O exercício de função pública civil por militar da ativa

Resumo: O presente trabalho investiga a possibilidade do exercício de funções públicas civis por militares da ativa, analisando a conjuntura anterior e posterior ao advento da Emenda Constitucional nº 77/2014 , bem como tecendo breves comentários sobre a Projeto de Emenda Constitucional nº 215/2003, ainda em trâmite no Congresso Nacional.

Palavras-chave: Direito Administrativo Militar. EC nº 77/2014. PEC nº 215/2003.

Abstract: The present study investigates the possibility of an active military personnel work, at the same time, as a civilian public functions. The analysis includes the situation before and after the advent of Constitutional Amendment No. 77/2014 and comments on the Draft Constitutional Amendment no. 215/2003, that is in discussion at the Brazilian National Congress.

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Key Words: Military Administrative Law. EC nº 77/2014. PEC nº 215/2003.

Sumário: 1. Natureza e Vínculo da Função Militar. 2. Exclusividade da Função Militar antes da EC nº 77/2014. 3. A Emenda Constitucional nº 77/2014. 4. Outras Limitações.

INTRODUÇÃO

Regra geral, os cargos, empregos e funções públicas são inacumuláveis. Significa que o titular de uma função pública só pode exercer outra função da mesma natureza diante de expressa permissão, o que é feito pela Constituição em seu art. 37, inciso XVI.

Contudo, sempre se discutiu se a referida norma seria aplicável somente aos servidores civis, ou se também abrangeria os militares. O debate se intensificou depois que a EC nº 18/98 alterou algumas normas na CF/88 sobre os militares. Após, a EC nº 77/2014 também tratou do assunto, permitindo expressamente o exercício de função pública civil referente a profissões da saúde pelo militar da ativa (art. 37, XVI, ‘c’). Atualmente, o Congresso discute, na PEC nº 215/03, a aplicação integral do art. 37, XVI aos militares estaduais.

1. Natureza e Vínculo da Função Militar

Há dissenso na doutrina quanto à natureza da função militar. Isso porque a redação originária da Constituição Federal (CF/88) foi alterada pela Emenda Constitucional (EC) nº 18/98 conforme resumo abaixo:

“i) a expressão “servidores públicos militares”, antes prevista no art. 42, foi suprimida;

ii) o art. 42 foi realocado em uma nova seção (Seção III do Capítulo VII), intitulada de “Militares dos Estados, Distrito Federal e Territórios”, logo após a Seção II, cujo título é “Dos Servidores Públicos”;

iii) no art. 142 foi inserido um terceiro parágrafo afirmando que “os membros das Forças Armadas são denominados militares”.

Devido a essa alteração topográfica, parte da doutrina passou a considerar que os militares “ficaram excluídos da categoria [de servidores públicos], só lhes sendo aplicáveis as normas referentes aos servidores públicos quando houver previsão expressa nesse sentido, como a contida no artigo 142, § 3º, inciso VIII” (DI PIETRO, 2010).[1] Assim, para a referida autora, os militares fazem jus a algumas vantagens dos trabalhadores privados, e outras dos servidores públicos, mas não estão compreendidos em nenhuma das duas categorias.

Em sentido oposto, sustenta-se que tanto os servidores civis, como os militares “são servidores públicos lato sensu, embora diversos os estatutos jurídicos reguladores, e isso porque, vinculados por relação de trabalho, subordinado às pessoas federativas, percebem remuneração como contraprestação pela atividade que desempenham” (CARVALHO FILHO, 2012).[2] Por essa visão, pois, a EC nº 18/98 não retirou dos militares a condição de servidores públicos.

De qualquer forma, certo é que os militares estão submetidos ao regime estatutário, pois seu vínculo com o Estado decorre de lei, o Estatuto dos Militares (Lei 6.880/80). Referido diploma determina regras sobre ingresso na carreira, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, conforme prevê a CF/88 (art. 142, § 3º, inciso X).

2. Exclusividade da Função Militar antes da EC nº 77/2014

A possibilidade de acumulação de funções públicas encontra-se regulada, de um modo geral, no art. 37, inciso XVI da CF/88, que assim dispõe:

“é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:

a) a de dois cargos de professor;

b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;

c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas”

Portanto, como regra, o acúmulo remunerado de funções públicas não é permitido pelo texto constitucional, salvo nas hipóteses acima ressalvadas.[3] Cumpre-nos enfrentar, agora, se o dispositivo acima transcrito se aplica aos militares.

