1. O HABEAS CORPUS
O sentido etimológico da palavra habeas corpus, termo de origem latina, é “tome seu corpo”. Segundo Heráclito Antônio Mossin (1998, p. 41), a palavra habeas corpus significa “ordem ao carcereiro ou detentor de uma pessoa de apresentá-la, e de indicar o dia e a causa da prisão, a fim de que ela faça, de que se submeta e receba o que for julgado correto pelo juiz”.
Segundo Mirabete (1994 apud Mossin, 1998), “a expressão habeas corpus indica a essência do instituto, pois, literalmente significa ‘tome seu corpo’, isto é, tome a pessoa presa e apresente ao juiz, para julgamento do caso”.
Guilherme Nucci (2006, p. 895) nos ensina que hodiernamente não há necessidade de apresentação do preso ao juiz, mas este, incumbido da função jurisdicional, possui a obrigação de analisar a legalidade do ato ameaçador ou repressor da liberdade de ir e vir do paciente.
Inobstante a sagacidade dos autores suso citados, o conceito mais completo do habeas é o formulado pelo mestre Alexandre de Moraes (2003, p. 139), o qual, com a perspicácia que lhe é peculiar, afirma:
“o habeas corpus é uma garantia individual ao direito de locomoção, consubstanciada em uma ordem dada pelo Juiz ou Tribunal ao coator, fazendo cessar a ameaça ou coação à liberdade de locomoção em sentido amplo – o direito do indivíduo de ir, vir e ficar.”
Alexandre de Moraes (op. cit. p. 139) ainda relata:
“habeas corpus eram as palavras iniciais da fórmula do mandado que o Tribunal concedia e era endereçado a quantos tivessem em seu poder ou guarda o corpo do detido, da seguinte maneira: ‘tomai o corpo desse detido e vinde submeter ao Tribunal o homem e o caso’.”
1.1. Aspectos históricos
A origem do writ da liberdade, consoante manifestação majoritária da doutrina brasileira, remonta à magna carta outorgada pelo rei ‘João Sem Terra’, no ano de 1215. Como bem observa o mestre José Afonso da Silva (1992, p. 383), quando da criação do instituto, ele não estava vinculado ao direito de locomoção, mas sim ao conceito de due processo of law, o que cessou em 1679, no reinado de Carlos II (com o habeas corpus amendment act), com o estabelecimento de garantias de essência processual, acarretando, assim, o estabelecimento de seus fundamentos atuais, como garantidor daquele considerado por muitos como o segundo bem de maior valia, dentro do patrimônio pessoal – a liberdade – a qual somente fica atrás da própria vida.
Alexandre de Moraes (2003, p.138), todavia, em manifesta contrariedade à maioria da doutrina, assevera ter o habeas corpus origem ainda mais remota, tendo sido utilizado de forma pioneira na antiguidade, pelo qual “todo cidadão podia reclamar a exibição do homem livre detido ilegalmente por meio de uma ação privilegiada que se chamava interdictum de libero homine exhibendo”.
No Brasil, o habeas corpus foi introduzido em 1832, com a criação do código de processo criminal. Todavia, foi elevado ao status constitucional somente em 1891, quando inserto na Constituição da República (1891 apud Mossin, 1998), no art. 72, § 22, estabelecendo que “dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder”.
Alexandre de Moraes (2003, p. 139), novamente discordando da maioria da doutrina, aduz que o habeas teve sua introdução no país com a expedição do Decreto de 23-5-1821, pelo rei D. João VI, embora expressamente só tenha surgido, segundo o próprio autor, com o código de 1832.
Acerca do instituto em comento, muito salutares as palavras de Alcino Pinto Falcão (1990 apud Moraes, 2003), quando diz:
“A garantia do habeas corpus tem um característico que a distingue das demais: é bem antiga mas não envelhece. Continua sempre atual e os povos que a não possuem, a rigor não são livres, não gozam de liberdade individual, que fica dependente do Poder Executivo e não da apreciação obrigatória, nos casos de prisão, por parte do juiz competente.”
1.2 Natureza Jurídica
O habeas corpus, por emanar diretamente da Constituição Federal, tem status de norma constitucional, e assim passou a ser desde 1891, com sua introdução no texto da carta republicana, como já salientado anteriormente. A Constituição em vigor (1988, art. 5º, LXVIII), assim trata do instituto: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
Alexandre de Moraes (op. cit. p. 141), com o brilhantismo contumaz, afirma ser o writ “uma ação constitucional de caráter penal e de procedimento especial, isenta de custas e que visa evitar ou cessar violência ou ameaça na liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
Entretanto, a maior celeuma repousa no fato de ser o habeas um recurso ou uma ação autônoma, tendo o legislador pátrio contribuído, e muito, para a não solução da controvérsia, ao incluir o instituto em voga no Capítulo X, do Título II, de seu livro 3º, destinado aos recursos no processo penal.
Embora a grande maioria da doutrina brasileira afirme tratar-se de uma ação autônoma, ainda persistem as discussões, principalmente em virtude de ser o tema tratado no capítulo destinado aos recursos. Diante de tamanha celeuma, serão trazidas à baila vozes abalizadas no tema em discussão.
Para Galdino Siqueira (1930 apud Mossin 1998, p. 24 ) o habeas consiste em:
“Um recurso ordinário, e pelo seu processado, um recurso especial, pelo modo de sua interpretação e pela sua marcha processual; é assim que, em relação ao modo de sua interposição é ele facultado ao nacional ou estrangeiro, ao paciente ou a terceira pessoa, em seu favor; em relação a sua marcha processual, longe de seguir as fórmulas lentas e demoradas dos outros recursos, de seguir as regras gerais e comuns de competência, tem antes uma marcha célere e pronta, podendo ser renovado perante a mesma ou diversa autoridade.”
Na mesma senda, Eduardo Espínola (1980 apud Mossin, 1998), assevera que:
“Contemplando essa complexa multiplicidade de contornos do instituto, sem vermos motivo para repelir, nem desprezar a consideração atual do mesmo, na nossa legislação, apontamos o habeas corpus como um recurso de caráter especial (misto) e objetivo específico.”
Magalhaes Noronha (1989 apud Mossin, 1998) afirma:
“A nós nos parece que se lhe [ao habeas corpus] não pode não pode negar totalmente o caráter de recurso, pois pode ser impetrado contra decisões do juiz, para que o Juízo superior as reveja.”
Entretanto, a opinião sempre determinante de Pontes de Miranda (1962 apud Mossin, 1998) ruma em sentido contrário às elencadas acima. Assevera o grande mestre:
“O pedido de habeas corpus é pedido de prestação jurisdicional em ação, cuja classificação mostraremos mais tarde. A ação é preponderantemente mandamental. Nasceu assim o instituto. Os dados históricos no-lo provarão. Não se diga (a errônia seria imperdoável) que se trata de recurso. A pretensão não é recursal. Nem no foi, nem no é. É ação contra quem viola ou ameaça violara a liberdade de ir, ficar e vir. Talvez contra autoridade judiciária. Talvez contra tribunal.”
Deveras importante é o que ensina José Frederico Marques (1965 apud Mosin, 1998). Mantendo-se na mesma linha do insigne Pontes de Miranda, ele diz:
“A rigor o habeas corpus seria o pedido de reivindicação de liberdade quando lesado o ius libertatis, ou de proteção à liberdade, quando esta se encontre ameaçada de lesão. No entanto, como esse pedido deve ser feito em juízo, há uma ação de habeas corpus, a qual se instaura processo de igual nome, caracterizado especificamente, pelo procedimento sumaríssimo, através do qual se movimenta a instancia e seus atos se sucedem coordenadamente. Sob o ângulo estritamente processual, o habeas corpus não pode qualificar-se como recurso, embora assim o conceitue o Código de Processo Penal.”
Julio Fabbrini Mirabete (1994 apud Mossin, 1998) traz o que poderíamos chamar de uma posição mista, ao dizer que o habeas corpus consiste numa “ação popular constitucional”. Todavia, em certas situações, poderá o writ servir como recurso.
O professor Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 898) afirma tratar-se o habeas corpus de uma ação de conhecimento, podendo objetivar provimento meramente declaratório (como no caso da extinção de punibilidade), constitutivo (anulação de ato jurisdicional) ou condenatório (condenação nas custas da autoridade que agiu de má-fé), apoiando sua posição no próprio texto constitucional, onde, no art. 5º, LXXVII, se refere ela à ação e não a recurso.
Não existe, até o presente momento, como demonstrado nos parágrafos anteriores, entendimento pacífico acerca da natureza jurídica do habeas corpus. Todavia, observamos que os juristas da atualidade, induzidos pelo próprio texto constitucional de 1988, tendem a filiar-se à corrente de Pontes de Miranda, contraponto-se à idéia do Código.
Para encerrar a discussão, os dizeres de Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly (2001, p. 526) são de suma importância, pela clareza com que abordam a questão. Afirmam:
“Hoje, parece não haver mais dúvida tratar-se realmente de ação mandamental, a exemplo do mandado de segurança, que com ele guarda grande semelhança. Não obstante encartado no CPC como um capítulo do título ‘dos recursos’ (Livro III, Título II, Capítulo X), certas características o afastam deste conceito, colocando-o como verdadeira ação, senão vejamos: o recurso pressupõe uma decisão judicial recorrível, já o habeas corpus pode ser impetrado mesmo após o trânsito em julgado da sentença, se houver qualquer constrangimento ilegal no processo-crime que a precedeu; recurso exige decisão judicial, enquanto que para o habeas corpus, muitas vezes, bastará a simples ameaça de violência ou coação na liberdade de locomoção, não consubstanciada necessariamente em qualquer ato de jurisdição. Por fim, como é cediço, o recurso não abre uma nova instancia, mas busca um novo julgamento na fase de conhecimento, que ganha, por assim dizer, uma prorrogação.”
1.3 Espécies
A Constituição Federal vigente traz em seu bojo a definição das duas modalidades de habeas corpus existentes no Ordenamento Jurídico pátrio. O inciso LXVIII, do art. 5º da carta magna dispõe: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder…”.
Como se infere do texto constitucional, o habeas corpus pode ser classificado em repressivo (liberatório) ou preventivo (salvo-conduto), dependendo do fato de já ter sido praticada a coação ou de estar esta na iminência de ser levada a cabo. No primeiro caso, a ordem concedida visa a corrigir uma situação já concretizada, ou seja, a retirar da prisão aquele que ilegalmente a ela tenha sido levado. Já no segundo, a ordem tem por escopo garantir que o impetrante não seja conduzido à prisão pelos fatos expostos na decisão concessiva do salvo-conduto.
Sobre o habeas repressivo, não há muitas dúvidas ou discussões doutrinárias acerca dos requisitos para sua impetração, até por que, o fundamental é que o paciente esteja com sua liberdade restrita, cabendo ao magistrado somente apreciar se há ilegalidade ou não, sendo que, em caso positivo, concederá a ordem liberatória. Segundo Eduardo Espínola (1980 apud Mossin, 1998):
“Habeas corpus, comumente, tem eficácia para pôr termo, dada a ilegalidade que a vicia, a uma violência existente, ao constrangimento consumado, e tem caráter liberatório, porque livra o paciente da prisão onde está arbitrariamente.”
