Resumo: A atribuição de competências constitucionais materiais comuns aos entes federados, essencial para a concreção da tutela ambiental, exige destes uma atuação administrativa cooperada. A inexistência das leis complementares mencionadas no artigo 23, parágrafo único, do texto constitucional, não pode se constituir em obstáculo à implementação da cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Os conflitos de atribuições administrativas advindos da atuação simultânea dos entes federados são dirimíveis pela aplicação do princípio da subsidiariedade. Somente o adequado e eficaz exercício das competências constitucionais comuns, com a conseguinte concretização do federalismo cooperativo, é capaz de efetivar a proteção ambiental preconizada pelo texto constitucional.
Palavras-chaves: Direito Ambiental. Competências constitucionais ambientais comuns. Federalismo cooperativo. Princípio da subsidiariedade.
Sumário: 1.Introdução. 2. As competências ambientais materiais comuns no texto constitucional e o federalismo cooperativo. 3. O princípio da subsidiariedade como solução para os conflitos de atribuições administrativas. 4. Considerações finais.
1 – Introdução
A gestão ambiental passa, impreterivelmente, pelo consciencioso exercício das competências constitucionais por parte da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. A tutela do meio ambiente depende de uma ostensiva atuação das referidas pessoas políticas conducente à concretização dos programas ditados pela Constituição.
Cabe, pois, aos entes federados, para além da alçada legiferante, atuar materialmente, a fim de garantir a proteção ambiental.
Nesse compasso, apenas e tão só o agir concatenado dos entes federados se mostra hábil a propiciar a concreção do modelo de amparo ambiental constitucionalmente proposto, é dizer, imposto.
Isso porque, “os conflitos diuturnos envolvendo os órgãos municipais, estaduais e federais de meio ambiente estão a demonstrar que os princípios do federalismo cooperativo estão distantes de se tornarem realidade na gestão ambiental”. (MARQUES, 2000, p. 27).
O exercício das competências conferidas pela técnica vertical, notadamente, as competências comum e concorrente, exige dos entes federados uma efetiva cooperação. Neste ponto reside um fator crucial, porém muitas vezes esquecido do Sistema Nacional de Proteção Ambiental: a atuação cooperativa dos entes federados e o conseqüente robustecimento do federalismo cooperativo.
2 – As competências ambientais materiais comuns no texto constitucional e o federalismo cooperativo
“A competência comum, também denominada cumulativa ou paralela, é a exercida de forma igualitária por todos os entes que compõem uma federação, sem exclusão de nenhum”. (BELTRÃO, 2003, p. 8).
O texto constitucional tratou das competências comuns ambientais tanto no artigo 23, inserto no título que normatiza a organização do Estado, quanto no artigo 225, o qual é voltado exclusivamente para a proteção do meio ambiente. Nota-se que o mencionado artigo 225 trata das incumbências do “Poder Público”, ou seja, utilizou-se de “expressão genérica […] para designar o titular das atribuições ali previstas, o que abrange, naturalmente, todos os entes federados”. (BELTRÃO, 2003, p. 10).
A competência material é atribuída de forma comum aos entes federados em relação àquelas matérias que interessam a toda nação. Não faria sentido delegar a apenas um ente específico o dever de agir e, assim, implementar políticas públicas, em relação a matérias que dizem respeito a toda sociedade.
Destarte, no âmbito da implementação administrativa da lei (art. 23, CF), “não há hierarquia na atuação das diferentes administrações públicas. A administração pública federal ambiental não está num plano hierárquico superior ao da administração pública ambiental municipal”. (MACHADO, 1996, p.170).
Ocorre que, conforme já mencionado, estatuir uma mesma competência a três esferas de poder gera uma inevitável celeuma no que tange a correta área de atuação de cada ente.
Visando solucionar tal entrave, o Constituinte de 1988 não se limitou a enumerar as competências administrativas comuns, mas também determinou que deve haver cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios “tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional” (artigo 23, parágrafo único).
O referido dispositivo constitucional, então, contemplou a cooperação entre os entes federados para a concreção das competências administrativas comuns. Todavia, as leis complementares que deveriam fixar as normas para cooperação ainda não foram editadas no que toca seara ambiental.
Na prática, então, o que se percebe é a não realização do federalismo cooperativo previsto pela Constituição. Os resquícios da utilização maciça da técnica horizontal de repartição de competências, fulcro no tradicional modelo norte-americano, ainda se mostram presente no agir administrativo dos entes federados.
Da exigência constitucional de cooperação extrai-se que a atuação isolada dos entes federados não é capaz de realizar a pretensão constitucional de ampla proteção dos bens jurídicos tutelados pelas enumerações do artigo 23.
