Matheus Goulart de Carvalho[1]
Resumo: O presente trabalho visa traçar de forma breve o estado atual das migrações em escala global, com destaque para os requerentes de refúgio. Para melhor compreensão, pautam-se aqui dois pontos fundamentais: o quadro pré-pandêmico com base nos estudos de 2019 recém-divulgados pela ACNUR e os desafios trazidos pela pandemia, com destaque para a situação dos campos de refugiados. Para alcançar tais resultados, preza-se pelas exposições e provocações oriundas de diferentes estudiosos do direito internacional e direitos humanos, sobretudo no que diz respeito à influência do sistema socioeconômico vigente na questão migratória e crises passadas. Não obstante, há uso de notícias e tratados internacionais de forma a estabelecer os compromissos firmados sobre a matéria e esclarecer a situação no período em questão.
Palavras-chave: Diretos Humanos. Direito Internacional. Migração. Refugiados. COVID-19.
Abstract: This paper aims to briefly outline the current state of migration on a global scale, with emphasis on asylum seekers. For better understanding, here are two fundamental points: the pre-pandemic framework based on the 2019 studies recently released by UNHCR and the challenges brought by the pandemic, with emphasis on the situation of the refugee camps. In order to achieve these results, it is valued for the expositions and provocations coming from different scholars of international law and human rights, especially with regard to the influence of the current socioeconomic system in the migratory issue and past crises. Nevertheless, international news and international treaties are used in order to establish the commitments signed on the matter and clarify the situation in the period in question.
Keywords: Human Rights. International right. Migration. Refugees. COVID-19.
Sumário: Introdução. 1. A migração e a crise pré-pandemia. 1.1. As crises do capitalismo. 1.2. Os deslocamentos até 2020. 2. O impacto da COVID-19 sobre os deslocados. 2.1. Direitos humanos no Direito Internacional. 2.2. A grave violação de direitos durante a pandemia. 2.3. Três diferentes crises em uma. 3. Possíveis respostas e últimas reflexões. 3.1. Questões de soberania. 3.2. Planos em ação. 3.3. Considerações finais. Referências.
Introdução
A questão migratória é um ponto problemático para discussões há anos. Perguntas sobre o que fazer com refugiados em meio a crises surgem com certa frequência. Ao longo do século XXI, diferentes ondas migratórias surgiram em todo mundo, chegando aos principais tabloides e tornando-se centro de debates internacionais. São pessoas que partem de suas residências, de suas pátrias pelos mais diversos motivos. Alguns deslocam-se em busca de melhores oportunidades de vida, como no caso dos mexicanos que rumam aos EUA, enquanto outros fogem da perseguição instaurada pelo governo contra seu grupo político ou religioso. Há ainda os que tentam recomeçar suas vidas após um desastre ou uma guerra e se veem encurralados.
Seja qual for a razão, a mobilidade humana tornou-se algo intrínseco, um direito reconhecido e indispensável à vida pós-moderna, sendo necessário para que se assegure em alguns casos a própria manutenção de outros direitos humanos como o próprio direito à vida. Não é por menos que autores como Bauman[2] se debruçam justamente sobre como esses deslocamentos, expressos pela liberdade individual e pela demanda pós-moderna, se manifestam e transformam a sociedade.
Contudo, o intuito aqui não é analisar o conceito de pós-modernismo ou como o amplamente conhecido “direito de ir e vir” moldou o mundo globalizado. O intento é, antes de tudo, perceber a manifestação desse deslocamento, ou melhor, os deslocados durante o período da pandemia de Sars-CoV-2, o novo coronavírus. É aqui que se faz importante trazer à mente que não é tão simplesmente porque uma crise sanitária tal qual a presente surgiu de forma tão repentina que as demais crises deixaram de existir, especialmente a questão dos refugiados.
Em meio a uma nova dinâmica imposta aos deslocamentos, com migrações, forçadas ou não, impedidas subitamente, houve um impacto maior do que apenas o econômico. São famílias que ficaram restritas em um país estrangeiro, sem poder retornar, mas também sem recursos para lá permanecerem. São também os sujeitos que já enfrentavam suas próprias crises antes mesmo da pandemia, que não conseguiram sair de seus países quando precisavam, que foram trancados em campos de refugiados com quase nenhuma das medidas de segurança recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Antes de se adentrar ao quadro migratório no ano de 2020, é preciso retroceder um pouco e compreender alguns aspectos basilares dos deslocamentos humanos, compreender o que é a migração e a sociedade existente antes do COVID-19. Tal processo é fundamental para entender que as crises enfrentadas hoje, por mais desafiadoras que sejam, talvez não apresentem uma novidade tão grande quanto se divulga, principalmente considerando o sistema-mundo existente.
