Direito Penal

O homicídio provocado por embriaguez na direção de veículo automotor configura culpa consciente ou dolo eventual?

Nome do Autor: Agis Wilson Macedo Filho – Delegado de Polícia da PC/ES. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Estácio. Pós-graduando em Prevenção e Repressão à Corrupção pela Faculdade Estácio/CERS. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória. E-mail: agismacedo@hotmail.com.

Nome do coautor: Lucas Amadeu Lucchi Rodrigues – Advogado. Mestre em Segurança Pública pela Universidade Vila Velha. Pós-graduado em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio. Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial pela Faculdade Damásio. Graduado em Direito pela Universidade Vila Velha. E-mail: advlucaslucchi@gmail.com.

Nome do coautor: Ruben Mauro Lucchi Rodrigues – Advogado. Mestre em Segurança Pública pela Universidade Vila Velha. Pós-graduado em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Graduado em Direito pela Universidade Vila Velha. E-mail: advrubenlucchi@gmail.com.

Resumo: O presente artigo destina-se a analisar, com base na doutrina e jurisprudência atuais, a problemática existente na relação entre a embriaguez e o dolo eventual ou a culpa consciente no contexto do homicídio praticado na direção de veículo automotor, o que repercute no âmbito penal e processual penal. Tal aspecto subjetivo, aliás, é o que permite a responsabilização penal, já que pelo resultado só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente. Para tanto, no decorrer do artigo, foi esclarecido o conceito de dolo eventual e de culpa consciente, que, em verdade, é apenas o primeiro passo para a compreensão do tema. Também foi explorada a análise das teorias diferenciadoras entre o dolo eventual e a culpa consciente, dentre as quais se destacaram a teoria da vontade e a teoria da probabilidade. No Brasil, aponta a doutrina, prevalece a teoria da vontade, com fundamento na exposição de motivos do Código Penal, embora a jurisprudência ainda permaneça vacilante por influência direta do corpo social e da mídia, que almejam uma sanção penal mais adequada à gravidade do crime de trânsito. De qualquer forma, não há dúvida de que a embriaguez, por si só, não autoriza a conclusão de que o agente atuou com dolo eventual em relação ao resultado morte, sendo indispensável a presença de elementos que denotem sua aceitação.

Palavras-chave: Embriaguez ao volante. Código de trânsito brasileiro. Dolo eventual. Culpa consciente.

 

Abstract: This article aims to analyze, based on current doctrine and jurisprudence, the problem that exists in the relationship between drunkenness and eventual deceit or conscious guilt in the context of homicide in the direction of a motor vehicle, which has repercussions in the criminal sphere and criminal procedure. This subjective aspect, moreover, is what allows criminal liability, since the result is only liable by the agent who has caused it at least culpably. Therefore, throughout the article, there was a concern to clarify the concept of eventual deceit and conscious guilt, which, in fact, is only the first step in understanding the theme. The analysis of the differentiating theories between eventual deceit and conscious guilt was also explored, among which the theory of will and the theory of probability stood out. In Brazil, the doctrine points out, the theory of will prevails, based on the explanatory memorandum of the Penal Code, although the jurisprudence still remains unstable due to the direct influence of the social body and the media, which aim for a penal sanction more adequate to the gravity of the crime. of traffic. In any case, there is no doubt that drunkenness, by itself, does not authorize the conclusion that the agent acted with eventual intent in relation to the death result, being essential the presence of elements that denote its acceptance.

Keywords: Drunk driving. Brazilian traffic code. Possible deception. Conscious guilt.

 

Sumário: Introdução.1. Conceitos fundamentais. 2. Teorias sobre a distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente. 3. Embriaguez e o dolo eventual em relação ao resultado morte. 4. Revogação da qualificadora prevista no artigo 302, §2º do CTB pela Lei 13.281/16. Conclusão. Referências.

 

Introdução

O “estado de guerra” existente no trânsito brasileiro não é novidade para ninguém. Somente em 2011, conforme registra o site “Portal da Saúde”, vinculado ao Ministério da Saúde, ocorreram mais de 42 mil mortes no trânsito, sendo que aproximadamente 21% destes eventos estão diretamente relacionados ao consumo de álcool.

Diante do referido índice, nota-se que a embriaguez na condução de veículo automotor tem despontado como causa relevante das mortes ocorridas no trânsito, merecendo, por tal razão, atenção especial de toda a sociedade.

