Sumário: Introdução; O DIREITO PENAL FUNCIONAL; DIREITO PENAL MÍNIMO VERSUS DIREITO PENAL EXCELSO; O ENGAJAMENTO GARANTISTA NO CONTEXTO ATUAL; FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL MUNDIAL PENAL; Características gerais das organizações criminosas; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ante o crescimento e a especialização da criminalidade organizada no mundo o conceito de direito penal se expandiu, trazendo conseqüências catastróficas em prol de uma maior segurança mundial, implicando em incertezas no que tange aos limites de um modelo que eventualmente possa justificar restrições das garantias fundamentais.
INTRODUÇÃO
Interposto por um arquétipo empresarial e um complexo processo de atuações, o crime transnacionalizado vem mecanizando programas delinqüênciais, explorando a network, onde impera a alta tecnologia e o grande poder de intimidação.
Não se preocuparam, brevi manu, em tratar consentaneamente da cooperação internacional como resultado natural da globalização[1] e resposta lógica a transnacionalização da organização criminosa. Vários âmbitos continuam à mercê dos “patamares hierárquicos” do país e do mundo, como a criação de um sério sistema de proteção a testemunhas, delatores e vítimas, uma específica regulamentação à escuta ambiental com autorização judicial, entre outros.
Em busca de soluções, acorre-se a uma linguagem críptica e mnemônica, com novos tipos penais e medidas nada apropriadas, deixando juristas (o escol da raça) perante conceitos com ampla margem de discricionariedade. Usa-se o direito material e formal penal como instrumento de política interna e segurança pública, levando estas metáforas a sutilezas tais que os colocam num terreno muito fronteiriço ao ridículo.
Tripudiam as garantias do Estado Democrático de Direito, sendo os cidadãos condenados ao Tártaro[2], não legitimando os princípios norteadores tais como o da reserva legal, adequação social, intervenção mínima, culpabilidade, fragmentariedade e tantos outros olvidados em prol de uma melhor resposta à opinião pública (communis opinio).
Todas as plurissignificações no tratamento à organização criminosa são tidas como prenúncio no combate à violência, trazendo consigo a mudança nos hábitos, a clausura, o pavor e a inquietação.
A etimologia da palavra “violência” vem do latim violentia. Desde os primórdios das civilizações este substantivo tem adquirido forma e conotações distintas, sendo a mais adequada, embora vitrificável, a que denota o sentimento de abuso da força. Na Antigüidade há relatos grandiosos de tirania, despotismo, vingança (Rache), parricídios etc., onde a lei (im) posta não era menos feroz.
Se remontarmos à história, mais precisamente à Idade Média, veremos que as invasões bárbaras que assinalam o início do esfacelamento do Império Romano modificaram o panorama europeu. A primeira mudança significativa associa-se à estrutura política. Após a morte de Carlos Magno (o último grande monarca medieval), o poder central, representado pela figura do rei, ficou bastante enfraquecido. A sociedade tentou reagir, organizando-se em torno dos maiores latifundiários, que, por esse motivo, acabaram conquistando grande autoridade. As invasões simultâneas contribuíram para estimular a descentralização do poder.
Contudo, na época do Renascimento, a diminuição das epidemias e o fim das invasões normandas, magiares e muçulmanas, a partir do século X, causaram o crescimento da população. O aumento da produção agrícola gerado pelo desenvolvimento de novas técnicas causou o aumento dos excedentes comercializáveis. Esse conjunto de transformações fez com que aos poucos as cidades fossem ressurgindo e as atividades comerciais progredissem. As pessoas, que até então viviam no interior do feudo, passaram a viajar mais, buscando novas rotas e desafiando limites territoriais a fim de encontrar melhores condições para a comercialização de seus produtos, desenvolvendo o espírito mercantilista. Muitos camponeses abandonaram o campo e rumaram para os burgos em busca de novas ocupações. Assim, antigos servos foram constrangidos a construir uma nova identidade econômica.
Indo de encontro ao Estado Moderno, numa visão retilínea e propulsora, deve-se salientar a importância do século XVIII, conhecido pelo marco do Iluminismo e da violência política, oportunamente demonstrado mais adiante.
Na obra de “O Príncipe” de Maquiavel, percebemos resquícios impensados do princípio : os fins justificam os meios. Jean-Jacques Rousseau afirmou em certa ocasião que Maquiavel era um homem honesto e um bom cidadão, mas, estando ligado à casa dos Médici, era obrigado, em meio à opressão de sua pátria, disfarçar o seu amor à liberdade, como todo homem bem nascido que fora. Porém, Maquiavel conhecia a história, as ameaças, a fragilidade dos Estados, as sociedades inacabadas. E como bem explicita Raymond Aron: “Sendo os homens o que são, os preceitos que a experiência do mundo sugere não coincidem com os que os moralistas ensinam”[3].
A política de Maquiavel era a ação, e como bem sabemos, toda ação tende ao êxito, seja por meios ilícitos, sacrificando almas, ou utilizando ardil, sendo calculista e meticuloso. Como bom pensador político afirmava que era preciso ver a realidade tal como era, não como desejava que fosse e que nos períodos de desordem, antes se pautar na imoralidade da ação.
Marx distinguiu nitidamente a violência dos explorados e dos exploradores. Tinha a consciência do papel desempenhado pela violência na História, mas esse papel era para o mesmo secundário: não a violência, mas as contradições da antiga sociedade causaram o seu fim. A emergência de uma nova sociedade foi precedida de violentas manifestações, e o verdadeiro poder das classes dominantes não consistia ou baseava-se na violência. Era definido através do papel desempenhado no processo de produção.
Destes pensadores aos dias atuais, os meios da conquista e forma do exercício do poder foram acrescidos em agudeza de espírito e mirabolantes elaborações racionais, se tornando em objeto de estudos científicos. Na contemporaneidade presenciamos toda forma de egoísmo e do não-amor ao próximo, pois as pessoas estão cada dia mais distante dos princípios morais[4], onde o ter é infinitamente mais importante que o ser, aumentando o ódio e conseqüentemente a própria violência.
A criminalidade tem suscitado questões de alta relevância, haja vista seu alto índice nas metrópoles e cidades circunvizinhas. É a tese sustentada por Durkheim, sendo a delinqüência um fato habitual em todas as sociedades existentes. Em seu ensaio L’Anée Sociologique, intitulado Deux Lois de L’Évolution Pénale assinalou duas leis de sociologia jurídica penal acatadas até hoje:
Segundo a primeira dessas leis: l’intensité de la peine est d’autant plus grande que les sociétés appartiennent à un type moins élevé et que le pouvoir central a un caractère plus absolu”. A segunda é uma lei de variações qualitativas, segundo a qual “les peines privatives de la liberté et de la liberté seule, pour des périodes de temps variables selon la gravité des crimes, tendent de plus en plus à devenir le type normal de la repression [5].
Cabe-nos desirmanar a criminalidade da violência, embora muitos tendem a coaduná-los devido a uma análise menos apurada sobre ambas proposições. A violência, como vimos, trata de atos, paixões, enfim sentimentos extracientíficos que acabam por desprezar o Ser humano, indignificando-o. A criminalidade, por fim, é uma norma jurídica inserida numa codificação, com o fito de desproteger os cidadãos, aplicando sanções (desproporcionais) para a disciplina da sociedade.
Assuntos como violência, criminalidade e segurança no Brasil e no mundo têm sido “picos de Ibope” em qualquer veículo de comunicação. Nesse diapasão, este trabalho científico é relevante para a difusão dos valores políticos, humanos e democráticos, propondo todas as considerações pertinentes a este fenômeno, ressaltando os disparates legais, bem como uma (re) dimensão das garantias fundamentais, já largamente debatido mas ainda sem elucidação eloqüente.
