O estupro de vítimas do sexo masculino e o hipotético direito ensejado pela eventual concepção indevida

Resumo: A hipótese de que mulheres possam figurar como sujeito ativo de atos de violência sexual, apesar de tratar-se de tema fascinante, carece de maior interesse e pesquisa no campo jurídico. Episódios de homens vítimas de estupro perpetrado por pessoas do sexo feminino são plenamente possíveis e totalmente factuais, mas são raros os estudos contextualizados com dados do cenário nacional. No presente busca-se não somente ratificá-los, mas também extrapolar as fronteiras do código penal, considerando as eventuais consequências jurídicas nos casos em que a agressora engravida da relação sexual forçada. [1]

Palavras-chave: Direito Penal; Código Civil; Estupro; Dignidade da Pessoa Humana.

Abstract
The hypothesis that women can be an active subject of acts of sexual violence, despite being a fascinating subject, requires more interest and research in the legal field. Episodes of men who are victims of female rape are fully possible and fully factual, but studies are contextualized with data from the national setting. At the present time, it is sought not only to ratify them, but also to extrapolate the boundaries of the penal code, considering the possible legal consequences in cases in which the perpetrator becomes pregnant during sexual intercourse.

Keywords: Criminal Law; Civil Code; Rape; Dignity of Human Person.

Sumário: Introdução. 1. Tutela jurídica.  2.  Controvérsias.  2.1. Vulnerabilidade da vítima. 2.2. Aborto ilícito. 3.  Conflito entre diplomas legais.  Conclusão.  Referências.

INTRODUÇÃO

Longe do ambiente acadêmico, em virtude de uma grave e dolorosa crise de hérnia de disco, me vi compelido pelo desejo de rever um desafio intelectual proposto em sala de aula pelo mestre Ticiano Yazegy Perim. Em profícuo e recente comentário, o ilustre docente, de respeitadíssima instituição capixaba, aventou a hipótese de um indivíduo do sexo masculino ser vítima de violência sexual cometida por uma mulher. Esta, utilizando-se de VGA (abreviatura adotada didaticamente para descrever violência e grave ameaça), força-o a consumir dois comprimidos de conhecido medicamento para disfunção erétil (facilmente identificável pela simbólica cor azul). Efeito constatado tem-se a cópula constrangida que, no caso específico, consuma-se com a ejaculação. Como tudo que é ruim pode ficar um pouco pior, como resultado do ato a autora do estupro engravida e tempos depois ajuíza ação reivindicando alimentos gravídicos, por força do que preconiza a Lei Federal nº 11.804, de 5 de novembro de 2008. Têm-se agora um cenário raro, porém plenamente factível, cuja possibilidade parece-me ainda não ter sido devidamente esmiuçada pela doutrina, tampouco pela jurisprudência. É sobre este que faremos abaixo um saudável exercício de reflexão.

Primeiro, no entanto, torna-se necessária uma rápida revisão de números que ajudam a compreender a dimensão alcançada no Brasil pelo crime hora em análise. Dados da 10ª edição do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, divulgados no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelaram que em 2015 o país teve 125 casos de estupro notificados por dia, o quê, estatisticamente, significam mais de 45 mil pessoas vitimadas. Como destacou de forma apropriada o portal BBC Brasil, estima-se que somente 30% a 35% dos casos são registrados, fenômeno que permite conjecturar que aconteça um estupro a cada minuto no país.

Tão grave quanto, contudo, são os resultados do levantamento conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para elaboração do documento “Estupro no Brasil: uma Radiografia segundo os Dados da Saúde”. Estes, com base em números minerados de notificações feitas ao Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), em 2011, revelaram que 70% das vítimas de estupro em território nacional são crianças e adolescentes. Sem dúvida uma perspectiva desoladora do que, em alguns meios, é apelidado de “cultura do estupro”.

Feitas tais observações preliminares a título de comentário introdutório, bem como delimitada a devida problematização do tema, cumpre-nos agora a tarefa de aprofundar a hipótese em estudo.

