de juízo de admissibilidade, quanto aos efeitos em que o recurso é recebido, e da resposta da parte recorrida. O novo § 1º prevê a possibilidade de o juízo a quo deixar de receber o recurso se entender que sua decisão está de acordo com súmulas do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Genericamente, pode-se definir súmula como sendo algo que explica determinado teor ou o conteúdo integral de uma coisa de maneira abreviada. Na acepção jurídica do termo, é o resumo da própria sentença ou acórdão. Pode-se afirmar que a lei criou, com esse dispositivo, um novo pressuposto de admissibilidade dos recursos além dos tradicionais, da previsão legal e cabimento para o caso, legitimidade e interesse da parte, tempestividade da interposição, o preparo e a regularidade formal, chamados requisitos genéricos do recurso.
Analisando com mais profundidade o dispositivo, é de se considerar que o mesmo apresenta falhas, quando prevê, por exemplo, que o juiz deixe de receber a apelação em razão de súmula do STF ou STJ, não afastando, por outro lado, a possibilidade da parte recorrente impugnar essa decisão pedindo sua reforma e o recebimento do recurso. Ora, tal atitude poderá implicar num acúmulo de agravos interpostos contra a decisão de não recebimento da apelação, atitude essa que vai de encontro ao propósito do legislador, quando introduziu o dispositivo legal. Na realidade, diante de tal situação, não houve progresso com a inserção do dispositivo em análise. Existem alguns entendimentos que se inclinam pela inconstitucionalidade do § 1º do art. 518 do CPC, tendo em vista que ele faz das súmulas do STF e do STJ verdadeiras leis em sentido formal ao dar às mesmas grande força normativa, à medida que passam a ter o poder de barrar o debate de idéias jurídicas, transcendendo o seu caráter de mero enunciado.
Atente-se que eventual inconstitucionalidade não incide no fato de haver restrição ao recebimento da apelação, mas sim, ao se dotar as súmulas de força normativa que não possuem, com o escopo de restringir recurso. A mera restrição ao recebimento de modalidade recursal não ofende as garantias constitucionais, especialmente porque os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto, e podem ser limitados em face de outro direito fundamental, ou por razões de interesse público[1].
A esse respeito, pronuncia-se o Pretório Excelso:
“[…] OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição.[…]”[2] (STF – MS 23452-1/RJ – Rel. Min. CELSO DE MELLO – Pleno – RTJ 173/805-810).
Introduzida pela reforma do Judiciário, a exigência da demonstração da repercussão geral do recurso extraordinário tem despertado muitas controvérsias. Tal exigência visa evitar a repetição de recursos no STF, desafogando o tribunal do volume de processos que hoje lá aguardam julgamento, e contribuir para a celeridade de tramitação das causas. O instituto encontra-se positivado no art. 102 § 3º da Constituição Federal. Essa alteração foi regulamentada pela Lei 11.418/06, que por sua vez introduziu os arts. 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil. A polêmica entre os juristas e doutrinadores acerca dessa inovação gira em torno do fato de que essa medida, para alguns, contribui como filtro, impedindo que processos sem relevância com cunho eminentemente particular cheguem ao STF. Para a corrente contrária, essas alterações impedem a completa prestação jurisdicional, mitigando preceito constitucional.
Da mesma forma, questiona-se o que vem a ser a “repercussão geral” prevista na lei. O fato é que essa reforma, não diferente das demais alterações do CPC, visa à diminuição do volume de processos que aportam no Supremo Tribunal Federal, colaborando com a celeridade dos feitos que lá adentram, e evitando que processos sem relevância social sejam apreciados pela Corte Suprema. Os defensores da inovação sustentam que o STF não pode se tornar um órgão de revisão de julgados como são os tribunais de segundo grau, devendo se ater às matérias que a constituição lhe reserva.
O art. 543-A do CPC, no seu § 1º afirma ser repercussão geral, as questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico. O conceito exposto pelo dispositivo legal permite a conclusão de que a repercussão geral deve ser analisada como a necessidade de que os efeitos da decisão recorrida transcendam seus limites subjetivos e alcancem um cunho social relevante. Trata-se, portanto, de um critério subjetivo, que somente os ministros do STF poderão verificar.
