O efeito translativo no agravo de instrumento


1) Introdução


A utilização do efeito translativo quando do julgamento de agravos de instrumento tem se mostrado rotineira na praxis forense, com diversos sodalícios pátrios, sob pálio da economia processual e da duração razoável dos processos, fulminando de imediato querelas ainda pendentes de sentença nos órgãos a quo.


Todavia, a aplicação do efeito translativo ao recurso de agravo de instrumento não é extreme de dúvidas, haja vista, verbi gratia: os questionamentos acerca de uma eventual supressão de instância por parte do órgão ad quem e consequente violação ao princípio do duplo grau de jurisdição de modo que, desvela-se útil nos debruçarmos, mesmo que brevemente, sobre o tema.


2) Breves considerações sobre a aplicabilidade do efeito translativo no agravo de instrumento


O Supremo Tribunal Federal, ainda nos tempos do Ministro Buzaid, já mantinha posicionamento autorizativo da aplicação de efeito translativo aos recursos. Afastava-se em absoluto naquela Corte a possibilidade de se cogitar numa preclusão a incidir sobre o julgador acerca de apreciar questões relativas a pressupostos processuais e condições da ação, conforme se pode ver, in verbis, logo baixo:


“A) As questões relativas à ilegitimidade ad causam e falta de interesse processual, argüidas na ação declaratória incidental, foram diferidas, para o julgamento definitivo, em conjunto com a ação principal. B) O Código de Processo Civil adotou o princípio de que a verificação dos pressupostos processuais e das condições da ação fosse feita desde o despacho que aprecia a petição inicial e em qualquer momento posterior do processo civil, até o julgamento definitivo da lide, que exaure o ofício jurisdicional (C.P.C. art. 267, § 3º). C) acerca dos pressupostos processuais e das condições da ação, não há preclusão para o juiz, enquanto não acabar o seu ofício jurisdicional na causa pela prolação da decisão definitiva. A preclusão é sanção imposta à parte, porque consiste na perda de uma faculdade processual; mas não se aplica ao juiz, qualquer que seja o grau da jurisdição ordinária. Para o juiz só opera a preclusão maior, ou seja, a coisa julgada.” (STF – Tribunal Pleno, Rel. Min. Alfredo Buzaid, Agr. Reg. na ACO nº. 268-1/DF, v.u., seção plena de 28.4.1982).


Do voto do relator, Ministro Alfredo Buzaid, colhe-se o seguinte:


Não ocorre preclusão para o juiz, quanto aos pressupostos processuais e condições da ação, porque, em qualquer tempo e grau da jurisdição, não estando findo o ofício jurisdicional, lhe é lícito apreciar tais questões. A preclusão é sanção imposta à parte, porque consiste na perda de uma faculdade processual. (CHIOVENDA, Instituições de Direito Processual Civil, Vol. I, nº. 116)”.


Nos termos do artigo 267 do Código de Processo Civil, pode o Juiz conhecer de ofício, questões de ordem pública, em qualquer momento processual e grau jurisdicional, relacionadas com as matérias referidas nos seus incisos IV, V e VI:


“Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:(…)


§ 3º.  O juiz conhecerá de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não proferida a sentença de mérito, da matéria constante dos ns. IV, V e VI; todavia, o réu que a não alegar, na primeira oportunidade em que lhe caiba falar nos autos, responderá pelas custas de retardamento.(…)


IV – quando se verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo;


V – quando o juiz acolher a alegação de perempção, litispendência ou de coisa julgada;


VI – quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual;”


Nelson Nery Junior, a propósito do efeito translativo, nos ensina que …


“O efeito devolutivo do recurso tem sua gênese no princípio dispositivo, não podendo o órgão ad quem julgar além do que lhe foi pedido na esfera recursal. Aplica-se na instância recursal o CPC 128 e 460. Caso o órgão destinatário do recurso extrapole o pedido de nova decisão, constante das razões do recurso, estará julgando extra, ultra ou citra petita, conforme o grau e a qualidade do vício em que incorrer.


