Resumo: A Constituição Federal de 1988 (CF/88), promulgada por Ulisses Guimarães, se respaldou em um discurso de mudanças, as quais seriam essenciais para vencer. Com quase 30 anos de vigência da CF/88, este artigo tem como analisar o fracasso constitucional, analisando questões que decorrem do próprio âmago da Carta Magna. A reflexão deste artigo tem início nas atitudes antidemocráticas realizadas por parte da população, bem como na falta de instrumentos constitucionais para reprimir intolerâncias políticas. Prossegue-se ainda fazendo uma reflexão no ente do Ministério Público e da própria estruturação do Estado para o atendimento das demandas postas pela população. Analisa-se ainda questões de alíquotas tributárias e engessamento da máquina estatal, para depois discorrer a respeito do fracasso constitucional. O fracasso constitucional, desta forma, refere-se não apenas as disposições constitucionais, mas como também a falta de clareza da população sobre o significado ontológico de democracia. O fracasso, portanto, não é apenas constitucional, mas também nitidamente político, como ficou demostrado nos últimos acontecimentos vivenciados no País.
Palavras-chave: Constituição Federal, democracia, corrupção, política.
Abstract: The Federal Constitution of 1988 (CF / 88), enacted by Ulysses Guimarães, was endorsed in a speech changes, which would be essential to win. With nearly 30 years of life of the CF / 88, this article is to analyze the constitutional failure, analyzing issues that arise from the very heart of the Magna Carta. The reflection of this article begins the anti-democratic attitudes held by the population, and in the absence of constitutional instruments to suppress intolerances policies. It goes on still making a reflection on being the public prosecutor and the own state structure to meet the demands posed by the population. It also analyzes up issues of tax rates and inflexibility of the state machine, then discuss about the constitutional failure. The constitutional failure thus refers not only constitutional provisions, but also as a lack of clarity of the population on the ontological meaning of democracy. Failure therefore is not only constitutional, but also clearly political, as was demonstrated in recent events experienced in the country.Keywords: Federal Constitution, democracy, corruption, political
Introdução
Em outubro de 1988, Ulisses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte e líder da oposição ao governo militar, emocionado, discursou sobre a Constituição que se iria promulgar. Ulisses estava bem ciente sobre a necessidade das mudanças no Brasil. Em seu discurso, pautou ênfase sobre mudanças. Referiu-se ele ao gravíssimo problema do analfabetismo, dos salários, saúde e da perseguição política que vitimou tantos cidadãos, entre eles Rubens Paiva.[1] O tema básico a que se referiu Ulisses seria a mudança, mudar para vencer. Ao final, depois de declarar encerrados os trabalhos, Ulisses disse tratar-se da promulgação da Constituição Cidadã. Grandes esperanças ressurgiam no horizonte brasileiro, especialmente pelo prenúncio da plena restauração democrática. Depois de seu discurso sobre os trabalhos da Assembléia Constituinte, ergueu os braços e emocionado, promulgou a nova Constituição Republicana brasileira.[2]
Entrementes, passados quase 30 anos da promulgação, é possível seriamente questionar o que de fato trouxe a Constituição para o país. Fazemos análise da situação presente sob a ótica do fracasso. É uma ótica entre outras, certamente passível de críticas. Todavia, a hermenêutica do tempo presente permite que a leitura do fracasso seja feita. Isto vale dizer que as promessas e esperanças que se depositaram na Constituição como carta política não mais se sustentam. As pessoas com menos de 40 anos realmente tem poucas condições de avaliar o significado das promessas da Constituição exatamente porque ela fracassou. E o fracasso ao qual me refiro, não se refere a questões marginais, refere-se ao próprio âmago da Constituição. Vejamos isto de mais perto.
Um dos elementos que evidenciam o fracasso constitucional se escancara no movimento alastrado da criminalização da atividade política. O universo estrutural político da Constituição se articulava sobre a democracia, esta entendida sob o signo do respeito às instituições. Diferente era a situação da ditadura militar porque lá também se falava em democracia e se dizia que o regime vivia uma democracia não demagógica. Mas, o diferencial entre aquele tempo e o presente é que a democracia presente se dá institucionalmente; ela se sustém com base em instituições definidas constitucionalmente e no passado as instituições se faziam ad hoc, conforme os desígnios da ditadura. De modo diverso, o fracasso democrático do tempo presente se dá desde as entranhas institucionais. Isto porque, o exercício democrático pressupõe a atividade política. Faz parte da democracia a luta política. Neste mesmo particular, as manifestações midiáticas e de parcelas da população favoráveis ao “extermínio do PT”[3] são demonstrativos cabais, não apenas da intolerância política mas, principalmente, da falta de instrumental constitucional para reprimir tais desvairas.
Em específico, trata-se de fortes e entusiásticas manifestações de parcelas da população que refletem elevado grau de intolerância quanto à existência de divergências no campo político.[4]
O problema, na verdade, subjaz, está prenhe à própria Constituição. De fato, não houve suficiente enfrentamento político para suplantar o regime que vigeu na ditadura e não poucas “viúvas da ditadura” atacam no fundo, a própria democracia ao pretenderem exterminar com o PT. Perceba-se que não se trata aqui de defesa do Partido dos Trabalhadores. Trata-se da indagação fundamental sobre o significado de pleitos como o de extinção de um partido político qualquer.
Agora, quem pede a extinção do Partido dos Trabalhadores não é um bando de aloprados e sim, outro partido político, qual seja, o PSDB. Os fundamentos do pedido estariam baseados em resultados das investigações, especificamente, das delações promovidas na esfera da operação Lava Jato. Enquanto isso, nas redes sociais, há diversas comunidades ferozes propondo a extinção do Partido dos Trabalhadores porque este seria, a ver dos participantes, o mais corrupto de todos.[5] Há inclusive um sítio que defende tais movimentos como sendo “Brasil Esperança”. Em parte, a negativa visibilidade midiática do Partido dos Trabalhadores se deu com o episódio do assim chamado mensalão, palavra empregada pelo denunciante Roberto Jefferson para descrever suposta mesada paga pelo tesoureiro do PT.
