Resumo: O Estatuto da Cidade instaurou um cenário de novas perspectivas para o planejamento urbano e trouxe consigo a revisão das práticas de gestão das cidades. Neste cenário, o Plano Diretor, diferentemente dos produzidos na “era SERFHAU[1]”, assume um papel importante no processo transformador do cenário urbano. Após nove anos da aprovação do estatuto, conclui-se que apenas a legislação não é capaz de mudar o panorama atual. A aprovação de tal lei não foi suficiente para reduzir os impactos sócio-ambientais aos quais as cidades e seus habitantes estão expostos. É imprescindível, portanto, uma revisão das políticas urbanas até então adotadas, a fim de que, seja possível enfrentar as questões urbanas e garantir a promoção das funções social e ambiental da propriedade e da cidade. É neste ponto que se buscou apresentar a atual configuração do direito de propriedade frente às suas funções social e ambiental, destacando-se as inovações trazidas pelo Estatuto da Cidade e pelo Código Civil de 2002.[2]
Palavras-chave: Estatuto da Cidade; Funções social e ambiental da propriedade e da cidade.
Sumário: 1. Introdução; 2. As cidades brasileiras e o estatuto da cidade: um breve histórico; 3. Planos diretores; 3.1. Os “velhos” planos diretores; 3.2. Os “novos” planos diretores: pós estatuto da cidade; 4. A propriedade: breve histórico; 4.1. Aspectos da finalidade social e ambiental da propriedade; 5. Considerações finais; 6. Agradecimentos; Referências bibliográficas; Obras consultadas.
1. INTRODUÇÃO
O Brasil é um país predominantemente urbano, mais de 80% de sua população vive (ou sobrevive) em zonas urbanas. O poder econômico, as novas tecnologias e as comunicações desenvolvidas fazem parte do cotidiano urbano, assim como a pobreza e a miséria. As cidades, deste modo, são os maiores palcos de contradição existentes, onde ocorrem os maiores problemas sociais, mas também onde estão concentradas as maiores riquezas.
A necessidade de mudanças, nesse panorama, requer alterações consideráveis para que haja melhores condições de vida e justa distribuição dos benefícios e dos ônus da urbanização, como já apontavam os primeiros debates sobre a reforma urbana, desde o início até atualmente, nove anos após a aprovação do Estatuto da Cidade.
Visando adequar-se aos novos direitos tutelados pelo ordenamento jurídico, o direito de propriedade, tem passado por profundas alterações, uma vez que a propriedade privada, absoluta e ilimitada, tornou-se incompatível com a nova configuração dos direitos de ordem pública, que passou a limitá-lo no interesse da coletividade, incorporando valores sociais e ambientais ao seu uso.
Em outras palavras, “o direito de propriedade deixou de ser medido exclusivamente a partir do ponto de vista do proprietário, para ser delineado conforme interesses da coletividade” (GUIMARÃES JÚNIOR, 2003, p. 115). E por meio da Política Urbana e Ambiental, o Estatuto da Cidade tem contribuído para a caracterização e efetivação das funções social e ambiental da propriedade urbana, uma vez que regula o uso da propriedade urbana em prol do equilíbrio ambiental e da garantia às cidades sustentáveis.
É neste ponto que se buscou apresentar a atual configuração do direito de propriedade frente as suas funções social e ambiental, destacando-se as inovações trazidas pelo Estatuto da Cidade e pelo Código Civil de 2002.
2. AS CIDADES BRASILEIRAS E O ESTATUTO DA CIDADE: UM BREVE HISTÓRICO
No final do século XIX e começo do XX, deu-se o início do processo de urbanização do Brasil. Para as pessoas daquela época, assim como para as de hoje, a mudança para a cidade representava a possibilidade de viver uma realidade caracterizada pela eliminação ou minimização das dificuldades do seu dia-a-dia (FERNANDES, 2000).
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que até 1920, existiam no Brasil 74 cidades com população superior a 20.000 habitantes, e nelas estavam 14,93% da população total do país e 47,71% da população urbana, sendo que 58,30% dessas cidades estavam na região sudeste, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Já os dados referentes ao ano de 2000, do mesmo instituto, registram 1.487 cidades com mais de 20.000 habitantes, abrigando 80,20% da população total brasileira (Worldwatch Institute e Universidade Livre da Mata Atlântica, 2002a).