Há casos, entretanto, em que o sistema processual autoriza o órgão ad quem a julgar fora do que consta das razões ou contrarrazões do recurso, ocasião em que não se pode falar em julgamento extra, ultra ou infra petita. Isto ocorre normalmente com as questões de ordem pública, que devem ser conhecidas de ofício pelo juiz e a cujo respeito não se opera a preclusão (por exemplo, CPC 267 § 3.º e 301 § 4.º)”, sendo certo que “opera-se o efeito translativo nos recursos ordinários (apelação, agravo, embargos infringentes, embargos de declaração e recurso ordinário constitucional), mas não nos recursos excepcionais (recurso extraordinário, recurso especial e embargos de divergência).” (Junior, Nelson Nery, Teoria geral dos recursos, 6.ª Ed., São Paulo: RT, 2004, págs. 482 e 487).


Já numa precisa definição da quarta turma do Superior Tribunal de Justiça (mais sucinta que a de Nelson Nery Junior) é dito que ….


O efeito translativo dos recursos, consiste na possibilidade de o Tribunal, ultrapassada a admissibilidade do apelo, decidir matéria de ordem pública, sujeita a exame de ofício em qualquer tempo e grau de jurisdição.” (STJ, AGA 200901913161, LUIS FELIPE SALOMÃO, – QUARTA TURMA, 10/05/2010)


Esta possibilidade de o juízo ad quem analisar ex officio questões de ordem pública em sede recursal conferida pelo chamado efeito translativo dos recursos também se observa no agravo de instrumento. Neste sentido, vejam-se, exempli gratia, arestos do já citado STJ e dos Tribunais de Justiça de Pernambuco e de Minas Gerais que restaram assim ementados:


“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. PEDIDO DE SUSPENSÃO DO PROCESSO INDEFERIDO. DECISÃO IMPUGNADA MEDIANTE AGRAVO DE INSTRUMENTO, NO QUAL SE FORMULA PEDIDO DE REFORMA PARA O FIM DE CONCESSÃO DO EFEITO SUSPENSIVO À EXCEÇÃO E DE PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO. APLICAÇÃO, PELO TRIBUNAL, DO EFEITO TRANSLATIVO DOS RECURSOS, COM A EXTINÇÃO DIRETA DA AÇÃO DE EXECUÇÃO NO JULGAMENTO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO, INDEPENDENTEMENTE DE PEDIDO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE. JULGAMENTO POR MAIORIA. DESNECESSIDADE DE INTERPOSIÇÃO DE EMBARGOS INFRINGENTES.(…)


É possível a aplicação, pelo Tribunal, do efeito translativo dos recursos em sede de agravo de instrumento, extinguindo diretamente a ação independentemente de pedido, se verificar a ocorrência de uma das causas referidas no art. 267, §3º, do CPC. Precedente.


– Não é possível, em sede de recurso especial, promover a revisão da matéria fática decidida. Súmula 7/STJ. Recurso especial a que se nega provimento.” (RESP 200500496719, NANCY ANDRIGHI, – TERCEIRA TURMA, 06/05/2009)


Em respeito ao efeito translativo dos recursos ordinários, pode o Tribunal Estadual, ao julgar agravo interposto contra decisão concessiva de liminar, extinguir o processo sem julgamento do mérito, conhecendo de ofício da ilegitimidade da parte, por se tratar de matéria de ordem pública, suscetível de ser apreciada nas instâncias ordinárias. Tal regra privilegia, também, os princípios da economia processual e do processo de resultados.” (REsp 302.626/SP, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA TURMA, julgado em 15.04.2003, DJ 04.08.2003, p. 255).


“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – RECURSO DE AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO – EFEITO TRANSLATIVO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO – POSSIBILIDADE – MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA – FALTA DE INTERESSE DE AGIR DO AGRAVANTE – EXTINÇÃO DO PROCESSO À FALTA DE INTERESSE DE AGIR DO RECORRENTE – SITUAÇÃO EM QUE O LITIGANTE UTILIZA DE FALSA PREMISSA PARA OBTER PROTEÇÃO POSSESSÓRIA, A SIGNIFICAR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ E ATO ATENTATÓRIO AO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO – POSSIBILIDADE – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO À UNANIMIDADE DE VOTOS.” (TJPE, AGR 2273267, 0021188-55.2010.8.17.0000, Relator: Josué Antônio Fonseca de Sena, Data de Julgamento: 01/03/2011, 1ª Câmara Cível)


“AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO FISCAL – EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE – CAUSAS EXTINTIVAS DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO COMPROVADAS DE PLANO – POSSIBILIDADE – EFEITO TRANSLATIVO DOS RECURSOS. Através da “exceção de pré-executividade” poderá o executado alegar qualquer matéria de ordem pública, ligada à admissibilidade da execução, e que poderia, em razão desta sua natureza, ser conhecida de ofício pelo juízo da execução. Quando falta pressupostos processuais ou as condições da ação, apesar da matéria estar sendo examinada na via estreita de um agravo de instrumento, admite-se aplicando o efeito translativo do recurso, como questão de ordem pública, o exame da ação principal em segundo grau, na forma do artigo 267, inciso VI e § 3º, do código de Processo Civil.” (TJMG, Processo n. 1.0145.00.010607-3/001 (1), rel. Dárcio Lopardi Mendes, julgado em 19/2/2009).


“AGRAVO DE INSTRUMENTO. MEDIDA CAUTELAR DE BUSCA E APREENSÃO. EFEITO TRANSLATIVO. POSSIBILIDADE NO CASO CONCRETO. AUSÊNCIA DE PROPOSITURA DA AÇÃO PRINCIPAL. AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. APLICAÇÃO DO EFEITO TRANSLATIVO.


A não propositura da ação principal no prazo decadencial da efetivação da medida cautelar impõe na superveniente ausência de interesse processual, impondo a extinção de ofício. In casu, reconheço a existência da possibilidade de aplicação do denominado efeito translativo do recurso de agravo de instrumento, na esteira do entendimento do c. Superior Tribunal de Justiça, o qual prescreve que “quando eventual nulidade processual ou falta de condição da ação ou de pressuposto processual impede, a toda evidência, que o julgamento do recurso cumpra sua função de ser útil ao desfecho da causa, cabe ao tribunal, mesmo de ofício, conhecer da matéria, nos termos previstos no art. 267, § 3º e no art. 301, § 4º do CPC” (RDR 30/333). De ofício, processo extinto, e com fulcro no parágrafo 3º, do art. 515 do CPC; determina a extinção da Medida Cautelar.” (TJMG, Processo n. 1.0024.08.977666-0/001 (1), rel. Cabral da Silva , julgado em 15/7/2008).


Como já dito, a verificação da existência das condições da ação, por se tratar de matéria de ordem pública, pode ser feita de ofício, em sede de agravo de instrumento, sem que reste caracterizada a supressão de instâncias. Isso porque o efeito translativo dos recursos, aplicável também ao agravo de instrumento, possibilita que os Tribunais ordinários conheçam de determinadas matérias, ainda que sem expressa manifestação de vontade do recorrente, evitando uma desnecessária continuidade do processo. Sobre o tema, vejamos a lição de Luiz Guilherme Marinoni in verbis:


O efeito translativo é ligado à matéria que compete ao Judiciário conhecer em qualquer tempo ou grau de jurisdição, ainda que sem expressa manifestação das partes, a exemplo das questões enumeradas no art. 301 do CPC (exceto seu inciso IX).


Se esses temas devem ser examinados pelo juízo em qualquer tempo e grau de jurisdição, eles certamente poderão ser apreciados quando da análise do recurso. O tribunal é autorizado a conhecer esses temas de ordem pública, ainda que não tenham sido ventilados, seja no juízo a quo, seja nas razões do recurso. Tais temas, então, não se submetem ao efeito devolutivo, e podem ser conhecidos pelo Tribunal sempre, em qualquer circunstância, bastando que tenha sido interposto recurso sobre alguma decisão da causa, e que esse recurso chegue a exame do juízo ad quem.


Obviamente, esse efeito é inerente a qualquer espécie recursal.” (Arenhart, Sérgio Cruz; Marinoni, Luiz Guilherme, Curso de Processo Civil. Processo de Conhecimento, volume 2, 7ª ed., São Paulo: RT, 2008, pág. 526)


Neste mesmo toar, eis o que dispõe Cassio Scarpinella Bueno:


Desta sorte, todas as questões passíveis de conhecimento de ofício, isto é, sem provocação de qualquer das partes, ao longo do procedimento podem (e devem) ser apreciadas igualmente de ofício no segmento recursal. Assim, apenas para dar os exemplos mais palpáveis para o tema, as condições da ação e os pressupostos processuais, à exceção apenas do ‘compromisso arbitral’, por força do que expressamente excepciona o art. 301, § 4º, do CPC”. (Bueno, Cassio Scarpinella Bueno, Efeitos dos Recursos. In: Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis. v.10. São Paulo: RT, 2006, p. 84)