1. TUTELA JURÍDICA

     Ainda que incomuns (ou subnotificados), episódios de homens vítimas de estupro perpetrado por mulheres são plenamente possíveis e totalmente factuais. Tanto que a revisão legislativa ao artigo 213 do Código Penal brasileiro, promovida oportunamente pela Lei nº 12.015/09, não só reconheceu tal fenômeno como também assegurou o necessário mecanismo para prover o Estado de instrumento que lhe permita punir, de forma mais eficaz, àquelas que incorrerem em tal comportamento antijurídico. É preciso entender o que diz o texto do referido dispositivo, comparando-o com a norma que vigorava antes de 2009:

“Redação anterior à Lei 12.015/09:

Estupro

Art. 213 – Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:

Pena – reclusão, de três a oito anos.

Parágrafo único.

Se a ofendida é menor de catorze anos:

Pena – reclusão, de seis a dez anos.

Atentado violento ao pudor

Art. 214 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos:

Pena – reclusão de dois a sete anos.

Redação posterior à Lei 12.015/09:

Estupro

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§ 1° Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§ 2° Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.”

Nota-se que, com o advento da citada lei, houve a junção dos artigos 213 e 214 do Código Penal, ambos agora considerados no texto do art. 213. O estupro até então era crime bipróprio (agora é bicomum), porque o sujeito ativo somente poderia ser homem, assim como o sujeito passivo só poderia ser mulher. Por consequência, qualquer ato que não incorresse em conjunção carnal incorria em atentado violento ao pudor, a exemplo da relação anal com mulher e mesmo com pessoas do sexo masculino.  Sob tal interpretação o atentado violento ao pudor era, pode-se dizer, excludente ‑ tratava-se de ato diverso da conjunção carnal.

Válido salientar também que antes de 2009 se um homem fosse forçado a manter relações sexuais com uma mulher, esta nem sempre responderia por atentado violento ao pudor, mas, em alguns casos, por constrangimento ilegal. Hoje, no entanto, o estupro abarca todas estas situações.

Neste sentido preleciona o jurista, professor e Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Rogério Greco:

“Não é de agora a hipótese ventilada pela doutrina quando erige a possibilidade de um homem ser constrangido por uma mulher a com ela praticar a conjunção carnal. Suponha-se que uma mulher apaixonada por um homem, querendo, a todo custo, ter com ele relações sexuais, não conseguindo seduzi-lo pelos "meios normais", mediante o emprego de ameaça, com uma arma de fogo, por exemplo, o obrigue ao ato sexual, fazendo com que ocorra a penetração normal. Pergunta-se: Qual seria o crime praticado pela mulher que, mediante o emprego de grave ameaça, fez com que o homem mantivesse com ela conjunção carnal? Na verdade, a hipótese mais parece de laboratório. Pode ser que uma pessoa ou outra consiga ter ereção nessa situação, que não se traduz, obviamente, na regra. Entretanto, trabalhando com a hipótese do sujeito, mesmo sob intensa pressão, conseguir ter ereção e praticar a conjunção carnal, qual seria a solução para o caso? A atual redação do art. 213 do Código Penal nos permite raciocinar com a ocorrência do estupro, uma vez que o tipo penal prevê a possibilidade de a conjunção carnal ser levada a efeito, tanto pelo homem quanto pela própria mulher, desde que estejamos diante, sempre, de uma relação heterossexual” (GRECO, 2015, p. 487)

Divergências à parte quanto ao ceticismo do nobre autor no tocante ao estupro masculino por pessoa do sexo feminino ser factível (principalmente considerado o advento dos medicamentos para disfunção erétil, empregados hodiernamente como prática comum para “turbinar” relações sexuais), merece especial atenção ainda o fato de que emana do renovado art. 213, CP, como bem ensina o professor Guilherme de Souza Nucci, notório cuidado em por em pé de igualdade homens e mulheres, podendo agora ambos figurarem tanto no polo ativo quanto no passivo. “A Lei 12.015/2009 igualou homem e mulher, desprezando qualquer qualidade especial que possam ter, aliás, o mínimo que se espera de uma lei justa” (NUCCI, 2014). 

Esta assertiva pronunciada com maestria pelo jurista encontra-se ratificada, de certo modo, pelos dados de levantamento publicado em 2014 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No gráfico abaixo, por exemplo, é possível observar que ainda que represente pequena parcela dos casos, episódios em que a mulher figura como estupradora encontram-se registrados nas estatísticas elaboradas com base em números minerados de notificações feitas em 2011 no Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan).

