Resumo: Numa sociedade altamente complexa, globalizada, destaca-se a importância da Constituição, com sua força normativa, no regramento das condutas e das relações humanas. Decorrente disso, os princípios constitucionais têm corroborado a função da Constituição, ao permitir a abertura do sistema jurídico para uma melhor interpretação da realidade, aplicando-se o Direito a cada caso, per si, buscando tornar mínimo as expectativas na pacificação dos conflitos, cada vez mais de interesses meta-individuais. Neste panorama, surgiu o estado de coisas inconstitucional como uma decisão legal que permite ao Tribunal Constitucional reconhecer o fracasso dos poderes governamentais para aplicar políticas públicas contra a violação generalizada e sistemática de direitos fundamentais, o que justifica uma intervenção judicial, a fim de combater as causas estruturais das violações e para restabelecer a ordem com a Constituição. Assim, este estudo busca analisar os esforços para tornar o Supremo Tribunal o jogador-chave de tais políticas públicas, sem alterar o sistema de governo, e se isso é válido no ordenamento jurídico nacional, fazendo reflexões sobre a possível tensão entre o Executivo, o Congresso e o Judiciário na resolução desses problemas estruturais.
Palavras-chave: Estado de coisa inconstitucional; Princípios Constitucionais; Controle de Constitucionalidade.
Sumário: Introdução. 1. Notas preliminares sobre Constituição e Controle de Constitucionalidade. 1.1. A Constituição. 1.2. Inconstitucionalidade. 1.3. Controle de constitucionalidade. 2. Princípios e direitos fundamentais. 2.1. Princípios. 2.2. Princípios gerais de direito. 2.3. Princípios constitucionais. 2.4. Direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. 3. O estado de coisas inconstitucionais no ordenamento jurídico brasileiro. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O Supremo Tribunal Federal enfrentou recentemente, na Medida Cautelar da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, as alegadas condições desumanas do país sistema penitenciário nacional e determinou medidas estruturais a serem adotadas pelos poderes dos entes federados. A ação foi ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e todos os 26 estados, o Distrito Federal e a União figuraram como réus e litisconsortes passivos.
O diferencial deste caso, que o levou a manchetes de jornais, foi que, pela primeira vez na história brasileira, o Supremo Tribunal utilizou-se expressamente de uma técnica de jurisdição constitucional chamado de "estado de coisas inconstitucional", originalmente utilizado pelo Tribunal Constitucional da Colômbia.
O desenvolvimento deste estudo teve como metodologia de pesquisa utilizada para a confecção do material a hipotética dedutiva, tendo em vista que fora exposta uma problemática genérica, a qual se refere à aplicação ou não do estado de coisas inconstitucional (ECI) pelo ordenamento jurídico brasileiro, e, por meio de pesquisa nas fontes tradicionais do direito constitucional, chegou-se a uma proposta para a realização dessa pesquisa específica.
1. NOTAS PRELIMINARES SOBRE CONSTITUIÇÃO E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Para melhor compreensão do tema da pesquisa, neste capítulo trataremos do conceito da Constituição e traçaremos diretrizes gerais quanto à supremacia de suas normas e o controle de constitucionalidade.
1.1 A CONSTITUIÇÃO
O termo constituição possui vários significados, entretanto, focaremos na análise apenas do seu sentido político, de Constituição do Estado, e do seu sentido jurídico.
A Constituição do Estado é sua lei fundamental, que organiza seus elementos essenciais mediante criação de normas jurídicas, escritas ou costumeiras. Dessa forma, servem essas normas para regulamentar a forma do Estado, seu governo, órgãos administrativos, direitos fundamentais e garantias individuais, bem como os modos de aquisição e do exercício do poder, com a definição dos seus limites de ação. É, portanto, o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado, que são: território, população e governo. [1]
Entretanto, a noção de constituição estatal supramencionada não está completa, uma vez que existem vários posicionamentos para conceituar a Constituição, como o da fundamentação sociológica, de Ferdinand Lassalle, para quem a Constituição é “a somatória dos fatores reais do poder dentro da sociedade”, sendo o poder legitimado mediante representação das forças sociais que o constituem; a fundamentação política, de Carl Schmitt, que propõe que a Constituição é a decisão política do titular do poder constituinte; o conceito material (normas inseridas ou não em um documento escrito, que regula a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos e os direitos fundamentais) ou formal (constituição sendo um documento solene estabelecido pelo poder constituinte e somente modificável por processo e formalidades específicas); ou mesmo no sentido jurídico, de Hans Kelsen.