Por fim, vejamos o voto da Desembargadora relatora no AI 70007576879 (TJRS), Drª Rejane Maria Dias de Castro Bins:


Trata-se, no dizer de NELSON NERY JR., in Princípios fundamentais – Teoria Geral dos Recursos. SP, RT, 1997, 4ª ed. rev. e ampl., pág.409, de questões de ordem pública, que o Juiz conhece de ofício e sem preclusão. “A translação dessas questões ao Juízo ad quem está autorizada nos art. 515, §§1º e 2º , e 516 do CPC, além de o próprio sistema o autorizar, com base em não serem alcançadas pela preclusão (art.267, §3º e 301, §4º do CPC). O poder de exame, aqui, dá-se por conta do princípio inquisitório e não do dispositivo, de que é corolário o efeito devolutivo dos recursos.


Adiante, a fls.413, lembra NELSON NERY que as questões de ordem pública não se encontram no poder de disponibilidade das partes e refere, no mesmo sentido, Giudiceandrea, Le impugnazioni civili; Balzano, Acquiescenza, parti di sentenza e questioni rilevabili d’ufficio, in Ver. Dir. Proc.; Mattirolo, Trattato di diritto giudiziario civile italiano; Araújo Cintra, Sobre os limites objetivos da apelação civil.


Resumindo, as matérias de ordem pública, entre elas as condições da ação, como no caso presente, podem ser examinadas a qualquer tempo e grau de jurisdição, operando-se “o efeito translativo nos recursos ordinários (apelação, agravo, embargos infringentes, embargos de declaração e recurso ordinário constitucional)…” (op.cit., pág.414).”


Ex positis, conclui-se que, desde que se manifestem matérias relativas a pressupostos processuais ou condições da ação, poderão ser a s mesas objeto de considerações e deliberações por parte do Juízo ad quem mesmo em sede de agravo de instrumento.


3) Da necessidade de o recurso ser conhecido para que o efeito translativo possa se manifestar (requisitos de admissibilidade do agravo de instrumento)


A matéria trazida a julgamento seja de ordem pública ou privada, somente pode ser apreciada para fins de aplicação do efeito translativo após ter sido superada a barreira do conhecimento do recurso, conforme bem aponta o já citado Nelson Nery Junior:


“33. Exame de ofício no tribunal. Efeito translativo do recurso. O efeito translativo do recurso transfere ao tribunal o exame e o reexame das matérias de ordem pública, independentemente de haverem sido alegadas pelas partes. Isto porque não se trata de efeito devolutivo. A norma comentada é a manifestação do efeito translativo do recurso, quanto ao exame dessas questões em outro grau de jurisdição. Para que o tribunal possa aplicar o efeito translativo e examinar, pela primeira vez, as matérias de ordem pública não suscitadas e/ou não examinadas no primeiro grau, é preciso que o recurso seja conhecido e, no caso de recurso excepcional (RE, REsp, RR), que seja conhecido e provido (cassada a decisão recorrida). O efeito translativo compõe o juízo de mérito do recurso e não o juízo de admissibilidade. Por isso é necessário que o tribunal conheça do recurso e, ao julgá-lo no mérito, possa examinar de ofício as matérias de ordem pública.


• 34. Efeito translativo do recurso. Segundo grau. A aplicação do efeito translativo nos tribunais de apelação (TJ, TRF, TRT), isto é, no exercício de competência recursal de segundo grau, o exame de ofício das matérias de ordem pública depende do conhecimento do recurso, porque a translação está inserida no juízo de mérito do recurso e não no juízo de admissibilidade. Por isso é defeso ao tribunal não conhecer do recurso e, a despeito disso, decidir matéria de ordem pública de ofício. Se não conhece do recurso (juízo de admissibilidade negativo), não tem competência para proferir o juízo de mérito, isto é, entrar no mérito das questões postas no recurso e das demais questões, ainda que de ordem pública. Quando os tribunais superiores estiverem no exercício de sua competência recursal ordinária, isto é, fizerem as vezes de tribunal de apelação (v.g., CF 102 II e 105 II), podem aplicar o efeito translativo do recurso e examinar as matérias de ordem pública, assim que proferirem o juízo positivo de admissibilidade, isto é, assim que conhecerem do recurso ordinário constitucional.”. (Junior, Nelson Nery, Nery, Rosa Maria de Andrade, Código de processo civil comentado e legislação extravagante, 10ª ed. rev., ampl. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, págs. 815/816).


