Direito Constitucional

O Estado Democrático de Direito e a Operação Acolhida: análise acerca do acolhimento dos refugiados venezuelanos no estado de Roraima

The Democratic State of Law and the Welcome Operation: analysis about the welcome of venezuelan refugees in the state of Roraima

Bernardo Silva de Seixas1

Isabelle Cristina Moura de Lima2

Resumo: A temática central deste trabalho é o Estado Democrático de Direito e o princípio da dignidade humana na proteção dos refugiados oriundos do Estado venezuelano. Justifica-se o trabalho em razão da imigração dos cidadãos venezuelanos ao Brasil na busca de uma vida mais digna, em razão da crise política, social, econômica e humanitária que acomete a Venezuela. O objetivo deste trabalho é verificar a eficácia da Operação Acolhida na recepção digna de refugiados venezuelanos que chegam ao estado de Roraima. A metodologia utilizada é o método hipotético-dedutivo. As análises demonstram que o êxito na concretização da Operação Acolhida é proporcionado em razão do Estado Democrático de Direito, cujas leis vigentes preveem mecanismos para resguardar a dignidade humana, bem como, pela ratificação do Brasil de tratados internacionais que influenciam nos efeitos desta operação. Desse modo, a Operação Acolhida tutela a dignidade dos venezuelanos que chegam a Roraima.

Palavras-chave: Operação Acolhida. Dignidade Humana. Refugiados; Estado Democrático de Direito. Tratados internacionais.

 

Abstract: The central theme of this work is the Democratic State of Law and the principle of human dignity in protection of the refugees coming from Venezuela. The idea for this work comes from the immigration of Venezuelan citizens to Brazil in search of a worthier life due to the political, social, economic and humanitarian crisis that affects Venezuela. The objective of this work is to verify the efficiency of the Welcome Operation in the dignified reception of Venezuelan refugees arriving in the state of Roraima. The methodology used is the hypothetical-deductive method. The analysis shows that the success in carrying out the Welcome Operation is due to the Democratic State of Law which current laws provide mechanisms to safeguard human dignity, as well as by Brazil’s ratification of international treaties that influence the effects of this operation. In this way, Welcome Operation protects the dignity of Venezuelans arriving in Roraima.

Keywords: Welcome Operation; human dignity; refugees; Democratic State of Law; international treaties.

 

Sumário: Introdução. 1. Neoconstitucionalismo. 1.1. Estado Democrático de Direito. 2. Mecanismos de proteção aos refugiados nas legislações nacionais e internacionais. 3. A imigração de refugiados venezuelanos e a Operação Acolhida no estado de Roraima. 3. 1.  Imigração venezuelana. 3.2.  Operação Acolhida. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

O cenário de crise política, social, humanitária e econômica que acontece na Venezuela resultou na saída de muitos refugiados venezuelanos do país. Desse modo, em razão da fronteira existente entre o Brasil e a Venezuela, esse se tornou uma opção e esperança de melhores condições de vida para os refugiados ao atravessarem a fronteira em direção a Roraima.

O estado de Roraima, em especial as cidades de Boa Vista e Pacaraima, não estava preparado para receber tantos refugiados que chegavam de maneira súbita, tendo em vista que muitos imigrantes se encontravam vulneráveis, sem ter onde residir, sem recursos financeiros para compra de alimentos, de material de higiene pessoal.

Por esses motivos a Operação Acolhida foi criada, cujo intento era garantir que ao chegarem a Roraima, os refugiados fossem acolhidos de maneira digna, conforme assegurado nas leis nacionais e tratados internacionais ratificados pelo Brasil. A missão acolhida foi executada pelo Exército Brasileiro, juntamente com os entes da União, entidades religiosas, filantrópicas.

O teor deste estudo é justificado pela situação emergente e imprecisa relacionada à ausência de estrutura em Roraima diante do fluxo de refugiados venezuelanos que chegam ao estado, muitos em condições vulneráveis, bem como, a concretização dos direitos garantidos à pessoa humana no Estado Constitucional, conforme as leis nacionais e internacionais que protegem os refugiados. Ademais, o reconhecimento de que o Estado Constitucional viabilizou a criação da Operação Acolhida e, por conseguinte, os efeitos positivos na vida de inúmeros imigrantes refugiados.