Todavia, no caso do habeas corpus preventivo são inúmeras as celeumas que envolvem o instituto. A começar pela análise que envolve a necessidade do provimento jurisdicional no sentido de proteger o impetrante de eventual segregação. Julio Mirabete (1991 apud Demercian, 2001), com o brilhantismo habitual, ensina que o receio de coação à liberdade deve resultar de ato concreto, de prova efetiva da ameaça de prisão. Demercian (2001, p. 527) acrescenta que deve existir algum elemento real a fundamentar o pedido e que este deve estar revestido de “um mínimo de viabilidade fática”, amparado em situações sérias e idôneas comprobatórias da iminência da coação. Neste sentido:
“O salvo conduto tem por finalidade evitar ameaça de violência ou coação ilegal à liberdade de ir e vir (ar. 600, § 4º, CPP), mas ameaça entendida como real, efetiva, nunca assentada em meras presunções. Desse modo a decisão que a conceder deve ser objetiva quanto a indicar a autoridade tida como coatora e no mencionar a ameaça de coação ilegal a ela imputada, não bastando fazer referência aos direitos e garantias fundamentais a todos os cidadãos estabelecidos pela Constituição Federal em seu art. 5º, XI e LXI.”[1]
Além de ser concreta a ameaça de coação, deve ser ela iminente. Ainda segundo Demercian (2001, p. 528), não basta a simples e remota possibilidade de vir a se consumar. Sobre este requisito, discorre Eduardo Espínola (1980, apud Demercian):
“Releva considerar o aresto de 8 de junho de 1928, proferido pela Câmara Criminal do então Tribunal da Relação de Minas Gerais, no rec. Crim nº 7.754, onde está: “habeas corpus preventivo expede-se quando pedido em favor de quem se acha em iminente perigo de sofrer violência por meio de prisão, ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção (CF, art. 72, § 22). O simples ingresso de uma denúncia em juízo não vale por um iminente perigo de prisão”.”
Outra questão que merece relevo, diz respeito à possibilidade de repetição do pedido de habeas corpus. O insigne Tourinho Filho (1990 apud Mossin, 1998) ensina:
“Nota-se que o pedido de habeas corpus pode ser reiterado no juízo de 1º grau, de 2º grau, ou até mesmo no STF, pela mesma pessoa que impetrou o primeiro, ou por outra. A reiteração deve ser formulada com novos documentos e com novos argumentos.”
No mesmo sentido se manifesta a grande maioria dos juristas. Em que pese a possibilidade de reiteração do pedido de habeas corpus, em se tratando da mesma coação, diversos devem ser os fundamentos, não podendo ser conhecido o pedido lastrado na mesma causa patendi. Assim se pronuncia o mestre Damásio (1991, p. 285): “entendemos que não cabe reiteração com fundamento nos mesmos elementos. Satisfeita a prestação jurisdicional, é incabível novo pedido com os mesmos fundamentos”.
1.4 Competência
Existem, basicamente, dois critérios a serem aferidos quando da análise da competência para apreciar o habeas corpus: o territorial e o funcional.
O foro dotado de competência territorial para apreciação do habeas corpus é o da autoridade da qual emanou a ordem, ou seja, independentemente do local em que foi realizada a ameaça ou o efetivo cerceamento da liberdade.
Neste sentido deixou ensinado o doutor Antonio do Nascimento, eminente Magistrado da 3ª Vara Criminal da Comarca de São José dos Campos[2]:
“Observo, preliminarmente, que S. Exa. Incidiu em algumas imprecisões conceptuais, sendo a mais significativa delas a de qualificar um dos investigadores de polícia como autoridade coatora (fl. 9). Talvez resida aí a raiz de sua conclusão no sentido de que é a comarca de São José dos Campos a competente para exercer atos de cognição a respeito do writ.
Como é sabido e consabido, os investigadores de polícia são ‘agentes da autoridade’, pois agem, em princípio, para cumprir ordens emanadas dos Delegados de Polícia a eu são vinculados. A dar-se crédito à linha de raciocínio do ilustre Juiz de Direito, seria o mesmo que se considerar autoridades coatoras os oficiais de justiça que estejam se desincumbindo de expressas ordens de autoridades judiciárias.”
Quanto ao segundo critério citado acima, o da ‘qualidade’ da autoridade coatora, há maiores digressões, como passaremos a expor partindo de exemplificação:
a) Magistrado de primeiro grau – quando a autoridade for delegado de polícia ou outra autoridade administrativa que não aquelas sujeitas à competência constitucional dos tribunais superiores ou de segundo grau, restará competente para apreciar o pedido de habeas corpus o Juiz de Direito com jurisdição na comarca. Em caso de autoridade federal, como delegado ou médico de um Hospital de Universidade Federal, por exemplo, restará competente o Juiz Federal com jurisdição na subseção judiciária.
b) Promotor de Justiça – muita controvérsia surgiu quanto à competência para apreciação de habeas contra ato emanado de Promotor de Justiça ou Procurador da República que oficie no Primeiro grau de jurisdição. Todavia, hodiernamente está consolidado o entendimento de que é competente o Tribunal de segundo grau para apreciar habeas corpus impetrado contra ato praticado por membros do parquet que oficiem perante o primeiro grau. Sobre o tema, ensina Guilherme Nucci (2006, p. 905):
“Estabelece a Constituição Federal e a lei processual penal que determinados indivíduos, em função do cargo exercido, possuem prerrogativa de foro, devendo ser julgados em tribunais específicos. Note-se que o habeas corpus sempre envolve a alegação de uma coação ilegal, passível de punição, conforme o caso, na esfera criminal, em relação ao abuso de autoridade. É o que ocorre com o juiz, cujo foro originário é sempre o tribunal ao qual está vinculado. Ou com o desembargador, cujo foro competente é o Superior Tribunal de Justiça. O mesmo se dá com o membro do Ministério Público que atua em primeira instância, cujo foro competente para julgá-lo nas infrações penais comuns é o Tribunal de Justiça (promotor estadual) ou o Tribunal Regional Federal (procurador da república).”
c) Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal – neste caso não há maiores controvérsias. A competência para apreciação do habeas será do Tribunal de segundo grau quando o ato coator emanar de Juiz de primeira instância. Cabe ressaltar que compete igualmente ao Tribunal de Justiça apreciar pedido de habeas corpus que visa a combater ato emanado de autoridades determinadas através da respectiva Constituição Estadual. Tal conclusão retira-se do art. 125, § 1º, da Constituição Federal, que assim dispõe: “a competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça”.
d) Superior Tribunal de Justiça – o art. 105, I, c, da Constituição Federal elenca os casos em que o STJ possui competência para apreciação de habeas corpus. Assim dispõe:
“Art. 105 Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I – processar e julgar, originariamente:
… c) os habeas corpus, quando o coator ou paciente for qualquer das pessoas mencionadas na alínea a, ou quando o coator for tribunal sujeito a sua jurisdição, Ministro de Estado ou Comandante da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.”
Aqui, cabe frisar que os tribunais sujeitos à jurisdição do STJ são os Tribunais de Justiça dos estados, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e os Tribunais Regionais Federais.
Segundo Guilherme Nucci (2006, p. 904), compete, ainda, ao STJ, apreciar habeas corpus impetrado contra ato de Governador de Estado ou Distrito Federal, membros dos tribunais de contas dos estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União, que oficiem perante tribunais.
e) Supremo Tribunal Federal – a competência do STF resta assentada no texto constitucional, art. 102, I, d, verbis:
“Art. 102 Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
d) o habeas corpus, sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores;”
As pessoas referidas nas alíneas anteriores, a que alude o texto acima citado, são o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, os próprios Ministros do STF, o Procurador-Geral da República, os Ministros de Estado, os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missões diplomáticas de caráter permanente.
Compete, ainda, ao Supremo Tribunal Federal, apreciar habeas corpus impetrado contra ato de turma recursal do Juizado Especial Criminal (JECRIM). Assim dispõe a súmula 690 do pretório excelso: “Compete originariamente ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de habeas corpus contra decisão de turma recursal de juizados especiais criminais”.
Importante trazer à baila as palavras de Guilherme Nucci (2006, p. 903), acerca da competência originária do STF para julgar decisão denegatória de habeas corpus, quando julgado em única instância pelo STJ. Assim ensina:
“Cabe-lhe, ainda, julgar em recurso originário, o habeas corpus decidido em única instância pelos tribunais superiores, se denegatória a decisão. Cremos razoável incluir também o habeas corpus decidido em última instância pelos tribunais superiores, embora a Constituição não mencione expressamente este termo. Afinal, se caberia interpor diretamente habeas corpus no STF, quando o coator for Tribunal Superior, logicamente, cabe a interpretação extensiva do termo “única” instância (art. 105. II, a, CF).”
Também de suma importância é fazermos referência à súmula 606, do STF. Assim dispõe: “Não cabe habeas corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em habeas corpus ou no respectivo recurso”.
1.5 Condições da Ação
Antes de serem abordadas as condições da ação propriamente ditas, mister se mostra a alusão à vítima do caso concreto – o paciente. Antes da análise acerca das condições da ação, deve a autoridade que apreciará o habeas corpus observar se o paciente é “capaz” de sofrer coação ilegal na sua liberdade de locomoção e, portanto, “capaz” de ser beneficiado pela ordem de soltura ou salvo conduto.
Paciente, segundo Pedro Demercian (2001, p. 528), “é a pessoa natural que está sofrendo ou na iminência de sofrer restrição a sua liberdade de locomoção em face da coação ilegal”. Desta definição, prossegue Demercian, citando Vicente Greco Filho (1991, p. 392), “já se pode inferir logicamente que a pessoa jurídica não pode ser beneficiária do writ, já que não tem liberdade de locomoção a ser protegida”.
Ainda na mesma senda, o professor Guilherme Nucci (2006, p. 907) assevera que, inobstante a previsão constitucional (art. 225, CF) e legal (Lei 9.605), da responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais, não se há de falar em impetração de habeas corpus em benefício da pessoa jurídica, mas, sim, de mandado de segurança. Tal vedação se mostra coerente, já que a pessoa jurídica não possui liberdade de locomoção a ser tutelada pelo remédio heróico, devendo eventual constrangimento ilegal, invasão de privacidade ou outra coação ilegal ser tutelada pelo writ da segurança.
Outra vedação, segundo Guilherme Nucci (2006, p. 907), diz respeito à impetração de habeas corpus em favor de pacientes indeterminados. Segundo Bento de Faria (1960 apud Nucci, 2006):
“não tem cabimento [a impetração de habeas corpus] quando se tratar de pessoas indeterminadas, v.g., os sócios de certa agremiação, os empregados de determinado estabelecimento, os moradores de alguma casa, os membros de indicada corporação, os componentes de uma classe, etc., ainda quando referida uma das pessoas com o acréscimo de – e outros. Somente em relação a esta será conhecido o pedido.”
Ainda se tratando do paciente, exsurge importante observação, muito bem lembrada por Pedro Demercian (2001, p. 529): “os efeitos da concessão da ordem de habeas corpus em favor do paciente podem ser estendidos ao co-réu desde que as situações de ambos seja idêntica”.
1.5.1 Legitimação Ativa
No que tange à legitimação ativa para a impetração de habeas corpus, algumas exceções às regras gerais do Direito devem ser observadas. A começar pela desnecessidade de representação por advogado. Diferentemente da grande maioria das ações, recursos, manifestações e demais peças de uso corriqueiro na prática forense, o habeas corpus pode ser impetrado diretamente pelo paciente. Além do mais, outra exceção que se vislumbra, é a possibilidade de impetração do habeas corpus por terceiro, sem poderes de representação e sem necessidade de concordância ou aceite por parte do paciente. Basta ao terceiro dirigir-se ao Juízo de primeiro grau ou Tribunal competente, informar a ilegalidade, para que o Judiciário se manifeste.