Um primeiro ponto a ser considerado para o estudo da atual situação do migrante, seja refugiado ou não, é compreender seu status quo ante. O que se denomina como migração hoje é um termo utilizado com frequência para referir-se à movimentação humana de forma genérica. Apesar da elaboração dos Direitos Humanos e do chamado Direito de Migração serem ocorrências relativamente recentes do ponto de vista jurídico, temos em si um fenômeno que acompanha a humanidade desde a Era Antiga, que descreve fluxos de pessoas por razões diversas. Desde que houvesse necessidade para que um grupo se movimentasse, isto era feito, mesmo antes de marcos como globalização ou a Paz de Vestefália[3]. Ao que aponta Mazzuoli[4], são deslocamentos por motivo econômico, social, político, filantrópico, cultural, religioso, dentre outros. Assim, é possível afirmar que se trata de algo intrínseco ao ser humano.
Sendo migração um termo amplo, ele se aplica a diversos casos, incluindo o caso comum de imigração e emigração de um determinado país, as migrações diárias ou permanentes dentro de um mesmo Estado por motivos de segurança ou trabalho[5], ou até mesmo os casos mais proeminentes a serem tratados aqui: as migrações forçadas. Quanto a estas, cabe uma preocupação especial por parte das organizações e tratados internacionais. Nesse contexto, o termo “forçado” é utilizado para referir-se a toda movimentação migratória ocasionada por fatores impostos como perseguição política ou religiosa. O próprio refúgio é um exemplo de deslocamento forçado, definido como “fundado temor de perseguição em razão de pertencimento a determinado grupo”. Nesses termos, Jubilut aponta:
“A situação clássica de migração forçada é o refúgio que protege as pessoas as quais tiveram ou têm de deixar seu país de origem ou de residência habitual em razão de bem-fundado temor de perseguição em função de sua raça, religião, nacionalidade, opinião política ou de pertencimento a um grupo social, nos termos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967; ou, no caso da América Latina, também por grave e generalizada violação de direitos humanos.” [6]
Isto posto, torna-se fácil compreender o conceito de uma migração forçada. Por outro lado, as migrações “não-forçadas” são aquelas em que, mesmo que exista um fator que incentive a saída como crises políticas, econômicas e ambientais, não se entende como algo imposto, logo, voluntário. Vale dizer que quanto a estas existe um esforço para que se estenda a alguns casos a mesma proteção que um refugiado possui.
Nos últimos anos, graças aos esforços do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados houve uma melhor contabilização de ocorrências migratórias. Analisando tais dados, é notável que esses fluxos migratórios se manifestam de forma repetitiva da seguinte maneira: países com maiores índices de desenvolvimento socioeconômico, principalmente os EUA e a União Europeia, acabam por ser o alvo de grandes quantidades de migrantes oriundos de países em crise político-econômica ou falidos em quesito de Direito Internacional, Somália e Eritreia por exemplo.
“A extrema violência é uma condição central para explicar essas migrações, assim como o são trinta anos de políticas de desenvolvimento internacional que deixaram muitos habitats mortos (devido à mineração, às apropriações de terras para a expansão latifundiária e à monocultura agrícola) e expulsaram comunidades inteiras de seus territórios. (…) No mínimo, algumas das guerras e dos conflitos locais emergem destas destruições, em uma espécie de luta pelo habitat.” [7]
Essa situação não é o retrato da pandemia ou de um fator isolado, mas o resultado de vários anos e diferentes crises sociopolíticas, sobretudo nos países da África e Oriente Médio. É um dado recorrente que determinadas regiões do mundo enfrentam uma alta instabilidade em seus governos e economias, havendo pouca ou nenhuma segurança quanto à manutenção de direitos humanos, sejam eles quais forem. Tais circunstâncias fazem com que haja um fluxo constante de pessoas deslocando-se para fora de zonas de instabilidade, podendo manterem-se ou não dentro do mesmo território a depender da circunstância.
Em razão desses fatores, é impossível tratar da crise dos refugiados ou da crise do coronavírus sem antes tratar do sistema-mundo que subsiste através de todas as dificuldades: o capitalismo. Assim, nada mais natural do que traçar uma breve reflexão crítica acerca da temática. O objetivo não é analisar se ele funciona ou não, mas apontar os fatos relativos ao seu histórico, inclusive no que diz respeito ao discurso recorrente de que a atual crise seria algo “sem precedentes na história”.