Sendo assim, os questionamentos a serem respondidos no decorrer do presente estudo são: Qual é a influência do Neoconstitucionalismo na promoção de direitos fundamentais aos venezuelanos em Roraima? Qual é o mecanismo utilizado pelo Estado Democrático de Direito para resguardar a entrada digna de refugiados venezuelanos que chegam ao estado de Roraima? De que maneira a ratificação do Brasil às legislações internacionais que versem sobre refugiados, contribuem na concretização da dignidade humana aos venezuelanos?

O objetivo geral deste estudo é demonstrar como a Operação Acolhida assegura a proteção da dignidade humana dos refugiados venezuelanos que chegam ao estado de Roraima diante da crise política, social, econômica e humanitária que ocorre na Venezuela.

Em relação aos objetivos específicos, aborda-se a respeito do conceito de refugiado e migrante; o contexto do estado de Roraima diante da chegada de refugiados, a compreensão do aumento do fluxo imigratório dos venezuelanos neste estado; o estudo das legislações brasileiras referentes ao refugiado, bem como os tratados assinados pelo Brasil sobre o tema; a apresentação dos efeitos da operação acolhida e a definição da dignidade humana.

A metodologia adotada no estudo foi a hipotética- dedutiva. Dessa maneira, em sequência será apresentado à influência das ideias do Neoconstitucionalismo e posteriormente consolidadas na Constituição Federal de 1988, em especial a valorização da dignidade humana. Outrossim, será exposto os fundamentos e mecanismos previstos pelo Estado Democrático de Direito na promoção de uma sociedade justa, igualitária e que visa o bem de todos.

Após a compreensão de que o Estado Constitucional possibilita a concretização de direitos indispensáveis à pessoa humana, será elucidado acerca das leis nacionais e internacionais que versam sobre a proteção e acolhimento digno dos refugiados venezuelanos que chegam a Roraima.

Para concluir o estudo, será explanado a respeito do movimento imigratório dos venezuelanos ao estado de Roraima e os alicerces atinentes ao comprometimento do Brasil na efetivação do acolhimento humanitário, como também, a matriz que desencadeou a criação da Operação Acolhida, seus desdobramentos e a satisfação com os trabalhos desempenhados.

 

1  NEOCONSTITUCIONALISMO

O Neoconstitucionalismo é oriundo de uma construção histórica, filosófica e teórica (BARROSO, 2005, p.11-12). Inicialmente surgiu na Europa ao longo da segunda metade do século XX e, no Brasil, com a Constituição de 1988 (BARROSO, 2005, p. 43). Segundo Barroso e Barcellos (2003, p.26) “a Constituição de 1988 foi o marco zero de um recomeço, da perspectiva de uma nova história”.

 

Nesse sentido, Barroso (2005, p.11-12):

 

O neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito.

 

Salienta-se que apesar da previsão de alguns direitos considerados basilares para sobrevivência humana em constituições anteriores a de 1988, estas normas não possuíam efetividade. Em consequência, os direitos substanciais, como alimentação, educação, trabalho, moradia, saúde, vida digna, eram materialmente carentes de força normativa.

 

Em consonância com Streck apud Oliveira e Vaccaro (2018, p. 205):

 

[…] falar em neoconstitucionalismo implicava ir além de um constitucionalismo de feições liberais – que, no Brasil, sempre foi um simulacro em anos intercalados por regimes autoritários – em direção a um constitucionalismo compromissório, de feições dirigentes, que possibilitasse, em todos os níveis, a efetivação de um regime democrático em terrae brasilis.

 

Ademais:

 

A Carta Magna de 88 rompeu com o sistema autoritário que vigorou até o ano de 1987 e estabeleceu um novo pacto social fundado na promessa de construir um país para todos. A Constituição, que proporcionou a redemocratização do país, recepcionou uma diversidade imensa de interesses e anseios, desde um modelo de Estado Liberal até aspectos do Estado Social de Bem-Estar, tendo como centro axiológico na promoção da dignidade humana (OLIVEIRA; VACCARO, 2018, p. 193-194).