Tamanha é a preocupação com o tema que surgiram debates, no âmbito penal, a respeito do elemento subjetivo (dolo eventual ou culpa consciente) dos motoristas embriagados, em especial diante da sensação de impunidade causada pela pena irrisória do artigo 302, caput, da Lei 9.503/97, que trata do homicídio culposo na direção de veículo automotor, o que acarreta importantes reflexos nas searas penal (pena aplicável em abstrato etc.) e processual penal (rito procedimental a ser seguido etc.).

Neste contexto é que sobressai a importância do presente artigo científico, que se destina a realizar uma análise dos conceitos de dolo eventual e de culpa consciente, e de suas teorias diferenciadoras, para, em seguida, identificar, no âmbito doutrinário e jurisprudencial, se a embriaguez é fator capaz de, por si só, caracterizar o dolo eventual no homicídio provocado na direção de veículo automotor.

 

  1. Conceitos fundamentais

No Brasil, por força da vedação à responsabilidade penal objetiva, que, segundo alguns, é reflexo direto de uma das acepções atribuíveis ao princípio da culpabilidade, pelo resultado só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.

Bitencourt (2012, p. 99), no mesmo passo, após reconhecer o caráter multifacetário do princípio da culpabilidade, esclarece que ele também pode ser entendido como um conceito contrário à ideia de responsabilidade objetiva, o que significa dizer que “ninguém responderá por um resultado absolutamente imprevisível se não houver obrado, pelo menos, com dolo ou culpa”.

É interessante destacar, entretanto, que há fundamentada divergência quanto à vinculação exclusiva da proibição da responsabilidade penal objetiva ao princípio da culpabilidade, em especial após a adoção da teoria finalista pelo direito penal brasileiro, conforme destacam os penalistas Zaffaroni e Pierangeli:

“[…] O princípio de culpabilidade, em sua formação mais simples, diz que ‘não há delito sem culpabilidade’. No tempo em que se sustentava a teoria complexa da culpabilidade, isto é, em que a  culpabilidade era entendida como reprovabilidade, mas nela incluídos também o dolo e a culpa, esta fórmula breve expressava a necessidade de que no delito houvesse, ao menos, culpa, e, além disto, que o injusto fosse reprovável ao autor. Dentro da concepção por nós sustentada, em que a culpa não faz parte da culpabilidade, mas configura uma estrutura típica, aquilo que antes se chamava ‘princípio da culpabilidade’ representa duas exigências que devem ser analisadas separadamente, em dois níveis distintos: a) na tipicidade, implica a necessidade de que a conduta – para ser típica – deva ao menos ser culposa; b) na culpabilidade, implica que não há delito se o injusto não é reprovável ao autor (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2011, p. 455).”

De qualquer forma, resta evidente que a responsabilização penal depende da prova do dolo ou da culpa do agente, ônus que pertence à acusação (Ministério Público ou querelante), não havendo que se falar em presunção absoluta ou relativa neste aspecto.

Fixadas estas premissas, cumpre-nos expor os conceitos de dolo eventual e culpa consciente, cujos contornos teóricos, por conta de mais de um século de trabalho da dogmática do direito penal alemão (Ingeborg Puppe, Hans Welzel, Kark Engisch), já foram assimilados por grande parte da doutrina e jurisprudência nacionais.

A correta análise dos institutos, aliás, conforme destaca Callegari (2011, p. 291), é fundamental para que “não se distorçam os conceitos elementares da teoria do delito e que o enquadramento obedeça a critérios de racionalidade e não de passionalidade”.

De início, com arrimo no artigo 18, inciso I, do Código Penal Brasileiro, é possível verificar que há dolo quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

É a partir do supracitado conceito legal, inclusive, que a doutrina faz a distinção entre o dolo direto e o dolo eventual. Há também outras classificações de dolo: dolo de ímpeto, dolo de propósito, dolo geral, entre outros. No presente artigo, porém, estudaremos apenas o dolo eventual, premissa fundamental para o entendimento do tema.

Há dolo eventual quando o agente conscientemente prevê como possível a realização do tipo penal, embora não queira efetivá-lo, e voluntariamente aceita o risco de produzir o resultado, assumindo uma posição de indiferença em relação ao bem jurídico tutelado pela norma penal (ex.: vida, patrimônio, integridade física, honra).