Antes da EC nº 77/2014, em artigo pertinente ao tema, o professor e assessor jurídico do Exército, José Carlos Dutra, listou alguns obstáculos a essa aplicação (DUTRA, 2012).[4] Em primeiro lugar, defendeu que a função militar não estaria elencada no rol de exceções à acumulação:

“Há quem visualiza a possibilidade de se incluir a lide castrense no rol dos cargos técnicos ou científicos. Não concordo com tal hipótese, pois o militar é um especialista, treinado e preparado antes de mais nada, para a arte da guerra, para a defesa da pátria, dos poderes constituídos, da lei e da ordem e em atividades administrativas e de gestão, ou seja, atividades meio da própria Força. Ocorre, porém, que nem todo o trabalho especializado pode ser considerado técnico, há que ser dotado, também, de uma natureza científica ou artística, o que não se vislumbra na atividade militar”.[5]

Outro óbice seria a própria vedação da Constituição, mantida pela EC nº 18/98, no sentido de determinar a transferência do militar para a reserva, caso aceitasse cargo público civil permanente, ou para o agrego, se aceitasse cargo, emprego ou função pública temporária não eletiva. Para Dutra isso não teria sido inovação da CF/88:

“tal vedação já constava do § 4º do art. 93 da Carta Política de 67/69, nos seguintes termos: ‘O militar da ativa empossado em cargo público permanente, estranho à sua carreira, será imediatamente transferido para a reserva, com os direitos e deveres definidos em lei’. Vejam que a expressão ‘estranha a sua carreira’ foi substituída pelo seu real significado, qual seja, cargo ou emprego civil. Na essência, porém, ambos os textos dizem a mesma coisa. Em perfeita sintonia com os textos constitucionais o Estatuto dos Militares determina a demissão, ex officio, do oficial e o licenciamento da praça que vier assumir cargo público permanente estranho à carreira das armas”. [6]

Além disso, Dutra adotou a corrente defendida por Di Pietro e argumentava que a EC nº 18/98 teria retirado dos militares a qualidade de servidores públicos. Para ele tal fato impediria a aplicação do art. 37, inciso XVI, que como é regra excepcional, deve ser interpretada restritivamente.

Por fim, quanto à possibilidade do exercício de função pública civil pelos militares que atuam nas Forças Armadas como especialistas técnicos e científicos (médicos, engenheiros, etc.), o mencionado professor manteve o mesmo entendimento:

“Há que se perquirir, então, se a esses especialistas se aplicam as mesmas regras aplicáveis aos demais militares ou se, por exceção, podem acumular dois cargos públicos remunerados, nos termos do inciso XVI do art. 37 da CF. Entendo que a vedação contida no inciso II do art. 142 se aplica a todos os militares, uma vez que, ao definir “militar” o legislador constitucional não fez exceções, não devendo o intérprete fazê-las, mesmo porque a condição de militar supera a sua especialidade, ou seja, trata-se de um militar especialista e não de um especialista militar. Há, ainda, um derradeiro argumento que ratifica o entendimento de que ao militar não é permitida a acumulação remunerada de cargos públicos. Vejamos: a CF ao enumerar, de forma exaustiva, no inciso VIII, § 3º do art. 142 os direitos do art. 37 que se aplicam aos militares não mencionou o inciso XVI. Este dispositivo é o que disciplina a cumulatividade, o que demonstra, de forma clara, que o legislador subtraiu aos militares a possibilidade do exercício de dois cargos públicos remunerados”. [7]

Os argumentos suscitados por Dutra, porém, foram superados em alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, antes mesmo da EC 77/2014, passou a admitir o exercício de funções civis por militares que não exercessem função tipicamente militar:

“ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. POLICIAL MILITAR. ATUAÇAO NA ÁREA DA SAÚDE. ACUMULAÇAO DE CARGOS CIVIL E MILITAR. POSSIBILIDADE. 1. A jurisprudência firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, diante da interpretação sistemática do art. 37, XVI, alínea c, c/c os arts. 42, 1º, e 142, 3º, II, todos da Constituição Federal de 1988, admite a acumulação de dois cargos privativos na área de saúde, no âmbito das esferas civil e militar, desde que o servidor público não desenvolva, em ambos os casos, funções tipicamente militares.