 

A constituição de 1988 (BRASIL, 1988) não só proporcionou assistência tangível aos desfavorecidos, como também, “esperança de melhor distribuição de rendas, de acesso a uma educação básica de qualidade, a um sistema de saúde pública eficiente e, sobretudo, de uma vida digna e civilizada” (OLIVEIRA; VACCARO, 2018, p. 193).

 

Desse modo, o direito no Brasil passou a ser interpretado com uma perspectiva mais humana. Além disso, em razão da nova hermenêutica constitucional vigente na Carta Magna de 1988, surgiu o reconhecimento a valorização da normatividade dos princípios, dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, como epicentros do Estado Democrático de Direito na aplicação das leis.

 

Mister destacar que a proteção da dignidade humana está prevista na Constituição Federal de 1988, no artigo 1º, inciso III, referindo-se a uma particularidade de natureza própria e intrínseca do ser humano e, por isto, deve ser resguardada contra qualquer ato que seja desumano e degradante, bem como, a promoção de condições tangíveis mínimas para que o ser humano viva de forma digna. (SARLET, 2007 p. 364-383).

 

Sendo assim, o Estado Constitucional transformou a maneira de pensar “ser humano”, tendo como núcleo a proteção da dignidade da pessoa humana, da valorização dos direitos essenciais aos seres humanos e dos princípios, assegurando a todos condições mínimas de sobrevivência.

 

1.1 Estado Democrático de Direito

A Carta Magna de 1988 é resultado de uma evolução iniciada com o Estado Liberal, que passou para o Estado Social e, por fim, chegou ao Estado Democrático de Direito, previsto no artigo 1º, inciso I da Constituição Federal de 1988, cujo teor nuclear é a promoção dos direitos fundamentais e preservação da dignidade humana.

 

Salienta-se que o Estado Liberal foi marcado pelas revoluções burguesas. Como consequência, a constituição criada nessa época se preocupava, tão somente, em garantir a liberdade dos indivíduos, para que pudessem praticar suas atividades, bem como, de proteger o individualismo, sem que houvesse limitação de determinado poder (ARAÚJO, 1997, p. 25).

 

Com relação ao Estado Social, a sociedade teve a percepção da necessidade de uma proteção material e ativa do Estado, para que a igualdade tangível entre as pessoas fosse concretizada.  Nesse sentido, Silva (2005, p.222) “o elemento faltante, que deveria ir para além da igualdade jurídica, formal, do Estado Liberal era o encontro com o igualitarismo democrático, a conquista de um ideal de equalização econômica e de oportunidades”.

 

No que tange ao Estado Democrático de Direito, surgiu com a Constituição de 1988, momento em que ocorreu a unificação e preservação dos direitos estabelecidos pelo Estado Liberal e Estado Social. Desse modo, conforme entendimento do Silva (2005, p. 228) “o Estado Democrático de Direito deve realizar a institucionalização do poder popular, num processo de convivência social pacífico, numa sociedade livre”.

 

Outrossim:

 

A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status Quo. E aí se encontra a extrema importância do art.1º da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em estado democrático de direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois, a Constituição aí já o está proclamando e fundando (SILVA, 2005, p.121).

 

Assim sendo, o constituinte originário da Constituição Federal de 1988, traçou meios para que o Estado Democrático de Direito exercesse uma postura mais ativa na concretização dos fins sociais, observando os objetivos estabelecidos no artigo 3º da Carta Magna, especialmente no que toca à construção de uma sociedade livre, justa, igualitária e de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

  1. MECANISMOS DE PROTEÇÃO AOS REFUGIADOS NAS LEGISLAÇÕES NACIONAIS E INTERNACIONAIS

A igualdade é um dos núcleos indispensáveis que constitui o Estado Democrático de Direito. Desse modo, a Carta Magna estabelece, conforme o artigo 5º caput, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurando aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, a inviolabilidade do direito à vida, igualdade, segurança e propriedade (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

 

Em consonância com o Brasil (2018, p. 760) o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 estabelece que:

 

O Estado Democrático brasileiro instituído está destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais e, considerá-los, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, assim como a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, devendo ser fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias, tanto na ordem interna como, também, na ordem internacional.