1.1. As crises do capitalismo
A forma de condução capitalista do sistema econômico e político do mundo atual já manifestava momentos de turbulência há anos. Em si, ele se forja na crise, é construído sobre ela, depende dela para que gere as benesses esperadas por aqueles que o administram. É uma dualidade necessária, sem a qual não pode se manter. Ao traçar uma linha do tempo da evolução do sistema, é perceptível que a pandemia do COVID-19 não é a primeira e dificilmente será a última crise enfrentada pelo sistema. Através de cada experiência o sistema se renova para suportar-se na próxima crise, reinventando-se no que for necessário, ao passo que mantém as mesmas práticas de mercado e governo que caracterizam o capitalismo. Nesses termos, José Paulo Netto aponta em sua análise:
“Na verdade, desde os anos 1990, em todos os continentes registraram‑se crises financeiras, expressões localizadas da dinâmica necessariamente contraditória do sistema capitalista. E crises, não só as financeiras, fazem, também necessariamente, parte da dinâmica capitalista – não existe capitalismo sem crise. São próprias deste sistema as crises cíclicas que, desde a segunda década do século XIX, ele vem experimentando regularmente. E que, seja dito de passagem, não conduzem o capitalismo a seu fim: sem a intervenção de massas de milhões de homens e mulheres organizados e dirigida para a sua destruição, do capitalismo, mesmo em crise, deixado a si mesmo só resulta… mais capitalismo.”[8]
Assim, não é surpreendente que se encontre um padrão cíclico. Numa perspectiva atual, o ano de 2020 não é único por apontar várias falhas nunca antes vistas ou por trazer algo inovador que vá derrubar o sistema (veja as crises de 1929 e 2008, por exemplo). O ponto chave do momento pelo qual o mundo passa é essa percepção ampla de que o que ocorre hoje não é uma crise tão unicamente da saúde, da mesma forma que a crise econômica não é apenas da economia, mas sim um sistema interligado que unifica guerras, pobreza e exploração da natureza[9].
Numa análise histórica, é justamente para esses fins que mecanismos como o próprio Direito foram concebidos, algo necessário à manutenção desse sistema-mundo, buscando novas formas de auxiliar as demandas do capital. Esse olhar crítico, vale dizer, não existe no intuito de meramente classificá-lo como bom ou mau por juízos de valor. Muito pelo contrário, essa visão permite uma percepção mais apurada e uma melhor compreensão sistêmica, ao passo que se rompem amarras quanto ao que o Direito ou o capitalismo deveriam ser e o que eles realmente são.
“(…) o sistema-mundo foi o grande responsável pelo milagre capitalista europeu, cuja originalidade histórica combinou, de forma contraditória e dinâmica, uma economia-mundo capitalista que foi ganhando contornos mundiais com uma superestrutura política formada por Estados nacionais independentes e extremamente competitivos, na constante busca pela acumulação de capital. Essa acumulação de riqueza leva constantemente a conflitos entre as unidades interestatais. Logo, o sistema-mundo vive em estado de guerra permanente, uma vez que o movimento de capital é desigual e combinado, mal distribuído, cada vez mais concentrado nas mãos de poucos.” [10]
1.2. Os deslocamentos até 2020
Uma vez exposta a questão migratória e sua relação com o sistema vigente e suas crises, é possível avançar para os últimos registros migratórios antes da pandemia, que cobrem até o ano de 2019. Tais dados foram disponibilizados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados há alguns meses e revelam, não surpreendentemente o fato de que a crise migratória abordada não surgiu apenas agora após várias pessoas ficarem impedidas de viajar, mas bem antes, em situações também complexas.
Essa crise do capitalismo exposta hoje serve para evidenciar certos acontecimentos como uma manifesta redução da proteção de direitos humanos e a já percebida situação dos refugiados. O relatório mais recente do ACNUR[11], datado de 18 de junho de 2020, aponta que 68% (aproximadamente 16.3 milhões) de todo o fluxo de migrantes refugiados, incluindo os venezuelanos, originou-se de apenas cinco países: Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Myanmar, enquanto a Turquia sozinha recebeu o maior número, 3.6 milhões de pessoas[12]. Ocorre que esses dados podem ser ainda piores do que aparentam, considerando que a realocação de fato dos refugiados atingiu apenas o número de 107.800, ou seja, dos quase 24 milhões de pessoas fora de seus Estados, apenas 0,45% do total de refugiados encontraram um novo lar de fato, considerando que a situação em campos de refugiados é, em tese, provisória. Vale acrescentar que esses dados alarmantes não levam em consideração o estado atual dos migrantes em meio à pandemia, sendo um levantamento realizado até dezembro de 2019. Mesmo considerando que a doença já existia à data em questão, seus impactos ainda eram insuficientes em escala global. Por outro lado, se somados os números de requerentes de refúgio, asilo e pessoas deslocadas dentro de seus Estados, alcança-se o expressivo número de 79.5 milhões de pessoas, quase o dobro do início da década passada.