O real problema apontado por Roberto Jefferson é que a atividade política no Brasil, do jeito como foi articulada constitucionalmente não consegue ser processada sem o financiamento das campanhas eleitorais. De fato, o problema do mensalão (que a rigor não se comprovou) se deu pela irrigação financeira do sistema político por meio do valerioduto (referência ao publicitário Marcos Valério). Melhor seria referir-se ao esquema como esquema mineiro, eis que os recursos vinham de Minas Gerais para abastecer toda máquina política. Este esquema mineiro foi forjado durante o período de governo FHC, especialmente depois da derrota do candidato do PSDB Eduardo Azeredo ao governo de Minas. A derrota de Azeredo abriu as comportas para a irrigação em Brasília isto até, por intermediação de bancos mineiros (BMG e Rural).[6]
Quando o Partido dos Trabalhadores assumiu o governo federal, o esquema já existia e a denúncia de Jefferson se fez porque estava claro que também o PT teria de se adaptar ao modelo de repartição dos despojos que já se instalara na capital da república. Mas, qual é a questão que de fato teria de ser levantada neste momento? São três questões da maior importância. A primeira é que os acusados e condenados na AP 470 não são apenas políticos ligados ao PT. A segunda é que a condução do processo não se deu de modo isento, esta sim, questão da maior gravidade. A proposital ocultação do Inquérito 2474, com seus 72 volumes é, talvez, o maior desastre jurídico que se tem notícia na Nova República eis que o Inquérito desnuda gravíssimo erro de julgamento.[7]
Por fim, independente dos erros de julgamento, as condenações evidenciaram práticas políticas deploráveis que atingiram diversos partidos políticos, notadamente o PP, DEM, PL e PTB. Mas, o que se divulga na mídia é que o caso se trataria de mensalão do PT. Este largo procedimento de criminalização da política na verdade deságua na corrosão das colunas de sustentação da democracia. E, onde está o problema nisso tudo? A nosso ver, na própria Constituição que não conseguiu estabelecer parâmetros adequados para o exercício da vida política. Tanto é assim que, em discussão reiterada, aparecem as vozes pugnando por uma necessária reforma política a ser processada na Constituição brasileira.
Criminalizar a atividade política é o que vem ocorrendo, também, na operação Lava Jato. O recurso à prisão preventiva se tornou aberração jurídica. Tomo o exemplo de José Dirceu, encarcerado desde o dia 03 de agosto de 2015 por conta da 17ª fase da Lava Jato, a Operação Pixuleco. Os motivos exarados pelo magistrado para a prisão preventiva se deram para evitar a continuidade de atos que, em tese, seriam afetos à corrupção. Mas, basta ler a decisão para se chegar à conclusão de que o magistrado em questão desconhece por completo o que seja o trabalho de consultoria no nível prestado pelo encarcerado, questão aliás, já abordada por comentaristas que se debruçaram sobre o caso.
Pois bem, o que tem tudo isso a ver com a Constituição? Tudo isso tem tudo a ver com a Constituição porque o espírito democrático não se concretizou em instituições suficientes de suporte à democracia.
Este é o caso da criação constitucional do Ministério Público (artigo 127 da CF/88). O MP, conforme a normatividade constitucional e, dentro do espírito da época que se defrontava contra a ditadura, tem por fim específico a defesa do interesse público. Mas, este interesse público é difuso, sem um claro conteúdo a ser perseguido. Por exemplo, a máfia dos postos de combustíveis que estabelece acordos de preço para a venda dos combustíveis não é interesse público? Certamente que sim. Mas aí, a atuação do Ministério Público não ganha os holofotes. Os holofotes fornecem luz e câmara para a atuação do MP, exatamente em sua atividade de criminalização da atividade política. A atividade política se torna rapidamente criminalizada pelo crescimento vertiginoso do Ministério Público.[8] E, vem a pergunta a calhar, quem fiscaliza e estabelece limites para a atuação do Ministério Público?
Longe de nós sermos contra o Ministério Público. Mas, o que se aduz neste momento é que o Ministério Público corre o sério risco de se tornar (se já não se tornou) a criatura do Dr. Frankenstein. Isto porque, diferentemente do que ocorre com o Poder Legislativo e com o Poder Executivo, o Ministério Público ficou cunhado pelas mesmas garantias dadas ao Poder Judiciário. Tornou-se, assim, o MP, em um Poder à parte, sem limites e sem freios e sem contrapesos. Veja que parte da atividade temática do MPF está ligada às populações indígenas. Todavia, o MPF tem sido sumamente ineficiente para evitar os sérios conflitos que ocorrem em especial no Mato Grosso do Sul. Por que? Simplesmente porque lidar com a proteção aos índios retira o MPF dos holofotes. Lá, no meio dos conflitos por terra (é isso que índio quer), o MPF será apenas mero lutador contra o sistema de iniqüidade perpetrada pela legalidade fundiária brasileira. E, na luta, vai contar com a má vontade dos detentores do poder e do controle de mídia.
De fato, quando se fala em criminalização da política, entra em cena o Ministério Público. Isto porque ficam confusos o interesse público e a atividade política. As eleições se fazem como espelho da vontade popular. Mas, contra tal vontade podem se insurgir diferentes atores sociais e o Ministério Público, ao confundir ou ligar-se a tais atores pode colocar-se como elemento desestabilizador da própria vida democrática. Isto porque, não faltarão vozes a postular a crucifixão de todos os políticos e até, de todos os políticos de todos os partidos.