 

Nesse sentido, o Brasil atua efetivamente no acolhimento de muitos imigrantes venezuelanos que chegam a Roraima, em razão da crise política, social, econômica e humanitária que assola a Venezuela. Alguns refugiados necessitam de um abrigo, de assistência humanitária e financeira, outros se encontram desnutridos e com precisão médica.

Destaca-se que a fronteira existente entre o Brasil e a Venezuela facilita na vinda de venezuelanos para Roraima. A tutela destas pessoas refugiadas surgiu após a Liga das Nações, de maneira limitada, tendo sua proteção ampliada somente depois das crueldades realizadas com os seres humanos na Segunda Guerra Mundial.

 

Nesse contexto foram criados instrumentos para auferir proteção aos seres humanos, quais sejam: as Nações Unidas (1946), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), simultaneamente com a Convenção das Nações sobre o Estatuto dos Refugiados (1951) (MARINUCCI; MILESE, 2003, p.13).

 

Salienta-se que o artigo 1º da Convenção de 1951 prevê o seguinte conceito de refugiado:

Que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951, e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de que tem a nacionalidade e não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se de proteção desse país; ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha a sua residência habitual em consequencia de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

 

A Convenção de 1951 foi um progresso à proteção dos refugiados, mas passou a ser insuficiente, em razão de situações complexas que surgiram acerca dos refugiados e que precisavam ser reguladas. De acordo com Meira (2003, p. 104) “a Convenção só atribuía a um indivíduo a condição de refugiado quando o fato por ele praticado tivesse ocorrido antes de 1º de janeiro de 1951”.

 

Nessas circunstâncias, a Organização das Nações Unidas aprovou o Protocolo de 1967 sobre o status de Refugiados, eliminando, assim, a restrição que limitava a Convenção às situações ocorridas até 1º de janeiro de 1951 (DOLINGER, 1997, p.211 apud MEIRA, 2003, p. 104).

Na seara nacional, o dispositivo 4º da Constituição Federal prevê os princípios que deverão ser observados pelo Brasil no âmbito internacional, principalmente no que tange à prevalência dos direitos humanos, a defesa da paz, a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

 

O reconhecimento e comprometimento do Brasil perante as legislações internacionais acerca dos refugiados realizaram-se com a promulgação da Lei 9. 474/97 (BRASIL, 1997), que trata exclusivamente do refugiado, cujo intuito é evidenciar aquele que se encontre nesta condição e, com isso, auferir a dignidade humana dessas pessoas.

 

A Lei 9. 474/97 (BRASIL, 1997) consolidou o conceito de refugiado com base na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, no Protocolo de 1967 e pela Declaração de Cartagena sobre Refugiados de 1984. Sendo assim, o conceito de refugiado previsto nos incisos I, II e III do artigo 1º desta Lei prevê que:

 

Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

 

Mister destacar que o artigo 48 da Lei nº 9.474/97 (BRASIL, 1997) trata do comprometimento do Governo brasileiro em relação à observância dos preceitos internacionais:

Os preceitos desta Lei deverão ser interpretados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 e com todo dispositivo pertinente de instrumento internacional de proteção de direitos humanos com o qual o Governo brasileiro estiver comprometido.

 

Ademais, em harmonia com a Lei 9.474/97 (BRASIL, 1997), o Brasil criou a Lei 13.445/17 (BRASIL, 2017) – Lei de Migração, que revogou o Estatuto do Estrangeiro, tendo em vista que este não era eficiente, continha normas limitadas que dificultavam sua aplicação, principalmente quanto ao procedimento de entrada dos estrangeiros no Brasil.

 

A Lei 13.445/17 (BRASIL, 1997) concretiza, de maneira satisfatória, o que está previsto no artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), no que toca a garantia dos direitos fundamentais, a observância de princípios nacionais e internacionais de amparo aos direitos humanos e, notadamente, o fomento à igualdade entre brasileiros e não brasileiros.