Com a clareza habitual, Alexandre de Moraes (op. cit., p. 143) ensina:
“A legitimidade para ajuizamento do habeas corpus é um atributo da personalidade, não se exigindo a capacidade de estar em juízo, nem a capacidade postulatória, sendo uma verdadeira ação penal popular.
Assim, qualquer do povo, nacional ou estrangeiro, independentemente de capacidade civil, política, profissional, de idade, sexo, profissão, estado mental, pode fazer uso do habeas corpus, em benefício próprio ou alheio (habeas corpus de terceiro). Não há impedimento para que dele se utilize pessoa menor de idade, insana mental, mesmo sem estarem representados ou assistidos por outrem. O analfabeto, também, desde que alguém assine a petição a rogo, poderá ajuizar a ação de habeas corpus.”
Outra questão que merece relevo é a possibilidade ou não da pessoa jurídica impetrar habeas corpus. Anteriormente, foi dito que a pessoa jurídica, por não ter liberdade de locomoção a ser preservada, não poderia ser paciente e, portanto, beneficiária da ordem de soltura ou salvo conduto. Todavia, divide-se a jurisprudência quanto à possibilidade de impetração do habeas corpus pela pessoa jurídica, em favor de pessoa física. Alexandre de Moraes (op. cit., p. 143 ) assim manifesta-se:
“a pessoa jurídica deverá usufruir de todos os direitos e garantias individuais compatíveis com sua condição. Dessa forma, nada impede que ela ajuíze habeas corpus em favor de terceira pessoa ameaçada ou coagida em sua liberdade de locomoção”
Ainda em sede de legitimação ativa, sem adentrar a questões mais profundas e específicas, cabe ressaltar que, qualquer pessoa, nesta condição, ou seja, na condição de ser humano, pode impetrar habeas corpus, e isto vale para delegados e juízes, desde que, por óbvio, não estejam desempenhando suas atribuições no caso concreto, pois não haveria sentido na impetração de habeas corpus por parte do próprio delegado que indiciou o paciente, ou do próprio magistrado do qual partiu a ordem de segregação. Já o Ministério Público, em razão de suas funções institucionais, pode ajuizar ação de habeas corpus em favor de quem entenda necessário, tanto por parte dos promotores, no primeiro grau, quanto por parte dos procuradores de justiça, em segundo grau.
1.5.2 Legitimação Passiva
No pólo passivo da ação de habeas corpus, deve figurar a pessoa da qual emanou a ordem ilegal ou da qual está na iminência de emanar, seja autoridade seja particular, sendo que no primeiro caso quando houver ilegalidade ou abuso de poder e no segundo quando houver ilegalidade, já que o particular não pratica abuso de poder.
Importante frisar que, nos dizeres de Pedro Demercian (op. cit., p. 532), “autoridade coatora é aquela de quem emanou a ordem e não aquele que a está cumprindo”. Tal assertiva podemos confirmar quando, verbi gratia, analisamos o exemplo citado anteriormente (nota 2), em que a autoridade policial com atuação na comarca ‘x’ depreca à autoridade da comarca ‘y’, o cumprimento de um mandado de prisão. Eventual ação de habeas corpus deve ser impetrada perante o juízo da comarca onde foi determinada a prisão e não onde foi cumprida, pois a autoridade coatora será o delegado da comarca ‘x’ e, por conseguinte, o competente será o juízo da mesma.
Outra questão com relevo, é a possibilidade de impetração de habeas corpus contra ato de particular. Segundo Alexandre de Moraes, quando houver ilegalidades praticadas por particulares, na maior parte das vezes, não será necessário o provimento jurisdicional para fazer cessar a coação. Basta acionar diretamente a autoridade policial, como em casos de seqüestros, cárcere privado e análogos. Entretanto, em determinadas oportunidades não será possível a intervenção policial, devendo, assim, ser ajuizado habeas corpus, como, v.g., nos casos de internações em hospitais e clínicas psiquiátricas.
1.5.3 Possibilidade Jurídica do Pedido
A possibilidade jurídica do pedido é a condição da ação que impõe a verificação acerca da tutela ou não do direito pleiteado pelo ordenamento jurídico. A título de exemplo, podemos citar o mais utilizado pelos mestres nas graduações de Direito. A cobrança de dívida de jogo. Eventual ação civil de cobrança, que tem por fito a condenação do réu a pagar dívida de jogo deverá ser extinta por falta da condição da ação aqui tratada, já que tal direito não é tutelado pelo ordenamento pátrio.
Em sede de habeas corpus, podemos dizer que o direito tutelado é a liberdade de locomoção. Qualquer direito pleiteado através do manejo do habeas corpus deverá levar à extinção do feito, por falta da condição da ação em voga. Pode ser citada como exemplo, a ação de habeas corpus com objetivo de tutelar o direito de imagem, ou o direito de certidão, ou qualquer outro que não a liberdade de locomoção.
Sobre o tem em comento, manifesta-se José Frederico Marques (1965 apud Mossin, 1998):
“Objeto mediato do pedido de habeas corpus é o direito de ir e vir. O impetrante pede ao órgão jurisdicional, ou a restauração do ius libertatis, ou que desapareça, prontamente, a ameaça que o põe em perigo. O pedido pode revestir-se na natureza de pretensão processual declaratória, constitutiva ou cautelar: em todas as hipóteses, porem, seu objeto último será o direito de locomoção, posto em perigo ou lesado por coação, ilegal ou abuso de poder.”
Prossegue José Frederico Marques (op. cit. p. 407 apud Mossin, 1998):
“Das condições de procedibilidade, a primeira a ser examinada é da possibilidade jurídica do pedido. Assim é que não cabe o writ, se impetrado para a tutela de direito de liberdade diverso do direito de locomoção, ma vez eu o habeas corpus em nosso Direito, tem por fim assegurar a liberdade de ir e vir.”
Concluindo com as palavras de Mossin (op. cit. p.94): “ausente a possibilidade jurídica do pedido, o writ deve ser liminarmente rejeitado através de regular decisão terminativa, dele não se tomando conhecimento”.
1.5.4 Interesse de Agir
O interesse de agir estará consubstanciado quando presente a comprovação de que a ordem beneficiará o paciente. Assim, se o processo penal ajuizado contra o paciente, por exemplo, tiver sido extinto pelo Magistrado em virtude do reconhecimento da prescrição, e, portanto, da extinção da punibilidade, tendo a decisão transitado em julgado, não mais resta temor fundado de segregação corporal por parte do paciente, estando, in casu, inviabilizado o manejo do habeas corpus por absoluta falta de interesse de agir.
Importante ressaltar que faltará interesse de agir quando o habeas corpus for manejado para fazer cessar restrição à liberdade imposta por sentença condenatória com trânsito em julgado. Neste sentido, manifesta-se Mossin (op. cit. p. 190):
“A prisão do individuo também será legal, afastando o legitimo interesse para a ação penal de habeas corpus, quando promanar de sentença penal condenatória formalmente transitada em julgado, salvo se o mandado de prisão, que também é utilizado para os demais casos em que a coação provenha do juiz, não contiver as formalidades estruturais traçadas no art. 285 do Código de Processo Penal. No mesmo diapasão de raciocínio estão as situações de coação provenientes da prisão em defluência da pronúncia ou de sentença definitiva de condenação.”
Como adverte Guilherme Nucci (op. cit. p. 909), “a existência de recurso legal para impugnar a decisao considerada abusiva não impede a utilização do habeas corpus, tendo em vista que este é, seguramente, meio mais ágil para fazer cessar qualquer constrição à liberdade de ir e vir”.
Questão pertinente, ainda em sede de interesse de agir, é que faltará esta condição da ação quando a comprovação da existência do direito à liberdade demandar produção de provas. Neste caso, faltara interesse de agir, já que a via eleita (o habeas corpus) é inadequada à obtenção do direito pleiteado.
Corroborando o acima afirmado, manifesta-se José Frederico Marques (op. cit. p. 409 apud Mossin): “não caberá, ainda, o habeas corpus, por ausência de legítimo interesse, quando o ius libertatis, no caso, não for líquido e certo, e não se achar caracterizada (igualmente de modo líquido e certo), a ilegalidade da coação”.
2 AS NUANCES DO DIREITO MILITAR
O próprio texto constitucional nos auxilia na definição das Forças Armadas. Consoante se infere do texto magno[3], as Forças Armadas são instituições permanentes e regulares, cuja função precípua é a garantia dos poderes constitucionais. Além da defesa da pátria e da garantia da lei e da ordem.
As Forças Armadas, como já salientado, possuem fundamento constitucional para sua existência. Ademais, o texto magno traça diversas normas a respeito da própria organização das entidades componentes, além de disposições gerais as quais não devem ser desrespeitadas pela legislação infraconstitucional.
O Direito Militar, portanto, possui fundamento na Carta Magna, mas também é composto de normas ordinárias, como o Estatuto dos Militares[4], Código Penal Militar, Código de Processo Penal Militar, Decretos Presidenciais (os quais trazem em seu bojo os regulamentos disciplinares), além de outras normas de caráter administrativo.
O Direito Militar, segundo José da Silva Loureiro Neto (2001, p. 19) tem sua origem mais remota ainda nos povos da antiguidade, como Atenas, Pérsia, Índia, Macedônia e Cartago, onde certos delitos militares já eram penalizados interna corporis, mormente em casos de guerra.
O Direito Romano, igualmente, possuía seu Direito Militar. João Vieira de Araújo (1898 apud Loureiro Neto op. cit.) ensinou:
“Para as faltas graves da disciplina […], o tribuno convocava o conselho de guerra, julgava o delinqüente e o condenava a bastonadas. Esta pena era infligida com tal rigor que acarretava a perda da vida. O estigma da infâmia estava ligado a certos crimes e aos atos de covardia. Quando a falta disciplinar grave era de uma centúria, por exemplo, o tribuno formava o corpo e fazendo tirar a sorte um certo número dentre os soldados culpados, os fazia bastonar até matá-los.”
Aspectos históricos e de cunho introdutivo, ao tema, já tratados, a partir de agora serão abordadas questões relevantes à compreensão do Direito Militar hodierno, suas irregularidades quando comparado ao texto constitucional e aspectos fundamentais para o aprofundamento da discussão sobre a possibilidade ou não de impetração do habeas corpus no Direito Penal e Disciplinar Militar, tema principal da pesquisa.
2.1 Infração Disciplinar e Crime Militar
Extremamente comum e natural a confusão feita pelos leigos entre crime militar e infração disciplinar militar. E quando se fala em leigos, estão incluídos juristas e os próprios militares, na maioria das vezes carentes de conhecimento jurídico suficiente para os fazer compreender as distinções entre um instituto e outro.
Em comum, e somente isso, possuem a infração e o crime o fato de serem fruto de uma conduta violadora de norma jurídica emanada do Estado. Assim, tanto uma como outra são fruto de um ilícito, sofrendo, porém, conseqüências bem diferentes.
O crime, segundo Heleno Fragoso (1980 apud Mirabete 2003, p. 96):
“é a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de pena, ou que se considere afastável somente através da sanção penal.”
Segundo Jimenez de Asua (1951 apud Mirabete, op. cit. p. 96) crime é:
“a conduta considerada pelo legislador como contrária a uma norma de cultura reconhecida pelo Estado e lesiva de bens juridicamente protegidos, procedente de um homem imputável que manifesta com sua agressão e periculosidade social.”
Os conceitos acima explanados, por certo, se referem ao crime comum, e não ao crime militar propriamente dito. Todavia, são perfeitamente aproveitáveis quando se acrescenta uma característica fundamental do crime militar – o enquadramento em alguma das situações previstas no art. 9º do diploma repressivo castrense.