2. Precedentes: RMS 32.930/SE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe 27/9/2011; AgRg no RMS 28.234/PA, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA, Desembargador Convocado do TJ/RS, Sexta Turma, DJe 9/11/2011; RMS 22.765/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe 23/8/2010.

 3. O eventual excesso de carga horária, conquanto não comprovado nos presentes autos, poderá ser levado em consideração pela Administração no momento em que ficar caracterizado.

 4. Agravo regimental a que se nega provimento.”[8] (grifei)

“ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. ACUMULAÇÃO DE CARGOS. POLICIAL MILITAR E PROFESSOR DA REDE PÚBLICA ESTADUAL. INTEGRANTE DAS FORÇAS ARMADAS. VEDAÇÃO PREVISTA NO ART. 142, § 3º, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

1. É vedado aos integrantes das Forças Armadas, dentre eles os policiais militares estaduais, a cumulação de cargos, conforme dicção do art. 142, § 3º, II, da Constituição Federal.

2. Esta Corte, ao interpretar os arts. 37, II, e 142, § 3º, inciso II, da Constituição Federal, decidiu que a proibição de cumulação de cargos reflete-se apenas nos militares que possuem a função tipicamente das Forças Armadas. Por isso, entendeu que os militares profissionais da saúde estão excepcionados da regra. Precedente: RMS 22.765/RJ, Relatora Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe 23/08/2010.

3. Inviável o exercício simultâneo dos cargos de policial militar e professor da rede pública estadual, em decorrência da vedação contida no art. 142, § 3º, II, da Constituição Federal, apesar da compatibilidade de horários.

4. Recurso ordinário conhecido e improvido.”[9]  (grifei)

Não obstante, em sintonia com Dutra, o Supremo Tribunal Federal (STF), em uma de suas últimas decisões sobre o tema antes do advento da EC nº 77/2014, assim julgou:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ACUMULAÇÃO DE DOIS CARGOS DE MÉDICO POR MILITAR. IMPOSSIBILIDADE. ARTS. 42, § 1º, e 142, § 3º, II, da CONSTITUIÇÃO. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

I – Com efeito, o art. 42, § 1º, combinado com o art. 142, § 3º, II, da Constituição, estabelece que o militar da ativa que tomar posse em cargo ou emprego civil permanente será transferido para a reserva. Assim, diante do caráter específico e restritivo da norma supracitada, não se justifica a interpretação extensiva conferida pelo acórdão recorrido no sentido de que o militar pode acumular dois cargos, ainda que se refiram a cargos de profissionais de saúde. Precedentes.

II – Agravo regimental a que se nega provimento.”[10]

Em seu voto, o Ministro Ricardo Lewandowski, deixou consignado o seguinte:

“Ora, caso fosse intenção do constituinte outorgar o direito ao militar de acumular cargo, emprego ou função, independentemente da necessidade de ser transferido para a reserva (art. 142, § 3º, II), teria incluído referido direito no elenco do art. 142, § 3º, VIII, da Constituição, que determina a aplicação de alguns incisos do art. 37 aos militares”.

Sensível a isso, o Congresso Nacional promulgou a EC nº 77/2014, incluindo a possibilidade de o médico militar exercer a função de médico civil na qualidade de servidor público, conforme passamos a analisar.

3. A Emenda Constitucional nº 77/2014

Conforme demonstrado acima, a aplicação do art. 37, inciso XVI da CF/88 aos militares era controvertida, inclusive na jurisprudência dos Tribunais Superiores. A despeito de outros argumentos, o ponto central do dissenso residia em não ter o art. 142, § 3º, inciso VIII, da CF/88, remetido aos membros das Forças Armadas a aplicação daquele dispositivo.