No mesmo passo, Bitencourt (2012, p. 637) assinala que há dolo eventual “quando o agente não quiser diretamente a realização do tipo penal, mas aceitá-la como possível ou até provável, assumindo o risco da produção do resultado”.

Para o melhor entendimento do tema, vejamos um exemplo trazido pela doutrina:

“[…] Imagine o exemplo de um fazendeiro, colecionador de armas de fogo, que treina tiro ao alvo em sua propriedade rural. Certo dia ele decide atirar com um fuzil de longo alcance. Sabe que os projéteis têm capacidade para chegar até uma estrada próxima, com pequeno fluxo de transeuntes. Prevê que, assim agindo, pode matar alguém. Nada obstante, assume o risco de produzir o resultado, e insiste em sua conduta. Acaba atingindo um pedestre que vem a falecer. Responde por homicídio doloso, pois presente se encontra o dolo eventual (MASSON, 2015, p. 1.140/1.141).”

De outro lado, no que se refere ao conceito de culpa, é fácil notar que o Código Penal Brasileiro não ocupou-se em trazê-lo. No artigo 18, inciso II, o legislador apenas elencou suas três modalidades: imprudência, imperícia e negligência. Porém, a partir da reunião dos elementos estruturantes da culpa, é possível defini-la como a violação do dever de cuidado objetivo que resulta na causação de um resultado ilícito, objetivamente previsível ou previsto, mas não querido pelo agente. Não é outra, aliás, a lição de Masson (2015, p. 1.184):

“[…] Crime culposo é o que se verifica quando o agente, deixando de observar o dever objetivo de cuidado, por imprudência, negligência ou imperícia, realiza voluntariamente uma conduta que produz resultado naturalístico, não previsto nem querido, mas objetivamente previsível, e excepcionalmente previsto e querido, que podia, com a devida atenção, ter evitado.”

De forma semelhante ao dolo, também há diversas classificações de culpa: culpa imprópria, culpa por assimilação, culpa indireta, culpa presumida. Em vista do objeto do presente artigo, porém, examinaremos apenas o conceito de culpa consciente, que, em apertada síntese, ocorre quando o agente, após prever o resultado, acredita que ele não irá acontecer, em razão de suas habilidades especiais.

Assim entendem os penalistas Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 451): “[…] aquela em que o sujeito ativo representou para si a possibilidade da produção do resultado, embora tenha rejeitado, na crença de que, chegando o momento, poderá evitá-la ou simplesmente não ocorrerá”.

No mesmo sentido, Bitencourt afirma que há culpa consciente:

“[…] quando o agente conhece a perigosidade da sua conduta, representa a produção do resultado típico como possível (previsibilidade), mas age deixando de observar a diligência a que estava obrigado, porque confia convictamente que ele não ocorrerá (BITENCOURT, 2012, p. 680).”

Para o melhor entendimento do assunto, vale citar um exemplo trazido pela doutrina:

“[…] ‘A’ sai atrasado de casa em uma motocicleta, e se dirige para uma entrevista que provavelmente lhe garantirá um bom emprego. No caminho, fica parado em um congestionamento. Ao perceber que a hora combinada se aproxima, e se continuar ali inerte não chegará a tempo, decide trafegar um quarteirão pela calçada, com o propósito de, em seguida, rumar por uma via alternativa descongestionada. Na calçada, depara-se com inúmeros pedestres, mas mesmo assim insiste em sua escolha. Certamente lhe é previsível que, assim agindo, pode atropelar pessoas, e, consequentemente, feri-las e inclusive matá-las. Mas vai em frente e acaba por colidir com uma senhora de idade, matando-a. Questiona-se: trata-se de homicídio culposo na direção de veículo automotor (CTB, art. 302) ou de homicídio doloso (CP, art. 121)? Se ‘A’, após prever o resultado, acreditar honestamente que ele não irá ocorrer, até mesmo porque fará de tudo para evitá-lo, estará desenhada a culpa consciente. Contudo, se, após a previsão do resultado, assumir o risco de produzi-lo, responderá pelo dolo eventual (MASSON, 2015, p. 1.204).”

 

  1. Teorias sobre a distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente

Apesar de todo esforço conceitual realizado, não se pode afastar a necessidade da análise, ainda que sucinta, das principais correntes teóricas destinadas ao estabelecimento da distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente, quais sejam: a teoria da probabilidade e a teoria da vontade ou do consentimento.