Para Kelsen, destaca-se, a Constituição é a norma pura, o dever–ser. Dentro do sentido lógico–jurídico, a Constituição é a norma fundamental, servindo de fundamento de validade da Constituição jurídico–positiva, que é a norma positiva suprema, o conjunto de normas que regulam a criação de outras normas, validando todo o sistema.
O sentido jurídico constitucional, porém, não estará completo se apreciado sem conexão com o conjunto da comunidade. Nas palavras do Professor José Afonso da Silva (2006, p. 39): “A Constituição é algo que tem, como forma, um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta humana motivada pelas relações sociais (econômicas, políticas, religiosas, etc); como fim, a realização dos valores que apontam para o existir da comunidade; e, finalmente, como causa criadora e recriadora, o poder que emana do povo.”
Ou seja, muito embora concebida como uma estrutura normativa, a Constituição não deve ser interpretada como algo desvinculado da realidade social, mas sim, como uma estrutura que envolve um conjunto de valores. Ideia essa que é de suma importância para entender a fundamentação lógica e teórica do Estado de Coisas Inconstitucional.
1.2 INCONSTITUCIONALIDADE
Em suma, existem duas formas de inconstitucionalidade reconhecidas pela Constituição de 1988, a saber: a) inconstitucionalidade por ação, que resta caracterizada pela produção de atos legislativos ou administrativos que contrariam normas ou princípios constitucionais; e b) inconstitucionalidade por omissão que decorre da ausência de atos legislativos ou administrativos, sendo possível uma ação posterior a sua criação para efetiva prática do fato.
É interessante registrar que, no caso da declaração de Estado de Coisas Inconstitucional, em especial referente ao sistema carcerário brasileiro, são reconhecidas tanto inconstitucionalidades por ação como por omissões. Ou seja, há atos comissivos (de ação) e omissivos (de omissão) realizados por diversas autoridades públicas, dos diversos poderes governamentais, que se agravam pela inércia prolongada delas mesmas, de modo que somente por meio de transformações estruturais da atuação do Poder Público pode-se ordenar a situação inconstitucional.
1.3 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Na defesa da supremacia constitucional estabeleceu-se o controle de constitucionalidade. Posto em prática pela primeira vez nos Estados Unidos com a Constituição Federal norte-americana de 1787, John Marshall fixou a supremacia do texto Constitucional dando aos juízes o poder de negar a aplicação das leis contrárias à Constituição.
O Professor José Afonso da Silva, em sua obra “Curso de Direito Constitucional Positivo”, expõe que o controle de constitucionalidade pode ser exercido sob três sistemas: o político, o jurisdicional e o misto. O controle político entrega a análise de inconstitucionalidades a órgãos de natureza política, como o Poder Legislativo; o controle jurisdicional outorga poderes ao Judiciário para que declare a inconstitucionalidade de leis ou atos do Poder Público que contrariem preceitos ou princípios constitucionais – o que ocorrerá na declaração de Estado de Coisas Inconstitucional; por sua vez, o controle misto ocorre pela submissão de categorias de leis ao controle político e outras ao controle jurisdicional.
Ainda com base na obra de José Afonso da Silva, são critérios de exercício do controle de constitucionalidade o controle difuso (executado por todos os componentes do Poder Judiciário) e o controle concentrado (somente poderá declarar a inconstitucionalidade o tribunal de cúpula do Poder Judiciário ou a corte especial).
Na modalidade difusa, o controle jurisdicional ocorre no curso de um pleito judiciário, em que uma das partes levanta, em sua defesa, a objeção de inconstitucionalidade da lei que se quer aplicar. A sentença que liquida a controvérsia constitucional não anula a lei, mas se manifesta em relação à sua não aplicação ao caso particular, objeto da demanda. A lei que ofende a Constituição não desaparece do ordenamento jurídico, podendo ser aplicada a outro feito.