Destarte, assim ficaria o conceito ideal de crime militar: “a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de pena, ou que se considere afastável somente através da sanção penal, desde que prevista no art. 9º do Código Penal Militar”.
A infração disciplinar, entretanto, é a conduta praticada pelo militar que vá de encontro aos princípios institucionais, prevista em regulamento interno e que não seja definida como crime comum ou militar.
Hely Lopes Meireles (1995, p. 103) assim diferencia crime de infração disciplinar:
“Não se deve confundir o poder disciplinar da Administração com o poder punitivo do Estado, realizado através da Justiça Penal. O poder disciplinar é exercido como faculdade punitiva interna da Administração, e, por isso mesmo, só abrange as infrações relacionadas com o serviço; a punição criminal é aplicada com finalidade social, visando a repressão de crimes e contravenções definidas nas leis penais e por esse motivo é realizada fora da Administração ativa, pelo Poder Judiciário.”
Ainda sobre a distinção entre crime e infração disciplinar, dispõe o regulamento da aeronáutica[5] (Rosa, op. cit. p. 24):
“Toda ação ou omissão contrária ao dever militar, e como tal classificada nos termos do presente regulamento. Distingue-se do crime militar que é ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislação penal militar.”
Outra distinção importante entre crime e infração disciplinar diz respeito ao agente infrator. O crime militar pode ser praticado por civil ou por militar, enquanto a infração disciplinar só poderá ser praticada por servidor da caserna.
Questão relevante acerca do tema abordado é a possibilidade de cometimento de infração e crime militar ao mesmo tempo, com a punição do militar nas duas esferas sem o ferimento do sabido princípio que dispõe não ser possível a punição dobrada pelo mesmo fato ilícito.
Com efeito. As esferas administrativa e penal não se comunicam, constituindo-se esferas distintas, sendo, portanto, perfeitamente possível a punição do militar nas duas esferas pela prática do mesmo fato.
A título de exemplo, valendo-se de Paulo Tadeu Rodrigues Rosa (op. cit. p. 27), pode ser citado o crime de “embriaguez em serviço”[6]. Além de punido pela prática do crime mencionado, pode o militar ser punido interna corporis, através do poder disciplinar do qual está investida a autoridade militar.
2.2 O Direito Penal Militar
O Direito Penal Militar tem por escopo o processamento dos delitos previstos no Código Penal Militar desde que o agente se encontre em uma das circunstâncias descritas no art. 9º do mesmo diploma. Difere do Direito Penal comum em diversos aspectos, como por exemplo na inexistência da ação penal privada, na punição de condutas não tipificadas pelo Direito comum[7] e na existência de pena de morte, em caso de guerra declarada.
2.2.1 Crime Militar
O crime militar é a conduta tipificada pelo diploma repressivo castrense e praticada em uma das situações elencadas no art. 9º da aludida norma penal.
O legislador brasileiro não adotou um critério bem definido para definir os crimes militares. José da Silva Loureiro Neto (op. cit. p. 33) ensinou: “Nosso legislador, no decreto-lei nº 1.001 (CPM) adotou o critério ratione legis, isto é, não o definiu, apenas enumerou taxativamente as diversas situações que definem esse delito”.
Os crimes militares podem ser subdivididos em dois grandes grupos – Próprios e Impróprios, classificação esta bem explanada nas palavras de Jorge Alberto Romeiro (apud Patrícia Silva Gadelha, 2006, disponível na internet, site http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8063):
“São crimes propriamente militares aqueles que só podem ser praticados por militares, ou que exigem do agente a condição de militar. É o caso, por exemplo, dos crimes de deserção, de violência contra superior, de violência contra inferior, de recusa de obediência, de abandono de posto, de conservação ilegal do comando, etc.”
“Já os crimes impropriamente militares são os que, comuns em sua natureza, podem ser praticados por qualquer cidadão, civil ou militar, mas que, quando praticados por militar em certas condições, a lei considera militares. São impropriamente militares os crimes de homicídio e lesão corporal, os crimes contra a honra, os crimes contra o patrimônio (furto, roubo, apropriação indébita, estelionato, receptação, dano, etc.), os crimes de tráfico ou posse de entorpecentes, o peculato, a corrupção, os crimes de falsidade, dentre outros. Note-se que tais crimes também estão previstos no Código Penal Brasileiro. A diferença está justamente na subsunção ao artigo 9º do CPM.”
2.2.2 Competência
Diversas peculiaridades existem para determinar a competência, em sede de Direito Militar. Definido é que à Justiça Militar compete, somente, o julgamento dos crimes militares, definidos em lei, além do habeas corpus e de todos os recursos previstos pelo Direito Penal Militar.
A competência para apreciação de quaisquer matérias atinentes às Forças Armadas, como, vg., uma ação indenizatória, uma ação de mandado de segurança contra decisão administrativa ou, até mesmo, habeas corpus para combater prisão administrativa, será julgada pela Justiça Federal, assim como, em casos análogos, em se tratando de Polícias Militares Estaduais, a competência será da Justiça Comum Estadual.
As maiores celeumas surgem, realmente, em sede do Direito Penal Militar. Por vezes, têm se mostrado tortuosas as conclusões acerca da definição de um fato delituoso como comum ou militar. E, como será explanado a seguir, com apoio na obra de José da Silva Loureiro Neto (op. cit. p. 108-130), são diversas as situações onde as dificuldades são grandes, tendo sido necessário, em muitos casos, a definição dos tribunais superiores acerca da competência.
a) abuso de autoridade: dispõe o art. 124 da Constituição Federal que compete à Justiça Militar o julgamento dos crimes militares definidos em lei. Por sua vez, dispõe o art. 9º do CPM que são crimes militares os definidos naquele diploma legal, ainda que também o sejam pelo diploma repressivo comum. O crime de abuso de autoridade, todavia, é tipificado pelas leis 4.898/65 e 5.249/67, não estando, portanto, dentro do conceito ratione legis estabelecido pelo legislador pátrio para crime militar.
Neste sentido, manifestou-se o STF[8]:
“Abuso de autoridade – Competência – Crime praticado por policiais militares no exercício de função administrativa civil (Lei nº 4.898, de 9-12-65, arts. 3º, 4º e 6º). Tratando-se de delito previsto apenas na lei penal comum e não na militar, a competência para o processo e julgamento é da justiça comum.”
Assim, resta indubitável que, em se tratando de militar estadual, será competente a justiça comum estadual e, nos casos de militares federais, competente restará a justiça comum federal.
b) Co-autoria entre militar e civil: neste caso, há de se recorrer às palavras de Guilherme Nucci (op. cit. p. 275), o qual, com a clareza peculiar, muito bem elucida a questão:
“lembremos que civis podem ser julgados pela Justiça Militar Federal quando cometerem crimes militares previstos na Lei de Segurança Nacional ou no Código Penal Militar, desde que contra as instituições militares federais. A competência constitucional estabelecida para a Justiça Militar Federal não exclui civis, como já visto em tópico anterior. Nesta hipótese, ambos (civil e militar) seriam julgados, quando forem co-autores, na esfera militar. Por outro lado, se o civil comete crime comum e o militar, delito militar, embora conexos, haverá separação dos processos. E mais: caso o civil cometa crime militar (contra a Segurança Nacional ou as instituições militares federais) e o militar, crime comum, embora conexos, também ocorrerá a separação dos processos, em hipótese rara, que leva o civil para a Justiça Militar Federal e o militar para a Justiça comum. […] Ressalve-se, no entanto, o cometimento de crime por civil contra as instituições militares estaduais: a competência será da Justiça Estadual (súmula 53, STJ: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”). Assim, conclui-se que a Justiça Militar Estadual jamais julga um civil, impondo-se a regra geral da separação dos processos. Aplica-se, sempre, a súmula 90 do Superior Tribunal de Justiça: “compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática de crime militar, e à Comum pela prática de crime comum simultâneo àquele”.”
c) crime doloso contra a vida: Até a superveniência da Lei 9.299/1996, os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares, no exercício da função militar, eram julgados pela Justiça Militar Federal ou Estadual, de acordo com a instituição a que pertencesse o servidor. Contudo, a partir da promulgação do aludido diploma passou a ser competente o Tribunal do Júri da Justiça Federal, caso o autor seja Militar das Forças Armadas, e o Tribunal do Júri da Justiça Estadual, caso o autor seja Militar da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros. Permanece inalterada a situação de crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra militares, restando competente a justiça castrense.
Tratando-se de Direito Penal Militar, foram explanadas as matérias relevantes ao estudo do tema de fundo, passando-se, agora, ao Direito Disciplinar Militar.
2.3 O Direito Disciplinar Militar
O Direito disciplinar militar é o ramo do Direito castrense que tem por escopo a regulação de todos os preceitos atinentes à disciplina dos servidores da corporação, e que não diga respeito a crime militar, algo completamente distinto, como já visto anteriormente.
As Forças Armadas e Forças Auxiliares são entidades que, para que seu funcionamento ocorra de acordo com os mandamentos constitucionais, necessitam da observância de dois princípios basilares por parte dos militares – a hierarquia[9] e a disciplina[10]. Para resguardar o acatamento de tais princípios e, por conseguinte, para viabilizar o funcionamento dos organismos militares é que existem os regulamentos disciplinares e, consequentemente, as punições disciplinares.
Contudo, hodiernamente não se encontra, ainda, o Direito disciplinar ou administrativo, como alguns preferem nominar, perfeitamente de acordo com o ordenamento jurídico vigente. Ao longo deste capítulo será mostrado como o ordenamento castrense ainda subsiste como se estivesse fora do alcance da própria Constituição Federal, ou seja, de forma semelhante ao que ocorreu no negro período da ditadura militar brasileira. Serão apresentadas as diversas formas de desrespeito ao ordenamento jurídico brasileiro, por parte do poder executivo e, conseqüentemente, dos regulamentos disciplinares dele oriundos.
2.3.1 Os princípios constitucionais e suas aplicações no Processo Administrativo Disciplinar
A partir da vigência da Constituição Federal de 1988, não restam mais dúvidas de que os princípios e normas constitucionais devem ser aplicados ao Processo Administrativo Disciplinar Militar. Tal premissa é indubitável. Porém, somente na teoria. Na prática ainda se mostra difícil a aceitação por parte dos militares, mormente daqueles que vivenciaram como oficiais, e foram formados como tais, a ditadura militar. Serão apresentados os principais princípios constitucionais que têm sua aplicação dificultada nos processos administrativos militares.
a) O princípio da inocência: quanto à realidade da aplicação hodierna do aludido princípio, manifesta-se Paulo Tadeu Rodrigues Rosa (op. cit. p. 04):
“A defesa da aplicação dos princípios do devido processo legal e da inocência no direito administrativo militar ainda é uma novidade. Nesta área, existe o entendimento segundo o qual a autoridade administrativa militar possui discricionariedade no julgamento dos seus subordinados. Na dúvida, quando da realização de um julgamento administrativo onde o conjunto probatório é deficiente, não se aplica o princípio do in dúbio pro administração, mas o princípio in dúbio pro reo, previsto na Constituição Federal e na Convenção Americana de Direitos Humanos, que foi subscrita pelo Brasil.”