A teoria da probabilidade, fundada no elemento intelectivo do dolo, aponta que só há dolo eventual quando o autor representa o resultado ilícito como de muito provável realização e, apesar disso, age, independente de admitir ou não sua realização. Há culpa consciente, de outro lado, se a realização for não muito provável ou for remota. Santos, leciona que:

“[…] a teoria da probabilidade define dolo eventual, variavelmente, ou pela representação de um perigo concreto para o bem jurídico (JOERDEN), ou pela consciência de um quantum de fatores causais produtor de sério perigo qualificado para o bem jurídico (PUPPE) – para mencionar apenas suas formulações mais modernas (SANTOS, 2008, p. 147).”

A falha desta teoria, conforme adverte Callegari (2011, p. 311), ocorre nos casos em que “o sujeito, mesmo sendo consciente da escassa probabilidade de que sua conduta causara o resultado típico, atuava, ainda assim, com a intenção de provocá-lo”, pois a hipótese se amolda mais ao conceito de dolo do que ao de culpa consciente.

Em contrapartida, a teoria da vontade ou do consentimento, elaborada por MEZGER e fundada no elemento volitivo do dolo, aponta que o dolo eventual deve resultar de um vínculo emocional existente entre agente e o resultado, o que ocorre por meio de uma ratificação, um consentimento, uma aprovação etc. Não existindo tal relação, haverá só culpa. Aqui, sem dúvida, há uma ampliação do conceito de querer do agente.

No mesmo sentido, Bitencourt ensina que:

“[…] para a teoria da vontade, é insuficiente que o agente represente o resultado como de provável ocorrência, sendo necessário que a probabilidade da produção do resultado seja incapaz de remover a vontade de agir, ou seja, o valor positivo da ação é mais forte para o agente do que o valor negativo do resultado, que, por isso, assume o risco de produzi-lo (BITENCOURT, 2012, p. 686).”

Segundo Callegari (2011), o grande problema da teoria da vontade é vincular, no caso concreto, as  relações emocionais do agente ao resultado, algo que, no final do século XIX, foi parcialmente solucionado pelas fórmulas propostas por Reinhard Frank, que podem ser resumidas nas seguintes assertivas: há dolo eventual quando o agente, após representar como certo o resultado, ainda assim atuaria; há culpa consciente quando o agente, após representar como certo o resultado, deixar de agir.

Na mesma linha, destaca Masson que:

“[…] Deve-se ao alemão Reinhart Frank a formulação de um princípio, rotulado de teoria positiva do conhecimento, que é útil como critério prático para identificar o dolo eventual. Para este postulado, há dolo eventual quando o agente diz a si mesmo: “seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso agirei”, revelando a sua indiferença em relação ao resultado (MASSON, 2015, p.1184)”.

Na atualidade, com fundamento na exposição de motivos do Código Penal, prevalece que a distinção entre os referidos institutos deve ter por base a teoria da vontade ou do consentimento, posição também sustentada por Alberto Silva Franco (1997, p. 284).

É com base na teoria da vontade, inclusive, que Nucci faz a distinção entre os institutos:

“[…] Diferença entre a culpa consciente e o dolo eventual: trata-se de distinção teoricamente plausível, embora, na prática, seja muito complexa e difícil. Em ambas as situações o agente tem a previsão do resultado que sua conduta pode causar, embora na culpa consciente não o admita como possível e, no dolo eventual admita a possibilidade de se concretizar, sendo-lhe indiferente (NUCCI, 2003, p. 146).”

 

  1. Embriaguez e o dolo eventual em relação ao resultado morte

A utilização da embriaguez como fator de, por si só, configurar o dolo eventual no homicídio de trânsito, é algo desejado por parcela da população e da mídia, o que repercute inclusive no âmbito dos tribunais, conforme destaca o professor Capez:

“[…] Também pode haver delito culposo quando o sujeito dirige embriagado e em velocidade superior à permitida (STJ, Apn 189-RS, Corte Especial, Rel. Min. Garcia Vieira, j. 5-9-2001). Há entretanto, um segmento da doutrina e da jurisprudência que, em determinadas situações, como o acidente de trânsito provocado pelo excesso de velocidade, ou pelo fato de o condutor se encontrar em estado de embriaguez, ou em decorrência de competição não autorizada (racha), ou pelo fato de o agente não possuir habilitação para dirigir, tem considerado, por vezes, a existência de dolo eventual” (CAPEZ, 2012, p. 141).”