 

Conforme menciona Mazzuoli (2015, p. 914), a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) prevê no § 2º do seu artigo 5º a existência de um sistema de direitos e garantias de dupla fonte normativa, tendo em vista as normas oriundas do direito interno e provenientes do direito internacional.

 

Ressalta-se o entendimento do Min.Celso, no que toca a nova concepção de pessoa e a necessidade de proteção da dignidade humana, tanto no âmbito interno, como internacional:

O eixo de atuação do direito internacional público contemporâneo passou a concentrasse, também, na dimensão subjetiva da pessoa humana, cuja essencial dignidade veio a ser reconhecida, em sucessivas declarações e pactos internacionais, como valor fundante do ordenamento jurídico sobre o qual repousa o edifício institucional dos Estados nacionais (Brasil, 2008).

 

Outrossim, Flávia Piovesan apud Souza (2019,  p. 45-46):

 

[…] a proteção internacional dos refugiados se opera mediante uma estrutura de direitos individuais e responsabilidade estatal que deriva da mesma base filosófica que a proteção dos direitos humanos. O Direito Internacional dos Direitos Humanos é a fonte dos princípios de proteção dos refugiados e ao mesmo tempo complemente a tal proteção.

 

Assim sendo, o Estado Constitucional teve como sustentáculo não só a legislação nacional, como também, os tratados internacionais para resguardar e conferir aos refugiados venezuelanos que chegam a Roraima, a garantia dos direitos fundamentais, bem como a segurança de uma recepção digna.

 

  1. A IMIGRAÇÃO DE REFUGIADOS VENEZUELANOS E A OPERAÇÃO ACOLHIDA NO ESTADO DE RORAIMA

Os deslocamentos migratórios sempre estiveram presentes durante toda história dos seres humanos. Há muito tempo essas pessoas migram, saem do ambiente onde habitam em busca de melhores condições de sobrevivência, sozinhos ou acompanhados por seus familiares e em pequenos grupos.

Inicialmente, os motivos pelos quais as pessoas se movimentavam eram limitados a procura de um ambiente mais favorável para colheita ou em busca de melhores situações climáticas. Após o surgimento da globalização, os indivíduos passaram a sair do lugar onde viviam em razão de guerras, de conflitos internos, perseguições, em busca de trabalho. Desse modo:

 

[…] o processo de migração é voluntário e os motivos pelos quais estas pessoas se deslocam podem ser vários, dentre eles, a procura por melhores situações de vida, de alívio de dificuldades ocasionadas por desastres naturais, pela pobreza (ACNUR, 2016).

 

É importante salientar que a confusão terminológica entre refugiados e migrantes pode ocasionar problemas, tendo em vista que os motivos e algumas leis que tratam de ambas as condições são diferentes. Em relação aos refugiados, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR, 2016):

 

Refugiados são pessoas que estão fora de seus países de origem por fundados temores de perseguição, conflito, violência ou outras circunstâncias que perturbam seriamente a ordem pública e que, como resultado, necessitam de “proteção internacional. As situações enfrentadas são frequentemente tão perigosas e intoleráveis que estas pessoas decidem cruzar as fronteiras nacionais para buscar segurança em outros países, sendo internacionalmente reconhecidos como “refugiados” e passando a ter acesso à assistência dos países, do ACNUR e de outras organizações relevantes. Eles são assim reconhecidos por ser extremamente perigoso retornar a seus países de origem e, portanto, precisam de refúgio em outro lugar. Essas são pessoas às quais a recusa de refúgio pode ter consequências potencialmente fatais à sua vida.

 

Com o passar dos tempos, percebeu-se a necessidade de criar um instrumento de proteção aos direitos humanos daqueles que se deslocavam em busca de melhores condições de vida. Dessa maneira, segundo as Nações Unidas (2016), os “migrantes são protegidos pela lei internacional dos direitos humanos”. Na esfera nacional essas pessoas também passaram a ser protegidas pela Nova Lei de Migração – Lei nº 13.445/17 (BRASIL, 2017).