A necessidade de se evitar a superposição de atribuições é lembrada por Luís Roberto Barroso:
“Ao falar em competências comuns, quer a Constituição significar que determinadas matérias são da responsabilidade tanto da União, como dos Estados e dos Municípios, cabendo a todos eles atuar. Para os fins que nos interessam neste estudo, cabe observar que se inserem nesta categoria, consoante o elenco do artigo 23 da Constituição, as competências de:
– proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI);
– preservar as florestas, a fauna e a flora (inciso VII).
Note-se que, embora as competências sejam comuns, em princípio não há superposição de atribuições. São esferas distintas, autônomas de atuação. Freqüentemente, o exercício do poder de polícia em matéria ambiental virá associado com o poder de polícia já exercido pela entidade em outra área afim, como a proteção à saúde, urbanismo, navegação etc. a omissão da entidade em tese competente poderá ensejar a atuação de outra. Não há dúvida, todavia, que o risco de conflito de atribuições, existe e caso venham a ocorrer, caberá ao Judiciário dirimi-los, pela interpretação sistemática da Constituição.
Averbe-se que o parágrafo único do art. 23 prevê a edição de lei complementar – federal, naturalmente – para harmonizar a atuação de cada um dos entes estatais” (BARROSO, 1992, p. 127).
A lei complementar aclamada pelo artigo 23 da Constituição possui a função de trazer parâmetros para a atuação dos entes federados, a fim de permitir que o exercício administrativo de cada ente não se torne um confuso conjunto de ações desconexas e, por isso, incapaz de atingir o escopo de resguardo ambiental.
Nessa esteira, leciona Paulo Affonso Leme Machado que:
“a lei complementar, com base no artigo 23, parágrafo único, da Constituição Federal, deve ter como fundamento a mútua ajuda dos entes federados. Dessa forma, essa lei não visa, e não pode visar à diminuição da autonomia desses entes, despojando-os de prerrogativas e de iniciativas que constitucionalmente possuem, ainda que não as exerçam, por falta de meios ou de conscientização política. A lei complementar não pode, pois, especificar quais os tipos de licenças ambientais a serem fornecidas pelos Estados e pelos Municípios. Não é função da lei federal mencionada estabelecer prazos para os procedimentos administrativos estaduais e municipais, pois esta matéria integra a organização administrativa autônoma desses entes” (MACHADO, 1996, p. 173).
O parágrafo único do artigo 23 foi alterado pela Emenda Constitucional n. 53/2006. A lei complementar regedora da cooperação entre os entes federativos passou a ser mencionada no plural. Tal modificação autoriza a existência de mais de uma lei complementar que cuide da cooperação.
Desta forma, a nova redação constitucional acena para a possibilidade das leis que disciplinam as matérias do artigo 23 possuírem, desde que aprovadas com quorum qualificado, disposições específicas acerca da cooperação administrativa.
Cabe salientar que mesmo antes da alteração redacional citada, era possível concluir que as normas cooperativas poderiam advir de leis esparsas, desde que estas fossem aprovadas como leis complementares. Isto porque, não havia razão para se interpretar restritivamente a antiga redação do parágrafo único do artigo 23, já que dele não decorria a exigência de texto normativo único.
É imperioso anotar que a EC n. 52/2006 pretendeu facilitar a implementação legislativa da cooperação material entre os entes federados, uma vez que a lei complementar, antes por muitos interpretada como única, não foi editada em 18 anos da vigência do texto constitucional. Nessa medida, o legislador constituinte reforçou a importância da edição de normas que orientem a atuação conjunta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.[i]
Em matéria ambiental não se identificam normas que disponham especificamente sobre a cooperação administrativa dos entes federados, apesar da lei 6.938/81, ao tratar do Sistema Nacional do Meio Ambiente – artigo 6o – mencionar, ainda que superficialmente, a atuação conjunta dos entes.
Diante da ausência de regulação normativa específica para a realização conjunta das políticas públicas ambientais, propõe-se a aplicação do princípio da subsidiariedade para solução dos conflitos de atribuições administrativas surgidos da atuação dos entes simultaneamente competentes.
3 – O princípio da subsidiariedade como solução para os conflitos de atribuições administrativas
Celso Bastos (apud FARIAS, 1999, p. 316 e 317) elege o princípio da subsidiariedade como “regra de ouro” do Federalismo, definindo-o da seguinte forma:
“[…] nada será exercido por um poder de nível superior, desde que possa ser cumprido pelo inferior. Isto significa dizer que só serão atribuídas ao governo federal e ao estadual aquelas tarefas que não possam ser executadas senão a partir de um governo com esse nível de amplitude e generalização. Em outras palavras, o Município prefere ao Estado e à União. O Estado, por sua vez, à União“.