Motivados por tal sentimento, inclusive, tem sido promovidas campanhas com slogans polêmicos (ex.: gente boa também mata), por vezes com a intenção de

evidenciar que há assunção de risco de causar o resultado morte por parte do condutor embriagado, promovendo o indevido alargamento do conceito de dolo eventual.

Ocorre que o desvirtuamento de teorias com bases sólidas, como aquelas que estabelecem os contornos do dolo eventual e da culpa consciente, não é o melhor caminho a seguir para afastar a impunidade trazida pela irrisória sanção penal do homicídio culposo na direção de veículo automotor prevista no Código de Trânsito.

Callegari, no mesmo passo, adverte que:

“[…] se a sociedade clama por uma maior responsabilização dos agentes causadores de mortes ou lesões no trânsito, deve-se mudar a própria lei penal, através do legislativo, que modificaria as sanções e o tratamento dos delitos de trânsito e não através do judiciário (CALLEGARI, 2011, p. 291).”

De qualquer modo, em função de diversos fatores (reportagens divulgadas pela imprensa, campanhas educativas promovidas pelo governo, dentre outras formas de divulgação), salvo raras exceções, não há quem desconheça os elementos constitutivos do tipo penal do homicídio, seja aquele previsto no Código Penal, seja aquele previsto no Código de Trânsito.

Porém, ter o referido conhecimento, por si só, não implica em assumir o risco de produzir qualquer resultado, já que a consciência representa só o aspecto cognitivo do dolo. Falta o aspecto volitivo, que exige avaliar se a tomada de decisão do agente dirigida ao resultado ilícito tenha sido previamente valorada de modo positivo.

Neste sentido, vale destacar a seguinte lição de Zaffaroni e Pierangeli:

“[…] o reconhecimento de que o dolo é uma vontade individualizada em um tipo, obriga-nos a reconhecer em sua estrutura os dois aspectos em que consiste: o conhecimento pressuposto ao querer e o próprio querer (que não pode existir sem conhecimento). Isto dá lugar aos dois aspectos que o dolo compreende: a) o aspecto de conhecimento ou aspecto cognoscitivo do dolo; e b) o aspecto do

querer ou aspecto volitivo do dolo (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2011, p. 419).”

Assumir o risco, assim, significa mais que ter consciência. Pressupõe, conforme impõe a teoria da vontade ou do consentimento, que o agente aceite antecipadamente o resultado penalmente relevante, caso ela venha ocorrer.

Callegari, no mesmo sentido, leciona que:

“[…] A conjugação da consciência e da vontade representa o cerne do dolo e esses dois momentos definidores não são estranhos ao dolo eventual que, como observa Díaz Palos, ‘é dolo antes que eventual’ (Dolo Penal, Barcelona, p. 97). E por ser dolo e, desta forma, exigir os dois momentos, não pode ser conceituado com o desprezo de um deles, como fazem os adeptos da teoria da probabilidade, que se desinteressam, por completo, do momento volitivo. Assim, não basta que haja dolo eventual que o agente considere sumamente provável que, mediante seu comportamento, se realize o tipo, nem que atue consciente da possibilidade concreta de produzir o resultado, nem mesmo que tome a sério o perigo de produzir possível consequência acessória. Não é exatamente no nível atingido pelas possibilidades de concretização do resultado que se poderá decretar o dolo eventual e, sim, numa determinada relação de vontade entre esse resultado e o agente. Daí a posição mais correta dos defensores da teoria do consentimento que se preocupam em identificar uma manifestação de vontade do agente em relação ao resultado. Tolerar o resultado, consentir em sua provocação, estar a ele conforme, assumir o risco de produzi-lo não passa de formas diversas de expressar um único momento, o de aprovar o resultado alcançado, enfim, o de querê-lo (CALLEGARI, 2011, p. 323/324).”

Diante disso, não se pode concluir, tão só pela existência da embriaguez, que houve a prévia aceitação do risco de produzir o resultado morte, sob pena da adoção de uma presunção em desfavor do réu, o que não se pode admitir em sede de direito penal, em especial diante do princípio constitucional da presunção de inocência.

Por exemplo, há culpa consciente (e não dolo eventual) na conduta do motorista embriagado que resolve seguir para casa dirigindo seu veículo com a observância de todas as regras de trânsito, confiando sinceramente que suas habilidades impedirão qualquer acidente, mas, em função do mal funcionamento do sistema de freio por falta da devida manutenção, acaba por atropelar e matar um pedestre.