Perfilhando-se a tal entendimento, veja-se uma jurisprudência do Tribunal de Justiça do Espírito Santo:


“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO.1) EFEITO TRANSLATIVO. CONSECTÁRIO DO EFEITO DEVOLUTIVO. NAO CONHECIMENTO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE SE CONHECER INCLUSIVE DAS MATÉRIAS DE ORDEM PÚBLICA.2) ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. INADMISSIBILIDADE. REQUERIMENTO DESPROVIDO DA DECLARAÇAO DE POBREZA. ART. 4º, LEI 1.060/50. RECURSO IMPROVIDO.


1) O efeito translativo erige-se como um consectário do efeito devolutivo, que por sua vez é um consectário da admissibilidade do recurso. Em outras palavras, o não conhecimento do recurso obsta a análise de toda e qualquer questão de direito processual ou material nele inserida, seja de ordem pública ou privada.


(…) (TJES, AGT24079012183 ES 24079012183, Relator: RÔMULO TADDEI, Data de Julgamento: 13/11/2007, TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 23/11/2007)”


Dessarte, impõe-se trazer à balia, mesmo que brevemente, algumas considerações acerca dos requisitos de admissibilidade do agravo de instrumento.


A Lei n.º 11.187, de 19 de outubro de 2005, alterou o Código de Processo Civil, conferindo nova disciplina aos agravos retido e de instrumento, confeccionando a seguinte redação ao art. 522 do Código de Processo Civil:


“Art. 522. Das decisões interlocutórias caberá agravo, no prazo de 10 (dez) dias, na forma retida, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, quando será admitida a sua interposição por instrumento”.

Para Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha, em casos que houve concessão ou denegação de pedido liminar ou de antecipação de tutela, vislumbra-se de imediato caracterizada a lesão grave ou de difícil reparação que autoriza a interposição de agravo de instrumento:


“A ‘lesão grave ou de difícil reparação’ constitui conceito vago ou indeterminado, devendo ser definido pelas peculiaridades do caso concreto. A referência a lesão grave ou de difícil reparação conduz à idéia de urgência, de sorte que as decisões que concedam ou neguem pedido de liminar ou tutela antecipada encartam-se perfeitamente na hipótese legal.” (Didier Junior, Fredie e Cunha, Leonardo Carneiro da, Curso de Direito Processual Civil, Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais, Volume 3, Bahia: Edições JusPodivm, 2007, pág. 127)

Com fulcro nas considerações alhures, podemos afirmar que, fenecendo o agravo de instrumento na sua forma retida nos autos originários, obstaculiza-se uma eventual eclosão de efeitos translativos, uma vez que o mesmo, estando retido, não será, pelo menos não à época da decisão interlocutória que lhe deu azo, apreciado pelo Tribunal.


4) A questão do respeito ao princípio do duplo grau de jurisdição quando da aplicação do efeito translativo no agravo de instrumento


Para Araken de Assis, “A justificativa mais singela da necessidade do duplo grau de jurisdição reside na circunstância de o pronunciamento do primeiro grau se sujeitar a erros e imperfeições. O reexame corrige o vício de juízo (error in iudicando) ou o vício de atividade (error in procedendo), lançando novas luzes sobre a matéria da contenda.” (Manual dos Recursos, Ed. RT, pág. 70).


Sob esta ótica, por certo que compete ao Tribunal apreciar todas as matérias de ordem pública, ainda que não suscitadas pelas partes, o que decorre, logicamente, do efeito devolutivo dos recursos. Contudo, sob pena de violação ao princípio do duplo grau de jurisdição, tais questões não prescindiriam da apreciação do juízo de primeira instância, porque precedem ao julgamento do mérito do recurso.


Ora, é cediço que o recurso de agravo de instrumento é destinado à análise do acerto ou desacerto da decisão objurgada, de modo que a apreciação de questões ainda não discutidas pelo Juízo de primeiro grau poderia importar na supressão de um grau de jurisdição.