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Cabe comentar também que a revogação do art. 214 não promoveu, como já amplamente explicado pela doutrina e confirmado por jurisprudência, o “abolitio criminis” (o que significa que a conduta outrora tipificada como atentado violento ao pudor não deixou de ser criminalizada). Ocorreu com esta a incidência do “princípio da continuidade típico normativa”, ou seja, a conduta continua a existir, mas em outro tipo penal – no caso, descrita no crime de estupro. Neste sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal (STF), bem como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme demonstrado abaixo:

“STJ – HABEAS CORPUS HC 185493 GO 2010/0172240-0 (STJ)

Data de publicação: 30/10/2013

Ementa: HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. DESCABIMENTO. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. ART. 214 DO CÓDIGO PENAL. SUPERVENIÊNCIA DA LEI 12.015 /2009. ABOLITIO CRIMINIS. INOCORRÊNCIA. CONDUTA DESCRITA NO ART. 213 DO ESTATUTO REPRESSIVO. PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE NORMATIVA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. – Este Superior Tribunal de Justiça, na esteira do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, tem amoldado o cabimento do remédio heroico, adotando orientação no sentido de não mais admitir habeas corpus substitutivo de recurso ordinário/especial. Contudo, a luz dos princípios constitucionais, sobretudo o do devido processo legal e da ampla defesa, tem-se analisado as questões suscitadas na exordial a fim de se verificar a existência de constrangimento ilegal para, se for o caso, deferir-se a ordem de ofício. – Diante do princípio da continuidade normativa, não há falar em abolitio criminis da conduta prevista no art. 214 do CP, tendo em vista que a alteração legislativa conferida pela Lei 12.015 /2009 não descriminalizou a referida conduta, mas apenas a deslocou para o art. 213 do Código Penal, formando um tipo penal misto, com condutas alternativas (estupro e atentado violento ao pudor). Precedentes. Habeas corpus não conhecido.”

Por fim, por força do que estabeleceu o art. 1.°, V, da Lei 8.072/90, trata-se o delito em tela – em todas as suas formas:  tentada, consumada, qualificada ou simples – de crime hediondo. Isto significa que o estupro não é, por conseguinte, suscetível de anistia, graça ou induto, tendo sistemas mais rigorosos para a progressão de regime, dentre outros.

Superadas, portanto, as etapas de fundamentação jurídica e validação da hipótese de eventual estupro masculino perpetrado por uma mulher passemos agora a enfrentar o problema inicial, cerne do presente ensaio acadêmico.

2. CONTROVÉRSIAS

2.1. Vulnerabilidade da vítima      

Se episódios de violência sexual envolvendo homens estuprados por mulheres representam parcela ínfima das notificações, fácil imaginar que situações hipotéticas como a teorizada em sala de aula pelo brilhante mestre Ticiano tratam-se de exceções tão raras que o registro oficial sequer acusa casos semelhantes no país.

Aliás, este ponto é importante. Enfatizo o desconhecimento de ocorrências similares no Brasil porque, ainda que limitada em virtude da atual condição do autor, as buscas por registros (ou mesmo relatos informais) de episódios como o descrito no início do texto revelaram-se extremamente frustrantes. Existe na grande rede de computadores certa profusão de notícias sobre estupros, mas uma garimpagem rápida não permitiu localizar em solo pátrio nada ao menos parecido com o descrito (imagino se em virtude da vergonha que as vítimas eventualmente teriam de denunciar o ocorrido).

Nos Estados Unidos (EUA), contudo, tornou-se notório em 2014 o caso do americano Nick Olivas (FOXNEWS, 2014). Este, aos 14 anos de idade, teve relações sexuais com uma mulher de 20 anos e a engravidou. Como a legislação estadual do Arizona, semelhante às de outros estados americanos, criminaliza sexo (mesmo consensual) de mulheres adultas com menores, tratava-se de evidente episódio do que por lá é conhecido como “statutory rape” ou, em livre tradução, algo como “estupro criado por lei”.