Na prática, isso nos permite concluir que, mais do que a própria embriaguez, o dolo eventual exige a presença de outros elementos que possam demonstrar a aceitação do resultado, o que deverá ser feito sempre a partir da análise das circunstâncias do caso concreto, e não com fundamento na repercussão social ou midiática do fato. De outro modo, não existindo elementos que permitam concluir pela aceitação do resultado (dolo eventual), há que se verificar a existência de eventual crime culposo.

A jurisprudência ainda é vacilante, algumas vezes adotando a teoria da vontade e outras vezes, indevidamente, a teoria da probabilidade, senão vejamos:

PENAL. HOMICÍDIO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. EMBRIAGUEZ. PRESUNÇÃO SIMPLÓRIA DE DOLO EVENTUAL. IMPOSSIBILIDADE SEM MAIORES DEMONSTRAÇÕES QUE LEVEM A CONCLUIR PELO ELEMENTO VOLITIVO. IMPETRAÇÃO NÃO CONHECIDA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA RESTABELECER A DECISÃO DO JUÍZO SINGULAR. 1 – Não descritos na denúncia elementos que demonstrem o dolo, ainda que na forma eventual, não se pode ter por escorreito o acórdão que encampa acusação nesses moldes deduzida. 2 – A embriaguez, por si só, sem outros elementos do caso concreto, não pode induzir à presunção, pura e simples, de que houve intenção de matar, notadamente se, como na espécie, o acórdão concluiu que, na dúvida, submete-se o paciente ao Júri, quando, em realidade, apresenta-se de maior segurança a aferição técnica da prova pelo magistrado da tênue linha que separa a culpa consciente do dolo eventual. 3 – Impetração não conhecida, mas concedida a ordem de ofício para restabelecer a decisão de primeiro grau que desclassificou a conduta para homicídio culposo de trânsito. (STJ – HC: 328426 SP 2015/0153353-7, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Publicação: DJ 03/08/2015) (BRASIL, 2019a).

HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR, SOB A INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA NÃO EVIDENCIADA DE PLANO. EXCLUSÃO DO DOLO EVENTUAL. NECESSIDADE DE ACURADA ANÁLISE DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INVIABILIDADE. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. A existência de eventual erro na tipificação da conduta pelo Órgão Ministerial não torna inepta a denúncia e, menos ainda, é causa de trancamento da ação penal, pois o acusado se defende do fato delituoso narrado na exordial acusatória e, não, da capitulação legal dela constante. 2. O trancamento da ação penal pela via de habeas corpus é medida de exceção, que só é admissível quando emerge dos autos, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório, que há imputação de fato penalmente atípico, a inexistência de qualquer elemento indiciário demonstrativo de autoria do delito ou, ainda, a extinção da punibilidade. 3. As circunstâncias descritas na inicial acusatória podem caracterizar o dolo eventual, já que o agente teria assumido o risco de produzir o resultado morte, com ele consentindo ao ceder a direção de veículo automotor à suposta vítima, a qual, também alcoolizada, provocou o acidente automotivo que resultou em seu óbito. 4. Assim, mostra-se inviável, na estreita via do habeas corpus, examinar o conjunto fático-probatório dos autos para avaliar se o elemento subjetivo caracterizador do dolo eventual estaria presente na conduta do agente, sobretudo quando o feito ainda está na fase do judicium accusationis, como na espécie. A análise sobre o elemento volitivo do agente deve ser feita primeiramente pelo Juiz de Direito de primeiro grau, com base nas provas a serem amealhadas sob o crivo do contraditório. 5. Ordem de habeas corpus denegada. (STJ – HC 196292/PE (2011/0023113-8), Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Publicação: DJ 2012-08-27) (BRASIL, 2019b).

No primeiro julgado transcrito, é fácil observar que houve a análise das relações emocionais do agente em relação ao resultado, em sintonia com a teoria da vontade. Porém, no segundo julgado, foi realizada uma representação do resultado ilícito como de muito provável realização diante da embriaguez e da falta de habilitação do motorista e, por conseguinte, houve a adoção de uma presunção em prejuízo do réu, o que denota, lamentavelmente, a utilização da teoria da probabilidade.

Por fim, havendo dúvida quanto ao elemento subjetivo do agente (dolo eventual ou culpa consciente), torna-se inafastável a conclusão delineada por Bitencourt:

“[…] persistindo a dúvida entre um e outra, dever-se-á concluir pela solução menos grave, qual seja, pela culpa consciente, embora, equivocadamente, não seja essa a orientação adotada na práxis forensis (Bitencourt, 2012, p. 681).”