Como se não bastasse o quadro de incerteza em que se encontram os deslocados, eles estão fora de sua pátria com uma proteção pouco convincente. Em campos na Europa e nos EUA esses imigrantes são postos em situações precárias, onde a superlotação é seguida de violência e pouco ou nenhum respeito pelos direitos humanos[13]. Um dos campos de refugiados com os piores relatos é justamente o campo da ilha de Lesbos, na Grécia, mas não é o único. Apesar das denúncias graves recebidas dos campos, não há medidas para mudar esse paradigma. Não se trata de falta de informação, mas falta de desejo por parte da própria União Europeia. Não surpreendentemente, em março de 2020, no início da pandemia, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen viria a público elogiar a atuação grega na questão dos refugiados, enaltecendo-os como o “escudo da Europa”[14].
A situação que o estudo da ACNUR aponta não é novidade, por mais grave que seja. A questão, por assim dizer, é compreender o estado da crise dos refugiados pré-COVID para que então se possa entender sua situação em meio à pandemia. Afinal, conforme salientado em outras passagens, a superveniência da crise sanitária não apagou a crise dos refugiados, tendo, ao contrário, agravado o risco humanitário apresentados pelos maiores campos de refugiados. Esses e outros relatos serão explorados a seguir.
Conforme tem sido exposto, a Sars-CoV-2 tem sido uma doença muito mais impactante do que aparenta inicialmente. A forma como ela se deu serviu para por em questionamento diversos pontos de funcionamento da dinâmica global, levando nações a repensarem matrizes energéticas, o funcionamento de normas e organizações internacionais como a OMS, inclusive as questões humanitárias. Afinal, quando se tem uma doença que requer distanciamento social e condições básicas de higiene, determinadas populações revelam-se como altamente em risco.
No Brasil, tal descrição traz à memória as comunidades periféricas espalhadas pelas grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Por outro lado, em um panorama internacional, os campos de refugiados enfrentam situação similar, sem espaço suficiente ou condições sanitárias mínimas. É essa situação que faz com que a questão humanitária desses grupos, especialmente os deslocados, foco do presente artigo, se torne uma discussão tão indispensável. Afinal, essas condições precárias não passaram a existir com a pandemia, tendo apenas recebido um holofote sobre elas.
Para tratar dessa questão dos direitos humanos em meio à pandemia, sobretudo os que são negados aos refugiados, é preciso estabelecer quais direitos são esses. É preciso que se destaque que esses direitos não são apenas de fonte natural, mas positivados no Direito Internacional e internalizados por diversos países. Isto posto, ao falar que certo direito humano é violado, é preciso determina-lo, trata-lo de forma concreta e não apenas abstrata.
2.1. Direitos humanos no Direito Internacional
Ao pensar a questão dos migrantes em meio à crise provocada pelo novo coronavírus, é preciso por em questão não apenas a realidade enfrentada, mas os direitos que são ameaçados. Primeiro, e não poderia deixar de ser, existe o direito de ir e vir, o direito de deslocar-se. É uma característica intrínseca do ser humano em um mundo capitalista e globalizado, da sociedade pós-moderna, em que a necessidade, o desconforto e a inconformidade movimentam a realidade[15]. No Direito Internacional isso se traduz no art. XIII da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), pelo qual: “1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.”[16].
A questão é que em determinadas situações, alguns direitos humanos acabam por ser restringidos por vários países. Isso ocorre por permissão expressa de tratados internacionais diversos. É o caso, por exemplo, da previsão do artigo 27 do Pacto de San José da Costa Rica, em que se aborda que determinadas situações de perigo público ou outra emergência à independência ou segurança do Estado configuram permissões temporárias para a supressão de direitos humanos, desde que não sejam os do §2º[17]. Contudo, o tratado não especifica quando tais circunstâncias se configuram de fato. Em outras palavras, o Estado é soberano para determinar através de uma ponderação de direitos, qual deve ser suprimido em qual ocasião. É similar ao que ocorre no próprio Brasil quando há colisão dos mesmos. A diferença, conforme se verá posteriormente, é que o sistema brasileiro possui mecanismos para se averiguar determinada ponderação em alguns casos, podendo o ato em questão ser revisto. Quando se trata do Direito Internacional, apesar de existirem tribunais internacionais, inexiste força coercitiva para que após o julgamento se faça cumprir o parecer da corte.