O sistema de controle de constitucionalidade concentrado, por sua vez, permite controle da norma in abstrato mediante uma ação de inconstitucionalidade com previsão formal no texto constitucional. Neste, somente determinado tribunal poderá analisar a validade constitucional da Lei, com anulação de efeito erga omnes.
Uma vez declarada a inconstitucionalidade, a lei é removida da ordem jurídica com a qual se apresenta incompatível. O órgão competente para o julgamento da ação será um tribunal ordinário ou uma corte especial, como por exemplo, os tribunais constitucionais.
No Brasil, o controle de constitucionalidade predominante é o jurisdicional, combinado com os critérios difuso e concentrado, este de competência do Supremo Tribunal Federal, ou seja, existe o controle por via de exceção e por ação direta de inconstitucionalidade.
Finalmente, dentre as formas de interpretação da constituição destaca-se, para os fins do presente estudo, a técnica da “interpretação conforme a constituição”, à qual o interprete da lei infraconstitucional deve obedecer sempre que possível. Trata-se do procedimento de fiscalização da constitucionalidade da norma, integrando a lei à Constituição, de acordo com o significado já interpretado desta, uma vez que não se pode atribuir significado oposto ou incompatível ao constitucional sem a declaração da inconstitucionalidade.
Tem-se, em suma, que a Constituição é o fundamento de validade das normas jurídicas, oferecendo unidade a todo o ordenamento. Sua superioridade hierárquica é fundamento de validade e impõe conformidade das leis e dos atos administrativos, tornando o direito um todo harmônico e coeso.
Nessa seara, faz-se necessário registrar uma peculiaridade do instituto do Estado de Coisas Inconstitucional, uma vez que ele tem por objeto a declaração de inconstitucionalidade da realidade empírica em que as normas jurídicas incidem e não as normas como tais. Assim, na verdade, é de se reconhecer que grande parte do ordenamento jurídico, por meios de princípios e direitos fundamentais, já tutela a situação em que se pretende reconhecer a inconstitucionalidade, mas o problema reside nas políticas públicas insuficientes que não garantem a concretização dessas normas e princípios.
Antes de passar para reflexões próprias do Estado de Coisas Inconstitucional, cabe uma breve exposição sobre princípios e hermenêutica constitucional, para melhor compreender a atividade jurisdicional do controle de constitucionalidade aqui analisado.
2 PRINCÍPIOS E DIREITOS FUNDAMENTIAS
Muito embora a palavra princípio tenha sentido de início, começo, contendo o início ou esquema de um órgão, entidade ou programa, este não é o sentido mais correto a ser depreendido quando se trata dos princípios fundamentais, que exprimem a noção de mandamento nuclear de um sistema.
2.1 PRINCÍPIOS
Não é possível conceituar os princípios de maneira conclusiva, visto que existem diversas classificações metodologicamente sólidas, que possuem, em geral, diferentes objetivos.
Para os Professores José Afonso da Silva e Paulo Bonavides, os princípios poderiam ser entendidos como as bases das normas jurídicas, condensando valores e bens constitucionais, podendo, ou não, estar positivados, criando normas-princípio que constituem preceitos básicos da organização constitucional, exprimindo verdades universais. São verdades objetivas dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade na esfera jurídica.
A expressão “princípio” é empregada na designação de normas ou disposições que exprimem regras cuja posição, na hierarquia das fontes do direito, são muito elevadas, e, que tem por função específica fazer a escolha dos dispositivos ou normas aplicáveis nos casos concretos.
Segundo a visão do Professor Virgílio Afonso da Silva (2010, p. 64), princípios são “mandamento de otimização, ou seja, normas que garantem direitos ou impõe deveres” exigindo que algo seja realizado diante das condições fáticas e jurídicas existentes, enquanto que regras são entendidas como normas que garantem direitos ou impõe deveres definitivos. No entanto, não será esta a visão adotada pelo presente trabalho.
Será adotada a ótica do ilustríssimo autor Celso Ribeiro Bastos, cujo entendimento exposto no capítulo anterior, traz os princípios como diretrizes aptas para nortear tanto o intérprete e aplicador quanto o legislador na compreensão ou elaboração de normas.