Portanto, diante da nova sistemática, para que o recorrente tenha seu recurso conhecido pela Suprema Corte, ele precisa preencher todos os requisitos comuns de admissibilidade, como o cabimento do recurso e a sua legitimação para o pleito, a tempestividade e o preparo, além dos requisitos formais peculiares a espécie recursal, bem como demonstrar a existência de questões que transcendam os limites subjetivos da lide ou de defesa do interesse privado das partes, adotando um cunho social relevante e caráter abrangente, em que a ordem constitucional esteja em tela. Ainda é cedo para afirmar se a redução do ingresso de novos recursos repetitivos na STF e a aceleração na tramitação dos processos serão alcançados a contento. É difícil imaginar que a simples inserção de mais um requisito de admissibilidade para o conhecimento do recurso extraordinário contribua efetivamente para o alcance desses objetivos.
Ao que parece, o § 3º do art. 102 da CF juntamente com sua lei regulamentadora restringem o cabimento do recurso extraordinário, impedindo que demandas que não preencham o requisito da repercussão geral do caso sejam sequer conhecidas pelo STF, limitando a prestação jurisdicional na sua plenitude, em favor da celeridade processual, dando azo ao entendimento de que essa inovação fere o princípio da inafastabilidade da jurisdição insculpido no art. 5º, XXXV da Constituição Federal. Como visto, trata-se de uma questão extremamente polêmica, que certamente será objeto de apreciação pelo STF, acerca da sua constitucionalidade.
No que tange à questão das súmulas vinculantes, os objetivos e os questionamentos originados não são diferentes daqueles das demais inovações introduzidas pela Emenda Constitucional 45 e pela legislação infraconstitucional. O instituto da súmula vinculante teve origem com base em dados estatísticos que davam conta de que muitos processos que chegavam ao STF versavam sobre o mesmo objeto. Consideravam também a necessidade de se promover a harmonização das questões constitucionais levadas à apreciação, juntamente com uma maior segurança das relações jurídicas. Muito se discute acerca do real cabimento dessa disposição, que dota as súmulas editadas pela Suprema Corte de uma força de proporção contestável. Como sabido, a função das súmulas é esclarecer a norma jurídica e as dúvidas interpretativas, e não exercer as funções da lei, propriamente.
A referida emenda constitucional inovou ao introduzir o art. 103-A à Constituição Federal. A novidade do dispositivo consiste em dar às súmulas o chamado efeito vinculante. Isso significa que, aprovada uma súmula pelo STF sobre matéria constitucional, esta poderá ser dotada de efeito vinculante perante o Poder Judiciário e a Administração Pública. Assim, todos os órgãos que pertençam a essas duas esferas deverão seguir a determinação da súmula em casos semelhantes com os quais se depararem. Todavia, nos termos do dispositivo constitucional, não é qualquer súmula editada pelo STF que terá o condão de vincular o Judiciário e a administração, mas tão-somente aquelas que tratarem de matéria constitucional e forem aprovadas por dois terços dos membros da corte suprema.
Para aqueles que se posicionam contra a nova disposição constitucional, tal regra engessaria os órgãos judiciais de primeiro grau, impossibilitando o exercício do livre convencimento acerca dos fatos da causa, desviando os juízos de primeiro grau da função constitucional de dizer, como órgão de apreciação inicial, o direito caso a caso, na exata medida de suas realidades expostas no processo, indo, portanto, de encontro à própria característica do direito, como ciência dinâmica, viva, em constante evolução, que exige sempre a apreciação dos casos concretos postos à discussão judicial, sem exceções que pré-determinem qual o direito que deverá ser reconhecido. Uma minoria de juristas e doutrinadores tendem a se posicionar no sentido de que não há inconstitucionalidade no dispositivo e que pode ser salutar o ato do legislador de inibir a liberdade de convencimento dos juízos de primeiro grau naqueles casos, sobre os quais, o STF já se debruçou e já pacificou o entendimento, pois o STF apenas editará súmula com certeza acerca dos julgamentos que darão ensejo à edição da sumula vinculante, poupando tempo e focalizando a atenção dos magistrados naqueles processos que não trazem matérias pacificadas, evitando a repetição das causas e contribuindo, em última análise, para a celeridade da justiça.