Para por fim à polêmica, em fevereiro de 2014, foi publicada a EC n° 77/2014, que, alterando os incisos II, III e VIII do § 3º do art. 142 da Constituição Federal, estendeu expressamente aos profissionais de saúde das Forças Armadas a possibilidade de acumulação do cargo a que se refere o art. 37, inciso XVI, alínea "c". Vejamos:

“II – o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea "c", será transferido para a reserva, nos termos da lei; (grifei)

III – o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea "c", ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antiguidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a reserva, nos termos da lei; (grifei)

VIII – aplica-se aos militares o disposto no art. 7º, incisos VIII, XII, XVII, XVIII, XIX e XXV, e no art. 37, incisos XI, XIII, XIV e XV, bem como, na forma da lei e com prevalência da atividade militar, no art. 37, inciso XVI, alínea "c";” (grifei)

 Dessa forma, o militar que tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil, permanente ou temporária, relacionados à área da saúde (médicos, enfermeiros, etc.), poderá permanecer na ativa por expressa previsão constitucional.

Conforme consta do sítio eletrônico do Senado Federal, “a mudança no texto da Constituição deve evitar a constante evasão de profissionais das Forças Armadas, devido à impossibilidade de exercício de outro cargo, assim como melhorar o atendimento a populações de regiões de fronteira e distantes dos grandes centros urbanos”.[11] Portanto, duas foram as principais motivações da Emenda: evitar a evasão de profissionais e melhorar o atendimento a populações longínquas do país.

Quanto ao primeiro objetivo, pode-se dizer que a Emenda veio ao encontro do interesse das próprias Forças Armadas. No caso da Marinha, por exemplo, a Portaria nº 87/DPGM de 2014, que regulamenta a rotina de trabalho dos militares profissionais de saúde, assenta que “a flexibilização da rotina de trabalho para o militar profissional de saúde estaria em sintonia com a realidade do mercado e com o interesse público, na medida em que a Administração Naval convive, rotineiramente, com dificuldade de captação e evasão voluntária dos profissionais de saúde, em especial dos médicos militares”. E segundo a mesma Portaria, a flexibilidade da rotina de trabalho dos médicos da Marinha se dá justamente para possibilitar-lhes “a prática profissional no meio civil”.No mesmo sentido, o próprio Estatuto dos Militares já permitia ao militar da ativa exercer cargo médico civil, ao expressar que “é permitido aos oficiais titulares dos Quadros ou Serviços de Saúde e de Veterinária o exercício de atividade técnico-profissional no meio civil” (art. 29, § 3º, da Lei 6.880/80).

Com relação à outra finalidade da Emenda, a alteração constitucional justificou-se no interesse público, especialmente nas regiões mais longínquas do país, que sofriam com a ausência de profissionais da saúde. Conforme explica o professor e juiz federal Márcio Cavalcante, “muitas vezes a única presença estatal é a das Forças Armadas e os médicos, dentistas e enfermeiros militares que ali atuam poderiam trabalhar também em hospitais ou postos de saúde estaduais ou municipais atendendo a população em geral, mas ficavam impedidos por conta dessa dúvida que pairava diante da lacuna constitucional” (CAVALCANTE, 2014).[12]

Por fim, ressalte-se que a EC nº 77/2014 abrange também os militares estaduais, pois embora só tenha modificado o texto do art. 142, que cuida dos militares das Forças Armadas, o art. 42, § 1º, da CF/88 manda aplicar aos militares dos Estados (Polícia Militar e Corpo de Bombeiros) aquele dispositivo, agora com nova redação.

4. Outras Limitações

Embora a EC nº 77/2014 tenha permitido ao militar ativo exercer também função pública civil ligada a profissões da saúde, tal acúmulo de funções está sujeita a limitações.

Genericamente, os limites dizem respeito à compatibilidade de horários, conforme art. 118, § 2º da Lei 8.112/90 (aplicável a servidores federais) e à obediência ao teto remuneratório, na forma do art. 37, inciso XI, da CF/88. Explica Rafael Oliveira que “na hipótese em que a acumulação ensejar o recebimento de remunerações que ultrapassam o teto, poderá haver redução da remuneração de um dos cargos, emprego ou funções, com a finalidade de se atender o teto” (OLIVEIRA, 2016).[13] Ensina ainda o aludido autor só ser possível o acúmulo de duas fontes remuneratórias, verbis:

“A norma constitucional em comento utiliza as expressões ‘dois cargos’, ‘um cargo […] com outro’ e ‘dois cargos ou empregos’. Não se figura possível a acumulação de três fontes remuneratórias, como já decidiram o STF e o STJ”. [14]