O DIREITO PENAL FUNCIONAL
A sensação de impunidade que assola o mundo, com recentes atentados em vários países da Europa traz como conseqüência a glaumourização de acontecimentos, o anseio popular, a imediata resposta e exigências de novos tipos penais em prol de um Direito Penal Eficiente, do Inimigo, da Emergência. Os legisladores apreensivamente tentam responder por meios severos os medos e as perturbações sociais com os perigosos artifícios do Direito Penal, tendo por fim a multiplicação das leis, exigindo do sistema jurídico ultra do que ele pode oferecer, usando-o para questões outras como o tratamento profilático do meio ambiente, da matéria fiscal, econômica, da engenharia genética e até na persecução de fins políticos.
Esquece-se de duas colocações essenciais; a primeira é que o Direito Penal não deve ser instrumento efetivo de política interna e segurança pública, não podendo decidir sobre o merecimento de coisa tão grave, como a pena, com critérios sentimentais determinados por opiniões preconcebidas, a fortiori, portanto, se ater aos ditames da necessidade de proteção à sociedade; a segunda é que a interferência do Estado deve estar limitada no mínimo necessário, lembrando da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1978, em seu artigo 8º determinando que “a lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias”. Surge então o princípio da intervenção mínima, onde só se legitima a criminalização de um fato se a mesma constitui meio idôneo para a proteção de um determinado bem jurídico. Logo, se outras formas de sanção se revelam insuficientes para a tutela desse bem, a criminalização é incorreta [6].
Contudo, o discurso penal de intervenção mínima não se coaduna com a realidade legislativa, pois ao invés da renúncia formal ao controle penal para a solução de conflitos sociais e na seara processual, no que tange à busca desse conflito de forma não punitiva, vê-se um descontrole legiferante.
O conceito mais apropriado ao Direito Penal nos dias atuais é, sem sombra de dúvida, a de Maggiore:
É o sistema de normas jurídicas, por força das quais o autor de um delito (réu) é submetido a uma perda ou diminuição dos direitos pessoais[7].
Tal problemática deveria estar em consonância com a política criminal, pois o papel desta é a de efetuar o estudo crítico e prospectivo das normas jurídico-penais e das vias institucionais para sua oportuna e eficaz aplicação preventiva e repressiva[8], promovendo as reformas legislativas adequadas às novas situações sociais, inclusive à hermenêutica judicial mais consentânea com as necessidades do momento e com as mudanças que se desejam.
Embora a política criminal seja livre em sua investigação, esta deve contar com certos limites para alcançar seus objetivos. Montesquieu já dissera que até a virtude precisa de limites (est modus in rebus) Como critérios de Justiça destacam-se os princípios da culpabilidade, humanidade, reserva legal, dignidade humana, todos em verdadeira harmonia com o Estado Democrático de Direito.
Roxin acertadamente explicitou que só se deve recorrer ao Direito Penal quando houver fracassado o emprego de outros instrumentos sócio-políticos, dado que o castigo penal coloca em perigo a existência social do afetado, situando-o à margem da sociedade e com isso se produz também um dano social.[9]. O Direito Penal, portanto, não pode conter tipos incompatíveis com o pluralismo igualitário, pois uma sociedade pluralista supõe a concorrência de distintos sistemas de valores, em que o que é justo para alguns, não é para outros[10], sendo que cada sub-cultura tem seus pontos de vista acerca da Justiça, porque cada uma delas tem sua ética.
Como exemplo, podemos citar a conceituação de Justiça do filósofo Nietzsche, onde esta na concepção do mesmo, tem origem entre aqueles que possuem potência mais ou menos igual. Cada um contenta o outro, na medida em que cada obtém o que estima mais do que outro. Dá-se a cada um o que ele quer ter, como doravante teu, e se recebe em compensação o que se deseja[11]. Justiça é, então retribuição e intercâmbio. O ilustre filósofo finaliza afirmando que os homens, de acordo com seu hábito intelectual, esqueceram o fim originário das assim chamadas ações justas, eqüitativas.
Nas quatro alíneas delineadas pelo mestre Zaffaroni, a legislação penal é caracterizada:
a) se se funda em um fato novo, pretendidamente novo ou extraordinário; b) a opinião pública reclama solução para os problemas gerados pelo fato; c) a lei penal não resolve o problema, porém tem por objetivo proporcionar à opinião pública a sensação que tende a resolvê-lo ou ao menos reduzi-lo; d) adota regras que resultam diferentes das tradicionais no Direito Penal Liberal, seja porque o modificam em geral, seja porque criam um Direito Penal Especial ou alteram o Direito Penal Geral. Sob o discurso da defesa ou proteção, transforma-se o Estado Democrático de Direito em Estado de Polícia[12].
Hassemer, comunga da mesma afirmação:
Sobre todo la filosofía política de la Ilustración tuvo como consecuencia que las teorías de derecho penal y de la pena, y la praxis en la legislación, la jurisprudencia y la ejecución, hayan respetado estos presupuestos, y los hayan elaborado. El derecho penal conforme al Estado de Derecho y el derecho procesal penal constituyen hoy no solamente un medio de persecución o de cruda ‘lucha’ contra el delito; constituyen también un medio para garantizar de la mejor forma posible el aseguramiento de los derechos fundamentales de aquellos que intervienen un conflicto penal – esto es, en las peores lesiones producidas por la mano del hombre -: derechos fundamentales no solamente de la víctima, sino también de los testigos y, sobre todo, de los sospechosos del hecho. El derecho penal es también el derecho de protección del imputado, y también del autor; protección frente a un ‘proceso abreviado’, frente a una reacción desproporcionada y frente a un juicio apresurado frente a los circundantes. Nuestras leyes penales disponen, por ello, de un arsenal de medios de protección jurídica: derecho de callar, a negarse de testificar, a ser defendido por un profesional, a defenderse frente a una acusación; los deberes de fundamentar las decisiones y permitir su control, de acelerar el procedimiento (pero no en contra de los intereses legítimos del afectado), de no perjudicar al condenado en forma desproporcionada, de tratar a quien no está condenado por sentencia firme como si fuera inocente (aun frente a graves sospechas), y protegerlo frente a imputaciones calumniosas[13].
Declarando ainda que estas agravações no direito penal material e no direito processual penal se devem a uma política criminal tendo como “pano de fundo” uma violência dramatizada. Em seu quadro estão faltando elementos para um direito penal realmente desenvolvido e uniforme [14].
A intervenção do Direito Penal não resulta proporcionada se não atua na proteção das condições fundamentais da vida em comum e para evitar ataques especialmente graves dirigidos contra as mesmas. O cumprimento da referida finalidade exige uma adequada determinação do conteúdo do bem jurídico. Entende-se conveniente que, para precisão do objeto de proteção jurídico-penal, considere-se a danosidade social dos fatos lesivos (excluindo do âmbito penal os fatos exclusivamente morais e que afete o indivíduo para evitar que uma idéia centrada exclusivamente ao dano social encerre o perigo, de raiz totalitária, de tender as necessidades do conjunto, esquecendo-se do indivíduo).
Contudo a combinação de dano social e afetação individual não exclui da proteção legal os bens supraindividuais. A proposta de tomar a Constituição como ponto de referência da concreção dos objetos de proteção penal tem pretensões garantísticas e reforça a eficácia limitadora do conceito de bem jurídico. Também, deve-se considerar, no esforço de concreção dos objetos, os princípios político-criminais que inspiram o exercício do direito de punir do Estado. Não se pode olvidar que o objeto de proteção do Direito em geral, e no Direito Penal em particular, não são idênticos.
Ad instar, a figura mitológica de Jano – o deus bifronte, a olhar simultaneamente para o passado e para o futuro – vem a propósito para caracterizar a hipertrofia no que tange ao desenvolvimento do direito penal.
Adquirir a efetivação dos princípios garantistas é, antes de tudo, assegurar o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo, ou seja, limitar o poder punitivo e garantir a tutela da pessoa contra a arbitrariedade.