Tal crescimento, acelerado e “inadequado”, implica em profundas mudanças no panorama urbano do país e traz consigo problemas sociais e ambientais característicos a quase todas as cidades: desigualdade na distribuição de renda, altos índices de desemprego, falta de condições sanitárias mínimas em muitas áreas, escassez e ausência de serviços indispensáveis à vida das pessoas, condições precárias de habitação, falta de acesso à terra e à renda, sobrecarga da infra-estrutura existente, destruição de recursos de valor ecológico e poluição do meio ambiente (MOTA, 1999; Worldwatch Institute e Universidade Livre da Mata Atlântica, 2002b).
No Brasil é sabido que os ônus e os benefícios da urbanização não são igualmente distribuídos. Isso ocasiona incontáveis injustiças, que por fim produzem uma “cidade para poucos”. Na década de 1980, com a “democratização do país”, questiona-se então o direito de todos à cidade, gerando um movimento para uma reforma urbana. Esse movimento se fortalece ao longo da elaboração da Constituição Federal de 1988.
Nesse cenário, de uma forma inédita na história da Constituição, houve a inclusão de um capítulo que trata especificamente da política urbana, por meio de uma série de instrumentos que visam garantir, no âmbito de cada município, o direito à cidade, da defesa da função social da cidade e da propriedade e da democratização da gestão urbana (artigos 182 e 183). Nasce daí a idéia de “cidade para todos”.
“A inclusão dos artigos 182 e 183, […], foi uma vitória da ativa participação de entidades civis e de movimentos sociais em defesa do direito à cidade, à habitação, ao acesso a melhores serviços públicos e, por decorrência, a oportunidades de vida urbana dignas para todos” (OLIVEIRA, 2001, p. 03).
Em 1989, na sequência da vitória obtida pelos movimentos populares, ao introduzir o capítulo de política urbana na Constituição Federal, o Projeto de Lei (PL) n° 5.788, intitulado Estatuto da Cidade, foi apresentado ao Senado (ainda por meio do n° 171/89) pelo já falecido senador Pompeu de Souza (PSDB/DF), sendo aprovado e encaminhado à Câmara dos Deputados no ano seguinte. Este PL tinha o propósito de regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988.
Na década de 1990 o PL foi alvo de campanha contra sua aprovação. Esta campanha foi articulada pelo Sindicato das Empresas de Compra, Venda e Administração de Imóveis (SECOVI), Sindicato das Indústrias da Construção Civil de São Paulo (SINDUSCON), Câmara Brasileira das Indústrias da Construção Civil (CBIC) e pela Tradição, Família e Propriedade (TFP). O argumento central dessa campanha era que, de acordo com a Constituição, o direito de propriedade era absoluto e não poderia sofrer nenhum tipo de limitação. Em posse disto, 32 parlamentares assinaram emendas em defesa do direito de propriedade (SILVA, 2003).
Em trâmite lento, até 1997, o PL conseguiu sua primeira aprovação, em forma de substitutivo, na Comissão de Economia, Indústria e Comércio (CEIC), No ano seguinte, aproveitando o texto da CEIC, com alguns aperfeiçoamentos de emendas, o texto recebe nova aprovação (novamente em forma de substitutivo), pela Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias (CDCMAM).
Em dezembro de 1998, o projeto chega à Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI), a última das comissões de mérito a analisar o projeto. Nessa comissão o projeto consegue aprovação, na forma de substitutivo, em dezembro de 1999. Este substitutivo é composto pelos aspectos mais relevantes acumulados no processo histórico de elaboração, acatando os aperfeiçoamentos necessários.
Após sua aprovação na CDUI, o projeto foi encaminhado à Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) para análise de seus aspectos jurídicos e constitucionais, sendo aprovado por unanimidade, basicamente sem alterações, em novembro de 2000. Neste ponto termina a tramitação do Estatuto da Cidade na Câmara dos Deputados, o Projeto então retorna ao Senado para apreciação final, sendo aprovado por unanimidade na Comissão de Assuntos Sociais.