Em atenção ao princípio em tela, as ações administrativas deverão sempre partir do nível federativo menor. Pondera-se que não se está a afirmar que entre os entes federados exista hierarquia, apenas se impõe que o ente que esteja mais próximo da matéria a ser executada atue. Note-se que a atuação administrativa é mais eficaz e certeira quando exercida pelo ente que, de forma mais íntima, convive com as matérias que devem ser implementadas pelas políticas públicas.
Segundo Paulo José Leite Farias, “a subsidiariedade deve ser vista como princípio pelo qual as decisões serão tomadas ao nível político mais baixo possível, isto é, por aqueles que estão, o mais próximo possível, das decisões que são definidas, efetuadas e executadas. Está, assim, o princípio, relacionado com o processo de descentralização política e administrativa, em outras palavras, associado ao fortalecimento do poder local” (FARIAS, 1999, p. 319).
A legislação ambiental brasileira, no artigo 10 da Lei 6.938/81, absorveu a idéia da subsidiariedade, na medida em que atribuiu aos Estados a competência para o licenciamento ambiental, deixando ao órgão federal – IBAMA – tão-somente a atuação supletiva.
Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividade utilizadora de recursos ambientais considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento do órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.
Impende anotar que o citado artigo deve sofrer interpretação condizente com o modelo tridimensional de federalismo adotado pela Constituição brasileira. Isto porque, sendo os municípios entes que compõem a federação, são eles o “nível inferior” por onde, de acordo com o princípio da subsidiariedade, deve iniciar, se for o caso, o exercício da competência material comum de licenciamento ambiental.
Assim, havendo a exigência de licenciamento ambiental, e, sendo o interesse predominantemente local, o órgão municipal ambiental componente do Sistema Nacional do Meio Ambiente será o competente para efetuar o mencionado procedimento administrativo. Apenas se o Município não contar com órgão ambiental, o órgão estadual poderá agir e, posteriormente, o órgão federal.
Este raciocínio, por óbvio, deve ser o adotado para qualquer outra questão administrativa ambiental: a existência de interesse que mais se aproxime da esfera local atrai a competência municipal, a qual somente será exercida pelo Estado supletivamente e, em último caso, pela União. Outrossim, sendo o interesse mais íntimo de questões regionais, o exercício administrativo deverá partir do Estado, sendo a atuação do órgão federal apenas subsidiária.
Em conclusão, cabe citar a lição de Paulo José Leite Farias:
“em conseqüência dos princípios federativo e republicano, bem como em atenção à norma constitucional que consagra o sistema de gestão comum, ao órgão federal só poderia caber, no exercício da cooperação administrativa, atuação complementar – em que pese não-conflitiva – com a do órgão estadual. E tal atuação subsidiária ou supletiva – que, repita-se, não pode ser superposta, simultânea e conflitiva, exerce-se mediante a caracterização de determinadas situações. Como o próprio nome sugere, implica exercício condicional, subsidiário de competência material. Visa, em aspecto ordinário, a suprir ou suplementar eventuais omissões, falhas ou funcionamentos defeituosos da prestação administrativa que, originariamente, compete ao órgão estadual” (FARIAS, 1999, p. 321).
4- Considerações Finais
A atribuição de competências materiais simultâneas é forma de estruturação de um federalismo que busca, através do exercício conjunto e coordenado das competências constitucionais, a concreção mais eficaz de bens e valores que interessam a todos os entes federados.
A referida simultaneidade, todavia, não foi acertadamente assimilada pelos entes que compõem a federação brasileira. Na prática, o que se percebe é uma atuação confusa, distante da coordenação programada pelo texto constitucional.
Constata Paulo Affonso Leme Machado, então, que “o perigo da simultaneidade de competências para a implementação do controle ambiental é que todos os entes federados ficaram competentes, mas nenhum deles tem assumido especificamente a melhoria da qualidade das águas, do ar e do solo e nenhuma instância governamental se responsabiliza pela conservação da floresta e da fauna” (MACHADO, 1996, p. 173).
Daí a importância do federalismo cooperativo e, também, a relevância da aplicação do princípio da subsidiariedade para a solução de conflitos de atribuições administrativas, uma vez que apenas a atuação conjunta e coordenada dos entes federados é capaz de concretizar a almejada tutela constitucional do meio ambiente.
O federalismo cooperativo, indispensável ao efetivo exercício das competências ambientais materiais comuns, é, portanto, uma opção constitucional que deve ser vislumbrada não apenas como mecanismo mais equânime de distribuição de competências constitucionais, garantidor da autonomia dos entes da federação, mas, principalmente, como instrumento de concretização da tutela do meio ambiente.
Procuradora da Fazenda Nacional. Pós-graduada em Direito Ambiental pela Universidade Gama Filho.
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