A questão estrita do desvio punível não deve ser tratada como qualidades ontológicas e/ou escatológicas e sim de maneira formal e claramente indicada pela lei, consoante a máxima de Feuerbach: “nulla poena et nullum crimen sine lege”. Como bem aclara Kelsen:
Dizer que o Direito é uma ordem coativa não significa – como às vezes se afirma – que pertença à essência do Direito ‘forçar’ (obter à força) a conduta conforme o Direito, prescrita pela ordem jurídica. Esta conduta não é conseguida à força através da efetivação do ato coativo, pois o alto de coação deve precisamente ser efetivado quando se verifique, não a conduta prescrita, mas a conduta proibida, a conduta que é contrária ao Direito [15].
O legislador ao seguir o princípio da reserva legal não pode convencionar a pessoas o seu suposto caráter: desocupados, delinqüentes, vagabundos, perigosos, enfim praeter legem, como se presenciaram em ordenamentos passados, ad exemplum, a perseguição de hereges, judeus e bruxos[16] .
A norma para regulamentação de um comportamento precisa qualificá-lo deonticamente, não admitindo normas que criem ipso jure situações de desvio sem nada prescrever. A relevância penal só adquire relevo consoante os ditames de como a autoridade diz a lei [17].
As garantias fundamentais resvalam na esfera intocável da liberdade, segundo o entendimento de Hobbes :
a liberdade que a lei me confere para fazer qualquer coisa que a lei não me proíba, e de deixar de fazer qualquer coisa que a lei não me ordene;
De Locke:
ali onde a lei não existe, tampouco há liberdade, pois a liberdade consiste em estar livre da violência dos outros, o que não pode ser logrado onde não há lei [18]
De Montesquieu:
a liberdade política reaparece sempre quando ninguém está obrigado a fazer as coisas não preceituadas pela lei, e não fazer as permitidas [19]
De Diderot: “a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”[20] ; Voltaire: “ser livre significa depender somente das leis”[21], e por fim, a artigo 5º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 “Tudo o que não é proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguém poder ser obrigado a fazer o que esta não ordena”.
O modelo inquisitório se caracteriza pelas (neo) teorias da prevenção especial, defesa social e do tipo normativo do autor, relatando o enfraquecimento das garantias processuais, mais especificamente a presunção da inocência do acusado antes da condenação, do ônus acusatório da prova e do contraditório. A título de exemplificação temos a reversão do ônus da prova no tratamento ao crime organizado, transformando para o acusado o dever de provar que é inocente. Ressalta-se ainda, a importância da separação entre direito e moral (princípio da secularização)[22], construindo referências à subjetividade do desvio do réu, onde sistemas na profilaxia à organização criminosa reprimem de imediato a simples colocação abstrata em perigo ou punem severamente o desvalor social ou político da ação, resultando na visão de Ferrajoli, em fatos substancialista/decisionistas, derivando na subjetivação do juízo, à mercê de critérios discricionários de valoração da “anormalidade ou periculosidade” do réu[23] .
Sem dúvida, toda esta problemática denota uma atitude antiliberal, extremamente discriminatória, numa análise diretiva no abuso jurisprudencial, nas macroinstituições contra a criminalidade organizada, nas figuras do concurso moral e do delito associativo, consideradas com base nos antecedentes dos acusados ou à sua colocação ou identidade social e política. Como forma de aclaramento diante do exposto o nosso Código de Processo Penal[24] com a dialética de buscar o equilíbrio entre o interesse social e da defesa individual, todavia orientado pela Constituição de 1937, preceitua:
de par com a necessidade de coordenação sistemática, das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o se ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinqüem. (grifo nosso).
Kelsen nos ajuda a distinguir o Direito da Moral ao delinear:
a exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência (…) a pretensão de distinguir Direito e Moral, Direito e Justiça, sob o pressuposto de uma teoria relativa dos valores, apenas significa que, quando uma ordem jurídica é valorada como moral ou imoral, justa ou injusta, isso traduz a relação entre a ordem jurídica e um dos vários sistemas de Moral, e não a relação entre aquela e ‘a’ Moral.[25]
Logo, é enunciado um juízo de valor rigorosamente relativo. Porém, como será possível proceder a tal julgamento da opinião moral sem recorrer a juízos de valor? E como será possível admitir como científicos tais julgamentos se encharcados de valorações, embora, talvez, não conscientes?
Poderíamos concluir com Cuvillier:
la morale n’est pas une science, la morale est fait de jugements de valeur, la science n’est faite que de jugements de realité [26].
No âmbito penal, as teses formalistas geralmente coincidem com a reivindicação do princípio da legalidade, no sentido de que não é a moral, a natureza, a justiça, mas sim as razões desse homem artificial que é o Estado que fazem as leis[27]. Ficam excluídas todas as conotações de tipo moral, natural, político ou social, mesmo com respaldo legal, parecendo garantidas os delitos puníveis somente por fatos objetivamente determinados e não por características subjetivas, tidas como desviantes, não expressamente proibidos pela lei enquanto delitos.
O princípio utilitário da separação entre direito e moral no plano da legislação confere a ofensa concreta dos bens jurídicos, cuja tutela é a única justificação das leis penais enquanto técnicas de prevenção daquelas ofensas[28]. O Estado não deve imiscuir-se coercitivamente na vida moral dos cidadãos nem lhes promover a moralidade, mas somente tutelar-lhes a segurança.
No âmbito conferido ao processo, o princípio da separação impõe que o julgamento não deva versar sobre a moralidade, caráter ou personalidade do réu, mas apenas sobre os fatos concretamente proibidos que lhe são imputados, sendo que estes constituem as únicas coisas que podem ser provadas pela acusação e refutadas pela defesa. Assim, o juiz não deve indagar sobre a alma do imputado, e tampouco emitir veredictos morais sobre a sua pessoa, podendo somente individuar os seus comportamentos vedados pela lei.
Por fim, no âmbito conferido à pena, o princípio comporta que a sanção penal não deve possuir conteúdos e/ou finalidades morais. O Estado não possui o direito de alterar, reeducar, redimir, reeducar, ressocializar a personalidade do réu, pois o cidadão tem o dever de não cometer fatos delituosos[29] e o direito de ser internamente ruim e, igualmente, em permanecer aquilo que é. As penas não devem, portanto, perseguir finalidades pedagógicas ou correcionais.
Estas colocações estão baseadas no valor da liberdade de consciência das pessoas, na igualdade do tratamento penal e na minimização da violência punitiva retirando todo o pré-julgamento ideológico do incontrolado arbítrio judiciário.
García Máynez indica a unilateralidade da moral e a bilateralidade do direito, como sendo caráter distintivo de todas as regras de comportamento social. A unilateralidade da moral significa que suas normas, mesmo que reconhecidas por todos como desejáveis para a boa convivência, não estabelecem um relacionamento. Por este motivo, se alguém contraria um preceito moral não pode ser compelido a proceder de outra forma, mesmo que incorra em desagrado de todos. Se a norma ofendida foi jurídica, a conseqüência é diversa, precisamente devido à bilateralidade, pois pressupõe sempre uma relação de direitos e deveres, ligando dois ou mais indivíduos[30]
Lembremos que desde tempos remotos a opinião pública exerceu importante papel dentro da sociedade, a maior parte possui caráter político. Vários foram os tumultos que modificaram a ordem social com a mutação dos poderes, tendo grande influência em toda a organização social, às vezes rompendo usos e costumes, transformando os valores morais dia a dia, se fazendo presente nos conflitos de interesse estratificando com força de lei. Leis descabidas rumo a uma nova civilização.
DIREITO PENAL MÍNIMO VERSUS DIREITO PENAL EXCELSO
O âmbito do “penal” é delimitado pela pena e o conceito de “pena” é definido por um ato de batismo legislativo. Sendo assim, cabe a este decidir a projeção do saber penal, decidindo o que fica dentro e fora do discurso jurídico-penal[31].