Para que um determinado direito previsto em tratado seja mitigado por algum motivo, seria necessário que se realizasse a notificação prévia ao depositário do tratado. Isso conferiria ao Estado signatário a “permissão” para prosseguir com a supressão do direito em questão. Apesar disso, poucos países fizeram qualquer tipo de notificação aos depositários de tratados. Por mais que se compreenda o caráter emergencial das medidas, há um risco na ausência de controle dessas ações delimitadoras. Dessa forma, a problemática enfrentada não é exatamente com relação à supressão da liberdade em razão da vida, mas o fato de não se adotar a conduta prevista em tratado e, pior ainda, extrapolar os limites das restrições.
Pondera-se que seja mais do que razoável que alguns direitos sejam sacrificados em prol do direito à vida, afinal, sem este não é possível exercer os demais. Apesar de alguns grupos bradarem com certo furor contra o uso de máscara e a suspensão de aglomerações, muitos governos adotaram esse posicionamento mais restritivo para combater a nova doença. Assim, muitas das liberdades consagradas na DUDH como liberdade de movimento, de culto e reunião, além dos direitos a trabalho e educação foram afetados negativamente pelas medidas de combate ao coronavírus. Por mais inquietante que tal situação possa parecer a alguns, não haveria problema, devendo apenas o Estado proceder com a notificação. O problema, porém, se dá quando governos abusam dessa autoridade para violar direitos que não podem ser abolidos em hipótese alguma. A título de exemplo, tem-se o princípio do non-refoulement[18] e da não discriminação, ambos consagrados no Direito Internacional como normas jus cogens[19].
2.2. A grave violação de direitos durante a pandemia
Durante a pandemia, estrangeiros que se encontravam em outros países foram os primeiros alvos de atos xenofóbicos da população e do próprio governo. Não apenas se restringiu primeiramente o trânsito de estrangeiros dentro do próprio território dos Estados, bem como muitos foram hostilizados diariamente. Não se tratava de um ato racional considerando onde estiveram ou com quem tiveram contato, mas sim o fato de serem diferentes, de serem de outra nação, de outra etnia. São diversos os relatos desses acontecimentos, sobretudo para com aqueles que portam algum traço físico do Extremo Oriente. Contudo, em meio à pandemia, vários discursos de ódio se tornaram recorrentes contra os imigrantes, não importa a nacionalidade. É tal como se fosse justificável, como se necessitassem encontrar um culado. Nesta realidade, a xenofobia encontrou espaço. A exemplo, há relatos de brasileiros que enfrentaram tais problemas enquanto estavam no exterior, tal como aquela em que um grupo de turistas foi rotulado de “corona” com a saudação “good morning, coronavírus”[20] sempre que eram avistados.
Em outros países a fila para repatriação cresceu exponencialmente nos aeroportos. É o caso do Brasil. Apesar dos esforços para que se fizesse cumprir o preceito de tratamento igual a nacionais e estrangeiros (art. 5º CRFB/1988), isso foi dificultado pela pandemia. Em Guarulhos, no início de junho, mais de 300 colombianos esperavam pela oportunidade de retornar ao seu país, algo difícil considerando as fronteiras fechadas, os voos escassos e a ausência de recursos de muitas famílias para que pudessem arcar com uma passagem[21]. Isso, vale dizer, é apenas um retrato da crise de migrantes.
Quando se trata da questão específica dos refugiados, a situação torna-se ainda mais precária. Se os efeitos da pandemia são perceptíveis mesmo nos Estados e centros metropolitanos de maior desenvolvimento, com acesso a saúde e saneamento básico, é mais devastador ainda o impacto em um campo de refugiados, onde há saneamento básico precário, pouco acesso a sistemas de saúde e impossibilidade quase total de realizar isolamento social em qualquer grau que seja. Isso diante de um vírus de fácil disseminação é razão de grande preocupação, até porque essas pessoas lá alocadas simplesmente não possuem qualquer outro lugar para ir. Não obstante, os governos responsáveis por tais campos pouco parecem se preocupar com as condições em que essas pessoas se encontram.
Em Moria, na ilha grega de Lesbos, já mencionada anteriormente, cerca de 20 mil pessoas ocupam um espaço destinado para apenas 3 mil. A recomendação da OMS[22] para distanciamento social de pelo menos um metro torna-se, portanto, impraticável de qualquer ponto de vista. Não apenas isso, mas a falta de água ou suprimentos básicos para higiene pessoal e cuidados mais específicos como álcool em gel não possuem disponibilidade suficiente para atender à população. Nessas circunstâncias, a crise de direitos humanos já sofrida pelos refugiados aumenta ainda mais, considerando que os planos práticos não os colocam em qualquer tipo de prioridade ou tratamento igualitário.