Ademais, há entendimento firmado no âmbito da Advocacia Geral da União (AGU) no sentido de ser “ilícita a acumulação de dois cargos ou empregos de que decorra a sujeição do servidor a regimes de trabalho que perfaçam o total de oitenta horas semanais, pois não se considera atendido, em tais casos, o requisito da compatibilidade de horários” (Parecer AGU Nº GQ-145/1998). No mesmo parecer, a AGU, com base na Lei Trabalhista (CLT) estipula uma jornada máxima de 60 horas, raciocínio que vem sendo utilizado também pelo Tribunal de Contas da União (TCU), vejamos:

“(…) 6. Corroborando-o, ressalto que, embora a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT não seja diretamente aplicável a servidores públicos stricto sensu, ao menos demonstra a necessidade de se fixar máximo e mínimo, respectivamente, para os tempos diários de labor e de descanso – arts. 59 e 66 da CLT -, que, desrespeitados, geram, em última instância, comprometimento da eficiência do trabalho prestado.

7. Por analogia àquela Norma Trabalhista, destaco a coerência do limite de sessenta horas semanais que vem sendo imposto pela jurisprudência desta Corte, uma vez que, para cada dia útil, ele comporta onze horas consecutivas de descanso interjornada – art. 66 da CLT -, dois turnos de seis horas – um para cada cargo, obedecendo ao mínimo imposto pelo art. 19 da Lei n. 8.112/1990, com a redação dada pela Lei n. 8.270, de 17/12/1991 – e um intervalo de uma hora entre esses dois turnos destinada à alimentação e deslocamento, fato que certamente não decorre de coincidência, mas da preocupação em se otimizarem os serviços públicos, que dependem de adequado descanso tanto dos funcionários celetistas quanto dos estatutários”.[15]

Recentemente, a 1ª Seção do STJ adotou o mesmo posicionamento:

É vedada a acumulação de dois cargos públicos privativos de profissionais de saúde quando a soma da carga horária referente aos dois cargos ultrapassar o limite máximo de sessenta horas semanais. Segundo o que dispõe a alínea c do inciso XVI do art. 37 da CF, é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI, a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas. Por se constituir como exceção à regra da não acumulação, a acumulação de cargos deve ser interpretada de forma restritiva. Ademais, a acumulação remunerada de cargos públicos deve atender ao princípio constitucional da eficiência, na medida em que o profissional da área de saúde precisa estar em boas condições físicas e mentais para bem exercer as suas atribuições, o que certamente depende de adequado descanso no intervalo entre o final de uma jornada de trabalho e o início da outra, o que é impossível em condições de sobrecarga de trabalho. Observa-se, assim, que a jornada excessiva de trabalho atinge a higidez física e mental do profissional de saúde, comprometendo a eficiência no desempenho de suas funções e, o que é mais grave, coloca em risco a vida dos usuários do sistema público de saúde. Também merece relevo o entendimento do TCU no sentido da coerência do limite de sessenta horas semanais uma vez que cada dia útil comporta onze horas consecutivas de descanso interjornada, dois turnos de seis horas (um para cada cargo), e um intervalo de uma hora entre esses dois turnos (destinado à alimentação e deslocamento), fato que certamente não decorre de coincidência, mas da preocupação em se otimizarem os serviços públicos, que dependem de adequado descanso dos servidores públicos (TCU, Acórdão 2.133/2005, DOU 21/9/2005).”[16]

Em suma, pode o militar ativo acumular função civil de profissional da saúde, desde que: i) a soma da remuneração das funções (civil e militar) não ultrapasse o teto constitucional; ii) haja compatibilidade de horários entre essas funções, não podendo as respectivas jornadas de trabalho juntas ultrapassar 60 horas semanais.

CONCLUSÃO

Por todo o exposto, concluímos que a mudança formal no texto da Constituição foi salutar, na medida em que atendeu às vontades não só dos profissionais da saúde, mas também ao interesse público e à conveniência da Administração Militar.

No entanto, a alteração poderia ter sido mais abrangente, notadamente para prever a aplicabilidade integral do inciso XVI do art. 37 aos militares, o que possibilitaria, por exemplo, a um médico militar permanecer na ativa enquanto exercesse uma função de professor em uma universidade pública.