O discurso estéril da segurança jurídica é a do Estado despótico, pois se este pode garantir uma certeza afirmando uma única vontade, é bem verdade que essa mesma vontade só é certa e exata momentaneamente, revelando uma referência à certeza puramente ilusória e enganosa[32].
Inelutavelmente o Direito Penal estampa a dualidade, impondo o caráter limitativo ou ilimitativo do poder punitivo.
Contra o arbítrio existem algumas garantias como não admitir qualquer imposição de pena sem que se produza a comissão (ação) de um delito, sua devida previsão legal, a plena necessidade de sua punição, seus efeitos, a imputabilidade, culpabilidade, as provas produzidas eloqüentemente em um processo público e contraditório mediante procedimentos legalmente preestabelecidos. Ex adverso, o modelo inquisitório (legibus soluti) desvela a anormalidade das provas sem condições judicialmente comprováveis, às vezes sem o respaldo da lei.
Trata-se, evidentemente da máxima ou mínima intervenção do Estado na supressão de direitos inerentes ao cidadão (trabalho, saúde, alimentação, habitação, instrução entre outros), sobretudo na restrição das liberdades negativas. Sufragando da mesma idéia Ferrajoli, onde é possível o Estado social máximo conviver com o direito penal mínimo, sendo esta conjunção expressa no conjunto de deveres públicos dos órgãos estatais que caracterizam o Estado de Direito em sua forma mais complexa e desenvolvida, idônea a maximizar os vínculos do poder estatal e de suas funções de garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos [33].
É preciso dar à pena toda conformidade possível com a natureza do delito, sendo que a punição ideal seria aquela transparente ao crime que sanciona, pois:
Tirar ao castigo o delito é a melhor maneira de proporcionar punição ao crime. Se for isso do triunfo da justiça, é igualmente o triunfo da liberdade[34].
No que tange à organização criminosa, o caminhar direciona-se ao Direito Penal Excelso, caracterizado por um estalo desproporcional da intervenção estatal na criação de leis, com o fito de abalizar a carência de instrumentos de tutela e de controle político e administrativo mais adequado.
Os fatos que visam excluir ou reduzir a intervenção penal, como a presunção de inocência, o ônus da prova a cargo da acusação, o princípio in dúbio pro reo, , a analogia in bonam partem, a interpretação restritiva dos elementos típicos penais e a extensiva das circunstâncias eximentes ou atenuantes são tidos pelos que querem legitimar o Direito Penal em nome da segurança como “perigosos”. Em contrapartida a certeza destes (dos filiados ao Estado Penal Excelso) visam à culpabilidade de todos, mesmo que seja à mercê de dúvidas, pouco importando se sobre algum inocente sobrevirá o “jugo penoso”. A prova da culpabilidade na prática resta comprometida, sendo este âmbito de extrema relevância no campo da organização criminosa, pois inclui a “cultura da supressão da prova” [35].
No Brasil, o legislador ao se desvencilhar do Projeto nº 3519/89, procurou tutelar o crime organizado pelo advento da lei 9034/95, não estabelecendo conceito idôneo algum. Não havendo diferenciações entre crime organizado e criminalidade de massa[36], onde ambas se distinguem quanto à origem, potencial de ameaça e possibilidade de atuação estatal. Confunde-se, portanto, quadrilha ou bando com o crime organizado, comprometendo a taxatividade do princípio da reserva legal[37]. Lembremos que nem toda forma de crime praticada em grupo pode ser comparada ou até mesmo colocada no tratamento ao crime organizado, deve-se exigir para que se insira neste patamar uma estrutura hierárquica, ampla distribuição de tarefas, planejamento em longo prazo, entre outros.
Para a criminalidade organizada, novas tipificações foram auferidas (ad exemplum: lavagem de dinheiro), consagrando os tipos abertos, onde há a ampliação dos crimes de perigo. O juiz transformou-se em investigador e depositário de provas, aviltando o sistema acusatório, a imparcialidade e a publicidade.
Com a intenção de diminuir dúvidas e eventualidades foi editada a Lei 10217/01, alterando a redação do art 1º da Lei 9034/95[38]. Engano, não dirimiu! Acentuou a violação do princípio da proporcionalidade, pois a referida lei ainda induz os operadores jurídicos à conclusão de que “quadrilha ou bando” é sempre praticado por organizações criminosas, logo, deve-se alcançar o tratamento explicitado na Lei 9034/95.
A conceituação chega ao extremo ao tentar, o legislador, diferenciar “associações” de “organizações”, certamente devido ao art 14 da Lei 6368/76 (Lei de Tóxicos)[39]. A dificuldade do legislador é imensa, resultando em traição[40].
Óbvio o enlaçamento do direito penal corresponder ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos como a um ideal de racionalidade e certeza, pois uma norma informada pela razão é o critério do favor rei, que permite intervenções de exclusão ou de atenuação da responsabilidade quando houver incerteza quanto aos pressupostos cognitivos da pena.
Toda investigação inquisitiva a procura de “verdades” irreais leva ao ápice as opiniões subjetivas, aos preconceitos, a toda espécie de condenação direcionada ao devaneio, como bem explicita Hassemer[41].
O objetivo do Direito Penal tem como uma de suas características profundas e notoriamente olvidadas, a minimização da violência da sociedade[42], a proteção do mais débil[43], na direção punitiva/perseguidora, a interpretação deve ter força centrípeta: a imantação é para o núcleo do texto, respectivamente[44]. No ensinamento de Ferrajoli tanto o delito quanto a vingança constituem um violento conflito mediante o uso da força. É a segurança coletiva, no sentido de que é garantida pela ordem jurídica enquanto ordem social.
A segurança coletiva visa a paz, pois a paz é ausência do emprego da força física. Determinando os pressupostos sob os quais deve recorrer-se ao emprego da força e os indivíduos pelos quais tais empregos devem ser efetivados, instituindo um monopólio da coerção por parte da comunidade, a ordem jurídica estabelece a paz nessa comunidade por ela mesma constituída[45].
A paz do Direito, contudo, é uma paz relativa e não uma paz absoluta, pois o Direito não exclui o uso da força, isto é, a coação física exercida por um indivíduo contra o outro. Não constitui uma ordem isenta de coação, tal como exige um anarquismo utópico[46]. O Direito é uma ordem de coerção e, assim uma ordem de segurança, ou seja, uma ordem de paz, onde a prevenção dos delitos e as penas arbitrárias se entrelaçam e legitimam a necessidade política do direito penal enquanto instrumento de tutela dos direitos fundamentais, sendo esta legitimidade “garantista” procurando guarida nos vínculos impostos pela lei à função punitiva e à tutela dos direitos de todos.
Daí reside a leniência entre democracia e garantismo. Este acarreta a tutela dos direitos fundamentais, cujo desempenho é o objetivo justificante do direito penal, mesmo contra os interesses da maioria, resguardando os cidadãos de todas as arbitrariedades e/ou atrocidades das punições visando a dignidade do acusado (réu, imputado, condenado). A plena justificação do direito penal só ocorre quando o conjunto das violências (arbitrariedades) for maior às violências caracterizadas pelos delitos não prevenidos com suas penas cominadas. Sendo que a causa de justificação da pena é o seu mal menor (a menos angustiosa).
Consoante a lição de Beccaria, o fim das penas não é atormentar e afligir o ser sensível, nem desfazer o delito já cometido. A finalidade da pena é impedir que o réu cause novos danos aos seus semelhantes. Necessário, portanto, selecionar quais penas e seus modos de aplicação nos ditames do principio da proporcionalidade, a fim de causar maior impressão no espírito dos homens e menos tormentosa no corpo do réu [47].