O Estado Democrático de Direito, especialmente num horizonte pós ditatorial, deveria significar o estabelecimento de instrumentos de defesa da coletividade exatamente contra a burocracia dos aparelhos de Estado.[9] Mas, O MP acaba fazendo parte deste aparato de Estado, razão pela qual os holofotes parecem ser a vocação natural do Ministério Público. Cândido Mendes já alertava para este problema porque a supressão do defensor do povo e sua substituição pelo Ministério Público se mostrava como arremedo.[10]
E note que o ilustre sociólogo então falava da supercompetência que haveria de romper o equilíbrio eis que “sem freio no exercício da função excrescente.” Como alerta visionário dizia que “(…) entremostra o desvio de ótica que comprova a tese, enquanto só se fala de correções do abusos do poder governamental. Nada se diz sobre o pior deles que é, exatamente, a omissão das autoridades públicas protraídas cada vez mais na inércia burocrática, presas à sua estrita e imediata dinâmica de interesses. Claro – mostra a redação – a burocracia não vê a burocracia e o instituto que substitui a defensoria do povo nasceu já de boca torta.” Ao contrário do defensor do povo, o Ministério Público se faria por meio das carreiras e mordomias, tudo bem afeto à lógica da velha democracia dos tempos idos.
Até aqui estamos dizendo que a criminalização da atividade política se insere no contexto dos fracassos decorrentes da Constituição de 1988. Há ainda outros sinais do fracasso.
Outro sinal evidente do fracasso constitucional decorre da estruturação do Estado para atendimento das demandas postas pela população. Ulisses Guimarães em sua fala apontou para os problemas do salário, do analfabetismo e da saúde. Isto significa dizer que se pensou que a Constituição estabeleceria os mecanismos fundamentais para as mudanças que haveriam no país para a solvência dos problemas que foram apontados. Mas, perguntamos, como é que estes problemas se haveriam de solucionar? Dentro do espírito constitucional, atribuiu-se ao Estado a responsabilidade de equacionar os problemas. É o caso da saúde que ficou albergada constitucionalmente dentro do capítulo geral da previdência social (saúde, previdência e aposentadoria). Então, decorre daí que o estabelecimento do SUS faz parte da lógica constitucional. Trata-se aí, exatamente do SUS, da maior obra pública realizada pelos governos posconstitucionais, notadamente durante as gestões petistas.
Mas, como é notório, persistem críticas inúmeras ao SUS, muitas delas provindas pelo simples desconhecimento de como funciona o sistema. Além disso, contra o sistema público de saúde se ergue toda parafernália da medicina privada, daquela medicina que se tornou grande negócio e que faz parte da lógica preconstitucional e que foi albergada constitucionalmente. Afinal de contas, para que serve a atividade médica? Se a resposta for para ganhar dinheiro (como parece ser o caso no Brasil), fica evidente que o espírito da saúde pública contemplado na constituição de fato fracassou, não por culpa do SUS e sim, pela demanda posta ao Estado para fazer suprir a saúde num universo de concorrência com a iniciativa privada.
Exatamente o mesmo sucede com a educação. Em que pese a constituição ter dado a maior importância à educação pública, o fato é que o albergue das instituições privadas estabelece a concorrência do setor público com o universo privado. O paraíso privado se garantiria pela injeção de recursos públicos no sistema privado. Pois é exatamente isso que vem ocorrendo, à margem de atuação de qualquer freio e contrapeso constitucional. O sistema de financiamento público da educação superior provoca enormes transferências de renda dos impostos que são fortemente regressivos para os setores da educação privada.
Trata-se, conforme o governo petista, de possibilitar o acesso à educação superior. Um tipo de medida paliativa, emergencial e que pode fornecer resultados em curto espaço de tempo. Os resultados são o expressivo aumento da massa do estudantado universitário brasileiro. Sem dúvida, é uma iniciativa inteligente e bem articulada. Contudo, em certo sentido, é fugir do espírito constitucional. É encontrar meios alternativos de proporcionar o acesso à educação fora da lógica do investimento. Os recursos financeiros são de empréstimo. Não todos, é verdade. Mas, em qualquer hipótese, o dinheiro público sai do governo para ir para o bolso dos proprietários das escolas privadas, explicação plausível para o enriquecimento e poderio desmedido de tais contingentes empresários da população.
A Constituição estabeleceu a necessidade de se fazer um novo Brasil. Mas, para isso, impôs pesado jugo sobre o Estado brasileiro. Agora, este jugo pesado se encontra em um beco sem saída. Para cumprir com suas responsabilidades, o Estado precisa aumentar a arrecadação e isso não conta com a boa vontade da população. Mesmo que se proponha instituir impostos não regressivos (imposto sobre a renda ou sobre movimentação financeira), mesmo assim, a mídia urra dando a entender que toda população seria prejudicada. Infelizmente, o pedreiro que mistura o cimento e pensa nas contas a pagar pode não entender os detalhes do que significa o imposto regressivo. Ele, eventualmente, será um dos que vai se manifestar contra a criação de novas alíquotas mais pesadas para o imposto de renda ou mesmo contra a CPMF. Adiantamos aqui que somos, em tese, contra a CPMF porque entendemos tratar-se de solução paliativa. Entendemos que apenas a adequação das alíquotas do Imposto de Renda são soluções definitivas para assegurar a vigência do espírito constitucional. Sem aumento da arrecadação não se fará as mudanças que se reclamam no Brasil.
E nisto tudo, onde está o Ministério Público? Onde está a defesa dos interesses dos cidadãos? Por acaso o Ministério Público, consciente das questões relativas aos impostos e sua regressividade estabeleceu plano de batalha em favor do aumento das alíquotas do IR? Por certo que não, exatamente porque o interesse público é algo difuso, indeterminado, sujeito a diversas variações de interpretação. Exatamente a criminalização da política é o fator que menos pode representar o interesse público; representa sim, os holofotes da mídia e o interesse particularizado, politicamente determinado e voltado à manutenção dos vícios republicanos. Isto tudo atesta o fracasso constitucional. O fracasso se mostra evidente quando se compara o ideário constitucional e as possibilidades de realização de tal ideário.