Semelhantemente, os campos de detenção dos EUA, repletos de imigrantes mexicanos revelam o descaso de autoridades. Não é um dado recente as condições desses centros ou o manejo feito das famílias que atravessam a fronteira, contudo, tal como em outros casos, o coronavírus agravou uma situação já precária. Um estudo recém-divulgado pelo Center for Migration Studies of New York (CMS)[23] revela justamente esse fato, com a denúncia de que o caos que se tornariam tais centros era premeditado desde antes dos primeiros casos se estabelecerem na América em março de 2020[24]. Se trata de um documento no qual é apontado que embora a Immigration and Customs Enforcement (ICE)[25] tenha alegado controle da situação e que nenhum detento ou funcionário tenha sido contaminado até a terceira semana de março, a situação mudaria rapidamente.
No dia 25 daquele mês foi confirmado o primeiro caso em meio a outros suspeitos. A partir de então, em um mês já eram 124 casos e em crescimento exponencial. Em 03 de agosto de 2020 já somavam 4.038 pessoas em 81 instalações, todos contaminados pelo vírus. Tal curva, vale dizer, não demonstrou qualquer sinal de achatamento ou decrescimento desde o início. Não apenas isso, mas a própria ICE revelou que os casos podem ser ainda mais numerosos, considerando que não dispunha de testes suficientes para todos e apesar da pandemia, houve ainda um grande fluxo de pessoas, com mais de 66.000 que passaram pelas instalações de março a junho pelos mais diversos motivos.
No meio de tamanho tumulto causado pela pandemia, as autoridades não se acanharam e mantiveram os detentos presos, fazendo às vezes transferências, ajudando a disseminar ainda mais os vírus entre os grupos de deslocados. De forma comparativa, a ICE não demonstrou qualquer intuito de liberar os detentos, enquanto o Canadá, país que detém bem menos imigrantes que os EUA, libertou mais da metade dos imigrantes ilegais sob custódia e o México libertou praticamente todos os detentos. Entre os altos números presos pela ICE, existem ainda pessoas requerentes de asilo sob a Convenção Contra a Tortura, havendo em 25 de julho aproximadamente 3.306 que já tinham estabelecido um “fundado temor de perseguição”[26]. Em outras palavras, trata-se de mais uma violação dos direitos humanos.
Os dados sobre os centros de detenção para imigrantes são extensos tal como os questionamentos. A intenção aqui, porém, é trazer à luz as circunstâncias em que as pessoas deslocadas se encontram, seja em campos de refugiados na Europa ou nos centros dos EUA. Intenta-se apontar que esses problemas existem há tempo e apenas tornaram-se mais gravosos devido à pandemia do novo coronavírus. Mais uma vez, salienta-se que por pior que seja a crise sanitária hoje, ela não é a única, carecendo-se por vezes de um esforço para enxergar além da doença que se alastra.
2.3. Três diferentes crises em uma
Como é de se esperar que ocorra, determinadas organizações acabam por tomar destaque nos posicionamentos e planos de ação contra a pandemia. Para além da a própria OMS, que desde o início tem estado na liderança das ações de combate ao novo coronavírus, a Organização das Nações Unidas (ONU) e suas repartições também se manifestaram sobre a situação, sobretudo no que diz respeito aos deslocados, já que não eram poucos os infindáveis debates sobre a crise dos refugiados.
Em meio à pandemia, o próprio secretário-geral da ONU, António Guterres avalia como crítica a situação dos refugiados, pois eles enfrentam três crises ao mesmo tempo:
Diante da crise, restam perguntas sobre o que pode ser feito, sobre o que o Direito Internacional poderia realizar para mudar o paradigma atual ou ao menos enfrentá-lo. Já foram exploradas algumas questões sobre a pandemia de COVID-19, sua relação com sistema capitalista e, principalmente, seus efeitos sobre os deslocados. Contudo, é possível perguntar se alguma ação está sendo tomada de fato para alterar esse quadro. A resposta curta é sim, mas é preciso pontuar algumas coisas antes.
3.1. Questões de soberania
Primeiramente, o nível de organização internacional para tomar medidas não é algo simples. Por mais que possa ser citada a OMS e a própria ONU como organizações preocupadas com a pandemia e até mesmo com as outras crises que se abatem sobre o mundo, elas não possuem poder para impor medidas sobre os países. É bem verdade que os membros signatários de seus tratados assumiram responsabilidades e comprometeram-se em colaborar no que preciso fosse inclusive prestando relatórios (arts. 61 a 64 da Constituição da OMS) e auxiliando financeiramente a organização, sob pena de sanção (art. 7º)[28]. Contudo, é necessário relembrar que não há qualquer nível de subordinação propriamente dita.