 

Em que pese haja terminologias distintas para proteger os direitos essenciais dos seres humanos, é consenso o entendimento de que no plano nacional, os “direitos fundamentais” estão relacionados aos direitos internos previstos em cada país. Já na seara internacional, a proteção ao ser humano é chamada de “direitos humanos”. Nesse sentido, o Doutrinador André de Carvalho Ramos (2017, p.52):

 

Os “direitos humanos” servem para definir os direitos estabelecidos pelo Direito Internacional em tratados e demais normas internacionais sobre a matéria, enquanto a expressão “direitos fundamentais” delimitaria aqueles direitos reconhecidos e positivados pelo Direito Constitucional de um Estado específico.

 

Portanto, observa-se que os indivíduos sempre se deslocaram ao longo da história em busca de melhores condições de vida e, no decorrer do tempo, os seus direitos passaram a ser assegurados pela Lei internacional, bem como, na seara nacional, pela Lei de Migração.

 

3.1 Imigração venezuelana

A imigração dos refugiados venezuelanos para o Brasil começou em 2015 e ganhou força em 2016, atingindo números surpreendentes em 2017. Esse fluxo de refugiados ocupou, em pouco tempo, a cidade de Boa Vista, capital do estado de Roraima, elevando em 10% a população da cidade em 2017 (SOUZA, 2019, p. 17).

 

A crise na Venezuela foi acentuada pelo regime de Nicolás Maduro e crise econômica (BOTELHO; SOUZA, 2020, p.161), em razão do autoritarismo e corrupção praticados, que ocasionou uma fragilidade na seara política, social, econômica e humanitária no país.

 

Nessa perspectiva, muitos refugiados chegaram ao Brasil buscando condições melhores de vida e, a porta de entrada é o Estado de Roraima, tendo em primeiro plano o município de Pacaraima e posteriormente a capital do estado, a cidade de Boa Vista (SOUZA, 2019, p. 59). De acordo com Júnior (2019, p. 433) a Venezuela:

 

[…] que se destaca por estar dentre os dez maiores produtores de petróleo do mundo, encontra-se imersa em uma crise humanitária, econômica, política e social sem fim, deixando de ser um território pacífico, impondo a muitas pessoas a obrigação de deixar o país para encontrar melhores condições mínimas de dignidade e de sobrevivência.

 

Dessa maneira, os venezuelanos saem de seu país por motivos de violências praticadas aos direitos humanos, principalmente no que toca a escassez de alimentos, de medicamentos, de alto desemprego, desnutridos, de agressões praticadas contra venezuelanos que protestam contra o governo. Sendo assim:

 

Estima-se que ao menos 30 mil venezuelanos já cruzaram a fronteira daquele país com o Brasil e, dentre estes, conforme informações do exército e da polícia federal, no estado de Roraima, entre janeiro e março de 2018, cerca de 28,8 mil pessoas atravessaram por meio do município fronteiriço de Pacaraima, distante 212 quilômetros da capital Boa Vista chegando ao Brasil (JÚNIOR, 2019, p.433).

 

Mister diferenciar o instituto do asilo e refúgio. O primeiro é oriundo de tratados multilaterais bastante específicos de âmbito regional, que nada mais fizeram do que expressar o costume até então aplicado no Continente Americano, tendo natureza política. Ademais, para concessão do asilo é necessário que haja temor de perseguição, sendo ainda uma medida discricionária por parte do Estado (MAZZUOLI, 2015, p.827 – 828).

 

Em contrapartida, o refúgio tem suas normas elaboradas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, vinculado a ONU, isto é, tem alcance global e natureza humanitária. A autorização do refúgio é efetivada quando há uma perseguição concreta, bem como, a presença dos pressupostos preenchidos para condição de refugiado, estabelecidos tanto pela ordem interna, como internacional (MAZZUOLI, 2015, p.827 – 828).

 

Nesse sentido, em conformidade com a Lei 9.474/97- Lei dos refugiados no Brasil, a Nova Lei de Migração observa situações que envolvam os refugiados e solicitantes de refúgio, conforme o artigo 121 desta Lei. Além disso, estabelece dispositivos que auxiliam na concretização do acolhimento dos refugiados no país, especialmente no que tange a condição de paridade com os nacionais e de acolhida humanitária.