Tristemente é possível constatar que existe enorme espaço de impossibilidades. Notavelmente, há virtual impossibilidade de se alterar o status quo por força da Constituição. Não me refiro aqui às acertadas críticas de se fazer uma constituição já maculada em seu berço eis que esta não se fez com a exclusividade necessária. O fato é que o texto da Constituição representou traçado modernizador, liberal e progressista. Mesmo que se defenda uma constituinte exclusiva, não é possível dizer que teria feito uma Constituição melhor. O problema está em outro lugar.
O problema é que a Constituição não conseguiu constitucionalizar as instituições que tinham vigência antes dela. Os juízes antes de 5 de outubro de 1988 continuaram a ser os mesmos como continuaram a ser os mesmos os políticos e a máquina do Estado. Nada de significativo se alterou. A Constituição se pensou como refundadora do Estado mas, na prática, o Estado que já existia foi-se adaptando à letra da Constituição. O Estado perverso, construído pela e para a elite nacional, foi sofrendo mutação adaptativa. Então, o que deveria ser novo para que pudesse realizar o que deveria ser mudado acabou não se concretizando.[11]
Trata-se de um sinal transparente do fracasso constitucional. Sem querer ficar integralmente com o veredicto de Lassale,[12] parece que a Constituição de 1988 tornou-se um pedaço de papel e a questão que se coloca é se, de algum modo, a coisa poderia ser diferente.
A situação da baixa arrecadação de impostos aliada à forma projetada para o Estado produziu um curioso fenômeno de engessamento da máquina pública. Explicar as causas do engessamento do Estado para a população não é tarefa simples de se fazer. É muito difícil porque o grau de desinformação e de contra-informação é enorme. Notável amigo, que tem razoável conhecimento dos meandros da vida política e institucional, criticou fortemente o governo federal quanto ao tópico da educação básica. No diálogo com ele, o autor deste artigo ponderou que a educação pública estava sob encargo dos Municípios ao que me retrucou ele que isto não importava porque o essencial era constatar o abandono e a defasagem que a educação apresentava na comparação com outros países, tomando-se como exemplos aí a Coréia do Sul e a Nova Zelândia.
Pois bem, até mesmo propostas de grande importância como a instituição do turno integral na educação básica encontram fortes barreiras para a implementação. Em parte, estas barreiras se colocam como derivações da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101 de 2000) que, basicamente, impõe sobre a gestão pública a necessidade de conter os gastos públicos por meio da limitação ao que se arrecadar de tributos. Trata-se de legislação que segue os ventos do Consenso de Washington.
Em que pese os acertos da referida Lei Complementar, as conseqüências de sua implementação promovem o engessamento do Estado.
Assim, para haver turno integral, os Municípios necessitam contratar professores. Isto, todavia, está incerto nos limites da despesa total com pessoal. O Município de São Paulo, por exemplo, ao implementar o turno integral,[13] terá de cuidar para que as despesas com pessoal não ultrapassem 50%. Trata-se, sem dúvida, de uma proposta que acerta e está de acordo com o espírito constitucional. Entrementes, a execução prática de tal medida eventualmente mostrará suas armadilhas.
Não me admirarei se o Ministério Público de São Paulo ao constatar que os gastos com pessoal se estarão aproximando de 50% por conta do turno integral, não propuser a medida judicial adequada para punir o prefeito no trabalho de gestionar a coisa pública. E a verdade é que não poucos são os que criticam a atividade do Ministério Público influenciada ou determinada pelo viés político. Tanto é que se fala em Ministério Público Tucano de São Paulo. Ora, tais questões apenas apontam o fracasso constitucional. Não se conseguiu fazer com que a democracia tão decantada na fala do presidente da Assembléia Nacional tenha de fato encontrado vazão para fazer valer os seus direitos de transformação.
A democracia constitucional não significaria privilegiar a manutenção dos privilégios das classes abastadas; pelo contrário, significaria a imposição de que o Estado se estaria construindo para corrigir as mazelas sociais que já existiam e eram identificadas em 1988.
O Estado brasileiro é engessado. E a culpa pelo engessamento é propagado midiaticamente como resultado da roubalheira e corrupção generalizada. Sob tal viés, a extinção do Partido dos Trabalhadores resolveria todos os problemas eis que se identifica o gesso com a corrupção e o roubo político. Trata-se de um viés ingênuo, manipulável, inconseqüente. O problema é muito mais profundo e alterar o foco faz parte da lógica do pão e circo. Corrupção, que serve para catapultar o Ministério Público para os holofotes, é apenas a cortina de fumaça para os problemas da constitucionalização do Estado brasileiro. Quem engessa a coisa é, digamos de modo bem claro, o enorme descompasso entre demanda pública e atribuições do Estado diante do instrumental disponível para realizar o que se demanda. Daí também é que se pode perceber que o Estado brasileiro convive diuturnamente com crises mais ou menos profundas que se materializam politicamente.
Em parte isto é percebido pela população que se refere à atividade política de forma demonizada. Todos os políticos não prestam e toda atividade política é feita por interesses mesquinhos. Em tudo isso, pretender extinguir o PT é apenas parte deste jogo político que navega na crista da onde das crises que se impõe sobre o Estado brasileiro.
O fracasso constitucional se manifesta de modo visível na manutenção das estruturas feudais de sustentação da inércia. De fato, a Constituição não conseguiu impor-se a si mesma para refundar o Estado brasileiro. Os direitos e a continuidade do exercício dos cargos públicos já existentes na promulgação da Constituição fizeram com que os novos entrantes, mesmo por derivação do concurso público, o fizessem para dentro de estruturas de antemão decididas e formatadas.