Tal como ocorre em outras situações a nível internacional, a membresia de determinado Estado a determinada organização não significa que ele perca sua soberania em si. Em outras palavras, qualquer ação proposta por entidades internacionais necessita antes de consentimento do governo em questão. A exemplo de novo, o próprio art. 2º, “c” e “d” da OMS estabelece que:
“Artigo 2 Para conseguir o seu objetivo, as funções da Organização serão:
(…)
Por que é tão importante saber disso? Se deve ao fato de que muitas ações internacionais não podem ir para frente justamente por essas questões de soberania. Certamente existem maneiras de se influenciar determinado Estado a tomar uma decisão. Isso ocorre por meio de pressões externas e normalmente se dá de um país com uma “economia mais forte” sobre um país com uma economia mais vulnerável. Em demais casos, torna-se difícil exercer esse poder. Como poderiam os EUA serem “forçados” a algo quando eles são a maior potência econômica do mundo global? Como uma organização deveras dependente dos recursos financeiros norte-americanos poderia se impor em qualquer grau que fosse? É quase que impossível imaginar um quadro, por exemplo, no qual a ONU conseguisse forçar alguma matéria a um país membro permanente de seu Conselho de Segurança. Mesmo que passasse, quem a cumpriria?
Esses questionamentos servem o propósito justo de provocar reflexão sobre a real efetividade das ações de organizações internacionais em meio a crises. Mesmo que exista um planejamento para resolver determinado problema, é preciso perguntar se existe algum interesse contrário à sua execução. Nesse ponto o internacionalismo encontra uma barreira no sentido em que por mais que se queira admitir sua necessidade, faltam-lhe as ferramentas para dar efetividade. Falta a ele uma revisão de seu próprio conceito e construção, se visa a poética “união dos povos” ou teria se rendido à globalização do sistema capitalista e de nada mais serve além de acentuar o que já está aí. Se assim for, assistirá razão aos críticos do sistema[29], mesmo que, conforme visto até aqui, não seja uma falência total.
Apesar de tamanhos desafios, fato é que uma ação se faz necessária, não apenas com relação à COVID-19, mas as demais crises também. Desta forma, cabe aqui apontar enfim as medidas que estão sendo organizadas em algum grau não apenas pelas organizações, mas também na particularidade de cada Estado.
3.2. Os planos em ação
Diferentes Estados e organizações têm estabelecido planos de ação, cada qual segundo sua realidade de forma a combater as crises que se insurgem por todo o mundo. Para além das medidas sanitárias sugeridas pela OMS, uma série de atitudes tem sido tomada para amenizar a situação com os deslocados. Em Portugal, por exemplo, foram adotadas medidas para facilitar o agendamento e concessão de vistos para os imigrantes que foram surpreendidos pela pandemia[30]. Os refugiados e os demais migrantes no país serão tratados como residentes portugueses, dotados dos direitos necessários para acessar serviços públicos de saúde, bancos e realizar contratos de trabalho. É uma medida paliativa até que a situação pandêmica mude seu quadro e facilite o retorno ou regularização dessas pessoas. A ideia é que desta forma se torne mais fácil a sua permanência no país, sem obrigá-los a centros de refugiados ou forçar sua saída para algum outro país.
No que tange às organizações internacionais, não é preciso que se invista muito tempo para que se perceba que organizações como a ACNUR estão continuamente atuantes em meio à pandemia. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados tratou de denunciar os casos preocupantes de refugiados e deslocados em condições impróprias durante a pandemia, como o já mencionado campo de Lesbos, na Grécia. Não apenas isso, existe um amplo esforço no sentido de estender a condição e os direitos de refugiado a milhares de pessoas que hoje não usufruem dessa possibilidade.
No que tange à América Latina, a Organização Internacional para Migração (OIM) lançou em 22 de maio de 2020 um apelo urgente[31] buscando 21.2 milhões de dólares para lidar com os impactos da pandemia sobre os refugiados e migrantes em estado de vulnerabilidade em dez países da América do Sul, incluindo o Brasil, então novo epicentro da pandemia. É um Plano Regional de Resposta a Refugiados e Migrantes (RMRP) e visa atuar de forma completa, não apenas financeiramente, mas também informando e combatendo situações de xenofobia contra esses grupos. Insta acrescentar, há um desafio maior considerando a realidade socioeconômica e as crises que vinham sendo enfrentadas no cone sul mesmo antes do COVID-19. Trazendo à memória a instabilidade socioeconômica e política que os países da região passam com certa constância, torna-se ainda mais difícil elaborar e pôr em prática ações de contenção. Para que se tenha ciência dos números, são aproximadamente 10 milhões de migrantes deslocados na América do Sul e 80% são da própria região, principalmente da Venezuela. A Colômbia, por exemplo, é o segundo país no mundo a receber a maior quantidade de deslocados, 1.8 milhões ao todo[32].