 

A Lei nº 13.445/17 (BRASIL, 2017) ainda prevê no seu artigo 120, a Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, com a finalidade de coordenar e articular ações setoriais implementadas pelo poder Executivo federal em regime de cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, com participação de organizações da sociedade civil, organismos internacionais e entidades privadas, conforme regulamento.

 

Outrossim, a Lei de Migração determina a não extradição ou rechaço de pessoas que se encontrem na condição de refugiado para fronteiras de territórios em que sua vida ou liberdade estejam ameaçadas- princípio do non-refoulement (RAMOS, 2017, p.174).  Dessa maneira, a Lei nº 13.445/17 (BRASIL, 2017):

 

[…] significativas mudanças que fazem parte do enfoque da Nova Lei, aspectos compatíveis com o viés humanitário e em concordância com o que prega a Carta Magna, demonstrando assim, o avanço significativo que o Brasil teve no trato para com o imigrante que busca refúgio, no que se refere a amparo por leis (BOTELHO; SOUZA, 2020, p. 159).

 

Destarte, diante do movimento de imigração venezuelana no estado de Roraima, percebe-se o comprometimento do Brasil com as legislações de cunho protetivo aos refugiados, especialmente quanto ao acolhimento humanitário, à observância da situação de paridade entre os refugiados e nacionais, bem como o princípio de não devolução dessas pessoas vulneráveis, que saíram de seu país e não podem retornar.

 

3.2.  Operação Acolhida

Em virtude da inesperada quantidade de venezuelanos que chegaram a Roraima, bem como a falta de estrutura e preparo do estado, havia uma grande possibilidade de acontecer uma crise de cunho social e econômica, especialmente nas cidades de Pacaraima e Boa Vista (SOUZA, 2019, p.79), com grande concentração de venezuelanos.

 

Nesse contexto, o mínimo existencial garantido legalmente dos refugiados se encontrava ameaçado, tendo em vista que estes chegavam carentes de moradia, saúde, educação, segurança, alimentação, regulação quanto à solicitação de refúgio e, em contrapartida, não havia abrigos suficientes, como também, os serviços públicos estavam saturados em Roraima.

 

Com o objetivo de reduzir os efeitos da chegada dos refugiados venezuelanos em Roraima de forma desordenada, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 820, de 15 de fevereiro de 2018 e os decretos de nº 9.285 e 9.286, ambos de 15 de fevereiro de 2018 e, posteriormente, foram convertidas na Lei nº 13.684/18 (SOUZA, 2019, p.80).

 

A Lei 13.684/18 (BRASIL, 2018) reconheceu a crise humanitária emergencial, estabelecendo ações de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária, aplicando-se especialmente ao caso dos venezuelanos, também criou o Comitê Federal de Assistência Emergencial (GOV. BR), com representantes de diversos órgãos, como forma de concretizar os direitos traçados pelo Estado Constitucional.

 

Destaca-se que o Comitê Federal de Assistência Emergencial teve como Coordenador Operacional no estado de Roraima o General de Brigada Eduardo Pazuello. Após sua nomeação, o Ministro da Defesa expediu a Diretriz Ministerial nº 3, de 28 de fevereiro de 2018, em que consentiu com a criação da Operação Acolhida (SOUZA, 2019, p.92). Dessa maneira:

 

A Força-Tarefa Logística Humanitária Roraima foi criada com a finalidade de planejar e executar a Operação Acolhida, sob coordenação do General de Divisão Eduardo Pazuello, do Exército Brasileiro, cabendo a essa Força-Tarefa cooperar com os governos federal, estadual e municipal no tocante às medidas de assistência emergencial para acolhimento de imigrantes provenientes da Venezuela, em “situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária”. Em termos práticos, isso significa recepcionar, identificar, triar, imunizar, abrigar e interiorizar os venezuelanos desassistidos. (SOUZA, 2019, p. 129).