Imagine-se o caso de algum professor de Direito Cível. Teria ele conseguido lecionar o Direito comum sob o viés constitucional tão logo promulgada a constituição em 5 de outubro? A resposta positiva, mesmo que muito tentadora, não deve ter ocorrido. De fato, questão até compreensível, tratou-se de ler a Constituição a partir do Código Cível vigente. Os direitos sociais, por exemplo, que forçariam convulsões violentas no Direito Cível simplesmente não se operacionalizaram porque se leu a Constituição ao revés. É isto que se diz quanto à manutenção das estruturas feudais de sustentação da inércia. Ou seja, sem revolução, as coisas tendem a andar do jeito como sempre foram. A inércia, normalmente pensada como a ausência de movimento na verdade significa a tendência dos corpos a se manterem do jeito como estão. Se há um estruturação feudal no aparelho de Estado, esta tende a se manter, mesmo que o espírito da Constituição objetivasse um Estado diferente. O Estado brasileiro, como qualquer corpo, manteve a tendência a perpetuar-se. Neste sentido, a Constituição foi lida e interpretada no sentido confirmativo daquilo que já estava acontecendo. É por essa razão que a criação do MP não se deu no sentido previsto pelo espírito da Constituição. Para o futuro, o MP será um enorme abacaxi e a democracia terá enormes dificuldades em alterar o edifício estatal que sobrevive independentemente da Constituição porque esta se adapta àquele.
De fato, ao falar-se em Estado é preciso considerar que o próprio Ministério Público faz parte do Estado. Daí que o Ministério Público faz parte daquelas demandas postas perante o Estado para que haja aumento da arrecadação. Isto significa dizer que toda máquina estatal faz parte do conservadorismo e da manutenção do status quo. O Estado não enseja a luta revolucionária e contra ela se opõe vigorosamente. Neste caso, se apela para as medidas de força para garantir a continuidade do processo acumulador.
A gritaria política que se manifesta nas ruas e que se faz contra o governo (contra o Estado sem que haja consciência disso), se for feita de modo inconseqüente pode manifestar-se como ode à ditadura. Quando a população, em seu legítimo direito de protesto assume as ruas, em boa parte das vezes critica o governo quando o problema não é de governo e sim, de Estado. Da arrecadação que se disponibiliza nas mãos do Estado, boa parte já se compromete com pagamentos necessários, dos quais não é possível furtar-se. Tome-se o exemplo dos reajustes salariais do funcionalismo público. Em muitos casos, os salários não podem reajustar-se porque a medida do gasto público é dado sobre o “percentual de faturamento” e não sobre qualquer política remuneratória adequada ao trabalho.
Do lado inverso, algumas classes profissionais que compõem o Estado detém prerrogativas de vencimentos que fogem completamente à compreensão do povo que paga tais vencimentos. É o caso do Poder Judiciário que acaba sendo visto como uma casta profissional que paira acima da normalidade da população brasileira. Abre-se flagrante contradição entre os vencimentos do Poder Judiciário e a média salarial, da mesma maneira como tal contradição existe entre os vencimentos do Poder em suas vertentes Legislativa e Judiciária e o restante da população. Na verdade, os vencimentos do teto deveriam de fato servir de parâmetro para a remuneração dos diferentes cargos públicos. Isto é assim na teoria; na prática de fato não funciona.
Por que se está apontando este problema? Exatamente porque a remuneração e o aparelho público não é um problema de governo em primeira mão; é um problema do Estado brasileiro. É o Estado que se tornou incompreensível. É o Estado que se tornou o monstro do qual falava Nietzche.[14] O problema, mesmo que não se o desculpe integralmente, não é o governo, é o Estado. E aí, se vê o fracasso da Constituição em não ter formatado adequadamente o Estado brasileiro para fazer jus às demandas que se previram constitucionalmente.
Na verdade, o problema é até mais complexo porque a previsão de cidadania trazida no bojo da Constituição se esvaiu pela luta política. Se, por exemplo, a Constituição reconhece aos brasileiros a plena cidadania e confere aos cidadãos direitos, é certo que a Constituição também prevê que a garantia dos direitos seja dada pelo Estado que deve arrecadar impostos para fazer valer o direito. Mas, exatamente no tópico da arrecadação de impostos se vê luta política ferrenha em que os setores vinculados às classes sociais mais abastadas não têm qualquer disposição para aprovar aumentos na tributação. Em princípio, as forças políticas conservadoras, aquelas mesmas que já existiam antes da promulgação da Constituinte e que participaram do golpe de 1964, não se reconstitucionalizaram. Ou seja, a promulgação de uma nova Constituição não produziu as modificações pressupostas pelo espírito constitucional.
Isto vale dizer que, não apenas a Constituição fracassou como de fato as forças políticas que ensejaram a derrocada da ditadura fracassaram. E, no caso, em especial, o PMDB fracassou porque, em sendo o maior partido político brasileiro, não conseguiu fazer valer sua condição de oposição ao regime militar, notadamente porque, como partido, não se construiu com base em sólida configuração ideológica. De fato, o PMDB reúne figuras politicamente díspares a exemplo de José Sarney, Eduardo Cunha (direita), Pedro Simon (centrismo liberal), Roberto Requião (esquerda liberal), Paulo Skaf (direita empresarial) e Cesar Maia (direita liberal). O PMDB, que concentrou o espólio de toda oposição na queda do regime militar não soube manter-se como partido à altura dos desafios que lhe eram impostos pela Constituição que carregava nitidamente seu espectro ideológico que se foi esfarelando no transcorrer do tempo.
O fracasso não é apenas constitucional; é nitidamente político. Tal percepção fica clara pelos reclamos de uma reforma política.[15] De algum modo se pensa que a política feita com base nos parâmetros da oposição não ideológica à ditadura já não é suficiente para conduzir os destinos da nação. Temas da reforma política, a exemplo da fidelidade partidária, pretendem garantir que a discussão política se faça dentre de um espectro ideológico reconhecível. De lado inverso, se diz que as eleições no Brasil normalmente não se fazem por qualquer traçado ideológico e sim, por outros fatores de convencimento do eleitorado. Entre estes fatores, infelizmente, está o dinheiro. Políticos com maior disponibilidade financeira estão entre os que conseguem ser eleitos, isto à revelia da composição proporcional da sociedade brasileira.