Em síntese: a tramitação do PL, no Congresso Nacional, foi longa e lenta. Foram mais de 11 anos de discussão, passando por várias comissões, algumas vezes chegou a ficar parada, sendo retomada na década de 90, para enfim ser aprovada em 10 de julho de 2001, como Lei Federal n° 10.257, passando a vigorar a partir de outubro do mesmo ano. A longa tramitação reflete as controvérsias e conflitos de interesses inclusos no debate sobre as cidades, mas garante princípios há muito desejados.
3. PLANOS DIRETORES
Cabe aqui apresentar algumas diferenças entre os “velhos” e os “novos” Planos Diretores, conforme segue nos subitens 3.1e 3.2.
3.1. OS “VELHOS” PLANOS DIRETORES
Ao longo dos anos 60 e 70, com o apoio financeiro e institucional do governo federal, os municípios foram estimulados a elaborarem os conhecidos “Planos de Desenvolvimento Integrados” (PDIs), sob a coordenação do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU), órgão criado para gerenciar a modernização das cidades. Esses não são os primeiros Planos Diretores municipais brasileiros, mas foi um período relevante na história do planejamento municipal. Embora as intenções dos Planos Diretores dessa época procurassem orientar o crescimento das cidades e garantir a qualidade de vida de seus habitantes, esses planos por muitas vezes não guardavam relação com as realidades locais, devido à restrição da participação das Câmaras Municipais, da população local e até mesmo das Administrações locais (VILLAÇA, 1999).
Desta forma, o planejamento é externo à administração, pretendendo apenas orientá-la. O comparecimento da administração dá-se ao final, com a definição das diretrizes de ação da Prefeitura, a instrumentação do plano e o plano de ação do prefeito (MINISTÉRIO DO INTERIOR, 1970; SÃO PAULO, 1969).
Moreira (1999) chama atenção para outro aspecto relevante no planejamento municipal dos anos 60/70 que corroborou para seu fracasso. Nesta época a concepção do Plano Diretor é de um plano de médio e longo prazo. Para o autor, tudo se passa como se todas as categorias sociais tivessem permanentemente os mesmos objetivos e como se não houvesse alterações na composição do poder local. Seu equívoco é desconhecer os diferentes objetivos que as diferentes categorias sociais têm, bem como as diferentes convergências de interesses, que resulta em constantes modificações na composição do poder local, isto mesmo quando não há sucessão. Nestas condições o Plano Diretor praticamente se confunde com o plano de ação do prefeito.
Com a extinção do SERFHAU em 1974 a fase do Plano Diretor integrado praticamente se encerra. De acordo com a avaliação do planejamento municipal no Estado de São Paulo, em 107 municípios, o processo de planejamento era bastante disseminado, 80 % dos municípios tinham Plano Diretor ou estavam em vias de obtê-lo, mas de cada dez municípios investigados, sete já o haviam abandonado. Este abandono pode ser relacionado com a mudança de prefeitos, falta de operacionalidade dos planos ou mesmo sua inviabilidade financeira (AZEVEDO, 1976).
Para Villaça (1999), os erros cometidos pelo SERFHAU condenaram os Planos Diretores das décadas de 60 e 70 ao fracasso.
3.2. OS “NOVOS” PLANOS DIRETORES: PÓS ESTATUTO DA CIDADE
Questões importantes para a vida nas cidades brasileiras são objetos do Estatuto da Cidade, como a regularização fundiária, em especial nas áreas de baixa renda; o uso e a ocupação do solo urbano e a habitação em áreas subutilizadas situadas dentro da cidade; a relação entre a cidade e o campo, onde se constrói a expansão urbana, muitas vezes sem controle; a relação entre a cidade e seu meio ambiente, para garantir segurança e qualidade do habitat; as parcerias entre setores público e privado nas intervenções urbanísticas e a gestão democrática com participação da população.