Acontece que Olivas desconhecia (ou mesmo se importava com) a norma jurídica, o que fez com que não denunciasse o caso. Mas, aos 21 anos, o jovem ficou sabendo por ação da Justiça que o fruto da relação proibida era uma filha, já com 6 anos de idade. Pior: ele não só foi sentenciado por um juiz a pagar pensão alimentícia, como também US$ 15 mil em alimentos atrasados, valor que deveria ser liquidado com juros de 10% e mais despesas hospitalares do parto. Caso não o fizesse iria para a prisão – e isto só não aconteceu porque a própria Justiça se encarregou de estabelecer um plano de pagamento que incluiu bloquear parte de seu salário e economias depositadas em um banco.

A controvérsia, como destacado acertadamente pela advogada Fátima Burégio, reacendeu no país o debate sobre as leis estaduais americanas que criminalizam as relações sexuais “consensuais” de mulheres adultas com menores como “estupro” porque – acusam grupos de direitos dos pais – “os estados ficam do lado da vítima no processo penal, mas depois ficam do lado da agressora, quando é o caso de cobrar pensão alimentícia para a criança”. 

Desconheço se este episódio foi a fonte de inspiração para o recente questionamento sugerido em sala de aula por nosso digníssimo professor, mas, aproveitando tal fato, é possível tecer considerações sobre eventual divergência entre os diplomas penal e civil.

Se o caso de Nick Olivas tivesse ocorrido no Brasil de que lado ficaria o Estado brasileiro? Penalizaria a mulher que, por um impulso de lascívia, deitou-se com pessoa em condição de vulnerabilidade ou, semelhante à Justiça americana, obrigaria a vítima, tempos depois, a arcar com ônus de uma criança não desejada, mas sabidamente inocente e que, portanto, não pode ser de maneira nenhuma prejudicada? Este é, provavelmente, o tipo de debate capaz de suscitar séria controvérsia entre parcela considerável dos acadêmicos de direito.

Primeiro é preciso lembrar que em nosso país, semelhante ao “statutory rape” norte-americano, pune-se relações sexuais de pessoa maior de idade com menor. Considera-se “estupro de vulnerável”, com base no que determina o art. 217-A do Código Penal, situações em que a vítima não alcançou a maturidade suficiente para as práticas sexuais (menores de 14 anos); que tenha qualquer deficiência mental ou que esteja embriagada (ou dopada) a ponto de não conseguir responder pelo próprio corpo. Observe o que preceitua a norma:

“Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1° Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

§ 2° (VETADO)

§ 3° Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.

§ 4° Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.”

     Destarte, feita a análise literal do artigo, resta evidente que aqui, assim como nos Estados Unidos, permaneceria criminalizado o comportamento da mãe da criança. Enfatiza-se que quando da consumação da relação sexual com menor de 14 anos incorre-se na perfeita conformação à citada norma penal incriminadora.

Importante lembrar também que não há de se falar em prescrição, considerado o fato de que em decorrência da lei nº 12.650/2012 tal só começa a contar na data em que a vítima fizer 18 anos, caso o Ministério Público não tenha anteriormente aberto ação penal contra o agressor. Até a promulgação da referida regra a prescrição era calculada a partir da prática do crime.

2.2. Aborto ilícito

Antes de enveredar na seara das possíveis consequências que a paternidade indesejada poderá ter na esfera do direito civil compete oportunamente explicar porque a possibilidade de aborto sentimental teoricamente inexiste na hipótese de gestação da autora do crime de estupro – quer sejam as vítimas menores de 14 anos ou homens em pleno exercício de direitos e capacidades.

Como todo acadêmico que já se dedicou ao tema sabe, nos termos do art.128, II, CP, “não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.

Trata-se de excludente de ilicitude que fundamenta o que a doutrina chama de “aborto humanitário, ético ou piedoso”. Sobre a mesma assevera com maestria Nucci:

“[…] como já expusemos na nota de abertura a este capítulo, nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida. Por isso, é perfeitamente admissível o aborto em circunstâncias excepcionais, para preservar a vida digna da gestante. Em continuidade a essa ideia, convém mencionar a posição de ALBERTO SILVA FRANCO, ao dizer não ser inconstitucional o “sistema penal em que a proteção à vida do não nascido cedesse, ante situações conflitivas, em mais hipóteses do que aquelas em que cede a proteção penal outorgada à vida humana independente” (NUCCI, 2014, p. 128).