O ENGAJAMENTO GARANTISTA NO CONTEXTO ATUAL
O garantismo penal é uma teoria de junção entre normatividade e realidade, operando a égide da legitimação, exigindo dos juízes e juristas em geral, uma permanente visão crítica sobre as leis vigentes, sugerindo aos juristas a tarefa de denunciar as antinomias existentes.
É, sobretudo, o ápice para os fins da legitimação e a perda desta no âmbito ético-político do direito e do Estado[48]. Sob o plano epistemológico se caracteriza como sistema de poder mínimo; sob o plano político como uma técnica de tutela idônea com o fito de minimizar a violência e maximizar a liberdade; sob o plano jurídico é um sistema de vínculos impostos ao ius puniendi a garantia dos direitos dos cidadãos. E nos ensinamentos do mestre de Camerino:
Una Constitución puede ser mucho avanzada en vista de los principios y derechos sancionados y no a pasar de un pedazo de papel, caso haya defectos de técnicas coercitivas (garantías) que propicien él controle y la neutralización del poder y del derecho ilegitimo”[49].
Essa visão crítica tem por escopo o direito positivo vigente, retirando a legitimidade do ponto de vista normativo do direito válido, os contornos antiliberais e as passagens de arbítrio do direito em destaque. A perspectiva garantista requer a dúvida, o espírito crítico e a incerteza permanente sobre a validade das leis, suas aplicações, bem como a consciência do caráter de suas fontes de legitimação jurídica[50]. Além de ser uma crítica às ideologias políticas que confundem a justiça com o direito e às ideologias que confundem validade com o vigor, a efetividade com a validade[51].
As normas constitucionais dos direitos fundamentais dos cidadãos são verdadeiros vínculos funcionais que condicionam a validade jurídica da atividade do Estado, haja vista o primado axiológico do valor da pessoa, tido por divergentes pontos de vista e diversas identidades.
Daí se retira o valor da tolerância que consiste no respeito destes pontos de vistas e identidades, que é um corolário do nosso princípio da inadmissibilidade das normas penais constitutivas. A intolerância é o desvalor associado a uma pessoa qualquer em força de sua particular identidade[52], imbuídas nas violações das pessoas por meio de lesões intolerantes de suas personalidades e/ou identidades.
Na visão de Ferrajoli, o princípio da tolerância constitui o moderno princípio da igualdade jurídica, onde se inclui a diferença pessoal e exclui as diferenças sociais, estampada na Carta Magna em seu artigo 5 º “caput”: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.[53]
A igualdade neste sentido é o valor atribuído às diferentes identidades que fazem de qualquer pessoa um indivíduo diverso dos outros e de qualquer indivíduo uma pessoa como todas as outras. As desigualdades que efetivamente são intoleráveis destacam-se aquelas que obstam a vida, liberdade, sobrevivência e o desenvolvimento das outras pessoas.
Ao contrário, assim se espelha a concepção lockeana do delinqüente como “criatura nociva” com referência aos “princípios da natureza humana”, que tendo renunciado à razão pode ser destruído como um leão, ou seja, como uma daquelas feras com os quais os homens não podem se associar ou se garantir.
Posiciona-se Rousseau:
Cette egalité, disent-ils, est une chimerè de speculation qui ne peut exister dans la pratique. Mais si l’abus et inévitable, s’ensuit-il qu’il ne faille pas au moins le régler? C’est précisément parce que la force des choses tend toujours à detruire l’égalité que la force de la législation doit toujours tendre à la mantenir[54].
Discrepância existe quando nos remetemos à igualdade formal e substancial. A título de esclarecimento, a primeira consigna que os homens devem ser considerados iguais pois são diversos, ou seja, delineadas artificialmente suas diferenças (sexo, raça, credo, opinião, política, entre outros), enquanto que a segunda considera que os homens devem ser tratados tão iguais quanto possíveis, e assim sendo, não se deve prescindir do fato de que são sociais e economicamente desiguais.
Independentemente disso, a igualdade é uma só e está inserida nos direitos fundamentais.
O direito de igualdade é concebido partindo do pressuposto da liberdade e da fraternidade comprometida com os direitos sociais[55]. Os direitos fundamentais são, por sua vez, aqueles direitos necessários para satisfazer o valor das pessoas e realizar-lhes a igualdade.
A liberdade tratada é aquela reconhecida a todos independentemente de qualquer título (leia-se situação) e exercitadas em comportamentos meramente lícitos, que não interfiram juridicamente na esfera de outros sujeitos.
Os direitos fundamentais são indivisíveis, haja vista que a sua falta ou injusta privação a dano de quem quer que seja, viola os valores da pessoa. Esses direitos são invioláveis, inalienáveis e indisponíveis, no sentido de que a sua violação justifica a violência, não se esquecendo de que a sociedade e os indivíduos são separados do Estado e a moral é separada do Direito.
Importante salientar a problemática do “direito subjetivo” concebido nos séculos XVII e XVIII, onde os direitos fundamentais foram enquadrados nos “direitos públicos subjetivos” (droits naturales et imprescritibles de l’homme).
Na doutrina alemã o “direito subjetivo” é abarcado pela potestas agendi, país este direcionado às abstrações idealistas, todos por produtos de uma auto-obrigação/limitação do Estado, sendo este que funda os direitos vitais do cidadão, não se configurando mais como fundamentais[56].
Mas uma real fundamentação dos direitos fundamentais exigia uma distinção eloqüente dos direitos subjetivos. Os direitos sociais são predetermináveis os conteúdos, mas não os limites, variáveis com o tempo, lugar, circunstância, o grau de desenvolvimento econômico e civil, bem como as carências e expectativas por eles expressas[57].
Assim sendo, os direitos fundamentais correspondem a valores e a carências vitais da pessoa historicamente e culturalmente determinados. E é da sua qualidade, quantidade e grau de garantia a que pode ser definido o sentido de uma democracia e pode ser mensurado o progresso.
E no âmbito do direito penal? Os direitos de liberdade diante de uma ofensa a outros direitos fundamentais (devem) ser limitados?
Deve-se levar em conta a individualização dos bens jurídicos que realmente mereçam uma tutela penal, os meios para sanção e as técnicas processuais devem ter fins justificados, não se olvidando dos princípios de direito penal mínimo catalogados nas garantias penais e processuais[58].
Sob a óptica garantista, dois princípios carregam um caráter geral, o princípio da legalidade e da submissão à jurisdição. Ambas estão bem longe de serem garantidas de maneira eficaz, sendo que num Estado Democrático de Direito, esses direitos, mesmo que incertos, necessitam ser tutelados. E é exatamente neste ponto que a prática e a administração da justiça falha por faltar uma legalidade adequada.
A tutela substancial dos direitos fundamentais sancionados na Constituição exige do juiz uma discricionariedade e até mesmo uma engenharia judiciária que lhe consinta a adjudicação para além da letra e lacunas da lei ordinária. Sobre este aspecto a crise hodierna da lei, que é crise, por um âmbito, da razão jurídica e, por outro, dos legisladores e da política, se reflete sobre a seara judicial, minando-se a legitimidade no mesmo diapasão em que parecem acrescer-lhe, precariamente o poder discricionário e a centralização[59].
Na visão de Ferrajoli:
Apenas um remodelamento do papel da lei, sustentado por uma renovada e atualizada ciência da legislação, pode reestruturar e instaurar uma legalidade garantista, ancorando-a solidamente à tutela dos direitos fundamentais. Obviamente isto não quer dizer exumar antigas ilusões iluministas de perfeita racionalidade. Deve-se antes, assistir-nos a plena consciência da imperfeição inevitável de qualquer sistema jurídico e, além do mais, daqueles sistemas como Estados democráticos de Direito, que incorporam em suas Constituições valores e expectativas altas e até mesmo utópicas, mas de tudo realizáveis[60].
Os ordenamentos, em geral, obrigam seus cidadãos a obedecer às leis injustas[61]?