Diante dessas considerações, convém indicar nesse momento algumas possíveis alterações que não foram prestigiadas pelo legislador, mas que poderiam perfeitamente ser introduzidas no sistema, ampliando o alcance das reformas já implementadas e evitando o conflito com princípios constitucionais. Um exemplo disso seria a supressão da previsão, pelo Código de Processo Civil, dos embargos infringentes. Essa modalidade recursal encontra previsão nos arts. 530 e ss. e 496, III do CPC. Visa ao reexame de acórdãos proferidos em apelação que houver reformado sentença de mérito ou em ação rescisória julgada procedente, na parte relativa à divergência entre os juízes. Aplica-se tão somente às decisões de mérito em segundo grau, proferidas em sede de apelação ou na procedência de ação rescisória. Os embargos infringentes consistem hoje num mecanismo que vai de encontro às expectativas da reforma processual, de celeridade, presteza e efetividade dos provimentos jurisdicionais, atitude essa consubstanciada na própria jurisprudência. O próprio STJ ampliou a aplicação dos embargos em tela para o recurso de agravo, quando da edição da Súmula 255. “Súmula 255: Cabem embargos infringentes contra acórdão proferido por maioria, em agravo retido, quando se tratar de matéria de mérito”[3]. Assim, salutar seria para o sistema processual, a supressão do dispositivo, por não haver sentido na sua subsistência no ordenamento, ante os princípios da celeridade e da efetividade processuais.
No que tange à edição de súmula vinculante, seria razoável que o legislador tivesse previsto a possibilidade da edição de súmula também por outros tribunais, não ficando restrito apenas ao Supremo Tribunal Federal, no que diz respeito às questões constitucionais. Dessa forma, os tribunais superiores também seriam competentes para editar súmula vinculante nas matérias de suas competências, sendo obrigatória a vinculação para cada justiça específica, e para a administração pública, contribuindo ainda mais para os ideais das reformas legislativas e principalmente, sem ofensa aos princípios constitucionais. Importa lembrar que, inicialmente, tal proposta era estendida a todos os Tribunais Superiores, nos termos dos arts. 105-A e 112-A. No decorrer da tramitação no Congresso Nacional, aquela foi retirada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, permanecendo a regra da súmula vinculante exclusivamente para o Supremo Tribunal Federal. As discussões de constitucionalidade dessa previsão também estariam ligadas a da repercussão geral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Numa avaliação geral desses questionamentos, observa-se que o que acontecerá na prática é o destaque para julgamentos com base em precedentes do STF, em detrimento da análise das provas e da lei. Não obstante serem louváveis a intenção do legislador e os seus objetivos, há de se considerar a nova regra com a devida cautela, para que não se viole direitos fundamentais, os princípios constitucionais e, especialmente, a independência entre os Poderes do Estado, no caso da súmula vinculante, na medida em que vincula súmula do Supremo Tribunal Federal também aos atos da administração pública. Em que pese as inúmeras alterações por que já passou o ordenamento jurídico brasileiro, visando a adequação da lei à dinâmica vida social, o sistema processual civil não tem obtido avanços significativos no que diz respeito a celeridade e efetividade das demandas. As reformas que foram implementadas não constituem modificações de fundo na norma, limitando-se a alterar apenas aspectos pontuais do sistema, não atingindo como deveria as causas do problema, situação piorada quando tais modificações se chocam com diretos e garantias fundamentais. São, contudo, alterações válidas, mas que, sozinhas não alcançarão o fim desejado pelo legislador. É preciso ir mais além, pois o problema é complexo demais para demandar soluções simplórias. Combater a morosidade da justiça é um problema mais da ineficiência e da incapacidade do Estado de gerir bem suas funções, do que meramente de reforma legislativa. É um problema conjuntural que afeta não só o exercício da função jurisdicional, mas também outras áreas de responsabilidade do Estado, como saúde, educação e segurança pública.
Advogado, especialista em direito processual civil.
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