Todavia, Marcio Andre Monteiro Gaia apresenta sólidos argumentos para esmaecer eventuais óbices à aplicação do efeito translativo no agravo de instrumento que tenham por fundamento a vulneração ao princípio do duplo grau de jurisdição:


“… Crê-se que o tribunal não só pode, como deve extinguir o processo sem julgamento do mérito, ao apreciar agravo de instrumento, quando, icto oculi, reconhecer qualquer afronta a essas matérias de ordem pública.


Dessa forma, estar-se-ia coadunando à incidência do efeito translativo ao recurso de agravo, subsumido ao princípio inquisitivo, sem se caracterizar o que se convencionou chamar de “supressão de instância”, em face da violação do duplo grau de jurisdição.


É que, justamente de por se tratarem de matérias conhecíveis de ofício, aliado ao fato de não se admitir o princípio do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional expressa, portanto, sem intangibilidade absoluta, abre-se espaço para a prevalência de outros princípios infraconstitucionais, dentre os quais o inquisitivo e o de economia processual, possibilitando assim o atendimento à tutela jurisdicional tempestiva.


Não é de se imaginar, repita-se, deixar o processo ser conduzido até a sentença, quando o tribunal, já acionado em sede de agravo de instrumento, poderia, por força do efeito translativo, dar solução efetiva ao processo, ao vislumbrar algum vício de ordem pública. Seria, isto sim, não conferir a devida importância à economia processual. (Gaia, Marcio Andre Monteiro, Reflexões sobre a incidência do chamado “efeito translativo” em sede de agravo de instrumento, Revista Dialética de Direito Processual – Rddp, São Paulo, Oliveira Rocha Comércio e Serviços Ltda., volume 41, ago. 2006, págs. 119/120)


Nesta mesma senda, veja-se a lição de Tereza Arruda Alvim Wambier que, ao responder à indagação “pode o Tribunal extinguir o processo sem julgamento de mérito ao julgar um agravo que não verse sobre matéria objeto da decisão?” tece as seguintes considerações:


“Sabe-se que a matéria a respeito da qual o Tribunal pode decidir, julgando o recurso, é, em princípio, a impugnada pela parte recorrente.


Está-se, aqui, diante da regra decorrente do princípio dispositivo, que se liga, umbilicalmente ao efeito devolutivo dos recursos.


Todavia, pode o órgão julgador, independentemente do que lhe tenha sido devolvido pela impugnação formulada pela parte, manifestar-se sobre matéria cognoscível de ofício. (…)


A questão que surge é a seguinte: pode o tribunal extinguir o processo sem julgamento do mérito, conhecendo de ofício de matéria de ordem pública, ao julgar um agravo, interposto de questão incidente, concernente, por exemplo, à concessão de uma medida liminar?


Já sustentamos, em trabalho anteriormente publicado, que deve a matéria de ordem pública ser apreciada pelo tribunal ou pelo juiz, ao julgarem o recurso em que esta matéria não tenha sido nem mesmo impugnada e que tenha a devolutividade limitada, por exemplo, em decorrência da circunstância de ter fundamentação vinculada, como, v.g., os embargos de declaração. (…)


(…) Em contrapartida, quanto à matéria de ordem pública, não se opera a preclusão, nem para o Judiciário, nem para a parte, devendo ser conhecida de ofício.


Em nosso entender, esta regra leva a efeito, de modo inequívoco, o princípio da economia processual. Por que permitir-se que um processo chegue ao fim, com sentença de mérito, se se estará diante de sentença nula e, portanto, rescindível, abrindo-se, assim, oportunidade para que nasça uma nova ação, um novo processo? (Wambier, Tereza Arruda Alvim, Os agravos no CPC Brasileiro, 3ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, págs. 223/225)


Assim, se pelo efeito translativo dos recursos permite-se que o Órgão ad quem possa conhecer de matéria não decidida na Instância inferior, desde que tenham por objeto questões de ordem pública, não importa se essas questões foram, ou não, objeto de controvérsia nos autos, uma vez que, com o recurso, opera-se a translação de toda a matéria que seja de ordem pública à Instância superior, possibilitando o exame das condições da ação e dos pressupostos processuais. Neste particular, mais uma vez invocamos o entendimento de Tereza Arruda Alvim Wambier:


Na mesma linha de raciocínio, entendemos que o Tribunal, desde que se trate de conhecer de matéria de ordem pública cuja constatação possa ser feita icto oculi, pode extinguir o processo com base no art. 267, em julgando um agravo, em que a matéria não tenha sido ventilada.