O aludido princípio tem aplicabilidade inconteste no Direito Penal, já que consagrado na Carta Magna[11]. Todavia, no Direito interno castrense tem encontrado dificuldade na aceitação do aludido princípio, até mesmo pela forma com que se dá o trâmite processual. Senão vejamos. A instauração do processo administrativo disciplinar militar se dá com a comunicação de uma infração ao Comandante da OM. Este, por sua vez, tendo ciência da infração, determina a abertura do PADM, onde ele mesmo é o acusador e, concomitantemente, o julgador. O militar que comunicou a infração será “testemunha de acusação”. Neste panorama, como poderia o próprio acusador/julgador aplicar o princípio da inocência? Não há lógica. Se ele acusa, é sinal de que tem convicção do cometimento da infração por parte do acusado. Logo, não haveria dúvidas a ensejar a aplicação do princípio em voga.
Sobre o tema, manifesta-se Paulo Tadeu Rodrigues Rosa (op. cit. p. 06):
“A autoridade administrativa militar (federal ou estadual) deve atuar com imparcialidade nos processos sujeitos a seus julgamentos, e quando esta verificar que o conjunto probatório estampado nos autos é deficiente deve entender pela absolvição do militar. A precariedade do conjunto probatório deve levar à absolvição do acusado para se evitar que este passe por humilhações e constrangimentos de difícil reparação, que poderão deixar suas marcas mesmo quando superados, podendo refletir nos serviços prestados pelo militar à população, que é o consumidor final do produto segurança pública e segurança nacional.”
“Devido à estrutura adotada nos processos administrativos militares, onde existe uma mistura entre a figura do acusador e a do julgador, fica difícil a absolvição do acusado com fundamento no princípio da inocência. Além disso, em muitos casos, ainda existe uma confusão entre discricionariedade e arbitrariedade. A primeira fica sujeita ao princípio da legalidade e da moralidade previstos no art. 37, caput, da Constituição Federal.”
Ainda sobre a aplicação do princípio da inocência no PADM, prossegue o autor (op. cit. p. 07):
“O princípio da inocência é uma realidade do processo administrativo militar e deve ser aplicado pelo administrador quando o conjunto probatório impeça a prolação de um seguro decreto condenatório. A justiça é elemento essencial de qualquer instituição, pois somente com a observância do devido processo legal e das garantias constitucionais é que se pode alcançar os objetivos do Estado Democrático de Direito.”
b) O princípio da legalidade: o princípio da legalidade surgiu como uma verdadeira conquista da sociedade; e não poderia ser diferente. Em se tratando de um Estado Democrático de Direito, não se pode olvidar que é imperioso dar aos cidadãos o conhecimento prévio acerca das condutas reprovadas pelo Estado e das possíveis sanções em razão da violação. Contudo, inobstante a obviedade com que se apresentam tais afirmações, ainda subsistem vozes que teimam em afirmar não se aplicar o princípio da legalidade ao PADM. Neste sentido, manifesta-se Loureiro Neto (op. cit. p. 26):
“O ilícito disciplinar […] não está sujeito ao princípio da legalidade , pois seus dispositivos são até imprecisos, flexíveis, permitindo à autoridade militar maior discricionarismo no apreciar o comportamento do subordinado, a fim de melhor atender os princípios da oportunidade e conveniência, da sanção a ser aplicada, inspirada não só no interesse da disciplina, como também administrativo.”
A posição do ilustre autor se mostra não consetânea com o espírito da Constituição Federal de 88 e do próprio Estado Democrático de Direito.
Diferentemente do serviço público civil, a punição disciplinar, em termos se tratando de Forças Armadas e Auxiliares, tem como conseqüência, na maioria dos casos, o cerceamento da liberdade. Desta forma, dada a importância do bem jurídico sobre o qual incide a sanção, não poderia ser concedido à autoridade administrativa o poder ilimitado de punir o subordinado da forma como lhe aprouvesse, sem respeito ao princípio da legalidade. Se assim fosse, data venia entendimentos em sentido contrário, estaria caracterizada a maior aberratio juris do Direito Brasileiro, pois as autoridades militares já tiveram “poderes ilimitados”, de 1964 a 1985, e todos conhecem a forma como foram utilizados.
Sobre a aplicação do princípio em comento ao PADM, com total acerto, manifesta-se o Mestre Paulo Tadeu Rodrigues Rosa (op. cit. p. 09):
“Em tema de liberdade, que é um bem sagrado e tutelado pela Constituição Federal (que, no art. 50º, caput, assegura que todos são iguais perante a lei), não se pode permitir ou aceitar que normas de caráter geral, que não estavam previamente previstas, possam cercear o jus libertatis de uma pessoa, no caso o militar. As normas desta espécie, previstas nos regulamentos disciplinares militares, são inconstitucionais, pois permitem a existência do livre arbítrio, que pode levar ao abuso e ao excesso de poder […].”
“No Brasil, por força da vigente Constituição Federal, ninguém pode ser punido sem que exista uma lei anterior que defina a conduta como ilícito (civil, criminal ou administrativo), sob pena de violação das garantias constitucionais e da Convenção Americana de Direitos Humanos. Segundo Luiz Flávio Gomes, não existe diferença ontológica entre crime e infração administrativa ou entre sanção penal e sanção administrativa.”
Ainda sobre a aplicação ou não do princípio da legalidade no PADM, mostra-se pertinente a alusão à diária “guerra de classes” que é travada dentro das organizações militares, mormente entre Praças[12] e Oficiais. Estes, no dia-a-dia, atuam como “predadores” daqueles, os quais se mostram cada vez mais fortalecidos com constantes decisões do Judiciário invalidando condutas arbitrárias e desumanas praticadas por oficiais dentro da caserna. Recentemente, veio à tona através da imprensa a perseguição de que foram alvo dois praças do Exército Brasileiro que se declararam homossexuais, tendo um deles, inclusive, sido preso publicamente, enquanto dava entrevistas a uma Rede de televisão, de forma absolutamente humilhante, em mais uma demonstração do que são “capazes” os militares brasileiros. Em mais uma brilhante atuação da Justiça, o STF deferiu ordem de soltura ao militar, atenuando os efeitos da conduta tomada pelo Estado, representado, no caso, pelos militares da força terrestre.
c) O contraditório e a ampla defesa na sindicância administrativa: ao praticar o servidor uma conduta em tese violadora das normas constantes do regulamento disciplinar de sua corporação militar, surge ao Estado – Administração o direito de punir seu servidor, através dos mecanismos disponíveis. Todavia, tal punição deve ser precedida de um procedimento investigatório, ou um processo administrativo, o qual compõe, na maioria dos casos, uma sindicância que terá por escopo a apuração dos fatos e a conseqüente definição se houve, efetivamente, a transgressão das normas disciplinares. Em todos os procedimentos acima elencados, é obrigatória a observância dos princípios constitucionais da ampla defesa[13] e do contraditório[14]. Todavia, nem de longe é isto que acontece.
Tomando como exemplo a forma como se dá no Exército Brasileiro. Nesta organização, constatada a ocorrência de um ilícito administrativo, o Comandante da OM, na condição suprema de acusador/julgador, instaura um PADM, através do que chamam na força terrestre de FATD, que nada mais é do que um simples documento, onde o militar acusado expõe as suas razões de defesa, de próprio punho, (note-se que se trata, na maioria das vezes, de uma pessoa com dezoito anos de idade e que não possui, ao menos, ensino médio completo), sem assistência de profissional habilitado a fazer sua defesa técnica. De posse das chamadas razões de defesa e da acusação por si mesmo formulada, toma o Comandante da OM sua decisão, ou punitiva ou absolutória. Quando se trata de fato cuja apuração imprescinde da oitiva de testemunhas ou de diligências mais acuradas para a solução, instaura o comandante uma sindicância administrativa, a ser presidida por outro militar, ao qual incumbe a apuração dos fatos. Também neste caso, o militar encontra-se totalmente desamparado de assistência técnica, já que o Estado não fornece advogados para prestar gratuitamente tal serviço e, na maioria das vezes, não possuem os militares condições financeiras para constituir procurador. Este, então, é o cenário do Processo Administrativo Disciplinar Militar. De um lado o Estado/acusador/julgador e de outro, na grande maioria dos casos, o praça, desprovido de defesa técnica, tendo que exercer auto-defesa, ao invés de dispor da ampla defesa garantida na Constituição Federal.
Sobre o tema, assim manifesta-se Paulo Tadeu Rodrigues Rosa (op. cit. p. 28):
“O Estado tem o direito e o dever de punir a pessoa que pratique um ilícito penal ou administrativo, mas isso não significa que possa deixar de observar os preceitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal a todo brasileiro (nato ou naturalizado) ou estrangeiro residente no país.”
“O acusado em processo administrativo ou judicial possui o direito de exercer a ampla defesa e o contraditório com todos os recursos a eles inerentes, art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, sem os quais não poderá perder os seus bens ou ter a sua liberdade cerceada.”
“Para o efetivo exercício das garantias constitucionais, é necessário que o acusado possa acompanhar todos os atos processuais, sendo sua presença obrigatória e não facultativa, devendo ser intimado dos atos processuais com antecedência mínima de 48 horas. O administrador deve respeitar os direitos do procurador do acusado, previstos na Lei 8906/94, que é uma Lei Federal e se sobrepõe a qualquer espécie de decreto ou portaria que trate de matéria de forma diversa. Quando da realização da instrução probatória, é lícito ao acusado contraditar as testemunhas e a estas apresentar impedimentos ou suspeições.”
“No caso do processo administrativo denominado de sindicância, quando esta tiver o caráter acusatório, deverá ser assegurado ao funcionário o direito de exercer a ampla defesa e o contraditório, na forma da Constituição Federal. A não observância desta garantia é motivo para a interposição de mandado de segurança perante a Justiça comum ou Federal, que dependerá da situação funcional da autoridade administrativa responsável pelo ato.”
2.3.2 Os regulamentos disciplinares e suas inconstitucionalidades
Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas e da maioria das Polícias Estaduais foram instituídos por meio de Decreto emanado do Poder Executivo. O problema repousa na previsão por parte dos ditos instrumentos normativos de pena de restrição à liberdade, o que, com o advento da Constituição Federal de 1988 só pode ser feito por meio de Lei. Assim dispõe o inc. LXI, art. 5º, da Constituição Federal: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (grifei).
Por força do comando constitucional, os decretos editados antes da publicação do texto magno foram recepcionados pela nova ordem e, portanto, possuem plena vigência, como é o caso do Código Penal Militar, Código Penal, Código de Processo Penal Militar e Código de Processo Penal. Todavia, não podem sofrer modificações posteriores através do mesmo instrumento normativo, pois tal ato configuraria manifesta inconstitucionalidade.
Entretanto, a prática descrita como inconstitucional no parágrafo anterior tem sido adotada regularmente, tanto pelo Poder Executivo Federal como pelo Estadual. A título de exemplo, pode ser citado o Regulamento Disciplinar do Exército. O Decreto presidencial nº 4.346/2002 revogou o anterior, nº 90.608/1984, instituindo o novo Regulamento Disciplinar do Exército. O Ministério Público Federal ingressou junto ao STF com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3340, a qual não teve o mérito apreciado e foi extinta. Com muita propriedade e retratando exatamente o que pensa a maioria da doutrina, o ilustríssimo, então Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles[15], na peça exordial da ADIN em referência, expôs:
“A Constituição de 1988, buscando fortalecer a proteção aos direitos fundamentais, estabeleceu a reserva legal para a disciplina de transgressões ou crimes militares. […] em que pese a reserva legal fixada pela Constituição de 1988, o Decreto nº 4.346/2002 aprovou novo Regulamento Disciplinar do Exército, expressamente revogando o Decreto nº 90.608/1984. […] o simples exame do arcabouço normativo eu regula a matéria em apreço é suficiente para demonstrar a inconstitucionalidade do Decreto nº 4.346/2002. Com efeito, se a Constituição de 1988 determina que os crimes e transgressões militares sejam definidos em lei, não é possível a definição de tipos penais via decreto presidencial. Assim, o ato normativo impugnado violou o artigo 5º, inciso LXI, da Carta Magna. A ofensa constitucional torna-se ainda mais clara a partir do exame do princípio da recepção de normas pela Constituição. Segundo esse princípio, toda a ordem normativa proveniente dos regimes constitucionais anteriores é recebida pela Carta Magna em vigor, desde que com ela materialmente compatível. Considera-se, nesse caso, que a norma recepcionada passa a revestir-se da forma prevista pelo texto constitucional para a matéria.”