3.3. Considerações finais
Não cabe aqui realizar longas ponderações sobre como as coisas hão de ser no futuro, qualquer espécie de futurismo ou juízo de valor pouco serviria. No entanto, é plenamente possível salientar que a pandemia de COVID-19 é um ponto impactante em diversos aspectos para a humanidade. Isto não se dá por ser a primeira crise do tipo, mas justamente pela forma como se abate sobre diversos setores e ajuda a expor situações que já eram críticas desde antes. Não se trata de um fim para o capitalismo ou a falência do Direito Internacional. Também não há evidências de que será ela a fazer com que a sociedade repense todas as crises humanitárias pelas quais tem passado, mas é inegável como essa pandemia se tornou impactante em tantas áreas em tão pouco tempo.
Por fim, com relação aos deslocados, a experiência pandêmica até o momento em nada demonstrou-se favorável a melhorias, restando pouco além de esperar o desfecho, estando à mercê dos governos, em sua soberania, tomarem uma atitude em relação a eles. Afinal, algo que a crise atual reforçou foi o fato de que o internacionalismo possui fragilidades preocupantes, com dificuldades inclusive para pôr em prática planos de contingência sanitária. Afinal, conforme já apontado, inexiste um mecanismo internacional que imponha o cumprimento de uma ação a determinado país. Por certo, há muito o que ser explorado dentro da crise dos deslocados, sobretudo dos refugiados. O desfecho, contudo, ainda é incerto. Desta forma, cabe a todos aqueles que possuam um mínimo de preocupação para com essas questões, sejam pesquisadores ou ativistas, observarem de forma crítica e se prepararem para agir no mundo que emergirá após a crise.
Referências
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[1] Pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes, bacharel em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. email: matheus.mgc@hotmail.com
[2] COUTINHO, 2001
[3] Nome dado aos tratados cuja elaboração teve participação de Hugo Grotius e pôs fim à Guerra de 30 Anos, sangrento conflito entre cristãos católicos e cristãos protestantes no século XVII.
[4] MAZZUOLI, 2015, p. 782
[5] As diferentes modalidades de migração por trabalho são tratadas na Convenção Internacional sobre a Protecção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias. A exemplo: trabalhador migrante, fronteiriço, sazonal, marítimo, itinerante etc. (ONU, 1990, art. 2º)
[6] JUBILUT, 2010, p. 281
[7] SASSEN, 2016, p. 31
[8] NETTO, 2012
[9] FERREIRA, 2012, p. 109
[10] OSÓRIO, 2011, p. 3
[11] ACNUR, 2020
[12] Há um acordo de 2016 com a UE em que a Turquia seria paga para frear a entrada de refugiados na Europa, funcionado como um filtro, um “escudo” (AA, 2019)
[13] MSF, 2018; BBC, 2018
[14] BNN, 2020
[15] BAUMAN, 2008 apud SILVA, 2012
[16] ONU, 1948
[17] Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, direito à vida, direito à integridade pessoal, proibição da escravidão e da servidão, princípio da legalidade e da retroatividade, liberdade de consciência e religião, proteção da família, direito ao nome, direitos da criança, direito à nacionalidade e direitos políticos, além das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos. (OEA, 1969)
[18] Chamado “não repulsão”, prima pela não devolução de alguém a seu país ou a outro Estado que represente risco para sua integridade.
[19] BRASIL, Decreto 7.030/09, Tratado de Viena, art. 53
[20] Folha de São Paulo, 2020
[21] Id., 2020
[22] OMS, 2020
[23] Centro de Estudos de Migração de Nova Iorque (tradução nossa)
[24] CMS, 2020, p. 2-4
[25] Imigração e Fiscalização Aduaneira (tradução nossa)
[26] Ibid., p. 9
[27] ACNUR, 2020, p. 3
[28] OMS, 1946
[29] “É certo que a globalização está longe de significar uma integração com a mesma intensidade de todos os países no novo cenário. (…) Há, pois, uma manifesta falta de globalidade na globalização, como vinca José Reis (…)” (PUREZA, 2001, p. 10 e 11)
[30] REUTERS, 2020
[31] ONU, 2020
[32] ACNUR, 2020, p. 3
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