Tomamos as palavras de Drummond de Andrade como nossas.[16] Descortinou-se o fracasso constitucional, o fracasso político e o fracasso do Estado brasileiro. Fracasso este que se pode atribuir à própria marcha forçada em que se meteu a população. O fracasso, em parte, processa as rupturas da disputa política. Não se trata de culpar o golpe de 64; trata-se de reconhecer os seus malefícios. Democracia não é um ato; é um processo. Não se cria democracia por força da Constituição. Democracia é um processo de disputa política em que o povo define qual seja o seu próprio rosto. Esta definição, contudo, não sai de “cima para baixo”; é uma definição que se faz aos poucos. Democracia é obra artística. Por isso, quando ocorre um golpe contra a democracia, tudo é derrubado e tudo precisa ser refeito.
Por tal motivo é que as passeatas contra o governo e as diversas manobras para produzir o impedimento da Presidenta são proposições antidemocráticas em sua essência. As rupturas institucionais querem começar o jogo sempre de novo. Quem quer começar é quem perde, por certo. Então, o campo de batalha político se converte em movimentos de aparente democracia mas que ocultam os interesses do inconformismo político. Assim ocorreu em 1964. A ditadura jamais se mostrou para a população como ditadura.[17] Insistia em chamar-se de revolução democrática que se teria processado contra o golpe planejado pelos comunistas. Na verdade, a ditadura se articulara como movimento sem que houvesse a mínima idéia do que iria fazer. A idéia fixa era apenas, derrubar o Jango. O viria depois, a ditadura não sabia dizer.[18] O problema aí é que o horizonte dogmático da ditadura já não mais percebia seu reflexo no espelho. O monstro olhava para o próprio reflexo que via apenas caricatura da realidade.
O indagar-se pelo que há de ser feito agora parte do assumido pressuposto do fracasso. O que fazer é pergunta que apenas tem sentido desde a ótica do fracasso. E, neste sentido, o fracasso constitucional é um derivativo do fracasso democrático. Isto porque democracia não é algo que se concede ao povo, não é algo que vem desde as camadas esclarecidas da população em direção à inculta população. Democracia é um processo construtivo em que o protagonista é o próprio povo, o demos que assume sua condição de governo. Certamente, pode-se discutir se a democracia é o melhor jeito de se resolver as coisas. Mas, se a democracia se aceita como fundamento político, a questão já não é receber a democracia e sim, construir, pela participação popular, esta democracia.
E aqui vem a justa crítica que se deve fazer, tanto ao PSDB quanto ao PT. Ambos partidos, depois de chegarem ao poder, olvidaram-se por completo, da construção da democracia. Em que pesem os profundos acertos e mudanças promovidas no governo do Partido dos Trabalhadores, o seu maior equívoco foi ter abandonado qualquer projeto de construção da democracia. O Partido dos Trabalhadores arregaçou as mangas e se pôs a trabalhar. Mudou o Brasil, sem sombra de dúvida. Deixamos de lado a miopia mais tacanha que não consegue sequer reconhecer fatos.
Mas, no processo de mudança empreendido pelo PT, o povo não se democratizou. Parcelas consideráveis dos excluídos e das classes menos aquinhoadas financeiramente teve acesso a bens de consumo antes restritos às classes médias. Houve sensível redistribuição da renda. E, algo milagroso, praticamente todas as classes sociais saíram ganhando. Esta política, por certo, não se poderia sustentar indefinidamente. Mas, a crítica que se deve apontar é a construção da democracia. O cidadão pertencente a uma família de baixa renda consegue, por fim, entrar e cursar uma faculdade. Torna-se, digamos, engenheiro ou médico. Mas, tão logo tenha chegado a tal posição passa a comportar-se como se tivesse conquistado, moto proprio, sua almejada posição social.
De um momento para outro, este cidadão agora formado (palavra que se usa a contragosto) passa a criticar o governo especialmente porque desconhece a história e as condições pretéritas em que o Brasil se encontrava antes. Passa a criticar os médicos cubanos porque, além da condução midiática pensa que se estaria provocando artificialmente a redução salarial dos profissionais da saúde. Aliás, a supressão das disciplinas críticas, notadamente história, geografia, filosofia e sociologia permitem que se forme cidadão politicamente vazio. Enquanto isso, há que compreender-se que o exercício da democracia depende da formação de massa democrática crítica. Sem esta massa pensante, a democracia não tem condições de se realizar na prática e no cotidiano. O ensino fundamental e o ensino médio estão fora das mãos do governo federal, razão pela qual se pode apontar que a educação (a falta de) seria uma bomba de efeito retardado, a manifestar-se durante o tempo formativo das crianças que iniciaram a escola e hoje são funcionários públicos e parcelas da classe média brasileira.[19]
Absurdamente, o que se vê na mídia é a pauta de discussão levada a cabo por grupos que efetivamente não sabem o que é a democracia. Há gente, pessoas que fazem parte da tal massa politicamente vazia e que chega ao poder, que defende a diminuição ou mesmo a supressão do ensino das disciplinas críticas na escola.[20] A defesa da supressão das instâncias formativas críticas trata de fundar-se em uma lógica de mercado não afeta a qualquer plano de autonomia da população. É a cegueira do mercado que se indaga quais seriam as razões de lecionar-se filosofia na escola secundária. É por esta mesma cegueira que o ensino da história, geografia, sociologia acabam sendo pisoteados pela sanha de uma suposta práxis dada pelo mercado de trabalho.