Os princípios atuam no curso do processo hermenêutico constitucional, selecionando os métodos de interpretação, guiando seu desenvolvimento e atribuindo o significado constitucional correto a um enunciado normativo; cumprindo duas funções: função instrumental (ou seja, hermenêutica), e material (ajustando os conteúdos do interpretável e do interpretado).
Cumpre agora diferenciar os princípios constitucionais e os princípios gerais de direito, ressaltando-se que ambas as espécies são de grande interesse na teoria da interpretação constitucional, porém, os princípios de organização do Estado não se confundem com os pressupostos da vida jurídica.
2.2 PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO
Considerados diretrizes de outras diretrizes, os princípios gerais de Direito apresentam como nota característica a generalidade absoluta de sua incidência, ou seja, possuem incidência obrigatória, seja qual for a parte do ordenamento constitucional ou infraconstitucional com o qual se esteja lidando.
São os pressupostos da vida jurídica, não circunscrevendo uma parcela do ordenamento jurídico, mas irradiando por toda sua extensão, encontrados na Constituição, bem como nas demais áreas do direito.
Os principais princípios gerais de direito são os princípios da justiça, da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
A doutrina aponta como causas geradoras destes princípios a convicção social, o viver da comunidade, sua ideia de vida e a consciência social da época.
Trata-se dos verdadeiros valores, consistindo no fundamento teórico da Constituição e, ao mesmo tempo, seu objetivo prático a ser devidamente efetivado pelos aplicadores do direito.
2.3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Os princípios constitucionais representam valores que possibilitam o manuseio da Constituição de forma segura, atendo-se a determinadas matérias (como os princípios da ordem econômica, das relações internacionais etc.), e imbuídos de conteúdo material próprio, servindo aos mais diversos propósitos. O emprego do mesmo meio, portanto, pode servir para solucionar situações completamente antagônicas, conforme o caso ao qual se aplique.
Pode ocorrer que os princípios sejam implícitos à Constituição, ou seja, não escritos, os quais emergem de um conjunto de regras jurídicas que, por consagrarem em si um determinado valor subjacente, elevam-no a nível que lhe confere a generalidade própria dos princípios, muito embora seja abstrato.
2.4 DIREITOS FUNDAMENTAIS E PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Comprovada a garantia constitucional dos valores necessários ao viver do homem, sobrevém a necessidade de interpretação dos limites impostos ao exercício dos direitos fundamentais.
Muito se discute quanto à determinação do conteúdo e do alcance permitido a tais restrições, porquanto se tratam de enunciados constitucionais proclamados ao máximo nível normativo.
Os direitos fundamentais existem com a finalidade de assegurar a inviolabilidade dos aspectos essenciais da dignidade humana, não sendo comum, no ordenamento brasileiro, previsão expressa quanto a restrições. Para que as restrições sejam possíveis deve-se observar o conteúdo essencial do direito a ser restringido, a reserva da lei e o princípio da proporcionalidade, que é o principal limite observado para solução de conflitos entre direitos fundamentais.
Intimamente conectado à cláusula de devido processo legal, como decorrência substantiva da mesma, o princípio da proporcionalidade atua como insuperável limitação ao poder normativo do Estado.
Conforme os ensinamentos do ilustre autor Celso Ribeiro Bastos, o princípio da proporcionalidade não consiste em um “princípio”, mas sim em uma regra hermenêutica, uma vez que não traz conteúdo axiológico expresso e serve de orientação de interpretação para os métodos interpretativos enunciados; trata-se do ponto de conexão entre os pressupostos constitucionais e os princípios que guiam sua aplicação.
Comumente confundido com o princípio da razoabilidade (adoção da medida menos desvantajosa e menos grave ao cidadão), o chamado princípio da proporcionalidade possui três aspectos distintos, quais sejam: proporcionalidade em sentido estrito (emprego do meio mais vantajoso com o mínimo de desrespeito a outros); adequação (escolha do meio adequado para atingir o resultado almejado); e, exigibilidade (escolha do meio mais suave dentre os diversos possíveis).
Embora não possua previsão expressa, é uma implicação lógica e normativa, podendo ser considerado como princípio implícito, com força constitucional.