Não se pode negar, contudo, que a situação prevista no dispositivo dificilmente se aplica a uma gestante que deu causa a gravidez ao praticar uma relação sexual forçada com um homem. Essa conclusão deriva de exame mais acurado do dispositivo.

Tem-se, como se sabe, no aborto autorizado legalmente à mulher vítima de estupro, um mecanismo que resguarda a dignidade desta enquanto pessoa humana. É o que alude acertadamente o professor universitário e advogado criminalista Anderson Pinheiro da Costa ao citar posicionamento de doutrinadores da estatura de Nucci, Mirabete e Fabbrini.

Nas palavras do talentoso autor “a verdadeira justificativa para legitimar o abortamento quando a mulher engravida por conta do ato criminoso, funda-se no fato de que todo ser humano deve ser respeitado em sua existência, por sua essência” (COSTA, 2014).

Por raciocínio complementar infere-se que uma mulher que violenta sexualmente um indivíduo do sexo masculino não tem, em momento algum, sua dignidade afrontada, não havendo, dessa forma, que se falar em sopesamento entre sua dignidade e a vida do feto (NUCCI, 2012, apud COSTA, 2014).

Pautando-se nesta interpretação ensina Costa:

“[…] a mulher que comete estupro contra um homem e deste ato sobrevém gravidez, está totalmente impossibilitada de consentir validamente para o abortamento, incorrendo em situação ilícita caso assim o proceda. Desta feita, ao constranger o homem a realizar consigo conjunção carnal, a mulher concorre em culpa ou dolo para sua própria gravidez, não podendo, portanto, extinguir uma vida que por sua culpa ou dolo se originou, razão pela qual se torna ilógica a possibilidade de autorização de aborto humanitário em relação à mulher agressora que engravida por conta de seu ato hediondo. Desta forma, inviável a hipótese de a mulher que pratica crime de estupro procurar se beneficiar da excludente presente no artigo 128, inciso II do Código Penal, vez que sua dignidade não foi, de forma alguma, violada, não havendo absolutamente nada que se contraponha à vida do feto” (COSTA, 2014)

Não sem o devido fundamento o jurista Damásio Evangelista de Jesus et al. (2011) defende igualmente que ao homem vítima do estupro também não é facultado o direito de reivindicar o aborto da gestante agressora. Argumenta com enorme lucidez o ilustre doutrinador tratar-se de prática que, executada, afrontaria princípios emanados da própria Constituição Federal. Sobre o tema preleciona: 

“[…] a intervenção abortiva, atendendo à vontade do homem vítima e contrariando a da mulher autora, consistiria em verdadeira sanção penal contra esta, solução não prevista em nosso ordenamento, ferindo frontalmente o princípio da legalidade, do devido processo legal e, inclusive, a disposição constitucional que veda a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada (art. 5.º, XLVII, da CF), em afronta, também, ao princípio da intranscendência da pena” (DAMÁSIO et al., 2011)

Consoante ao afirmado não há de ser falar, deste modo, na possibilidade de aborto exigido pelo homem vítima de estupro. Igualmente também não pode invocá-lo a autora do crime. O primeiro pela inevitável afronta a vários princípios constitucionais. A segunda em virtude da previsão legal da excludente de ilicitude só amparar, de fato, à gestante que se encontra na condição de vítima do crime em comento.

3. CONFLITO ENTRE DIPLOMAS LEGAIS

Não é preciso ser um civilista para intuir com base no exposto ao longo deste ensaio que, quando o homem for o sujeito passivo do crime de estupro, a gravidez de sua agressora tem propensão para gerar inúmeras consequências na órbita do direito civil. Como demonstrado em oportunidade anterior trata-se, não raro, de desfecho natural, cujos possíveis resultados carecem de uma análise apropriada.

Damásio et al. (2011), por exemplo, lembra que “a paternidade implica uma série de obrigações de ordem jurídica, ética, moral e até mesmo financeira, para não falar de outras”. Com fulcro neste posicionamento, rápido reexame do caso de Nick Olivas permite antever uma sucessão de prejuízos no campo financeiro – e, sequer tece-se, de imediato, comentário sobre o inquestionável conflito emocional.