Exatamente! Isto porque se imagina que o engenheiro, por exemplo, deve ser apenas capaz de fazer os cálculos que lhe foram encomendados. No resto, deve ser um completo alienado social. Afinal de contas, se imagina, como prova da democracia dada de colherezinha, que basta a tal profissional carregar uma faixa pedindo a intervenção militar constitucional para que a democracia transmitida via Rede Globo esteja realizada. O mesmo diga-se a respeito dos médicos que, grosso modo, já se contaminaram pela lógica do mercado e entendem que sua profissão serve para ganhar dinheiro. Isto sem falar nos operadores de Direito que parece terem se esquecido do patronato da profissão de advogado.[21]
Mas, ó raios, o que se está dizendo neste momento? Dizemos, simplesmente, que a construção democrática é o esteio e o fundamento de qualquer Constituição que assuma-se como democrática. A democracia não decorre da Constituição. Pelo contrário, é necessária a força da democracia para fazer valer aquilo que se dispôs constitucionalmente. A falta de comprometimento democrático em torno da Constituição faz com que ela deva ser resguardada por outros instrumentais artificiais de poder vinculados ao Estado. Este é o problema da Constituição de 1988. Neste sentido, é capenga e de força democrática inferior àquela de 1946.
Este é o caso do STF que assume a figura de guardião da Constituição. Agora, se admitimos o fracasso constitucional, há que admitir-se também, por corolário, o fracasso do STF no cumprimento do seu dever. Na verdade, a própria noção de que a Constituição deva ser guardada tem por base a lógica de Hans Kelsen que imaginava ser necessária uma corte constitucional para assegurar a validade da norma fundamental. O problema mesmo é que Kelsen não conseguiu chegar à compreensão plena do que seria esta norma fundamental que não pode ser compreendida como se fora a Constituição.[22] Em sua obra póstuma, luta Kelsen bravamente para encontrar a Grundnorm que permitiria alavancar a construção do edifício do Direito tal qual ele tinha planejado.[23]
E aí, a questão sobressalente é que a Grundnorm é o próprio poder. Este poder pode assumir diferentes facetas, entre estas, a faceta democrática. Todavia, normalmente, o poder foge da democracia. O poder é tal qual besta fera embrutecida que pinoteia muito. Para controlar o poder é preciso treinar a democracia. Não basta que se diga ou que se ateste, mesmo que isto seja feito constitucionalmente, como se controla o poder. É preciso desenvolver instrumentos democráticos e estes precisam estar apropriados pelo povo. Por exemplo, a democracia pode não estar contemplada na instituição do Ministério Público como, também, pode não estar contemplada no sistema político que se arma em nome da democracia. Tudo isto somente teria validade na medida em que o povo tivesse em sua mãos as rédeas de controle da besta fera enfurecida.
Daí que para fazer democracia é preciso contar com um projeto educacional à altura da democracia. Neste sentido, acertou o governo Dilma Rousseff ao vincular recursos da exploração do petróleo à educação. A media é importante porque estabelece algum enfrentamento para a vinculação e restrição da máquina de Estado à arrecadação. Os recursos do petróleo não tem vinculação tributária e aí reside o grande mérito da medida.
Mas, somente isto não basta porque se colocou o problema da educação para o futuro. O que precisaria ter acontecido é, já na infância constituicional, haver-se preparado o governo para lecionar e preparar o povo, o sujeito da democracia, para o exercício pleno do poder que a ele compete exercer. Este preparo tem de incluir o esforço crítico, reflexivo, dialógico. Democracia se ensina, sim, na escola. Somente o ensino poderia evitar a vergonha e o embaraço que se mencionou na nota de rodapé 6, p. 2 supra. E aí, na falta de um projeto educacional democrático, não foi apenas o governo quem fracassou.
A escola também fracassou. Fracassou porque não soube e não estava (nem ora está) preparada para viver e lecionar a democracia. Para lecionar democracia é preciso entender e adaptar-se ao jogo da democracia como exercício político. É vergonhoso constatar que a maior parte do professorado não pensa que sua tarefa de ensino tenha a ver com política. É vergonhoso constatar que a pedagogia que se exerce nas escolas continua a ser a do opressor e da ditadura. Nada de pedagogia, aquela que se pensa como pedagogia do oprimido.[24]
Faz parte das ilusões que contaminam os operadores do Direito achar que a promulgação de uma nova Constituição faça nascer um novo dia. Não é isso que ocorre. O dia 6 de outubro de 1988 nasceu igual, da mesma maneira que o dia anterior e todas instituições que antes existiam foram se adaptando e também adaptando a Constituição ao jeito como as coisas vinham acontecendo. É a tal da inércia que faz e explica o ocorrido. Foi construído um grande faz de conta em que o principal interessado, o tal do demos, teria de ficar alijado das decisões que se tomavam na cúpula do poder. E, mais uma vez, quando se fala em cúpula do poder isto não significa poder executivo. Cúpula do poder é o Estado em toda sua frieza e monstruosidade. Monstruosidade, aliás, que se constata na descarada prisão de pessoas inocentes (caso da cunhada de João Vaccari Neto)[25] e na manutenção da prisão preventiva sob motivos esdrúxulos como ocorre com José Dirceu.[26]
Já antes da operação Lava Jato (que tem seus méritos, há que se reconhecer), houve o mensalão que mostrou o significado tenebroso da perseguição política desempenhada por agentes do Estado. Só que os veementes protestos contra o que estava a acontecer estiveram fora dos holofotes. Exatamente o Poder Judiciário em sua corte constitucional, a quem incumbiria a guarda da Constituição, exatamente lá se mostrou o fracasso e a sucumbência do Direito às aparências e conveniências políticas.