O princípio da proporcionalidade deve, necessariamente, passar pelo emprego do meio necessário para atingir a finalidade buscada mediante o meio menos gravoso, buscando um resultado que seja mais relevante e superior que o prejuízo causado. Uma vez detectado exagero do meio empregado será caracterizada ofensa ao dever da proporcionalidade.
A restrição de um direito fundamental por uma medida estatal será constitucionalmente justificável, de acordo com o princípio da proporcionalidade, portanto, se possuir fim legítimo, alcançado mediante um instrumento adequado à obtenção deste fim, restando proibida a adoção de meios excessivamente gravosos, que produzam afetação desvantajosa que poderia ter menor impacto caso o meio adotado fosse outro.
Uma vez comprovada a necessidade da realização do fim pretendido, é válida a intervenção no direito fundamental. De igual forma, para a defesa da tese do Estado de Coisas Inconstitucional, é necessário pontuar que havendo violação generalizada e constante aos direitos fundamentais, é legítimo o agir jurisdicional, mesmo que de forma ativista, para reestruturar essa situação. Todavia, conforme exposto neste estudo, é preciso que esse agir obedeça a parâmetros, tais como os impostos pela ideia de proporcionalidade.
3 O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Por todo o exposto, é fácil entender que para tornar o direito operativo é necessária sua interpretação. Assim, a norma jurídica, que é geral e abstrata, precisa de métodos que possibilitem sua adequação às realidades concretas em função das quais existe.
Como é sabido, a Constituição é a responsável pela estruturação e organização do Estado e de seus órgãos. Evidentemente possui superioridade em relação às demais normas jurídicas; é ela que confere validade ao sistema jurídico do país, ou seja, todas as normas contidas no ordenamento nacional somente terão validade se estiverem em conformidade com as normas da Constituição Federal.
Ocorre que, não somente as normas jurídicas como preceitos abstratos, mas também os atos administrativos, como ações concretas, devem obediência aos princípios e aos direitos estruturantes reconhecidos e protegidos pela Carta Magna. Nesse contexto, é que se concebe a técnica do Estado de Coisas Inconstitucional.
Na lição de Carlos de Alexandre Azevedo Campos (2015), o instituto do Estado de Coisas Inconstitucional somente deve ser aplicado de forma excepcional e quando houver um “quadro de insuportável violação massiva de direitos fundamentais”, reconhecida também “a falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e até judiciais” para a solução do problema e constatação de que “a superação dessas violações de direitos exige a expedição de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão, e sim a uma pluralidade destes”.
Assim, evidencia-se que o Supremo Tribunal Federal, ao se utilizar do instituto em estudo, busca efetivar os comandos constitucionais, principalmente no tocante à realização dos princípios e direitos fundamentais, para fugir da ideia já desenvolvida por Ferdinand Lassale de que a Constituição pode ser reduzida a uma “mera folha de papel”.
Faz-se importante destacar, ainda, que não existe previsão legislativa – constitucional ou infraconstitucional – acerca desse instituto, todavia, entende-se válida a utilização da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental para tal fim para atingir esse fim. Isso porque o objetivo dessa ação autônoma de controle de constitucionalidade é o de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público, seja ele legislativo ou não.
Dessa forma, por mais que estudiosos, como Lenio Luiz Streck (2015), critiquem que o Estado de Coisas Inconstitucional seja uma forma de ativismo camuflado e preocupante, por ter como objeto de declaração de inconstitucionalidade a realidade fática e não normas abstratas, é de se notar que o ordenamento jurídico, conforme já demonstrado no início deste estudo, quanto ao controle de constitucionalidade, preocupou-se também em tutelar a constitucionalidade dos atos concretos da administração, ainda que não legislativos, incluindo aí também as omissões – sejam legislativas, sejam executivas.
Assim, defende-se que a espécie em estudo de controle de constitucionalidade está sim amparada no ordenamento jurídico pátrio e que ela é de extrema importância, porquanto visa proteger a dimensão objetiva dos direitos fundamentais em jogo. A ressalva, necessária, é sobre como deve a Suprema Corte se portar para atingir seu fim, uma vez que necessita de esforços conjuntos dos demais Poderes da República e não pode, nem deve, soar desrespeitosa ao princípio basilar da separação dos poderes.