Destarte, a vítima, dentre outras sequelas, estaria sujeita a eventual cobrança de alimentos gravídicos (tese original deste artigo), pensão alimentícia e, inevitavelmente, teria que considerar no processo de sucessão hereditária os direitos inerentes ao fruto da concepção indesejada. Adverte Costa:

“Efetivamente, a gravidez resultante do estupro praticado pela mulher contra o homem pode ensejar várias consequências devastadoras na vida pessoal da vítima, e, em certos casos, constituir um dos fins da prática delituosa. Imagine que uma mulher acaricie e seduza um menor de treze anos para com ele praticar conjunção carnal, visando exatamente a gravidez para locupletar-se com a maternidade de um herdeiro abastado e dos recursos provenientes de uma robusta pensão alimentícia, considerando o extenso patrimônio da família do menor. E se assim não for, mesmo que a gravidez se constitua em algo não desejado para a autora do estupro (seja do vulnerável acima mencionado no exemplo ilustrativo ou de qualquer outra situação não mencionada neste trabalho, mas passível de ocorrência), isso não exclui sua responsabilidade pela conduta e seus resultados na medida em que atingem mais intensamente a vítima, que deverá arcar com os deveres advindos da paternidade”. (COSTA, 2014) 

Inequívoco o fato de que o legislador ao formalizar a revisão normativa do art. 213, CP, cuidou para constitucionalizá-lo (reconhecendo, por exemplo, a igualdade entre gêneros emanada do art. 5º do texto constitucional). Infelizmente, contudo, por silenciar na “novatio legis” no tocante aos efeitos legais advindos da gravidez resultante do estupro praticado por pessoa do sexo feminino, legou este à doutrina e a jurisprudência a necessária tarefa de se pronunciarem sobre o tema.

Quanto à primeira, admita-se, ainda são escassos textos com estudos mais amplos sobre o assunto. Igualmente, pode-se afirmar, parecem inexistir julgados sobre a situação específica teorizada no presente artigo. Por analogia, no entanto, é de se esperar que quando o fizerem, os tribunais devem manifestar-se de forma que permita assegurar a devida proteção ao fruto da concepção. Salvo, claro, adote-se como referência, recente posicionamento da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que, ao apreciar o Habeas Corpus nº 124.306 firmou entendimento de que praticar aborto nos três primeiros meses de gestação não é crime, conforme ementa reproduzida abaixo:

“DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.” (STF – HC: 124.306 RJ, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 29/11/2016, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-052 DIVULG 16-03-2017 PUBLIC 17-03-2017) 

Por outro lado, no campo afetivo também não é difícil deduzir que o tipo de relação existente entre a criança e o pai dificilmente seria a ideal. Tal assertiva considera eventuais (e possivelmente inevitáveis) encontros (sucedidos de conflitos) com a mãe estupradora, bem como a premissa de que, tendo a vítima família constituída, esta pode não aceitar necessariamente a convivência forçada com o resultado de uma gravidez violenta.

No mais, não desconsiderado os interesses da própria criança, torna-se fácil imaginar que, não raro, estará sujeita a toda sorte de transtornos afetivos, emocionais e mesmo psicológicos ao ter conhecimento da devastadora realidade de ser o produto não desejado de uma concepção originada em comportamento criminoso.

Sob tal perspectiva parece razoável a tese defendida por Damásio et al. (2011) e, posteriormente, reproduzida por Costa (2014). Argumentam estes que “ausente por completo a vontade procriacional, nenhuma obrigação civil terá o ofendido perante a prole a ser gerada pela autora do estupro”.

Em que pesem vozes dissonantes quanto ao aludido, encontra-se nesta hipótese de relativização do direito à paternidade do estuprado alternativa aparentemente mais justa, por não afrontar a dignidade da vítima enquanto pessoa humana.

Evidente, no entanto, que semelhante apologia à possibilidade de desligamento da paternidade, considera também o oposto, ou seja, que ao homem vítima de estupro seja concedido direito de, caso deseje, proceder ao reconhecimento da criança como filho e, assim fazendo, conferir-lhe todos os direitos que sucedem a filiação.