Pensamos, assim, que, por exemplo, o tribunal pode, julgando um agravo interposto pelo réu, contra decisão que concedeu liminar em favor do autor, extinguir o processo sem julgamento de mérito por ilegitimidade deste.


Trata-se, evidentemente, de situação delicada. Veja-se que, na verdade, o processo, nesses casos, fica sem sentença. Mas, a rigor, isto ocorre também nos casos em que o tribunal, julgando agravo interposto de “despacho” saneador, acolhe preliminar e extingue o processo (cf. arts. 329 e 331, § 3º), este último na redação da Lei n. 10.444/2002).


Poder-se-ia objetar: mas o juízo a quo nem terá chegado a se manifestar sobre o mérito. Mais isto pode ocorrer, por exemplo, num processo em que nada seja dito em 1º grau acerca da legitimidade da parte, em que o juiz também não toque neste ponto na sentença, e, apesar disso, o tribunal conhecendo da matéria, extinga o processo sem julgar a lide.” (Wambier, Tereza Arruda Alvim, Os agravos no CPC Brasileiro, 4ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006, págs. 340/341)


Em sentido contrário, citemos Dorival Renato Pavan (que inclusive nega a própria existência de um efeito translativo nos recursos, afirmando que trata-se na realidade uma mera exceção legal à regra do efeito devolutivo):


“Sabe-se que matérias de ordem pública, como aquelas catalogadas no art. 267, inc. IV a VI do Código de Processo Civil, por exemplo, precedem ao julgamento de mérito, e deveriam ter sido apreciadas e decididas pelo órgão monocrático. Em assim não decidindo o juízo de instância singela, tendo havido recurso, o Tribunal, mesmo que o recorrente não tenha expressamente invocado quaisquer dessas matérias, deverá se pronunciar sobre essas questões, e tal se dá como consequência lógica do efeito devolutivo. Não quer me parecer aqui, com todo o respeito de que é merecedor o professor Nelson Nery Júnior, que haveria um novo efeito, o translativo, que permitiria, tal apreciação pelo Tribunal. Se o Tribunal assim pode fazê-lo, fá-lo-á porque a lei o autoriza. Por isso é que não comungo, de igual forma, do pensamento da corrente doutrinária que entende que o tribunal pode extinguir o processo, em sede de agravo, sem a apreciação do seu mérito, por falta das condições da ação, por exemplo, quando não estava em discussão matéria de tal natureza.” (Pavan, Dorival Renato, Teoria Geral dos Recursos Cíveis, São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2004, pág. 195)


Já para o STJ, não há que se falar em óbice à aplicação do efeito translativo por violação ao princípio do duplo grau de jurisdição quando o Tribunal se deparar com a apreciação questões relativas a pressupostos processuais ou as condições da ação:


Para não ferir o princípio do duplo grau de jurisdição, as questões não suscitadas e discutidas em 1º grau não podem ser apreciadas pelo Tribunal ao julgar a apelação, exceto as referentes aos requisitos de admissibilidade da tutela jurisdicional, a saber: pressupostos processuais e condições da ação, perempção, litispendência e coisa julgada” (STJ, REsp 243969/PB, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 29.6.2000, DJ 4.9.2000, p. 162 – Decisão: por unanimidade, não conheceram do recurso, jurisprudência extraída de: Marcato, Antônio Carlos, Código de processo civil interpretado, 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, pág. 812).


Vê-se então que as questões não suscitadas e discutidas no Juízo a quo, só encontram óbice para apreciação por parte do Tribunal quando o recurso que as aduzir no 2º grau não permitir a análise questões relativas a pressupostos processuais ou as condições da ação, pois, caso contrário, o efeito translativo deverá se manifestar.


5) Conclusão


Em razão do contido nas linhas supra, pode-se, em suma afirmar que é cabível conferir efeito translativo ao agravo de instrumento desde que o mesmo seja conhecido pelo Tribunal e que traga ao órgão ad quem matérias relativas a pressupostos processuais ou as condições da ação passíveis de verificação ex officio.



Informações Sobre o Autor

Aldem Johnston Barbosa Araújo

Advogado


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