Para isso, impende estudar a experiência da Colômbia, primeira a utilizar-se da técnica do Estado de Coisas Inconstitucional. Conforme desenvolvido por Carlos de Alexandre Azevedo Campos (2015), em duas situações a Corte Constitucional Colombiana declarou o Estado de Coisas Inconstitucional, a primeira vez referente ao sistema carcerária do país e a segunda vez sobre o deslocamento forçado de pessoas em decorrência da violência.
É fato que a primeira vez restou infrutífera e a segunda deu resultados. A diferença das duas situações não se encontra no enquadramento delas como violadoras dos direitos fundamentais, porque realmente havia essa violação, de forma intensa e massificada. O diferencial para o resultado foi tão somente a forma como a Corte Constitucional agiu e decidiu. Assim, pode-se pontuar que, quanto à primeira situação: “O erro da corte foi acreditar que sua autoridade contida nas decisões, por si só, seria suficiente para que os órgãos públicos cumprissem efetivamente com as medidas ordenadas. A corte pouco se preocupou com a real impossibilidade de as autoridades públicas cumprirem as ordens. Faltou diálogo em torno de como melhor realizar as decisões, não tendo sido retida jurisdição sobre a execução das medidas.” (CAMPOS, 2015).
Erro esse que não se repetiu na segunda situação, porquanto nesta “a corte buscou harmonizar o ativismo judicial revelado na intervenção sobre as políticas públicas com a proposta de diálogos institucionais” (CAMPOS, 2015). Assim, foram dadas ordens flexíveis e abriu-se ao debate com os poderes e a sociedade sobre a implementação das medidas para suprir as omissões estatais e a violação aos direitos fundamentais, com a fixação de parâmetros e prazos razoáveis. Ademais, o judiciário se propôs a fiscalizar e acompanhar o progresso de suas ordens, o que, de fato, amplia a possibilidade de fazê-las darem certo. Em suma, o sucesso do agir da Corte Constitucional nesse caso se deu em razão de que as “ordens flexíveis acompanhadas de monitoramento podem [e são], portanto, ser superiores às ordens detalhadas e rígidas não apenas sob as óticas democrática e política, mas também quanto aos resultados desejados” (CAMPOS, 2015).
In casu, na ADPF nº 347, constata-se que o Supremo Tribunal Federal tem buscado agir de forma mais democrática, flexível e aberta, emanando ordens que atendem aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, o que possibilitam a efetivação delas e o esperado sucesso da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional. Tudo isso, destaca-se, reconhecendo que o Supremo não pode – nem deve – substituir o Legislativo e o Executivo na realização de suas tarefas típicas, mas que pode sim ser meio hábil à superação dos bloqueios políticos e institucionais que originam a grave – e reiterada – violação aos direitos fundamentais.
CONCLUSÃO
Em linhas de conclusão, reafirma-se que não se vê vedação legal – seja de âmbito constitucional ou infraconstitucional – à utilização do Estado de Coisas Inconstitucionais no Ordenamento Jurídico Brasileiro, uma vez que os princípios e direitos fundamentais precisam ser realizados e violações a eles não podem ser tuteladas. Ou seja, é a técnica congruente com a teoria de direito constitucional adotada no ordenamento jurídico brasileiro.
Ademais, é de se ressaltar o potencial do Estado de Coisas Inconstitucional, coordenado pelo Supremo Tribunal Federal, para proteger minorias vulnerárias e para solucionar problemas estruturais que geram realidades fáticas de grave violação a direitos fundamentais. Isso, contudo, usurpar as competências e as finalidades típicas dos outros poderes governamentais.
Por fim, reafirma-se que a Corte deve, ao utilizar-se dessa técnica, superar os bloqueios políticos e institucionais à realização dos direitos fundamentais violados, aumentando a deliberação e o diálogo, com outros Poderes e a sociedade, sobre o que gera o Estado de Coisas Inconstitucional e como ele pode ser resolvido. Agindo assim, vê-se que o processo se desenvolve de forma democrática e sem afrontar a estrutura basilar do nosso ordenamento jurídico.
Consultor Jurídico de Desembargador no Tribunal de Justiça do Piauí. Especialista em Direito Constitucional
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