Em outras palavras, defende-se a perda do caráter absoluto do direito à paternidade nos casos de estupro de vítimas do sexo masculino. Damásio reforça tal entendimento ao aduzir sobre o tema. Nas palavras do experiente jurista “nada impede, contudo, por questões que refogem ao Direito, que o ascendente pretenda, por sua vontade, reconhecer o filho. Cuida-se, portanto, de uma faculdade e não de uma obrigação legal” (DAMÁSIO et al., 2011).

A esse respeito também afirma Costa (2014), de forma complementar, que “comparando as consequências de uma gravidez da mulher estuprada, queda-se inequívoca e lógica a solução exposta, pois no caso inverso a dignidade da ofendida é privilegiada”. Preleciona o autor:

“Em relação à razoabilidade, considerada como o bom senso, queda-se abastada de sensatez a hipótese de relativização do direito à paternidade, tornando-a como uma faculdade ao estuprado, para reconhecê-la ou não. Apenas desta forma, retirando do direito o caráter absoluto, far-se-ia justiça acerca da razoabilidade. […] O deslinde apontado resta ainda menos gravoso ao nascituro, pois não será a sua vida o bem jurídico relativizado em detrimento da dignidade da pessoa humana da mãe vítima, mas sim o bem jurídico do direito à filiação, que limitado, não trará prejuízo equivalente à ofensa à dignidade do homem ofendido” (COSTA, 2014)           

Como breve síntese do exposto depreende-se, portanto, que estabelecer obrigação absoluta da paternidade ao homem vítima de estupro, privilegiando o diploma civil, além de notadamente injusto parece, no mínimo, inconstitucional, haja vista que tal decisão afrontaria, por certo, a dignidade da vítima enquanto pessoa humana – princípio basilar que, como se sabe, é um dos fundamentos norteadores da Constituição Federal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Disse em outro artigo que não existe tema inoportuno tratando-se de direito penal. Ainda que as interpretações doutrinárias sobre determinado assunto não se encontrem bem estabelecidas, nada impede que a visão singular do intérprete permita eventual revisão da aplicabilidade de um ou outro instituto. Daí o valor imensurável dos numerosos trabalhos gestados na academia. Não raro representam esforço profícuo que comporta não só ampliar o conhecimento sobre a proposição em debate, mas, em situações excepcionais, até mesmo extrapolar a simples explicação reiterada.

Tome-se como exemplo o presente, ao desnudar o estupro em que a mulher figura como sujeito ativo do crime. Mesmo que a princípio tal delito pareça improvável ou possa despertar o anseio de alguns que brincam jocosamente que gostariam de ser vítima de violência sexual cometida por pessoa do sexo feminino, é bom lembrar que nem toda estupradora teria necessariamente os atributos de uma Juliana Paes (DELGADO, 2009). Verdade seja dita trata-se de ato hediondo, passível, como visto, de consequências que podem mesmo extrapolar a esfera do direito penal.

Partindo de tal crença espera-se ter contribuído para estimular saudável discussão em torno de um tema sabidamente controvertido. A relativização do direito à paternidade, em casos em que ocorra gravidez da mulher estupradora, parece-nos hipótese mais ajustada aos princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade e razoabilidade (COSTA, 2012).

Difícil crer, no entanto, que uma única solução jurídica pacificará questão imersa em evidente mar de controvérsias. O direito, como bem se sabe, admite diversidade de conclusões (COSTA, 2014), inexistindo discurso que possa convencer a todos (DAMÁSIO et al., 2011).

O presente trabalho, contudo, demonstrou-se oportuno não só pela contemporaneidade do tema, mas, principalmente, considerado o escasso volume de textos dedicados a este. Como a intenção norteadora do desafio intelectual proposto pelo mestre Ticiano parece ter sido colocar um ponto de interrogação onde repousava placidamente um ponto final, ter-se-á alcançado tal objetivo se outros interessados sentirem-se compelidos também a expor novas contribuições.

 

Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 09 abr. 2017.
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Nota
[1] Professor orientador: Ticiano Yazegy Perim, Mestre em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Multivix Cachoeiro de Itapemirim.


Informações Sobre o Autor

Wellington Cacemiro

Jornalista pesquisador jurídico graduando do curso de Direito da Faculdade Multivix de Cachoeiro de Itapemirim


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