Na mesma linha, Paulo Tadeu Rodrigues Rosa (op. cit. p. 60), falando sobre os regulamentos disciplinares das polícias militares do estado de Goiás e São Paulo, manifesta-se:
“Pode-se afirmar, com fundamento no art. 5º, inc. LXI, da Constituição Federal, que o novo regulamento disciplinar da Polícia Militar de Goiás, Decreto Estadual nº 4.717/96, é inconstitucional e portanto deve ser afastado por meio de decisão do Poder Judiciário mediante provocação de pessoa interessada. O mesmo se aplica às alterações introduzidas no revogado regulamento disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, após 5º de outubro de 1988. Na verdade, todos os regulamentos disciplinares das polícias militares dos estados membros da Federação, que sofreram modificações por meio de decreto expedido pelo chefe do Executivo após a vigência da Constituição Federal de 1988, são inconstitucionais.”
“Neste sentido, Márcio Luiz Chila Freyesleben ao comentar as modificações ocorridas no regulamento disciplinar da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais observa que, à guisa de especulações, o Decreto nº 88.545/83, RDM, sofreu alterações de alguns de seus dispositivos, provocadas pelo Decreto nº 1.011, de 22 de dezembro de 1993. Com efeito, após a Constituição Federal/88 o RDM passou a ter força e natureza de lei ordinária, não sendo admissível que uma lei venha a ser modificada por um decreto. É inconstitucional.”
Outra manifesta inconstitucionalidade observada nos regulamentos disciplinares da Marinha e do Exército é a falta de atribuição de efeito suspensivo aos recursos interpostos contra decisões que impõe como pena a restrição da liberdade. E não deve ser outro o entendimento. Tomemos como exemplo o Regulamento Disciplinar da Marinha do Brasil, nas palavras de Antoniel Souza Ribeiro da Silva Júnior[16]:
“Cada regulamento disciplinar elenca as condutas que constituem as transgressões, estabelece regras de apuração, circunstâncias agravantes e atenuantes, e dispõe sobre a aplicação da sanção que inclui a prisão administrativa por até trinta dias e a exclusão do serviço público a bem da disciplina, entre outras sanções mais brandas. Não há previsão específica da sanção de acordo com a conduta proibida. Prevê-se recurso de reconsideração para a autoridade a quem o militar está imediatamente subordinado e lhe aplicou a sanção, e recurso para autoridade superior a coatora “desde que cumprida a pena imposta e no prazo de oito dias úteis” (por todos os regulamentos, vide o art.45– da reconsideração e art. 46 – do recurso à autoridade superior, do Regulamento Disciplinar da Marinha).”
“Consideramos tal dispositivo de cumprimento da pena como condição para aceitação do recurso para instância superior como flagrante violação do princípio constitucional da presunção de inocência (art.5º, LVII, verbis “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”). A presunção de inocência é um princípio magno do Estado Democrático de Direito que preside os processos em geral, incluindo os de natureza administrativa. De que adiantaria após o cidadão ter cumprido seu tempo de prisão, ser declarada a improcedência da punição? Dispositivos desta natureza não podem ser aplicados, pois não foram recepcionados pela atual ordem constitucional.”
O supracitado autor ainda chama a atenção para dispositivos vagos contidos tanto no RDE[17] quanto no RDM[18], os quais atribuem à administração o poder de decidir se determinadas condutas são ou não ofensivas ao chamado “pundonor militar[19]”. Embora não tipificadas como ilícitos administrativos, tais condutas podem ser reprimidas com punição disciplinar, inclusive com a restrição da liberdade. Antoniel Souza Ribeiro da Silva Júnior (op. cit.), assim posiciona-se:
“Mais grave violação constitucional encontramos disposto no parágrafo único do art.7 º do Regulamento disciplinar da Marinha que reza que “considera-se contravenção as condutas não especificadas no artigo desde que não seja crime militar e ofenda a hierarquia e as regras de serviço”. […]Disposição semelhante encontramos no regulamento disciplinar do Exército (modelo para o regulamento dos estados, lembre-se) e da Aeronáutica. Ou seja, o cidadão militar pode ser preso por violar uma conduta não tipificada como transgressão, “porquanto depende tão-só e somente do livre e alvedrio e talante (da autoridade competente) considerar como transgressão ‘todas as ações e omissões ou atos não especificados’no rol das transgressões… não há, pois como livrar-se de uma sanção disciplinar, se assim ‘decidir’a autoridade competente…”
As incompatibilidades entre os regulamentos disciplinares e o ordenamento jurídico brasileiro saltam aos olhos, o que só deixa as perguntas: por que razão as distorções não são corrigidas? Será que não há interesse em diminuir o poder exacerbado dentro dos quartéis?
3 O HABEAS CORPUS E AS TRANSGRESSÕES DISCIPLINARES MILITARES
O presente capítulo tratará da vedação constitucional à impetração do habeas corpus para combater punição disciplinar militar, imposta ao servidor federal ou estadual.
A Constituição Federal, promulgada em 1988, trouxe mudanças ao quadro social brasileiro. Garantiu diversos direitos aos residentes no país, tornando completa a cidadania. Tentou, inclusive, beneficiar aos próprios militares, acabando com alguns problemas que os afligiam, como o direito de votação às praças, o direito ao contraditório e ampla defesa nos processos administrativos, ao menos teoricamente, além de outros que não existiam antes da Carta Magna. Contudo, por razões escusas, alguns direitos foram retirados da esfera dos militares e atribuídos somente aos cidadãos comuns, como é o caso da utilização do remédio heróico.
Segundo o art. 5º, inc. LXVIII, da Constituição Federal: “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
Ainda invocando texto constitucional, importante frisar o disposto na cabeça do art. 5º, da Carta Magna:
“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros natos e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, […].”
Em completa dissonância dos textos acima transcritos, dispõe o § 2º, do art. 142, da Constituição Federal: “não caberá habeas corpus em relação às punições disciplinares militares”.
O texto constitucional supramencionado tem gerado inúmeras controvérsias desde sua introdução no Ordenamento Jurídico Brasileiro, através da Constituição Federal de 1934, e mantido através das cartas posteriores.
O texto sem autoria identificada publicado no Centro de Estudos de Direito Militar[20] nos dá algumas informações importantes acerca da supradita vedação. Segundo ele, a vedação à impetração de habeas corpus para combater prisão disciplinar militar ilegal foi extirpada do § 48, do art. 5º, do anteprojeto da Constituição Federal enviado à Assembléia Nacional Constituinte, restaurando, assim, a dignidade do instituto objeto deste estudo. Todavia, não se deu totalmente desta forma. Realmente o dispositivo foi retirado da parte que trata dos direitos e garantias fundamentais, porém, foi remetido para a parte que trata da defesa do Estado e das Instituições Democráticas, especificamente para o art. 142, § 2º.
Ainda segundo o texto suso mencionado, já no século retrasado, em 1834, no aviso de 19 de fevereiro daquele ano, foi escrito:
“A ordem de habeas corpus não pode ser passada em favor dos militares presos militarmente, não só por ser oposto às leis que os regem, como por ser contrária à subordinação e disciplina do exército.”
E um outro aviso, de 30 de agosto 1865, na mesma senda, dizia: “Aos militares presos militarmente é contrária às suas respectivas leis e à disciplina do exército a concessão de soltura por habeas corpus”.
Como narrado acima, conclui-se que a vedação à impetração de habeas corpus contra punição administrativa militar sempre foi desejada pelo alto comando das Forças Armadas e que, por alguma razão ainda não muito bem explicada, foi elevada a status constitucional em 1934 e mantida até os dias atuais.
Todavia, tal vedação tem sido vista com olhos diferentes tanto pelos tribunais quanto pelos juristas brasileiros e alguns cotejos entre o dispositivo em voga e o ordenamento jurídico pátrio merecem relevo.
3.1 A inconstitucionalidade do art. 142, 2º, da Constituição Federal
Uma grande parte da doutrina brasileira tem defendido que o art. 142, § 2º, é um texto inconstitucional dentro da Constituição, tendo como um de seus principais defensores Paulo Tadeu Rodrigues Rosa[21], o qual, diante da relevância para o presente trabalho, terá seu artigo sobre o tema integralmente citado:
“A construção de um Estado de Direito exige o respeito às garantias fundamentais do cidadão, que são essenciais para o desenvolvimento da sociedade e o fortalecimento das instituições. Quando da promulgação da nova Constituição Federal, os representantes do povo buscaram instituir um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. (preâmbulo da Constituição Federal de 1988).”
“A liberdade é um direito fundamental e essencial que somente pode ser cerceado no caso de prisão em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, não se permitindo prisões para averiguações ou qualquer outra espécie de procedimento que não esteja previsto em lei. No Estado de Direito, a liberdade é a regra e a prisão uma medida de exceção.”
“A preservação da ordem pública é dever do Estado que deve zelar pela integridade física e patrimonial dos administrados sob pena de responsabilidade. No cumprimento desta atividade, o Estado utiliza-se das forças policiais que estão legitimadas a empregarem a força quando esta for necessária para o restabelecimento da paz e tranqüilidade, sem que isso signifique a prática de atos abusivos ou autoritários contra qualquer pessoa. As garantias do cidadão não estão voltadas para a impunidade, mas para a efetiva aplicação da lei com justiça e equidade.”
“A prisão de uma pessoa não significa necessariamente que esta tenha praticado um ato ilícito que terá como conseqüência à imposição de uma penalidade. A privação da liberdade poderá ter sido um ato ilegal praticado por integrantes das forças policiais ou mesmo por um cidadão, sendo que a lei prevê a possibilidade desta prisão ser relaxada ou mesmo afastada. O art. 5º, inciso LXV, da CF, prevê que, “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária“.”
“No caso de prisão ilegal ou abusiva desprovida de fundamento para o cerceamento da liberdade, a CF prevê a possibilidade de interposição de habeas corpus, que é uma garantia constitucional e que poderá ser assinada por qualquer pessoa. O art. 5º, LXVIII, da CF, diz que, “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Em nenhum momento, o art. 5º, LXVIII, faz qualquer ressalva em relação aos brasileiros naturalizados, estrangeiros ou militares.”
“O art. 5º, caput, da CF, preceitua que, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (grifos nossos). Novamente, a CF não faz nenhuma ressalva quanto a igualdade prevista no art. 5º, caput, em relação aos militares (federais ou estaduais), que também são cidadãos e responsáveis pela preservação do Estado de Direito.”
“O regime jurídico dos servidores militares é diverso do regime jurídico assegurado aos servidores civis, que atualmente são regidos pela Lei n.º 8.112/90. No campo do direito administrativo militar, existe a possibilidade do servidor (federal ou estadual) ter a sua prisão administrativa decreta por uma autoridade militar sem qualquer autorização judicial neste sentido.” “O art. 5.º, inciso LXI, diz que, “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei“(grifo nosso).”