Ressalte-se que essa acumulação (médico militar e professor) já foi admitida pelo STJ em 2013, no julgamento do RMS 39.157/GO, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, sob o argumento de aparentar “desarrazoado admitir a acumulação de um cargo de professor com outro técnico ou científico e, entretanto, eliminar desse universo o cargo de médico (no caso sub examine, de perito), cuja natureza científica é indiscutível”.

De fato, parece ser proporcional a extensão das demais hipóteses do art. 37, inciso XVI aos militares, desde que respeitados o limite remuneratório e a compatibilidade de carga horária entre as funções acumuladas.

Por esses motivos, tramita no Congresso Nacional a PEC 215/2003, que objetiva acrescentar um terceiro parágrafo ao art. 42 da CF/88, para estender aos servidores militares estaduais o direito à acumulação de cargos públicos, prevista no art. 37, XVI.

A proposta, porém, é merecedora de críticas. Ao modificar apenas o art. 42 da CF/88, a Emenda só será aplicável os militares estaduais. Dessa forma, os militares das Forças Armadas permanecerão sem ter o direito à aplicação integral do art. 37, XVI. Em consequência, os membros da Marinha, Exército e Aeronáutica não poderão acumular funções públicas civis, salvo aqueles que são profissionais da saúde.

De qualquer forma, a Emenda faz justiça aos militares estaduais, possibilitando que policiais e bombeiros exerçam cargo de professor, cargo técnico ou de profissionais de saúde, sem prejuízo de sua atuação no serviço militar.

Portanto, ainda que de modo parcial, a PEC 215/2003 avança em consonância com os valores apresentados neste trabalho e com a realidade do país.

 

Referências
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à EC 77/2014. Site Dizer o Direito. Disponível em: < http://www.dizerodireito.com.br/2014/02/comentarios-ec-772014.html>. Acesso: 19.01.2017.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo – 25ª ed. – São Paulo: Atlas, 2012.
DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 23ª ed. – São Paulo: Atlas, 2010.
DUTRA, Bel José Carlos. Acumulação de cargos públicos por militares das forças armadas. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/administrativo/acumulacao-cargos-publicos.htm>. Acesso em: 26.03.2012
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
Notas
[1] DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 23ª ed. – São Paulo: Atlas, 2010, p. 517.
[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo – 25ª ed. – São Paulo: Atlas, 2012, p. 590.
[3] A CRFB/88 também admite a acumulação de funções em alguns casos pontuais: i) exercício de função pública e de mandato de vereador, desde que haja compatibilidade de horários (art. 38, inciso III); ii) exercício da magistratura e de uma função pública de magistério (art. 95, parágrafo único, inciso I); iii) exercício da função de promotor e de uma função pública de magistério (art. 128, § 5º).
[4] DUTRA, Bel José Carlos. Acumulação de cargos públicos por militares das forças armadas. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/administrativo/ acumulacao-cargos-publicos.htm>. Acesso em: 26.03.2012
[5] DUTRA, Bel José Carlos. Ob. citada.
[6] DUTRA, Bel José Carlos. Ob. citada.
[7] DUTRA, Bel José Carlos. Ob. citada.
[8] STJ – 6ª Turma. AgRg no RMS 23.736/TO, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 21/05/2013.
[9] STJ – 5ª Turma. RMS 28.059/RO, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 04/10/2012.
[10] STF – RE 741.304 AgR/GO, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 03/12/2013.
[11] Reportagem disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/02/11/promulgada-emenda-que-autoriza-profissionais-de-saude-militares-a-atuarem-na-area-civil.
[12] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à EC 77/2014. Site Dizer o Direito. Disponível em: < http://www.dizerodireito.com.br/2014/02/comentarios-ec-772014.html>. Acesso: 19.01.2017.
[13] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 676.
[14] OLIVEIRA. Ob. citada, p. 676.
[15] TCU – Acórdão 2.133/05, Relator: Marcos Bemquerer Costa.
[16] Cópia do Boletim Informativo nº 549 do STJ, referente ao MS 19.336-DF, Rel. originária Min. Eliana Calmon, Rel. para acórdão Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 26/2/2014.

Informações Sobre o Autor

Eduardo Fontes Nejaim

Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Graduado em Ciências Jurídicas pela Faculdade Nacional de Direito – UFRJ


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Equipe Âmbito Jurídico

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