À guisa de conclusão, se lança o brado de que outro caminho não há! Sem empoderamento democrático, empoderamento do povo não se realizará a democracia. Democracia aqui, não se confunde aqui com os instrumentos de Estado. Tampouco se confunde com a institucionalização do MP, por exemplo. Aliás, vai ficando cada dia mais claro que o Ministério Público virou ameaça à democracia como se manifestou Luis Nassif.[27] Sem democracia, esta entendida como processo de construção da cidadania, não tem jeito. Escola crítica, dialógica, profundamente política é a única alternativa para que o Brasil não sucumba às trevas. O brado que ora se levanta é de enorme relevância porque nas trevas, notadamente jurídicas, já estamos vivendo.
Considerações finais
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) partiu-se da ideia de mudanças, mudanças estas que seriam essenciais para as soluções de problemas da nação. Partiu-se da idealização da democracia, em virtude do regime militar predecessor. Não obstante, com quase 30 anos de vigência da CF/88 analisamos que a mesma não obteve resultados satisfatórios, sendo, portanto, fadada ao fracasso.
Tal fardo decorre de uma série elementos dispostos no próprio âmago constitucional. Inicia-se a reflexão na falta de instrumentos constitucionais para reprimir intolerâncias políticas. Ademais, falam-se em “exterminar partidos”, como se isso fosse resolver os problemas da corrupção no País.
A mídia, neste contexto, induz o telespectador a erros de julgamento e condenações, fazendo com que mais uma vez, o fracasso constitucional se dê na insuficiência da Carta Magna em estabelecer os parâmetros adequados para o exercício da vida política. O que vem ocorrendo, na verdade é a criminalização da atividade política. Tais situações demonstram que não foram criadas instituições suficientes de suporte à democracia. Mudou-se de regime, mas não se mudaram as estruturas do sistema. Mudou-se a CF mas os personagens de sua concretização permaneceram.
A criação constitucional do MP, afim de defender os interesses públicos, também é outro retrato do fracasso constitucional, eis que sua atuação ficou limitada aos holofotes e sua atuação não possui fiscalização, tornando assim o MP um ente sem freios e sem contrapesos. Confunde-se assim a atuação do MP visando o interesse público com a sua atuação na atividade política.
Outro sinal evidente do fracasso constitucional decorre da própria estruturação do Estado para atendimento das demandas postas pela população. Ademais, a dificuldade de aumentar-se as alíquotas dos impostos (e aí, entra também o poderio da mídia fazendo a propaganda anti-governo) faz com que o Estado brasileiro tenha um jugo pesado para fazer-se cumprir a necessidade de um novo Brasil. O fracasso constitucional assim, se mostra evidente quando se compara o ideário constitucional e as possibilidades de realização de tal ideário.
Neste viés, analisamos que o ideário constitucional é progressista, modernizador e liberal. O ideário constitucional está longe de ser um problema, mas sim uma solução. Ocorre que, a Constituição não conseguiu constitucionalizar as instituições que tinham vigência antes dela. Os juízes antes de 5 de outubro de 1988 continuaram a ser os mesmos como continuaram a ser os mesmos os políticos e a máquina do Estado. Nada de significativo se alterou. A Constituição se pensou como refundadora do Estado mas, na prática, o Estado que já existia foi-se adaptando à letra da Constituição. O que deveria ser “novo”, na prática continuou “velho”.
Vemos assim, que a Constituição de 1988 tornou-se um pedaço de papel e a questão que se coloca é se, de algum modo, a coisa poderia ser diferente. O Estado brasileiro produziu um curioso fenômeno de engessamento da máquina pública e, a culpa de tal engessamento é propagado midiaticamente como resultado da roubalheira e corrupção generalizada.
O fracasso constitucional se manifesta de modo visível na manutenção das estruturas feudais de sustentação da inércia. De fato, a Constituição não conseguiu impor-se a si mesma para refundar o Estado brasileiro. Os direitos e a continuidade do exercício dos cargos públicos já existentes na promulgação da Constituição fizeram com que os novos entrantes, mesmo por derivação do concurso público, o fizessem para dentro de estruturas de antemão decididas e formatadas.
O Estado brasileiro tornou-se incompreensível. Isto porque a remuneração e o aparelho público são problemas do próprio estado brasileiro. Vai muito além do governo que está no Poder. O problema não é o governo, é o Estado. E aí, se vê o fracasso da Constituição em não ter formatado adequadamente o Estado brasileiro para fazer jus às demandas que se previram constitucionalmente. Ademais, as forças políticas conservadoras, aquelas mesmas que já existiam antes da promulgação da Constituinte e que participaram do golpe de 1964, não se reconstitucionalizaram. Ou seja, a promulgação de uma nova Constituição não produziu as modificações pressupostas pelo espírito constitucional.
Isto vale dizer que, não apenas a Constituição fracassou como de fato as forças políticas que ensejaram a derrocada da ditadura fracassaram. O fracasso não é apenas constitucional; é nitidamente político.
A criminalização da atividade política e o inconformismo político demonstram o fracasso da própria democracia. Isto porque democracia não é algo que se concede ao povo, não é algo que vem desde as camadas esclarecidas da população em direção à inculta população. Democracia é um processo construtivo em que o protagonista é o próprio povo, o demos que assume sua condição de governo.
O fracasso constitucional, decorre porque a democracia não decorre da Constituição, mas sim a democracia é uma construção dos cidadãos. E, não se faz a construção da democracia com cidadãos politicamente vazios. É necessário, portanto, que se construa a democracia para fazer valer aquilo que se dispôs constitucionalmente. Entrementes, só é possível construir-se a democracia com um projeto educacional à altura da democracia, o que ainda precisa está longe de ser elaborado e concretizado no Brasil.
Advogada, Geógrafa e especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná, núcleo de Ponta Grossa. Mestre em Gestão do Território pela Universidade Estadual de Ponta Grossa
Perito Judicial Cível. Bacharel em Direito. Economista. Doutorando em Direito Civil pela Universidade Nacional de Lomas de Zamora (UNLZ) – Argentina
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