Para que essas questões possam ser tratadas, considerando a realidade dos municípios, o Estatuto reforça e torna essencial o papel dos Planos Diretores Municipais. O Plano Diretor é uma lei municipal que estabelece diretrizes para a ocupação da cidade, devendo identificar e analisar as características físicas, as atividades predominantes e as vocações da cidade, os problemas e as potencialidades. É um conjunto de regras básicas que determinam o que pode e o que não pode ser feito em cada localidade. É processo de discussão pública que analisa e avalia a cidade que se tem, para depois formular a cidade que se quer. Desta forma, a prefeitura em conjunto com a sociedade, busca direcionar a forma de crescimento, conforme uma visão coletivamente construída e tendo como princípios uma melhor qualidade de vida e a preservação dos recursos naturais. O Plano Diretor deve, portanto, ser discutido e aprovado pela Câmara de Vereadores e sancionado pelo prefeito. O resultado, formalizado como Lei Municipal, é a expressão do pacto firmado entre a sociedade e os poderes Executivo e Legislativo (PMI, s.d.).
Nesse prisma, é preciso revisar os Planos Diretores onde já existem e elaborá-los onde não existem para efetivar as mudanças previstas pelo Estatuto. A tarefa de elaboração dos Planos Diretores cabe à sociedade local e aos poderes executivos e legislativos municipais. A mobilização da cidadania local é, portanto, essencial para garantir que (OLIVEIRA, 2001):
– os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade possam ser efetivados considerando as características de cada município;
– a elaboração do Plano Diretor ou a sua revisão não se transforme em projetos técnicos, elaborado por escritórios e firmas de consultorias, sem uma ampla participação da cidadania, o que levaria a jogar fora para as cidades possibilidades abertas na atual conjuntura nacional de enfrentar as questões urbanas essenciais.
Está previsto, também, que a lei que instituir o Plano Diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos. Esta exigência indica o caráter dinâmico das cidades e dos municípios. No entanto, tem sido frequente que, após a elaboração do Plano Diretor e de sua implementação no todo ou em parte, o poder público local se sinta desobrigado a rever, a reanalisar e a adequar sua implementação (OLIVEIRA, 2001).
Para Gomes (2006, p. 220),
“a louvável sensibilidade do Estatuto da Cidade, por si só, não basta, porque no tocante à transformação urbana a tarefa principal está com os Municípios, entidade política organizada em torno do espaço onde a convivência intensa e os conflitos se manifestam. Por isso mesmo, nesse processo de busca de sentido é notável a importância da participação popular. O desenvolvimento urbano é questão eminentemente política e deve ser discutido e vivenciado como tal. Essa mesma participação é necessária na gestão urbana, atividade que assume extraordinária incumbência nos dias atuais: presidir boa parte das mudanças perseguidas, conforme indicações prévias, mas com destreza própria.”
O autor supracitado e Villaça (2005) são categóricos ao afirmarem que o Estatuto da Cidade e Plano Diretor não podem ser encarados como “Messias” ou “salvador da Pátria”, mas entendem que um dos grandes avanços do Estatuto consiste no dispositivo sobre a função social da propriedade e por consequência da cidade. Este assunto, juntamente com a função ambiental da propriedade, será tratado nos próximos tópicos. Mas de antemão concorda-se com Saule Jr. (1999), para quem as funções sociais da propriedade e da cidade estarão sendo atendidas de forma plena quando forem reduzidas as desigualdades sociais, promovidas a justiça social e a qualidade de vida urbana, diminuindo assim a situação de segregação e de exclusão da população de baixa renda, aqui acrescenta-se, ainda, as preocupações ambientais à questão urbana.
4. A PROPRIEDADE – BREVE HISTÓRICO
A propriedade privada da concepção moderna, desde a antiguidade, sofreu influência da história dos povos, e é decorrente da organização política. Nas sociedades primitivas, a propriedade somente existia para as “coisas” móveis, como vestimentas, utensílios de caça e de pesca, etc., já o solo pertencia a toda coletividade (VENOSA, 2004).