 

  1. Revogação da qualificadora prevista no artigo 302, §2º do CTB pela Lei 13.281/16

Em 1º de janeiro de 2016 entrou em vigor a Lei 13.281, que revogou a qualificadora prevista no §2º do artigo 302 do Código de Trânsito, que impunha ao condutor embriagado que se envolvesse em acidente de trânsito com resultado morte uma pena privativa de liberdade de reclusão de 2 a 4 anos, diferenciando-se da pena prevista no caput apenas quanto aos regimes de cumprimento de pena possíveis.

Na prática, a qualificadora revogada, além de não eliminar a celeuma quanto ao dolo eventual e culpa consciente nos homicídios de trânsito com motorista embriagado, tinha quase nenhum efeito prático, principalmente em relação aos réus primários, já que não representava agravamento da resposta estatal em relação aos réus primários (a sanção penal era a mesma do caput), não vedava a substituição por penas restritivas de direitos e não impedia o cumprimento da

pena em regime inicial aberto.

Por conta disso, o dispositivo revogado era alvo de diversas críticas da doutrina, vejamos:

“[…] Percebe-se, contudo, que a alteração legislativa foi demasiadamente tímida, pois apenas substituiu a pena de detenção (aplicável ao homicídio culposo cometido por pessoa sóbria) por reclusão. O único efeito prático disso é que o juiz poderá fixar regime inicial fechado se as circunstâncias do caso concreto assim autorizarem, pois, como é sabido, para crimes apenados com detenção, o regime inicial só pode ser o aberto e o semiaberto (GONÇALVES, 2016, p. 1.041).”

De qualquer modo, é importante pontuar que a referida alteração não traz repercussão alguma em relação às conclusões acima expostas, uma vez que a embriaguez continua sendo apenas mais um elemento a ser considerado pelo juiz para aferição da voluntariedade do agente na realização do resultado, não se podendo afirmar, porém, somente a partir dela, que há dolo eventual ou culpa consciente.

 

 Conclusão

O dolo eventual e a culpa consciente possuem contornos teóricos bem definidos, conquista esta resultante de mais de um século de estudos promovidos pela dogmática do direito penal alemão, não sendo razoável, portanto, desconsiderar tais proposições para justificar a pretensão social ou midiática em reprimir mais severamente o condutor embriagado que pratica homicídio na direção de veículo automotor.

Logicamente, conforme indicam doutrinas e jurisprudências especializadas, a embriaguez, isoladamente, não é capaz de configurar o dolo eventual do condutor embriagado. Há que se apontar, no caso concreto, outras provas de que houve a aceitação do risco de produzir o resultado, sob pena de admitirmos

de presunções contra o réu e, consequentemente, violarmos o basilar princípio da presunção de inocência.

Em verdade, é a timidez insculpida na sanção penal do artigo 302 do Código de Trânsito que merece reforma, para que a pena aplicada possa atender às suas finalidades (retribuir, prevenir e ressocializar), o que certamente não será alcançado se continuar sendo possível, por exemplo, a sua substituição por penas restritivas de direitos, algo verificado em muitos dos casos submetidos ao crivo do Poder Judiciário.

De qualquer modo, havendo dúvida no caso concreto quanto a existência do dolo eventual ou da culpa consciente, deve o aplicador do direito fazer opção por uma solução que seja menos grave, ou seja, por aquela que seja em benefício do réu.

 

Referências

BITENCOURT, Cesar. Tratado de direito penal: parte geral. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. vol. 1.

 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Brasília: STJ – O Tribunal da Cidadania – Pesquisa de Jurisprudência do STJ, 2016. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%28%22MARIA+THEREZA+DE+ASSIS+MOURA%22%29.min.&processo=328426&&tipo_visualizacao=RESUMO&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO >. Acesso em: 01 maio. 2019a.

 

______. Superior Tribunal de Justiça. Brasília: STJ – O Tribunal da Cidadania – Pesquisa de Jurisprudência do STJ, 2012. Disponível em:< https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201100231138&dt_publicacao=27/08/2012>. Acesso em: 01 maio. 2019b.

 

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SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3ª ed. Curitiba: Lumen Juris, 2008.

 

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. vol. 1.

Âmbito Jurídico

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