A priori, toda obrigação existe para que seja observada, mas não se deve generalizar e colocar em pauta a norma (obrigação/ sanção) tida por válida juridicamente sendo necessariamente moralmente justa.
Há os que compartilham da lição de que a obediência é a obrigação moral de obedecer às leis supondo o aporte de sua efetiva visão à obtenção da ordem, onde este deva entrar em conflito com os demais valores, como a liberdade, dignidade, vida, entre outros.[62]
Bobbio acredita que esta obrigação é condicionada por não conflitar com outros valores, ou seja, ela não é uma obrigação formal, independentemente do conteúdo das leis, mas uma obrigação semiformal, condicionada ao ordenamento que convalida aquelas normas que a nossa consciência moral reputa justas. Ferrajoli, por sua vez, afirma a obrigatoriedade jurídica apoiada na eficácia dissuasiva da sanção, prevalecendo no plano moral os valores superiores àqueles das ordens e que são estes valores, e não o valor da ordem, que justificam moralmente a obediência e a desobediência[63].
Nenhuma garantia jurídica pode reger-se só pelas normas. Nenhum direito fundamental poderá sobreviver se não for apoiado pela luta da parte de quem é seu titular, como nos explicita João Baptista Herkenhoff.
O Direito vigente é um direito conservador. No Brasil, as leis asseguram privilégios seculares, geração sobre geração, quando não criam novos privilégios (…) Os vales não pertencem aos que os podem irrigar, nem a terra aos que lançam nela os seus trabalhos.[64].
Trata-se de amor próprio jurídico derivado da luta pela defesa e atuação dos direitos vitais próprios e de outrem, como assinalou La Veleye sobre a obra de Rudolf Von Ihering[65]. Sendo através da incessante luta, constante prática contra as arbitrariedades a possível garantia e eficaz valorização da pessoa, delineando a transformação, pois se rebelar é justo quando é injusta a lei[66]. É também lugar de elaboração e reivindicação de novos direitos, pois os direitos fundamentais nasceram dos conflitos, conquistados através de revoluções, sacrifícios, coragem, sendo frutos de opções e expressões de carências históricas.
FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL MUNDIAL PENAL
Muitos criminalistas[67] insistem em admitir que o fenômeno “crime organizado” deve ser combatido com guerra!
Lembremos que os princípios que regem o direito de guerra são dois: o da necessidade e o da humanidade.
O desconhecimento dos princípios humanitários, que deram origem à matéria, representaria uma volta a barbaria em matéria de guerra; seria a negação do direito de guerra. A necessidade é igualmente conditio sine qua non: um estado só ataca “o outro” como ultima ratio, só depois que esgotou todos os recursos para alcançar pacificamente ou até por meio coercitivo determinado objetivo nacional; o agredido, é óbvio, se vê na necessidade de se defender. Sem a necessidade, não haveria guerra[68].
Mas há outro critério que deve ser mesclado ao do princípio da necessidade, é este o da utilidade. Consoante esta limitação, é inútil usar uma arma mortífera quando se sabe que o inimigo poderá fazer o mesmo[69].
Ante a explosão legiferante e as conseqüentes transformações na sociedade atual, deve-se constatar, desde já, o trilhar do caminho rumo a uma eficaz e profunda reforma do direito material e processual penal com a finalidade de proteger os bens jurídicos altamente relevantes dentro dos parâmetros que refletem as verdadeiras necessidades do mundo em que estamos inseridos.
Nos lindes promocionais em que vivemos, presenciamos que o estado perdeu com a globalização no que tange à sua autonomia decisória[70] e o arcabouço jurídico viu comprometidas sua unidade e organicidade. Sendo assim, a jurisdição restou presa aos limites da territorialidade, na mesma proporção em que as barreiras geográficas vão sendo ocupadas pela expansão da modernidade. O processo judicial trabalha com o tempo diferido, enquanto o tempo da economia é real.
A única conclusão que se retira de tais perspectivas é que o judiciário está atuando com um arcabouço tradicional, instrumentos jurisdicionais não adequados aos métodos de atuação do crime transnacional. A globalização econômica tem um efeito paralisante perante o estado, pois neutraliza qualquer movimento no sentido da autodefesa e da resistência às suas exigências desumanas ou aos seus efeitos galopantes[71].
E é devido a estas constantes mudanças do mundo que as advertências voltadas a um tratamento especialíssimo quanto ao papel regulador do estado resta válida.
Atos de terrorismo político/ideológico abalaram diversos países no mundo, o tráfico de drogas tomou proporções gigantescas. Diante desse fato, os mass media começaram a exacerbar a situação verdadeira, incutindo a idéia de que seria necessária uma luta sem precedentes, caracterizado pela perda de tradicionais garantias do direito penal e processo penal[72]. Assim, alvoreceu pela manipulação política o movimento “law and order”.
O que se propõe é a (re) estabilização da lei e ordem como corolários da destruição completa do crime e do criminoso. Assim, o crime é tido por fenômeno patológico e a criminalidade como uma enfermidade contagiosa. Esta postura de cunho estritamente ideológico tem sua origem no pavor disseminado pela mídia e na desconfiança generalizada nos órgãos institucionalizados de controle. Eis a preocupação de Cervini:
Resultan innegables los efectos criminógenos que produce esa lamentable ausencia del estado. Tanto en las fájelas de río de enero, como en los ‘barrios jóvenes’ de la ciudad de méxico o las ‘vilas miserias’ de buenos aires, las funciones básicas que el estado no cumple son asumidas con mayor o menor despliegue, por grupos delincuentes. Sobre la transcendencia del fenómeno de la ausencia del estado en la realidad brasileña resultan muy ilustrativos los trabajos de campo de la antropóloga alba zuluar. El vacío dejado por el estado en áreas de salud, educación, transporte, comunicaciones, seguridad publica, asistencia en caso de cataclismos e inundaciones e hasta cometidos básicos de justicia, resulta progresivamente ocupado por grupos delictivos, organizados preferentemente en torno a la explotación del comercio de las drogas ilícitas. Estos grupos terminan controlando esas comunidades ausentes de todo control oficial, pues en su seno dan las condiciones propicias para el desarrollo del “asistencialismo” (versión privada del ‘clientelismo’) que conduce a un reconocimiento comunitario cuyo contenido puede variar desde una cierta admiración a un acatamiento silencioso, en consonancia a la “generosidad” o “terror” que se ejerza prevalentemente sobre la comunidad[73].
E como bem assinala antonio garcia pablos de Mmolina:
Em tempos de crise, o medo ao delito costuma ser manipulado por opções políticas concretas, capazes de instrumentalizar, a seu serviço, conhecidos mecanismos psicossociais[74].
Num patamar muito próximo da preventividade[75], a incessante guerra contra o crime tem seus intuitos imbuídos no “moderno” , como instrumento social funcional para a solução dos problemas, criando tipos penais novos, que se elevem as penas ao máximo tolerável, que se suprime os direitos dos processados e que se introduza, mais e mais, leis especiais para os delinqüentes de alta periculosidade.
A mídia como espelho distorcido da realidade, conseguiu abalar drasticamente toda a sociedade com tamanho irracionalismo, pois o que interessa do ponto de vista ideológico é criar o pânico para a insegurança do cidadão.
O movimento em destaque adota uma política criminal com suporte na:
A) pena justificada como um castigo e uma retribuição no velho sentido; b) os delitos graves hão de ser castigados com penas severas e duradouras (morte e privação de liberdade de longa duração); c) as penas privativas de liberdade impostas por crimes violentos devem ser compridos em estabelecimento de máxima segurança, submetendo o condenado e um regime excepcional de severidade distinto aos dos demais condenados; d) o âmbito da prisão provisória deve ampliar-se de forma que suponha uma imediata resposta ao delito e por fim; e) deve haver uma diminuição dos poderes individuais do juiz e um menor controle judicial na execução que ficará a cargo, quase exclusivamente, das autoridades penitenciárias (!)[76].