A primeira forma de propriedade imobiliária individual teve início com a Lei das XII Tábuas. Nesse período, o indivíduo recebia uma porção de terras para cultivar, mas terminada a colheita a terra voltava a ser coletiva. Com isso, surgiu o costume de conceder, ano a ano, a mesma porção de terra às mesmas pessoas, sendo que ali o pater familias construía sua moradia, instalando-se e vivendo com sua família e escravos. Assim, a concepção romana de propriedade individual e perpétua é transmitida para a cultura jurídica da Europa continental. Nesse cenário, o Direito Romano passa a admitir o uso abusivo do direito de propriedade (VENOSA, 2004).
No curso da História, após a expansão do Império Romano, a isenção de impostos em favor dos nobres e da Igreja, também contribuiu para a formação de grandes propriedades privadas. Já na Idade Média, com o regime feudal, a concentração dos bens se formou nas mãos de poucas pessoas, e os demais cultivavam as terras apenas em troca de alimentos.
Os conceitos jurídicos são modificados com a cultura bárbara, que passa a ser sinônimo de poder. Na Revolução Francesa a propriedade passou a ser vista como sagrada e inviolável, o que, não muito tempo depois, ficou incorporado no Código de Napoleão. Esse Código serviu de modelo a todo um modelo codificador do século XIX, ressaltando o prestígio pela propriedade imóvel como fonte de riqueza e símbolo de estabilidade. Além disso, recepcionou a idéia romana e traçou a concepção individualista do instituto da propriedade, aduzindo em seu art. 544: “a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas de modo mais absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis ou regulamentos”.
No Brasil, o Código Civil de 1916, no art. 524, trazia a seguinte idéia conceitual: “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”.
A idéia conceitual, no entanto, é repetida no art. 1228 do Código Civil vigente: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”, mas a função social da propriedade é protagonizada mais claramente no seu art. 1128, § 1º, que ordena que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
Percebe-se, então, que a propriedade individual vigente não conserva conteúdo idêntico ao de sua origem histórica, posto que o direito de propriedade deixa de ser privatista e “passa a ser considerado pela doutrina e tratado pelo ordenamento jurídico como um direito privado que se submete a interesses de outros sujeitos, que não apenas o proprietário”, ou seja, “a propriedade pode estar vinculada a interesses outros que podem não corresponder exatamente aos interesses imediatos do proprietário” (BORGES, 1999, p. 45).
4.1. ASPECTOS DA FINALIDADE SOCIAL E AMBIENTAL DA PROPRIEDADE
O uso adequado da terra e a moradia passam a ser uma questão relevante no final do século XX e início do XXI, pelo crescimento populacional, industrialização, êxodo rural, empobrecimento geral das nações, causando um novo enfoque na concepção de direito de propriedade. Assim, o direito de propriedade deve ser exercido de acordo com sua função social, em benefício de toda coletividade, e não apenas em proveito do seu titular. Consequentemente, a justa aplicação do direito de propriedade depende do ponto de equilíbrio entre interesse coletivo e individual.
Borges (1999) comenta que existem dois tipos de normas constitucionais que dispõe sobre propriedade, uma é a garantia do direito de propriedade como direito individual, aludida no artigo 5º da Constituição Federal, em seu caput e no inciso XXII[3]. Outro tipo de norma são aquelas que vinculam a propriedade à função social e que representam o regime jurídico constitucional deste instituto, apresentando-se ainda no artigo 5º e concentradas no Título VII – Da ordem econômica e financeira[4].
Portanto, o direito de propriedade está condicionado a dois fatores independentes: um fator aquisitivo, em que a pessoa adquire a propriedade de forma legítima e legal, e um fator de caráter contínuo, em que o proprietário usa a propriedade de forma condizente com os fins sociais e ambientais (GOMES, 2000).
A previsão do artigo 182, § 2º, da Constituição Federal também aduz que a propriedade urbana atende a sua função social quando realiza as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. Assim, a definição de propriedade não pode ser concebida no absolutismo do Código Civil, uma vez que o direito de usar, gozar e dispor dos bens tem limite e não pode ofender a função social da propriedade.
Assim, segundo Guimarães Júnior (2003, p.125), a função social da propriedade emerge como o “dever do proprietário de atender a finalidades relacionadas a interesses protegidos por lei”. O proprietário, ao usar, gozar e dispor da propriedade tem o dever de respeitar os interesses coletivos que, por sua relevância social, sobrepõe-se sobre os individuais.