 

A Operação Acolhida é humanitária, tendo em vista o intuito de acolher os venezuelanos em situações de vulnerabilidade; é conjunta, uma vez que está ligada aos profissionais da Marinha, do Exército e da Força Aérea e, é interagências, em razão da “interação das Forças Armadas com outras agências com o escopo de conciliar interesses e coordenar esforços”, visando acolher os refugiados desassistidos, de forma organizada, sistemática e eficiente (SOUZA, 2019, p.129).

 

A missão acolhida foi desenvolvida a partir do intuito de efetivar três pilares: organizar a fronteira, abrigar e interiorizar os refugiados imigrantes. O primeiro está relacionado com o ordenamento do deslocamento dos venezuelanos, eles são recepcionados e identificados. O segundo está ligado à assistência social, isto é, são oferecidas condições dignas de abrigo, ofertas de alimentos, possibilidade de assistência médica (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2019). Em relação aos abrigos:

 

Os abrigos estão organizados para receber separadamente homens solteiros, mulheres solteiras, casais com e sem filhos, LGBT e indígenas da etnia Warao. Os abrigados recebem três refeições diárias e contam com lavanderia e atendimento médico, entre outros serviços prestados (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2019).

 

Por último, acontece a interiorização, ou seja, momento em que os venezuelanos são enviados para outras Unidades da Federação e passam a contar com mais possibilidades de inclusão socioeconômica (GOV. BR). De acordo com Souza (2019, p.125):

 

Todos os esforços empreendidos pelas instituições e pessoas envolvidas, não seriam suficientes sem a conjunção de vontades e do sentimento do dever de ajudar ao próximo, em busca da manutenção da dignidade da pessoa humana. Desta forma, trabalhando de forma integrada, ajustando suas rotinas, refazendo procedimentos e, principalmente, buscando a sinergia necessária que fazem da Operação Acolhida um sucesso sem precedentes na história brasileira.

 

Portanto, observa-se o trabalho eficiente executado pelo Exército Brasileiro, juntamente com os entes da União, organismos internacionais, entidades religiosas, filantrópicas, organizações não governamentais e governamentais na missão acolhida. O desempenho dessas pessoas tornou possível a recepção de refugiados venezuelanos em Roraima, observando as leis nacionais e internacionais de cunho protetivo aos direitos fundamentais, direitos humanos e a dignidade humana.

 

CONCLUSÃO

O estudo em questão apresentou a situação emergente dos refugiados venezuelanos que chegam a Roraima em condições vulneráveis e o empenho do Brasil diante desta questão, principalmente de assegurar a proteção da dignidade humana dessas pessoas, tendo como base as legislações do país e ratificadas na seara internacional, oportunizadas pelo Estado Democrático de Direito.

As problemáticas do artigo foram limitadas a estas questões: Qual é a influência do Neoconstitucionalismo na promoção de direitos fundamentais aos venezuelanos em Roraima? Qual é o mecanismo utilizado pelo Estado Democrático de Direito para resguardar a entrada digna de refugiados venezuelanos que chegam ao estado de Roraima? De que maneira a ratificação do Brasil às legislações internacionais, que versem sobre refugiados, contribuem na concretização da dignidade humana aos venezuelanos?

No decorrer do trabalho, observa-se inicialmente o movimento do Neoconstitucionalismo e sua influência na previsão de direitos fundamentais na Constituição de 1988, como também, os alicerces estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito na efetivação da proteção da dignidade a qualquer pessoa humana.

Ademais, analisou-se acerca das leis nacionais e internacionais que embasam o acolhimento de pessoas refugiadas. Por último, verificou-se o movimento de refugiados venezuelanos, bem como a concretização dos direitos essenciais dessas pessoas por meio da criação da Operação Acolhida, sendo uma missão de sucesso, direcionada ao acolhimento digno dos imigrantes venezuelanos no estado de Roraima.

Conclui-se que o Estado Democrático de Direito, tendo como epicentro a dignidade da pessoa humana, viabilizou a recepção digna de refugiados venezuelanos em Roraima por meio da Operação Acolhida, observando as leis nacionais e internacionais de proteção aos refugiados, bem como as diretrizes traçadas pelo Estado Constitucional, de uma sociedade justa e sem discriminação.

 

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