O princípio do estado de direito, em sentido formal, pertine com a reserva legal e, em sentido material, com a salvaguarda da dignidade humana e a limitação do direito penal às intervenções necessárias (ultima ratio)[77]. E como conseqüência do estado ocorre a vinculação objetiva de toda política criminal, de tal sorte que não se deve decidir sobre o merecimento de pena com critérios sentimentais determinados por opiniões pré-concebidas, senão somente frente à necessidade de proteção da sociedade.
O estado, como todo ser vivo, antes de se deixar matar, deve se defender, observando os princípios fundamentais e legitimando o direito penal, como instrumento de transformação social e atuação política[78].
As proibições dos comportamentos delituosos pelo legislador, em verdade soma-se a um altíssimo custo de injustiças, dependendo do funcionamento concreto de um sistema penal. O brasileiro, bem como em vários outros países presencia-se aquela “cifra negra” formada por inúmeros inocentes processados e punidos.
Quanto mais alto o custo das penas, maior sua capacidade de prevenção, porém, menor será a justificação quanto aos males prevenidos. E ainda, menos ampla se encontrará a esfera dos bens jurídicos realmente relevantes no âmbito penal.
A própria legitimação se encontra aparente no que concerne ao estado, onde se vê a mais vil manifestação de violência, sempre suscetível ao arbítrio. A pena não serve apenas para prevenir os delitos injustos, mas antes e acima de tudo, prevenir as injustas punições.
Lembremos que a maioria das leis não é mais do que privilégios, ou seja, um tributo que todos pagam para o conforto de alguns. Consoante o mestre ferrajoli, a justiça “perfeita” não é deste mundo, e qualquer pretensão de tê-la realizado por parte de um sistema penal é ilusória e sinal das mais perigosas imperfeições: a vocação totalitária.
O ilícito deve se mostrar como condição normativa somente necessária, contudo, não resta suficiente para a aplicação da pena pois esta pode exigir condições anteriores como a ausência de eximentes, as condições de punibilidade e procedibilidade. Logo, a ameaça legal da retribuição penal pode somente prevenir a prática de fatos delituosos, não a subsistência das condições pessoais ou de status, como, v.g, a periculosidade ou real capacidade para delinqüir.
A garantia do caráter retributivo da pena (em virtude da qual só se pode ser punido pelo que se fez e não pelo o que se é), serve para excluir , à margem de qualquer possível possibilidade preventiva, a punição de um inocente.
Após o processo de codificação do direito penal e da incorporação do princípio da legalidade aos ordenamentos evoluídos como critério de legitimação jurídica, as condições válidas são aquelas em que se considera “delito” todos e somente os previstos por uma lei válida como pressupostos de uma pena (nullum crimen sine lege). Assim são classificados os delitos e contravenções em razão do tipo da pena: reclusão, detenção, multa, entre outros.
Sendo assim, o princípio da legalidade penal incorporado ao direito positivo moderno é causa de legitimação e garantia irrenunciável quanto ao arbítrio punitivo e tem valor fundamental de princípio de justiça. Tem o direito penal vigente como objeto exaustivo e exclusivo da ciência penal, estabelecendo que somente as leis (e não a moral) digam o que verdadeiramente se configura “delito”.
Presencia-se nos dias atuais o caráter moralista no que tange à legislação mundial referente a certos tipos penais. São os delitos considerados valoráveis por meio de juízos de valor.
Contrários, portanto, ao modelo garantista, que reside no fato de que os delitos estejam predeterminados pela lei de maneira taxativa. Assim, modelos penais são caracterizados por figuras elásticas e indeterminadas, por espaços de fato, quando não de direito, abertos à analogia in malam partem pelo caráter central atribuído às investigações acerca da pessoa do réu e ao juízo sobre sua periculosidade.
Doutrina penal “nazista” do tipo do autor (tätertyp), que não identifica o desvio punível com as figuras normativas dos delitos (o homicídio, o furto…), mas se vale das figuras normativas do réu (o tipo subjetivo do homicida, do ladrão…), dando relevância aos delitos somente enquanto sintomas de personalidade anti-sociais, desleais ou criminosas a intuir, como diz o artigo 2º do código penal nazista, sobre a base do “são sentimento do povo”.
Seu combate se dá por meio de medidas de defasa social de caráter terapêutico, indicando os antecedentes e todos os sujeitos etiquetados de um modo ou de outro como desocupados, vagabundos, viciados, traficantes, etc.
Lembremos que a lei penal, na medida em que incide na liberdade pessoal dos cidadãos, está obrigada a vincular a si mesma a forma por meio da verdade jurídica exigida às motivações judiciais, a substância e o conteúdo do ato que a elas se aplicam.
Atente-se ao fato de que a analogia antecipada deve, igualmente, ser extirpada. Esta carece de denotação determinada. Bem como, a descodificação expressada na inflação do direito penal mundial como instrumento de substituição concernente a outras funções de controle, na acumulação aluvial de uma desmesurada legislação fragmentária, na disfunção da linguagem legal já dirigidas a privilegiar formulações equívocas, obscuras e comprometidas.
É bem certo que a questão da pena de morte ainda se encontra presente em quase todo o mundo. Somente 28 estados a aboliram por completo.
A alemanha a baniu de sua legislação de forma absoluta, por imperativo constitucional, bem como a grã-bretanha e a frança. Em 129 países, dentre os quais grande parte dos estados unidos, países africanos e asiáticos, a pena de morte é aplicada em tempo de paz. Em outros 18 países, como a espanha e o brasil, está prevista só para o tempo de guerra.
S.s paulo vi, em 1975, solicitou clemência para os condenados de morte na espanha. Do ponto de vista católico, a posição que justifica a pena de morte provém de são tomás de aquino que adotava uma posição organicista.
O juiz douglas, o mais antigo magistrado da suprema corte norte-americana, em seu voto de 1972, formulava uma reflexão digna de consideração. Afirmava que a pena de morte é contrária ao princípio da igualdade perante a lei, fundamentando-se em critérios estatísticos, que revelam que ela foi preferentemente aplicada a negros e a homens socialmente marginalizados.
Para o direito penal contemporâneo, a pena deve ter uma função preventiva especial particular[79]. Não pode, portanto, consistir em qualquer constrangimento físico, pois o constrangimento material não motiva a conduta, apenas a impede, o que fere a autonomia ética do homem[80].
Não deve consistir em “reeducação” o/ou “tratamento” que tenha por intuito visualizar o homem como um ser carente de “moral”.
Ora, o delinqüente é uma pessoa com capacidade jurídica, a qual não se pode mirar “de cima” e sim em um plano de igualdade frente à dignidade da pessoa[81]. Esta prevenção não deve ser rígida, mas sim a que se traduz na pluralidade de objetivos concretos, que devem se adequar a cada situação real. Devendo permitir uma pluralidade de soluções que possibilite selecionar o sentido mais hábil às características do conflito manifestado na criminalização.
A pena de morte não cumpre este papel, mas tão somente a de suprimir o homem, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra!
Características gerais das organizações criminosas
O termo transnacionalizado do crime se deve a decadência do comunismo no leste e a unificação européia, onde as organizações criminosas começaram a se expandir.
Verificando que a crescente ameaça do crime organizado representa um desfio que exige cooperação internacional cada vez mais eficaz, assim várias instituições política, social e econômicas vem empreendendo esforços consideráveis para a erradicação do crime transnacionalizado.
Cabe ressaltar que a estratégia global pressupõe um conjunto de diretivas de natureza criminal, que se implementam e desenvolvem com distinto nível de flexibilidade, sempre respondendo a esse plano diretor comum ou as referidas pautas unificadas gerais ou parciais, operando dentro de um marco transnacional.
As atividades das organizações criminosas se amoldam às circunstâncias de cada país.