“A possibilidade da prisão administrativa ser decretada sem qualquer autorização judicial não significa que o militar tenha perdido o seu status de cidadão ou que os direitos e garantias fundamentais assegurados pela CF perderam a sua eficácia. O Estado apenas concedeu a possibilidade de cerceamento da liberdade por ato de autoridade diversa da autoridade judiciária nos casos expressamente previstos em lei como crime militar ou transgressão disciplinar militar.”
“Deve-se observar, que a maioria dos regulamentos disciplinares das forças de segurança são decretos do poder executivo (estadual ou federal) que em tese foram recepcionados pela nova ordem constitucional. Mas, qualquer alteração nos diplomas castrenses somente poderá ser realizada por meio de lei provinda do Poder Legislativo, o que não tem sido observado na atualidade, o que torna ilegal qualquer modificação pós-1988 feita por decreto.”
“A prisão administrativa encontra-se sujeita a controle jurisdicional em atendimento ao art. 5.º, inciso XXXV, da CF, segundo o qual, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito“. O militar preso sob a acusação de ter praticado uma transgressão disciplinar ou contravenção militar poderá caso esta seja abusiva interpor habeas corpus na forma do art. 5º, inciso LXVIII, da CF.”
“O § 2.º, do art. 5.º, da CF, diz expressamente que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes de tratados que a República Federativa do Brasil seja parte. Por meio de decreto legislativo e decreto provindo do poder executivo, o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), Pacto de São José da Costa Rica, que passou a ser norma interna de conteúdo constitucional por tratar de direitos e garantias fundamentais asseguradas aos cidadãos da América, que deve ser observada pelos operadores do direito.”
“O art. 7º, n.º 06, da CADH, preceitua que, “Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou detenção forem ilegais. Nos Estados Partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa“. Em nenhum momento, a Convenção Americana de Direitos Humanos fez qualquer distinção entre o cidadão civil ou militar ou mesmo vedou a possibilidade de interposição de habeas corpus nas transgressões disciplinares militares.”
“A preocupação do Congresso Constituinte com os direitos e garantias fundamentais do cidadão enumerados no art. 5.º, da CF, foi tamanha, que este no art. 60, § 4.º, inciso IV, elaborou restrições em caso de Emendas Constitucionais observando que, “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir : IV – os direitos e garantias individuais“. Por mais que o legislador derivado queira modificar as garantias constitucionais previstas no art. 5.º, da CF, terá que respeitar a vontade manifestada pelo povo através de seus representantes em 1988, por ser esta matéria integrante das denominadas cláusulas pétreas.”
“Para fundamentar o não cabimento de habeas corpus nas transgressões disciplinares os estudiosos se apóiam no art. 142, § 2º, da CF, que integra o capítulo II, da Seção III, do Título V, da CF, que trata da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas segundo o qual, “Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares” (grifo nosso). Esse dispositivo está flagrantemente em conflito com o art. 5.º, inciso LXVIII, da CF e com o art. 7.º, n.º 06, da Convenção Americana de Direitos Humanos.”
“Os militares por força de disposições regulamentares encontram-se sujeitos aos princípios de hierarquia e disciplina, mas isso não significa que os direitos e garantias fundamentais possam ser desrespeitados. As instituições no Estado de Direito devem se submeter aos princípios que regem os direitos e garantias dos cidadãos, que devem ser preservados pelo Estado sob pena de responsabilidade em atendimento ao art. 37, § 6º, da CF.”
“A vedação de cabimento de habeas corpus prevista no art., 142, § 2º, da CF, por mais que se conteste, é inconstitucional por ferir flagrantemente o disposto no art. 5.º, inciso LXVIII, da CF. Caso fosse a intenção do constituinte de limitar o seu cabimento nas transgressões disciplinares o teria feito expressamente no capítulo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, o que não ocorreu.”
“O militar que se sinta constrangido em seu direito de ir e vir está legitimado interpor habeas corpus, que é uma garantia assegurada a todos os brasileiros e até mesmo aos estrangeiros residentes no país ou que estejam de passagem no território nacional em atendimento as regras da Convenção Americana de Direitos Humanos e Declaração Universal de Direitos Humanos.”
“Em outros países, o cabimento de habeas corpus nas transgressões disciplinares é uma medida prevista expressamente como direito dos militares, que são responsáveis pela manutenção da ordem pública e da segurança externa e soberania nacional.”
“A Constituição da República de Portugal, promulgada no dia 02 de abril de 1976, no art. 31, n.º 01, preceitua que, “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o tribunal judicial ou militar consoante os casos“.”
“O militar português tem expressamente assegurado o direito de propor perante o Tribunal militar o pedido de habeas corpus contra prisão ou detenção ilegal decorrente de transgressão disciplinar, que será apreciado pela autoridade judiciária competente, na forma das leis de organização judiciária.”
“No Brasil, o militar (federal ou estadual) que sofra abuso ou ilegalidade no seu direito de ir e vir, decorrente de prisão pela prática em tese de transgressão disciplinar militar, poderá propor perante o Tribunal militar competente ação constitucional de habeas corpus inclusive com pedido de concessão de medida cautelar.”
“Os auditores militares da Justiça Militar da União ou dos Estados não possuem competência para conhecerem do pedido de habeas corpus. Se a autoridade coatora for militar federal, o pedido deverá ser distribuído diretamente ao Superior Tribunal Militar – STM, que possui competência originária para apreciar a matéria conforme Lei de Organização Judiciária. Caso a autoridade coatora seja militar estadual, o pedido deverá ser distribuído ao Tribunal de Justiça Militar – TJM, nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e nos demais Estados ao Tribunal de Justiça, que se possuir Câmara Especializada a está remeterá o pedido para análise e julgamento.”
“A hierarquia e a disciplina devem ser preservadas por serem princípios essenciais das Corporações Militares, mas os direitos e garantias fundamentais previstos no art. 5º, da CF, são normas de aplicação imediata (art. 5.º, § 1.º, da CF), que devem ser asseguradas a todos os cidadãos (civil ou militar, brasileiro ou estrangeiro), sem qualquer distinção na busca do fortalecimento do Estado de Direito, que foi escolhido pela República Federativa do Brasil, art. 1.º, da CF.”
A tese em referência, todavia, é rechaçada por boa parte da doutrina pátria. Segundo corrente encabeçada por Alexandre de Moraes, não se há de falar em norma formalmente constitucional e materialmente inconstitucional, pois o sistema constitucional brasileiro não permite tal conclusão. Alexandre de Moraes (op. cit. p. 631), acerca do tema, diz:
“As cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias inferiores em face de normas ou princípios constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado reformador, não englobando a própria produção originária.”
“O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar a incondicional superioridade normativa da Constituição Federal, portanto, não adota a teoria alemã das normas constitucionais inconstitucionais (verfassungswidrige Verfassungsnormem), que possibilita a declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais positivadas por incompatíveis com os princípios constitucionais não escritos e os postulados da justiça (Grundentscheidungen).”
“Assim, não haverá possibilidade de declaração de normas constitucionais originárias como inconstitucionais.”
Ainda rechaçando a tese aventada por Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, manifestou-se o então Ministro Moreira Alves[22] (apud Moraes, op. cit. p. 631):
“a tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é incompossível com o sistema de Constituição rígida.”
3.2 A tese dominante
Para a melhor compreensão da tese dominante, imperioso se faz recorrer ao Direito Administrativo para, a partir de alguns pontos indispensáveis, chegar-se ao núcleo central da tese majoritária acerca da possibilidade ou não de impetração de habeas corpus para combater punição disciplinar militar.
O administrador militar, na posição de comandante de Organização Militar, está imbuído do poder disciplinar. Este, segundo Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2007, p. 148), traduz-se na faculdade/dever que possui a Administração Pública de punir internamente as infrações funcionais de seus servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos da Administração.
Ainda ressaltam os autores que o poder disciplinar é de exercício caracteristicamente discricionário, pois o administrador tem, por exemplo, o poder de graduar a pena a ser imposta.
Como pôde ser observado, o administrador possui a faculdade/dever de punir internamente seus subordinados por uma falta disciplinar cometida, desde que esta esteja devidamente tipificada nos regulamentos militares. O entendimento dominante, tanto na doutrina quanto na jurisprudência do STF, é de que, se o administrador agiu corretamente exercendo o poder disciplinar e respeitou os direitos constitucionais, legais e regulamentares do servidor punido, não caberá habeas corpus se este disser respeito ao mérito da punição aplicada. Senão vejamos.
Primeiramente, cabe ressaltar que não caberá habeas corpus se a punição aplicada não for restritiva da liberdade, ou, em caso de habeas preventivo, se não houver cominada à conduta praticada em tese, pena restritiva da liberdade. Guilherme Nucci (op. cit., p. 899), sintetiza bem esta situação:
“A punição disciplinar militar que não envolve a liberdade de ir e vir não comporta jamais habeas corpus, devendo ser esgotada a instancia administrativa. Caso o militar punido não esteja satisfeito com a finalização dos seus recursos, deve socorrer-se do Poder Judiciário na órbita comum (Justiça Federal – Forças Armadas; Justiça Estadual – Polícia Militar). Nessa ótica, editou-se a Súmula 694 do STF: “Não cabe habeas corpus contra a imposição da pena de exclusão de militar ou de perda de patente ou de função pública”;”
Entretanto, se a punição disciplinar for restritiva de liberdade ou se houver cominada pena desta natureza, cabível será o habeas corpus a ser impetrado na Justiça competente (como já mencionado, Justiça Federal para militares das Forças Armadas e Justiça Estadual para militares da Forças Auxiliares), desde que não diga respeito ao mérito ou à conveniência da punição. Alexandre de Moraes (op. cit. p. 153) sintetiza de forma bem clara este posicionamento:
“O art 142, § 2º, da Constituição Federal estabelece que não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares. Esta previsão constitucional deve ser interpretada no sentido de que não haverá habeas corpus em relação ao mérito das punições disciplinares militares.
Dessa forma, a Constituição Federal não impede o exame pelo Poder Judiciário dos pressupostos de legalidade a saber: hierarquia, poder disciplinar, ato ligado à função e pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente.”
O louvado Pontes de Miranda (1962 apud Moraes, op. cit., p. 153), ainda se manifestando sob a égide da Constituição Federal de 1946, manifestou-se:
“Quem diz transgressão disciplinar refere-se, necessariamente a (a) hierarquia, através da qual flui o dever de obediência e de conformidade com instruções, regulamentos internos e recebimentos de ordens, (b) poder disciplinar, que supõe: a atribuição de direito de punir, disciplinarmente, cujo caráter subjetivo o localiza em todos, ou em alguns, ou somente em algum dos superiores hierárquicos; (c)ato ligado à função; (d) pena, suscetível de ser aplicada disciplinarmente, portanto, sem ser pela Justiça como Justiça;”
“Ora desde que há hierarquia, há poder disciplinar, há ato e há pena disciplinar, qualquer ingerência da Justiça na economia moral do encadeamento administrativo seria perturbadora da finalidade mesma das regras que estabelecem o dever de obediência e o direito de mandar.”