No mais, a partir da Constituição Federal de 1988 o meio ambiente também tem proteção e consequentemente a legislação ambiental passa a determinar que o direito de propriedade seja exercido atendendo aos requisitos de proteção ao meio ambiente, e que a atividade do proprietário imobiliário seja exercida como direito-dever em favor da sociedade, titular do direito difuso do meio ambiente. Neste diapasão é que surge a função ambiental da propriedade.
Na atual ordem jurídica as funções social e ambiental da propriedade além de permitir ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo que não prejudique a coletividade, também impõe comportamentos positivos para que a propriedade se adeque à preservação do meio ambiente.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As cidades são locais de acúmulo de contradições. A forma de usufruir o território reflete bem uma das contradições que nelas se encontram. Aos mais “abastados”: moradia, transporte, saneamento, cultura, lazer, segurança, educação, saúde e emprego. Enfim, a esses são destinados os benefícios da urbanização. No entanto, a grande maioria da população, não se encaixa neste perfil, e, por não possuírem, as condições sócio-econômicas necessárias, arcam com o ônus da urbanização.
Neste sentido, o Estatuto da Cidade veio de encontro com a necessidade de planejamento das cidades brasileiras. Não há como negar que houve muitos avanços no sentido de se descentralizar a responsabilidade para planejar o desenvolvimento municipal. No entanto, pode-se notar que muitos dos municípios, principalmente pequenos e médios, não possuem total capacidade para planejar e gerir um plano diretor municipal. Suas fragilidades administrativas precisam ser supridas, há falta de recursos financeiros e humanos. Esta carência, no entanto, pode ser minimizada com recursos de programas e projetos desenvolvidos pelo Governo Federal que podem dar apoio a suas políticas de desenvolvimento urbano municipal.
Nesse cenário, a função social da propriedade deve ser cumprida nas respostas às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressa no Plano Diretor. Tais exigências dizem respeito à busca de melhor adequação do solo da propriedade e à responsável utilização dos recursos naturais, garantindo a preservação do meio ambiente urbano.
Mas não basta contribuir com o desenvolvimento urbano com princípios, objetivos e estratégias. É preciso instrumentos adequados para implementar a proposta, e o Estatuto da Cidade é uma legislação, apesar do tempo de aprovação, inovadora, adequada à realidade urbana e aos desafios impostos pela urbanização, principalmente por reunir importantes instrumentos urbanísticos, tributários e jurídicos.
Enfatiza-se aqui que qualquer legislação por si só não solucionará os problemas das cidades, e que o planejamento urbano para ser colocado em prática impõe uma série de tarefas, tanto ao Poder Público como à sociedade, para que se consiga melhorar a qualidade ambiental e de vida. Pois concordando com Farias (2009, p. 170),
“extrair a ação do papel e colocar em prática é função de toda a sociedade, afinal de contas, cada cidade é o que a própria sociedade constrói. E se todos empenharem buscando melhorias na qualidade de vida nas cidades, bons ventos soprarão, trazendo a todos a garantia de tempos melhores. As ferramentas estão ao alcance; cabe a nós agora usá-las de forma racional e eficaz.”
Engenheira Civil, Mestre em Engenharia Urbana e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Urbana da Universidade Federal de São Carlos
Advogada, Mestre em Engenharia Urbana pelo Programa de Pós-Graduação em Engenharia Urbana da Universidade Federal de São Carlos, Pós-graduanda no curso de Especialização em Direito Ambiental pelo Centro Universitário Central Paulista, Assessora jurídica do Município de Ribeirão Bonito/SP, Conciliadora em audiência preliminar na Vara Cível da Comarca de Ribeirão Bonito e Secretária adjunta na 216ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil
Engenheiro civil, Mestre e Doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento pela Escola de Engenharia de São Carlos (EESC/USP) e Pós-doutor em Avaliação de Impactos Ambientais pela Oxford Brookes University. Professor titular da Universidade Federal de São Carlos. Departamento de Engenharia Civil. Programa de Pós-Graduação em Engenharia Urbana
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