Na Espanha e no Reino Unido, a existência de uma regulamentação sobre o consumo de drogas, o jogo e a prostituição faz com que tais grupos sejam distintos do Japão, onde as organizações se dedicam ao controle do vício e da extorsão.
Já nos países considerados de Terceiro Mundo, além da exploração da droga, o crime organizado se dedica à corrupção de funcionários públicos e políticos.
Mas há de se notar traços comuns entre as origens das organizações criminosas nos diferentes países. A maioria teve nascedouro em movimentos populares, o que facilitou sua aceitação na comunidade local, assim como o recrutamento de voluntários para o exercício de atividades ilícitas, muitas passando a atuar no vácuo de algumas “proibições” estatais, tais como: exploração, jogos de azar e venda de armas sofisticadas; contando sempre com a conivência do Estado (e seus agentes), impondo suas leis pelo emprego da ameaça e violência e voltando-se para os delatores e integrantes de grupos concorrentes.
Algumas adotaram estratégias preventivas, como a mobilização e sensibilização do público através dos programas de educação a cidadania[82]; outras com promoção de pesquisas sobre as estruturas do crime organizado; programas para dissuadir o delinqüente, reduzindo suas oportunidades de cometer infrações; melhoria da eficácia da repressão e administração da justiça penal, fundada em procedimentos mais justos para se reforçar os direitos do homem e ainda, uma melhoria nas qualificações profissionais dos agentes permitindo uma troca de informações sobre as técnicas já comprovadas e as novas tecnologias.
Muitos países adotaram novos métodos de inquérito policial, onde as ordens emanadas das autoridades competentes prevêem a busca e apreensão de qualquer documento relacionado às contas de uma pessoa determinada ou sobre toda e qualquer transação de mercadoria suspeita, onde as instituições não primam pelo princípio da confidenciabilidade perante uma ordem emitida pela autoridade judicial competente.
As multinacionais do crime[83] perseguem o controle social e a anulação da cidadania. São conectadas por meio da network, criando o seu Mercado Comum que movimenta ¼ do dinheiro em circulação no mundo.
A força de cada organização não é mais aferida pelo controle de porção territorial ou matriz territorial, mas pela economia criminal movimentada e nets planetárias de circulação de drogas, contrabando, tráfico de pessoas, entre outros.
O lucro obtido é deslocado para fundos sujos de capitais que, reciclados de modo a esconder a origem ilícita, são empregados em legais atividades empresariais[84].
Inclusive deve-se considerar que as organizações geram cifras que superam os PIBs da grande maioria dos países, a tal ponto a ser considerado o oitavo PIB do mundo[85].
Tem caráter transnacional na medida que não respeita as fronteiras de cada país; detém um extraordinário poder em estratégia global e numa estrutura organizativa que lhe permite aproveitar das fraquezas estruturais do sistema penal; tem grande força de expansão com condutas sem vítimas ou estas difusas; dispõe de meios instrumentais de moderna tecnologia; apresenta um esquema de conexões com outros grupos delinqüenciais e uma rede de ligações com quadros sociais, econômicos e pol´ticos da sociedade, além de fragilizar os poderes do Estado[86].
As organizações consubstanciam-se em um planejamento empresarial, com firmas constituídas formalmente ou não[87]. A hierarquia permite um controle rígido nas divisões de funções. Os patamares desta hierarquia tomam conhecimento somente dos fatos necessários para sua operalização, impedindo a infiltração policial e informações relevantes[88].
Também se impõem pelo alto poder de intimidação e suborno, não objetivando a busca do poder estatal, mas o comprometimento dos agentes públicos e infiltração de seus homens, além de pressionar políticos com chantagem, até chegar ao intercâmbio de favores que encontra suas bases no clientelismo.
Após obterem os primeiros lucros dessas atividades, estruturam-se em empreendimentos vultuosos e lícitos, para que o restante do dinheiro possa ser capitalizado legalmente, transformando-se em dinheiro limpo.
Por vezes, as organizações se aproveitam da ausência do Estado em aspectos sociais e assume uma posição paternalista[89], possibilitando a simpatia da camada desprotegida. Essa estratégia é muito utilizada no Rio de Janeiro pela organização (facção) Comando Vermelho.
Assim ocupa as lacunas de assistência social que o Estado não supre, ao sabor da crise econômica ou da insensibilidade política.
É bem certo que a dinâmica das relações sociais, ao tempo em que contribui para a evolução da sociedade, noutra provoca um avanço da criminalidade, pois o modelo econômico-político imposto aos países que dependem economicamente do bloco “primeiro-mundo” é absurdamente injusto e desleal, passando a desconsiderar as peculiaridades de cada país e trazendo como conseqüência um agravamento da situação de pobreza e miséria desses povos[90].
A camada social menos favorecida não obteve acesso a uma qualificação adequada. Essa situação, aliada a má distribuição de renda; à ausência do Estado em determinadas áreas sociais; à má educação: à precariedade da saúde; à falta de assistência social e segurança pública torna a proliferação do crime organizado mais fértil.
Devido a estas ausências surge o Estado Paralelo, caracterizado por regras próprias, com seu próprio senso de governo, utilizando recursos de força e poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo a sociologia o problema social é um comportamento encarado sempre dentro de uma ordem social, comparado a uma violação de normas aceitas e/ou aprovadas[91].
Assim, não importa as pessoas serem complexas ou ter uma personalidade intrincada, mas sim que as ações devam ser explicitadas, da mesma forma que qualquer outro acontecimento do mundo natural. Sua conduta pode ser descrita, observada, contada, medida e relacionada independentemente das vontades, das opções, das crenças e dos valores dos indivíduos[92].
As pessoas envolvidas com o crime organizado o fazem como se fosse uma ocupação normal ou profissão para sobreviver, ascender socialmente ou ter influência política[93]. O recrutamento é feito na base de parentesco, amizade ou contatos com as camadas mais baixas da sociedade, onde as atividades do crime organizado são tidas como responsabilidade, como fonte de renda e prestígio social.
O crime organizado possui raízes históricas antigas, é um tipo de sistema característico da sociedade democrática, pois sua estrutura e atividade refletem e reforçam as desigualdades, as complexidades dos padrões morais e dos valores de determinada sociedade.
Sendo assim, esse ato de empreendimento é bem-sucedido, porque dá ao público o que este quer, procura satisfazer a vontade das pessoas a se relacionarem mais e mais com ele, colocando em questão as próprias bases da ordem social existente, a corrupção das autoridades, o desvio de recursos e a violação da soberania política de algumas nações.
Extremamente preocupados com a decadência moral e a degeneração de valores, todos interligados às drogas, vários países acataram recomendações e elaboraram legislações nacionais contra as substâncias ilícitas, salvo para “fins médicos legítimos”.
Contudo, toda a repressão apenas serviu para aumentar o uso e a diversificação das drogas ilícitas, na mesma proporção do aumento das penas e dos esforços institucionais para conter o crime e o delinqüente[94].
Se o debate não se travar em condições propícias à construção participativa de soluções da sociedade, não haverá democracia[95], pois se presencia os mass media ocultando seus interesses reais e maculando a verdade dos fatos e, igualmente, as pessoas sem alcance a um nível de educação condizente para a compreensão dos mecanismos políticos, econômicos e sociais em que está inserido.
Contrario sensu, os “patamares hierárquicos” se resolvem em reformas e leis especiais, sem a efetiva mudança (transformação) no comportamento social do cidadão visando a melhoria de sua condição. É o discurso desvirtuado[96] que se encontra com a utilização da máscara que disfarça a verdadeira intenção escusa.
Olvidado, portanto, o papel do Estado de sempre ser corroborador da realização do indivíduo enquanto pessoa humana, aquela idéia de dignidade de que são dotadas todas as pessoas, protegidas pela vestidura da democracia.
Advogada. Especialista em Direito Internacional e Penal (Universidade Federal de Goiás).
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