Também defendendo a tese explanada, ensina Guilherme Nucci (op. cit., p. 899):
“A punição que envolva prisão disciplinar contra militar é uma das modalidades de exclusão da esfera do habeas corpus. Entretanto, é de ser admitido o habeas corpus, em situações excepcionais. Sobre o tema, expressa-se Antonio Magalhães Gomes Filho: “Esse único caso de impossibilidade do pedido de habeas corpus é justificado pelos princípios de hierarquia e disciplina inseparáveis das organizações militares, evitando que as punições aplicadas pelos superiores possam ser objeto de impugnação e discussão pelos subordinados”. Mas ressalta que a proibição não é absoluta, devendo ser admitido habeas corpus nos seguintes casos: incompetência da autoridade, falta de previsão legal para a punição, inobservância das formalidades legais ou excesso de prazo de duração da medida restritiva da liberdade. E argumenta ainda que não poderia haver proibição no capítulo reservado às Forças Armadas, pois seria uma limitação de um direito fundamental (liberdade de locomoção). Os direitos e garantias fundamentais têm hierarquia diferenciada, até porque tem a garantia da eternidade (art. 60, § 4º, IV) (O habeas corpus como instrumento de proteção direito à liberdade de locomoção, p. 66-67). Parece-nos correta essa visão, com a ressalva de que a utilização do habeas corpus contra a prisão disciplinar militar somente pode dar-se em casos teratológicos, como os apontados antes, jamais questionando-se a conveniência e oportunidade da medida constritiva à liberdade.”
Igualmente em defesa da tese em exame, manifesta-se igualmente com muita propriedade o Dr. Ricardo Bellido[23]:
“A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, dispõe em seu artigo 5.º, inciso LXVIII que “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder”. Assim, busca-se proteger a liberdade que é um direito fundamental e essencial do indivíduo.”
“Por outro lado, a própria Carta Política reza no inciso XXXV do art. 5.º que a “lei não pode excluir da apreciação do Poder hierárquico lesão ou ameaça a direito”, estabelecendo, destarte, um conflito aparente de normas constitucionais.”
“Conflito inexistente. Ao se vedar a concessão de habeas corpus em relação a punições disciplinares militares, objetiva-se excluir da apreciação do judiciário o mérito do ato administrativo punitivo.
Nada mais justo e coerente. A punição a ser aplicada a um militar deve ser decidida pelo seu comandante, não cabendo qualquer apreciação dos motivos determinantes pelo Poder Judiciário.”
“Entretanto, tal não se aplica quando se analisa a forma, a legalidade ou o abuso de poder. Um comandante militar pode e deve punir os seus subordinados, desde que atente para o princípio do devido processo legal. Caso contrário, caberá a apreciação pelo Poder Judiciário através do remédio heróico do writ da liberdade.”
“Com efeito, os tribunais já se posicionaram sobre o assunto, tendo o STF firmado entendimento no sentido de que no habeas corpus nas transgressões disciplinares militares, se examinem os pressupostos de legalidade da transgressão, quanto à existência da correta hierarquia; se havia no caso apresentado o poder disciplinar, que legitima a punição; se o ato administrativo está coerente com a função de autoridade e, finalmente, se a pena ao transgressor pode ser aplicada.”
“Logo, no que tange à punição disciplinar militar é preciso verificar a presença dos seguintes requisitos de legalidade: a existência de autoridade competente para aplicar a punição, a existência de previsão legal para a punição e, por fim, se houve a possibilidade de defesa do acusado.”
“Diante da ausência de um desses requisitos será cabível o habeas corpus, visto que “a intervenção do Poder Judiciário limita-se ao exame apenas da legalidade do ato e não de sua justiça. Se é justo, injusto, razoável ou não, são aspectos do mérito administrativo, que ao Judiciário não cabe examinar, cumprindo, exclusivamente, às corporações militares avaliar tais parâmetros de forma discricionária”.”
A tese de que cabe habeas corpus em relação aos pressupostos da legalidade, devido processo legal, contraditório, competência, limites do poder disciplinar e outros, como exposto acima, é dominante também no entendimento do STF, conforme excertos que serão colacionados a seguir.
O Ministro Moreira Alves (Habeas corpus 70648-7, Rio de Janeiro, 1993), em mais um brilhante ensinamento, assim se manifestou:
“Também na emenda Constitucional n. 1/69, o artigo 153, § 20 – à semelhança do que ora ocorre com o § 2º do artigo 142 da atual Constituição que restringiu esse preceito às punições disciplinares militares – se estabelecia que “nas transgressões disciplinares não caberá habeas corpus”. E, a respeito, salientava Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1 de 1969, tomo V, 2ª edição, 2ª tiragem, os. 315/316, São Paulo, 1974), após acentuar que quatro eram os pressupostos da transgressão disciplinar (a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente):”
“É possível, porém, que falte algum dos pressupostos. Se, nas relações entre o punido e o que puniu não há hierarquia, ainda que se trate de hierarquia acidental prevista por alguma regra jurídica, porque essa hierarquia também é e pode constituir o pressuposto necessário – de transgressão disciplinar não se há de falar. Basta que se prove não existir tal hierarquia, nem mesmo acidental, para que não seja caso de invocar o texto constitucional, e o habeas corpus é autorizado. Mas hierarquia pode existir, completa, permanente, clara, sem existir o poder disciplinar: algumas vezes, o funcionário público, hierarquicamente superior a outro, não tem o poder de aplicar pena disciplinar ao seu subalterno. Por onde se vê que a hierarquia e o poder disciplinar, aquela, mais objetiva que subjetiva, porquanto ligada ao serviço e à organização das funções, e esse, mais subjetivo que objetivo, por constituir, tão-só, competência de punir, são pressupostos necessários, mas autônomos. Se há hierarquia, se há poder disciplinar e há ato ligado à função, ligação cujo conceito pertence à lei mesma que regula o poder disciplinar, a pena disciplinar pode ser aplicada, e nada tem com isso a justiça. Se o ato é absolutamente estranho à função, e.g., se o funcionário público civil publica livro de versos, falta o pressuposto do ato ligado à função e, pois, de transgressão disciplinar não se há de cogitar. O texto constitucional não veda o habeas corpus em tal hipótese. Ainda mais: é possível que haja hierarquia, poder disciplinar, ato ligado à função; e não haja pena. Seria absolutamente contra os princípios que se afastasse o remédio jurídico processual do habeas corpus. Assim, se não está em tempo de guerra com país estrangeiro, e alguma autoridade militar, inclusive o chefe das forças armadas, que é o Presidente da República, condena, disciplinarmente, à pena de morde algum oficial ou praça, cabe o remédio jurídico processual do habeas corpus. Outrossim, se a autoridade civil ou militar aplica, disciplinarmente, pena de banimento, de confisco ou de prisão perpétua, ou, sem lei que lho permita, de prisão”.
Esta lição continua válida em face da atual Constituição que apenas restringiu a exceção já constante na Emenda Constitucional n. 1/69 às punições disciplinares militares.”
“Portanto, está correto o parecer da Procuradoria-Geral da República ao concluir, verbis: “no caso concreto, como se colhe do parecer do Ministério Público Federal (fls. 27/29) e da própria exposição do despacho do Ministro-Relator no STJ, há alegação de vício de procedimento e falta do pressuposto do ato ligado à função, o que, em tese, não exclui liminarmente o writ. Como está no parecer ‘resta indagar se a prisão do paciente, determinada como sanção disciplinar, efetivamente guarda tal característica’. E ‘quem faz essa indagação, diante de pedido de habeas corpus, é o Tribunal competente para julgar o writ’ (RHC 55.418-RS, rel. Min. Soares Muñoz, DJU 16.09.77).”
“Pelo exposto, tendo em vista que o artigo 142, § 2º, da Constituição Federal, não afasta o controle judicial da legalidade do ato administrativo, opino pelo deferimento parcial da ordem para que, cassado o despacho de indeferimento liminar, seja examinado o mérito da impetração como for de direito”.
“Assim, defiro o presente habeas corpus para cassar o despacho que, no Superior Tribunal de Justiça, indeferiu liminarmente o writ impetrado perante ele, e determinar que aquela Corte, afastada a preliminar ali examinada, o julgue como entender de direito.”
Outro julgado do STF a respeito da matéria.
“Acórdão Origem: STF – Supremo Tribunal Federal. Classe: HC – HABEAS
CORPUS. Processo: 65573 UF: DF – DISTRITO FEDERAL. Fonte DJ 08-04-1988 PP-07472 EMENT VOL-01496-01 PP-00177 RTJ VOL-00132-02 PP-00721 Relator(a) CÉLIO BORJA Descrição Votação: unânime. Resultado: provido. Acórdãos citados: HC-63649, HC-64038, HC-64881. N.PP.: (18). Alteração: 21/11/03, (MLR). Ementa – ‘HABEAS CORPUS’. 1) PEDIDO PROTOCOLIZADO NESTA CORTE ANTES DA PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO DO STM, EM ‘HABEAS CORPUS’ ALI DENEGADO, A FIM DE RESGUARDAR A LIBERDADE DE IR E VIR DO PACIENTE. CONHECIMENTO DO ‘WRIT’ COMO RECURSO ORDINÁRIO (ART. 119, II, ‘C’, CF). PRECEDENTES DO STF. 2) MILITAR. PRISÃO. TRANSGRESSAO DISCIPLINAR. INEXISTÊNCIA, NO CASO CONCRETO, DE DELITO DE NATUREZA DISCIPLINAR, UMA VEZ QUE O ATO EXIGIDO DO RECORRENTE – DEVOLUÇÃO DAS CHAVES DO IMÓVEL FUNCIONAL NA POSSE DE SUA EX-MULHER, ESTANDO A QUESTÃO ‘SUB JUDICE’ – O QUAL, NÃO CUMPRIDO, DETERMINOU A SUA CUSTODIA PELO SUPERIOR HIERARQUICO, DEPENDERIA DO EXERCÍCIO DE PRATICA LEGALMENTE VEDADA E PENALMENTE TIPIFICADA E PUNIVEL (ART. 345, CP). ‘HABEAS CORPUS’ CONHECIDO COMO RECURSO, ESTE PROVIDO PARA CONCEDER A ORDEM REQUERIDA.”
O STJ, depois de algumas decisões em sentido contrário, acabou consolidando entendimento na mesma senda do STF.
“Acórdão Origem: STJ – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Classe: RHC – RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS – 17422 Processo: 200500414512 UF: RN Órgão Julgador: QUINTA TURMA Data da decisão: 26/09/2006 Documento: STJ000715011 Fonte DJ DATA:23/10/2006 PÁGINA:325 Relator(a) GILSON DIPP Decisão Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça. “A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.” Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e Felix Fischer votaram com o Sr. Ministro Relator. Ementa CRIMINAL. RHC. PUNIÇÃO DISCIPLINAR MILITAR. LIBERDADE DE IR E VIR. INDÍCIOS DE CRIME MILITAR. INSTAURAÇÃO DE SINDICÂNCIA. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. INQUÉRITO POLICIAL MILITAR. VIA ADEQUADA. RECURSO PROVIDO. A jurisprudência desta Corte orienta-se no sentido de que, em se tratando de punição disciplinar por transgressão militar, só se pode admitir a análise da legalidade do ato, via habeas corpus, quando se encontrar em jogo a liberdade de ir e vir do cidadão, que é a hipótese dos autos. Verificada a presença de indícios de infração penal, a instauração de sindicância configura ofensa ao devido processo legal e, em conseqüência, está eivada de vício, pois a via adequada para tal apuração é o inquérito policial militar. Sobressai ilegalidade flagrante no procedimento atacado, no tocante à deficiência da defesa do paciente por ofensa ao devido processo legal. Deve ser cassado o acórdão recorrido para restabelecer a decisão do Julgador de 1º grau concessiva de habeas corpus ao recorrente. Recurso provido, nos termos do voto do Relator. Data Publicação 23/10/2006”
E assim tem decidido a cúpula do Judiciário no país.
Informações Sobre o Autor
Marcelo Dantas Ritta